O que por ora se segue constitui o Capítulo IV da Segunda Parte da Exaltação da Filosofia Derrotada, de Orlando Vitorino. Esta obra fora, pois, publicada em 1983, numa altura em que Portugal não fazia ainda parte da Comunidade Económica Europeia. Por conseguinte, Portugal conservaria a sua moeda até princípios de 2002, data em que o escudo português, na sequência da taxa de conversão estabelecida em 31 de Dezembro de 1998, fora preterido pelo euro.
Ora, uma vez que Portugal perdia assim um instrumento de liberdade, é natural que o câmbio até então operante entre as diferentes moedas recuasse perante o novo sistema monetário europeu. Todavia, Orlando Vitorino chegara a descrever e a sistematizar todo um processo que, anterior à moeda única europeia, permite evidenciar o papel essencial das várias entidades nacionais para o livre funcionamento do sistema da economia. E é precisamente neste ponto, ignorado, senão mesmo desprezado pela maioria dos teorizadores da ciência económica, que o dinheiro ganha um outro significado se especialmente compreendido na qualidade de mercadoria entre as demais.
Daí a questão fundamental do padrão-ouro tão ostensivamente descurada pelos economistas catedráticos de renome, como Miguel Beleza, Braga de Macedo e Pina Moura. O primeiro deles chegou mesmo a minorar, em debate televisivo recente, a importância e a virtude do padrão-ouro no sistema monetário internacional, escudando-se em Keynes que via no ouro o «remanescente de uma era de barbárie». E note-se ainda que Miguel Beleza fora um dos principais responsáveis pelo processo de adesão de Portugal à União Económica e Monetária.
Outro facto é a total ou parcial incapacidade de jornalistas, politólogos e economistas para seriamente verem, de uma vez por todas, que Portugal se encontra totalmente dependente de organizações internacionais, e, por isso mesmo, sem nenhuma margem de manobra para actuar, livre e soberanamente, no plano político, financeiro e económico. Aliás, Pina Moura, que também teve a sua quota-parte de responsabilidade no já longo processo de desagregação nacional, disse mesmo na televisão que a nossa soberania só é susceptível de ser entendida na forma de uma «soberania partilhada». Enfim, esta geração foi, juntamente com a anterior, uma das piores gerações que Portugal já teve ao longo da sua História.
Miguel Bruno Duarte
Teoria do dinheiro
Observação prévia: Tal como acontece com o mercado, também o conhecimento científico do dinheiro é já de tal modo exaustivo que equivale a uma determinação categórica, embora, também como ao conhecimento do mercado, lhe falte o pensamento propriamente categorial e a consequente articulação sistematizadora. É a obtenção desse conhecimento obra, quase exclusiva, dos teorizadores do segundo período, o contemporâneo, da ciência económica, com relevo para Ludwig von Mises que não deixou, todavia, de reconhecer as raízes que toda a teoria do dinheiro, tem, primeiro, em Aristóteles, depois nos economistas italianos e ibéricos da Renascença e, mais recentemente, em David Hume. Também aqui nos limitamos a sintetizar, sem atender às suas projecções contabilísticas, as noções essenciais da teoria.
A teoria do dinheiro depende da compreensão de como o dinheiro é uma mercadoria. Em dois sentidos o é.
O primeiro sentido, que foi estabelecido por Aristóteles, indica que o dinheiro tem de ser uma mercadoria escolhida como meio de troca de todas as outras mercadorias. Seja essa, o ouro, como parece sempre ter sido, embora só a partir de certa época de modo exclusivo (1).
Utilizado como dinheiro, o ouro não deixa por isso de ser uma mercadoria entre as outras. Continua a ser, como elas, uma, digamos, mercadoria particular que se continua a poder trocar, segundo os acordos do mercado, por outra mercadoria particular. Continua a ter um preço e em momento algum deve deixar de o ter. Mas investido do carácter de dinheiro, passa a ser a mercadoria universal, pois passa a poder trocar-se, em qualquer momento e em qualquer lugar, por outra qualquer mercadoria. Este poder universal de troca chama-se poder aquisitivo que a generalidade dos economistas confundem com valor, errada designação que transitou à linguagem vulgar.
Temos, deste modo, dois sentidos em que se diz que o dinheiro é uma mercadoria: o sentido de mercadoria particular e o sentido de mercadoria universal. Há, porém, um terceiro sentido. É o que o poder aquisitivo é, por sua vez, mercantilizável, tem, por si mesmo, um preço e este preço acrescenta-se, sempre segundo as leis do mercado, ao preço da mercadoria particular que foi escolhida para dinheiro. Foi este terceiro sentido que perturbou e iludiu muitos economistas e teorizadores levando-os a considerar contraditório ou, pelo menos, dispensável que o dinheiro tenha de ser uma mercadoria particular uma vez que pode ter, como quase sempre tem, um preço diferente do da mercadoria escolhida. Concluíram, então, que o dinheiro é apenas um mediador, se destina apenas a facilitar ou a possibilitar as trocas. Nenhuma necessidade haverá, disseram, em ligar o dinheiro a uma mercadoria pois, funcionando apenas como mediador, não é mais do que um sinal convencional.
Como já sabemos, foi Adam Smith quem primeiro expôs, em termos científicos, esta concepção e, seguido de perto por Ricardo, justificou e advogou a adopção do papel-moeda que, aliás, começara a generalizar-se no Séc. XVIII, provocando o eloquente protesto do poeta alemão Goethe, que via nele uma invenção diabólica destinada a sujeitar os homens à mais negra das servidões.
Paralisados por esta concepção, que se tornou cada vez mais dominante, os teorizadores clássicos viram-se inibidos de meditar e sistematizar a categoria do dinheiro, embora tivessem vivido na época em que o padrão-ouro foi universalizado e «graças a ele - como diz von Mises - o Ocidente pôde levar a civilização até aos mais recônditos lugares da terra» (2).
E é também von Mises quem nos diz: «A teoria do dinheiro foi abandonada apesar de a obra gloriosamente iniciada por David Hume ainda se ter prolongado na escola monetária inglesa, em Stuart Mill e em Cairnes» (3).
A crítica e refutação da concepção do dinheiro como sinal convencional faz-se por duas vias: a da demonstração de que o dinheiro não pode deixar de ser uma mercadoria e a da demonstração pelo absurdo, descrevendo o processo e os resultados a que ela conduz.
A primeira demonstração, repetidamente a fez von Mises (4).
Resistiu ela a todas as críticas e pode sintetizar-se no seguinte:
O segundo modo de refutar a concepção do dinheiro como sinal convencional, o da demonstração pelo absurdo, consiste em descrever o que inevitavelmente acontece quando se considera que o dinheiro não é uma mercadoria, ou seja, quando a coisa não tem no mercado um preço independente de ela ser ou não ser dinheiro. Se o dinheiro não estiver ligado a uma mercadoria, quem determina o seu poder aquisitivo (ou o seu preço ou, na linguagem vulgar, o seu valor)? Só o Estado o pode fazer. Ora, como também já vimos, o Estado não é uma entidade abstracta. É um instrumento que está nas mãos do Governo ou dos governantes e estes estão, por sua vez, sujeitos a toda a espécie de grupos de pressão, desde os das ideologias políticas até aos dos interesses plutocráticos. Tal situação é assim sintetizada por von Mises: «Com o padrão-ouro, o poder aquisitivo do dinheiro fica independente das variáveis pretensões e doutrinas dos partidos políticos e dos grupos de pressão (...). O sistema do padrão-ouro subtrai à política a determinação, mediante alterações de índole monetária, do poder aquisitivo do dinheiro. A comum aceitação do sistema implica o prévio reconhecimento daquela verdade segundo a qual não é possível, com a mera impressão de notas de banco, enriquecer toda a comunidade. O ódio ao padrão-ouro provém da crendice de que o Estado omnipotente pode criar riqueza com o simples gesto de lançar no mercado uns tantos pedaços de papel» (5).
Resultou esta «crendice» de um processo histórico que convém descrever. Começou ele num acto decerto legítimo e justificado. O possuidor de ouro, ou de moeda, inscrevia num documento em papel o compromisso de o trocar pela porção de ouro nele indicada logo que tal lhe fosse exigido, e fazia-o circular no mercado em lugar da moeda. Documentos deste género correspondiam àquilo que se viria a chamar papel-moeda. A partir do Séc. XVII, os Estados chamaram a si o exclusivo da emissão de papel-moeda como, até então, detinham o exclusivo da cunhagem de moeda ou de amoedação dos metais preciosos. Impondo aos seus súbditos que confiassem neles, os Estados fizeram desaparecer, primeiro de facto depois de jure, a convertibilidade imediata e incondicional do papel-moeda no ouro que ele representava e substituía. A seguir, em vez de representar uma existência real de ouro, o papel-moeda passou a representar apenas uma parte da porção de ouro nele inscrita e, mais tarde, a referir-se apenas ao ouro como uma medida ou padrão. Por fim, já nos nossos dias, até esta referência foi abolida e o papel-moeda ficou a ter, por única garantia, a palavra do Estado que não é uma entidade moral nem, como a história ensina, tem palavra. A quantidade de moeda que pode ser emitida tornou-se ilimitada e incontrolada, o que constitui uma ameaça de tal modo grave que teorizadores como F. Hayek e M. Friedman consideram imperioso inscrever nas Constituições Políticas um limite para tal quantidade, coisa a que os governantes natualmente se opõem para não verem diminuídos os seus poderes, custem eles o que custarem às populações.
Entretanto, um critério teve de se estabelecer para evitar que a moeda, ou o dinheiro, perdesse toda a eficácia, e mais uma vez se recorreu a uma regra definida por Adam Smith: a de que «a quantidade de dinheiro em circulação num país deve corresponder à quantidade de mercadorias existentes nesse país». A palavra do Estado consistirá, então, nisso: em garantir que quem possuir todo o dinheiro de um país o pode trocar por todas as mercadorias nele existentes ou, o que é o mesmo, que qualquer porção de dinheiro de um país encontra sempre nele mercadorias a adquirir.
Há neste critério um erro de raciocínio e, simultaneamente, de facto.
Em primeiro lugar, não tem ele em conta que os possuidores de dinheiro não o destinam a trocá-lo por uma qualquer mercadoria mas sim por aquela mercadoria de que carecem ou que desejam. Não será, pois, apenas a quantidade mas também a variedade de mercadorias existentes que deve garantir a moeda. Com efeito, nenhum interesse me desperta a moeda de um país que não desejo visitar e que não me oferece mercadorias que eu deseje adquirir, por maior que seja a quantidade que ele disponha de outras. Ora nenhum país possui a variedade de produtos correspondente a toda a gama de carências e desejos dos homens, e é isso que torna inevitável o câmbio das diferentes moedas nacionais, a troca e a relação entre as moedas dos diferentes países. E o câmbio das moedas, com a variedade das mercadorias que lhe dá origem, torna-se um decisivo condicionante da quantidade de papel-moeda a emitir. Ora a variedade de mercadorias é indeterminável, tão indeterminável como a variedade de carências e desejos dos homens, e, então, o câmbio aparece, ao condicionar a quantidade da emissão de papel-moeda, como o que há de mais contingente, ocasional, incerto e inseguro, constituindo um factor de graves perturbações na economia. Só quando o dinheiro é, ele mesmo, uma mercadoria, o câmbio pode dispor de um padrão que o torna, tanto quanto possível, definido e seguro.
Em segundo lugar, o erro reside na impossibilidade, também intransponível, de determinar a quantidade das mercadorias existentes. Na ilusão de que tal quantidade se pode tornar possível, e mesmo assim apenas formalmente, os Estados consideram necessário estabelecer o total controlo da produção e do comércio. Como tal quantidade não é, nem pode ser, constante, a esse controlo terão de acrescentar a planificação. Mas à planificação sempre é inevitável que escape a contribuição decisiva, mas imprevisível, incalculável e incontabilizável, que a natureza dá à produção. E os indivíduos ficarão impedidos de introduzir na actividade económica qualquer orientação ou iniciativa próprias, o que, necessariamente, fará diminuir a produção e o comércio de, pelo menos, aquela parte composta, não tanto pelo trabalho como pelo engenho, a imaginação e a inventiva de que são feitas as iniciativas pessoais. A quantidade das mercadorias sobre a qual, ainda que com honestidade e segundo um cálculo meramente aproximativo, o Estado baseou a garantia do papel-moeda emitido, em breve entrará em constante diminuição e o papel-moeda depressa não será mais do que moeda falsa.
É este o absurdo a que conduz a correspondência entre a quantidade do dinheiro e a quantidade das mercadorias. Mas não é uma descrição como a que acabamos de fazer que von Mises utiliza para demonstrar o erro da regra de Adam Smith a que recorrem os políticos e os economistas ao seu serviço (6).
Utiliza, antes, o argumento de que a maior ou menor quantidade de dinheiro não tem qualquer significado económico. Expõe assim o seu argumento, o qual supõe naturalmente que o dinheiro seja uma mercadoria:
«Os serviços que o dinheiro presta são resultantes do seu poder aquisitivo. Não há ninguém que o que pretenda é ser dono de uma certa quantidade de moedas. O que cada um pretende é, com essas moedas, dispor de uma certa quantidade do poder aquisitivo. E com é a mecânica do mercado que fixa o poder aquisitivo do dinheiro naquele nível em que a oferta e a procura se igualam, nunca pode haver nem excesso nem falta de dinheiro. Seja grande ou pequena a total quantidade de dinheiro existente, todas e cada uma das pessoas desfrutam plenamente das vantagens que a troca indirecta e a existência do dinheiro oferecem» (7).
Por mais estranho que tal se afigure aos já elucidados, o absurdo que acabamos de descrever é a situação em que se encontram mergulhadas, sobretudo a partir dos anos 30, as sociedades contemporâneas. Para avaliarmos a amplitude desta situação e vermos até onde podem conduzir as consequências de uma errada e não categorial concepção ou teoria do dinheiro, importa agora atender ao preço do dinheiro.
Sendo uma mercadoria, o dinheiro tem um preço. E como é, simultaneamente, uma mercadoria particular e a mercadoria universal, em dois sentidos se pode dizer que tem um preço. Um sentido é o do preço da mercadoria particular: exprime-se como o de qualquer outra mercadoria, aprecia-se pelas coisas pelas quais pode ser trocada e é este preço que determina o poder aquisitivo da mercadoria universal. O outro sentido é o da mercadoria universal, pois esta não se destina a apenas adquirir, destina-se também a ser adquirida, não compra apenas, também se vende. Neste sentido, o preço do dinheiro é a soma do seu preço como mercadoria particular e do juro. O juro, tal como todos os preços, é determinado pelo mercado. Ora é aqui que se manifestam as consequências da concepção do dinheiro como sinal convencional e sem identificação com nenhuma mercadoria (in Exaltação da Filosofia Derrotada, Guimarães Editores, 1983, pp. 127-135).
Notas:
(1) Qualquer história do dinheiro, caso seja possível haver do dinheiro uma história, informa como foram diversas, através dos milénios, as mercadorias escolhidas para dinheiro. Ao dizermos «escolhidas», estamos longe de querer significar que alguém, dotado de um poder político, administrativo ou jurídico, tenho feito a escolha. Ela resulta, pelo contrário, de um processo em que convergem, de modo que se pode dizer espontâneo, embora sempre movido pelos interesses de cada um, todos os agentes económicos ou, para pensarmos com mais rigor, mercantis. A escolha fixou-se, por fim, nos metais preciosos, isto é, que têm preço: o ouro e a prata. (A utilização de outros metais, sobretudo o cobre, limitou-se a moedas de troco que são mais um substituto monetário do dinheiro do que dinheiro). A partir do Séc. XVII, deu-se a última fase do processo para fixar o ouro como mercadoria escolhida para dinheiro. Deve-se ele a certas intervenções dos Estados, começando pelo inglês, para imporem, entre o ouro e a prata, uma paridade que não correspondia às respectivas trocas mercantis dos dois metais. Tal imposição destinava-se a facilitar e até assegurar uma mais continuada intervenção do Estado na economia, com a fixação dde preços, salários, juros e demais variantes, que a sempre variável relação mercantil entre o ouro e a prata impedia. Numa acção espontânea e automática de defesa, mas resultante das regras do mercado, as populações abandonaram a utilização da prata e a mercadoria a escolher foi o ouro. Os propósitos dos Governos viram-se assim logrados.
(2) L. von Mises, «La Acción Humana - Tratado de Economia», Ed. Sopec, Madrid, 1968, p. 585.
(3) L. von Mises, ob. cit., p. 264/265. Deve notar-se que a referência à escola monetária, a S. Mill e a Cairnes, não equivale a um aplauso correspondente ao que é feito à «obra gloriosa de D. Hume». Pelo contrário, von Mises assinala, em vários pontos, os seus limites. Deve ainda notar-se que, no mesmo capítulo do texto transcrito, o grande teorizador descreve alguns aspectos institucionais do abandono da teoria do dinheiro. Diz ele: «Ao longo do Séc. XIX e grande parte do Séc. XX, as questões da moeda e do dinheiro foram desatendidas. Havia tratados de economia que só incidentalmente as referiam, nas universidades anglo-saxónicas separaram-se cadeiras de economia das cadeiras de finanças e, nas alemãs, os problemas monetários não eram sequer abordados».
(4) Uma primeira exposição fê-la von Mises no livro «Teoria do Dinheiro e do Crédito», publicado em 1912. Dentre as críticas a que, a seguir, aludimos, o próprio von Mises distingue as de A. M. Anderson em «The Value of Money» (1917) e de H. Ellis em «Germany Monetary Theory» (1934). É já incluindo a crítica destas críticas que von Mises faz a segunda exposição da sua teoria nos capítulos sobre «O Câmbio Indirecto», «O Intervencionismo Monetário e Creditício» e «A Taxa do Juro», do seu tratado «A Acção Humana».
(5) Ob. cit., p. 587.
(6) Não deixa de ser curioso como, apesar das responsabilidades que lhe cabem em todo este processo, o próprio Adam Smith tenha declarado com certa ironia: «Não há domínio onde a acção do Estado seja tão inutilmente exercida como em vigiar a conservação e o aumento da quantidade de dinheiro existente no país» - ob. cit., Liv. IV, Cap. I, p. 19.
(7) L. von Mises, ob. cit., p. 526.
Continua
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