domingo, 2 de maio de 2010

O Livro dos Cinco Anéis

Escrito por Miyamoto Musashi













Introdução

No prólogo de Go Rin No Sho, Miyamoto Musashi, também chamado «Kinsei», ou o «Santo da Espada», traça o seu percurso de vida nos seguintes termos:

«Ao longo de muitos anos, fui aperfeiçoando o caminho da estratégia, denominado Niten Ichi Ryu [Escola dos Dois Céus]. Agora, pela primeira vez, desejo explicá-lo por escrito. Estamos no décimo dia do décimo mês do vigésimo ano de Kanei [1643]. Subi ao monte Iwato, em Higo, na ilha de Kyushu, para prestar homenagem ao Céu, venerar a deusa Kwannon e ajoelhar-me diante de Buda. Sou um guerreiro da província de Harima, chamo-me Shinmen Musashi No Kami Fujiwara No Genshin e tenho 60 anos de idade.

Desde a juventude que o meu coração se sentiu atraído pelo caminho da estratégia. O meu primeiro duelo ocorreu quando eu tinha 13 anos. Derrotei então um estrategista da escola xintoísta, chamado Arima Kibei. Com 16 anos, venci Tadashima Akiyama, um valoroso estrategista. Quando atingi os 21 anos, fui para a capital e defrontei todo o género de guerreiros em muitos confrontos, sem nunca deixar de obter a vitória.

Depois, andei de província em província, travando duelos com mestres de várias escolas, sem que a vitória me escapasse uma só vez, apesar de ter participado em mais de 60 confrontos. Tudo isto ocorreu entre os meus 13 e 28 ou 29 anos.

Quando fiz 30 anos, reflecti sobre o meu passado e concluí que não alcançara as vitórias anteriores por ter adquirido o domínio da estratégia. Talvez fosse por uma aptidão natural ou pela ordem do céu, ou porque a estratégia das outras escolas era inferior. A partir desse momento, dediquei-me ao estudo de manhã à noite para encontrar um princípio mais profundo e, quando atingi os 50 anos, acabei por compreender o verdadeiro caminho da estratégia.



Desde então, tenho vivido sem seguir caminho algum em particular. Assim, aplicando o conhecimento da estratégia marcial, pratiquei muitas artes e técnicas, não recorrendo a qualquer mestre. Ao escrever este livro, não usarei a lei de Buda ou os ensinamentos de Confúcio, nem antigas crónicas militares ou textos sobre tácticas de combate. Para explicar o verdadeiro espírito da minha escola tal como se espelha no caminho do Céu e de Kwannon, pego agora no pincel, na noite do décimo dia do décimo mês, à hora do tigre [3-5 horas da madrugada]».

Posto isto, convém relembrar que o Japão, não obstante o influxo da civilização chinesa por via da Coreia, permanecera isolado do mundo durante séculos. Aliás, o Período Tokugawa (1600-1868), especialmente absorto nesse isolamento, fora mais tarde descrito como sakoku jiddai ou «Período do País Fechado». Um período, portanto, durante o qual todos os ocidentais - à excepção dos holandeses confinados à pequena ilha de Deshima, no Porto de Nagasáqui - haviam sido expulsos pelo xogunato em 1639 (Cf. Kenneth Henshall, História do Japão, Edições 70, 2005, p. 86).

Ora, é precisamente nesta época que se situa Miyamoto Musashi, também caracterizada pelas armas de fogo introduzidas pelos Portugueses. Aliás, basta recuar ao ano de 1575 para ver como Oda Nobunaga conseguira reunir 20.000 mosqueteiros para derrotar Takeda Katsuyori na batalha de Nagashine (ob. cit., p. 66.) E note-se também ter sido Oda Nabunaga, a par de Toyotomi Hideyoshi e Togugawa Ieyasu, o xógum responsável pela reunificação do Japão, ocorrida no período Azuchi-Momoyama (1568-1600).

O Período Tokugawa (1600-1868) é o período em que, após três séculos de intensas e sangrentas guerras feudais, se altera a percepção dos bushis («samurais») à luz do Budismo Zen. Daí que, a par da reformulação estratégica e religiosa do código dos samurais (Bushido ou o «Caminho do Guerreiro») - já por então manifesto na História dos Quarenta e Sete Ronins, ou nas descrições populares do Hagakure (Na Sombra das Folhas), escrito por Yamada Soko -, se destaquem igualmente os escritos do monge Zen Rinzai Takuan Soho, ademais amigo de espadachins proeminentes, entre os quais Miyamoto Musashi. Ora, do conteúdo de tais escritos inspirados na percepção holística do eu e do outro, é de notar a transcensão da técnica em prol do satori («iluminação suprema»).








Toshiro Mifune






Kendo no Rio de Janeiro (Brasil).



Kendo Nito-Ryu



Com o rodar dos tempos, o Kenjutsu ou a «arte do sabre» daria lugar ao Kendo, que é, de alguma forma, o sucedâneo da «esgrima japonesa». Em 1938, com o aproximar da Segunda Guerra Mundial, o Kendo foi, a par do Judo («a Via da Não-Resistência»), do Karaté («a Via das Mãos Vazias») e do Kyudo («a Via do Tiro com Arco»), militarmente reabilitado na escola nacional das artes marciais (Butokukai), criada pelo Governo japonês em 1897. Finda a guerra, as artes marciais seriam proíbidas pela Ocupação americana, não obstante «os professores do Kodokan» («Escola para o Estudo da Via», fundada por Jigoro Kano) terem sido, em 1946, «autorizados a ensinar judo... às tropas americanas» (cf. Louis Robert, O Judo, Editorial Notícias, 1968, p. 23).

De facto, as artes marciais acabaram por ser readaptadas numa vertente essencialmente lúdica e desportiva. É o caso do Kendo, cuja Federação Internacional foi fundada em 1970 e cujo primeiro torneio do Campeonato do Mundo teve lugar no Japão (cf. Jeff Broderick, Kendo, Editorial Estampa, 2005, p. 15). E dito isto, fiquemos finalmente com a concepção de Miyamoto Musashi consignada no Livro da Terra.

Miguel Bruno Duarte




O LIVRO DA TERRA


A Estratégia é a arte do guerreiro. Quem está numa posição de comando tem a obrigação de pôr em prática esta arte, e mesmo os soldados devem conhecer tal caminho. Porém, não existe hoje guerreiro algum no mundo que compreenda realmente o caminho da estratégia.

Há vários caminhos. Há o caminho da salvação pela lei de Buda, o caminho de Confúcio que governa a aprendizagem, o caminho da cura próprio do médico, o caminho de Waka ensinado pelo poeta. Outros seguem os caminhos do chá, do tiro com arco e de muitas outras artes e técnicas. Cada um pratica aquele para que se sente mais inclinado. Poucos são os que preferem o caminho da estratégia marcial.






Diz-se que o guerreiro deve conhecer o caminho duplo da pena e da espada. Mesmo que não seja dotado de uma aptidão natural, o guerreiro tem obrigação de praticar com assiduidade as duas vias do caminho. Diz-se geralmente que o caminho do guerreiro é a resoluta aceitação da morte. Embora não só os guerreiros, mas sacerdotes, mulheres e camponeses e gente de mais baixa condição se disponham a morrer em cumprimento do dever ou em consequência da vergonha, trata-se aqui de um caso diferente. Porque o guerreiro segue o caminho da estratégia com a finalidade de atingir a excelência em todas as coisas e superar os demais, seja cruzando espadas em duelos ou combatendo em batalhas com numerosos soldados, seja para sua glória e seu proveito ou em benefício do seu senhor. Esta é a virtude da estratégia.

Algumas pessoas talvez pensem que mesmo que se aprenda a estratégia marcial, esta de nada servirá num confronto real. No entanto, o verdadeiro espírito da estratégia do guerreiro consiste em segui-la de modo que seja útil em todos os domínios.


Sobre o caminho da estratégia


Na China e no Japão, os praticantes deste caminho foram tradicionalmente conhecidos como «mestres de estratégia».

Os guerreiros devem aprender tal caminho.

Há pessoas que hoje ganham a vida como estrategistas, mas em geral são apenas professores de esgrima. Os sacerdotes dos templos de Kashima e Kantori, na província de Hitachi, afirmaram que receberam a instrução dos deuses e formaram escolas baseadas neste ensinamento, viajando de província em província para transmitirem o seu saber. É este o significado recente do termo «estratégia».








Nos tempos de outrora, a estratégia estava incluída nas Dez Aptidões e nas Sete Artes como uma prática benéfica. Era sem dúvida uma arte, mas como prática benéfica não se restringia ao combate com espada. O real valor do combate com espada não se pode conhecer dentro dos limites das técnicas da esgrima. Escusado será dizer que a arte da espada restringida somente às técnicas nunca poderá rivalizar com os princípios da estratégia.

Se olharmos para o mundo de hoje, vemos que as artes estão à venda. Os homens usam equipamentos para se venderem a si mesmos como mercadorias. Em comparação com a flor e o fruto, é como se o fruto se tivesse tornado menos importante do que a flor. Neste género de caminho da estratégia, tanto os que ensinam como os que aprendem o caminho estão preocupados com o estilo pomposo e o exibicionismo das suas técnicas, para que a flor mais rapidamente floresça através da popularidade e do comércio. Mas buscam somente o lucro rápido. Alguém afirmou uma vez: «A estratégia imatura é causa de grandes males.» E este dito é verdadeiro.


(...) Esboço das cinco partes deste livro de estratégia


Para expor os diferentes aspectos do caminho, este livro é composto por cinco partes, intituladas Terra, Água, Fogo, Vento e Vazio.

O corpo principal do caminho da estratégia, segundo o ponto de vista da minha escola, é explicado no Livro da Terra. É difícil compreender o caminho verdadeiro somente através da arte da espada. Há que conhecer os lugares mais pequenos e os maiores, os mais superficiais e os mais profundos. Como se fosse uma estrada recta e plana marcada no solo, eis em primeiro lugar o Livro da Terra.











Em segundo lugar, o Livro da Água. Tomando a água por modelo, o espírito torna-se como água. A água adquire a forma do seu recipiente, quer seja quadrado ou redondo, por vezes surge como uma única gota, outras vezes como um vasto oceano. Tem a cor transparente da água-marinha. Através da sua claridade, escrevo sobre a minha escola neste livro.

Quando são dominados os princípios do combate com espada, a capacidade de derrotar à vontade uma só pessoa equivale à capacidade de derrotar todas as pessoas do mundo. O espírito que conduz à derrota de um homem é o mesmo que possibilita a derrota de dez mil homens. A estratégia de um comandante, exigindo que de algo pequeno faça algo grandioso, é comparável à execução de uma estátua gigante de Buda a partir de um modelo com dois palmos. Não posso esplicar por escrito e em pormenor de que modo isto se faz. O princípio da estratégia é conhecer miríades de coisas a partir de uma só. Alguns aspectos relativos à minha escola são explicados neste Livro da Água.

Em terceiro lugar, o Livro do Fogo. Este livro é sobre o combate. O espírito do fogo é violento, quer o fogo seja pequeno ou grande, e o mesmo se passa nas batalhas. O caminho da batalha é o mesmo em combates homem a homem e em confrontos de exércitos com dez mil soldados. O espírito pode abarcar o grande e o pequeno. O grande é fácil de percepcionar. Por exemplo, mudar de posição é difícil para um grande número de homens, pelo que os seus movimentos podem ser previstos com facilidade. Um indivíduo pode mudar facilmente de intenções, pelo que os seus movimentos são de difícil previsão. Há que ter em conta este aspecto. No essencial, este livro mostra a necessidade de praticar dia e noite com o objectivo de tomar decisões rápidas em combate, até que estas se tornem naturais. É preciso considerar o treino como parte da vida quotidiana, para que o espírito permaneça imutável. Assim, a forma de combater numa batalha é descrita no Livro do Fogo.









Em quarto lugar, o Livro do Vento. Este livro não trata da minha própria escola, mas de outras escolas de estratégia. Através da palavra «vento», refiro-me a tradições ancestrais, a tradições hoje seguidas e a tradições familiares de estratégia. Assim, explico claramente as estratégias das várias escolas do mundo. Isto é a tradição. É difícil o conhecimento de vós mesmos se não conhecerdes os outros. Em qualquer caminho há desvios. Se estudais um caminho todos os dias e o vosso espírito diverge, podeis julgar que seguis um bom caminho, mas objectivamente não é o caminho verdadeiro. Ao seguir o caminho verdadeiro, uma pequena divergência no início tornar-se-á depois uma grande divergência. É isto que deveis compreender. A estratégia acabou por ser concebida apenas como o combate com espada, não sem razões para que tal haja sucedido. A vantagem da minha estratégia, embora inclua o combate com espada, reside num princípio diferente. No Livro do Vento, explico o que as outras escolas entendem vulgarmente por estratégia.

Em quinto lugar, o Livro do Vazio. Por vazio entendo aquilo que não tem começo nem fim. Alcançar este princípio significa abandonar todos os princípios. O caminho da estratégia é o caminho da natureza. Quando se conhece o poder da natureza, discernindo o ritmo de qualquer situação, é possível atingir naturalmente o inimigo a cada golpe. É este o caminho do vazio. Pretendo mostrar como seguir o caminho verdadeiro de acordo com a natureza no Livro do Vazio.



A Escola das Duas Espadas







Os guerreiros, tanto comandantes como soldados, transportam duas espadas à cintura. Nos tempos de outrora, eram chamadas espada longa [tachi] e espada [katana]; hoje, são conhecidas como espada [katana] e espada auxiliar [wakizashi]. Não é necessário explicar isto em pormenor. Basta dizer que um guerreiro, no Japão, tem o dever de transportar duas espadas, quer saiba ou não manejá-las. É o caminho do guerreiro. Designei a minha escola por Nito Ichi Ryu [Escola das Duas Espadas] para mostrar a vantagem da utilização de ambas as espadas.

Quanto à lança e à alabarda, entre outras, são consideradas armas complementares do guerreiro.

Os estudantes da escola de estratégia Nito Ichi devem treinar desde o início com a espada numa das mãos e a espada longa noutra mão. Eis uma verdade: quando se sacrifica a vida, há que fazer o melhor uso do armamento disponível. Não é natural que se faça o contrário e se morra com uma espada ainda por desembainhar.

Quando se pega numa espada com ambas as mãos, é difícil brandi-la livremente à esquerda e à direita, pelo que o meu método consiste em manejar a espada com uma só mão. Isto não se aplica a armas compridas como a lança ou a alabarda, mas as espadas e as espadas auxiliares podem ser usadas com uma só mão. É incómodo empunhar uma espada com ambas as mãos quando se cavalga, quando se corre em caminhos acidentados, terrenos pantanosos, campos de arroz lamacentos, solos pedregosos ou entre uma multidão de pessoas. Pegar na espada longa com ambas as mãos não é o caminho verdadeiro, pois quando se transporta um arco, uma lança ou uma outra arma na mão esquerda, fica apenas livre uma das mãos para a espada longa. No entanto, quando golpear o inimigo com uma só mão se torna impossível, há que usar ambas as mãos.

Não é difícil brandir uma espada com uma só mão. O caminho para aprender esta técnica consiste em treinar com duas espadas longas, uma em cada mão. Parecerá difícil no início, mas tudo é difícil quando se começa. O arco é difícil de dobrar, a alabarda é difícil de empunhar. Porém, quanto mais acostumado se estiver ao arco, mais enérgico será o seu uso. Quando se estiver habituado a empunhar uma espada longa, será alcançado o poder do caminho e mais fácil se tornará brandir a espada.






(...) não é correcto brandir a espada longa com grande rapidez. A espada longa deve ser manejada com amplidão, e a espada auxiliar num espaço reduzido. Esta é a ideia essencial para quem principia.

Na minha escola, é possível vencer com uma arma longa, mas também com uma arma curta. Em suma, o caminho da minha escola consiste no espírito de vitória, qualquer que seja a arma e o seu cumprimento.

É melhor usar duas espadas em vez de uma quando se combate uma multidão e, especialmente, quando se pretende fazer prisioneiros.

Estes aspectos não permitem uma explicação pormenorizada. A partir de uma só coisa, podeis conhecer dez mil coisas. Uma vez alcançado o caminho da estratégia, nada haverá que não compreendais.


Os princípios da estratégia


Os mestres da espada longa são chamados estrategistas. Quanto às outras artes militares, aqueles que são peritos no arco são chamados arqueiros, aqueles que dominam a lança são chamados lanceiros, aqueles que manejam o fuzil são chamados atiradores, aqueles que usam alabarda são chamados alabardeiros. Mas não designamos os mestres do caminho da espada longa por «espadachins de espada longa», nem falamos de «espadachins de espada curta». Arcos, fuzis, lanças e alabardas pertencem ao equipamento de todos os guerreiros e fazem parte da estratégia. Porém, dominar a virtude da espada longa é governar o mundo e o nosso próprio ser, pelo que a espada longa é a base da estratégia. O princípio é «a estratégia por meio da espada longa». Se alcançar a virtude da espada longa, um homem pode vencer dez. Tal como um homem pode vencer dez, também cem homens podem vencer mil, e mil podem vencer dez mil. Esta estratégia é a arte completa do guerreiro.

O caminho do guerreiro não inclui outros caminhos, como o confucionismo, o budismo, a arte do chá, as realizações artísticas e a dança. Mas, embora não façam parte do caminho, se conhecerdes o caminho em toda a sua amplidão, vê-lo-eis em todas as coisas. Todo o ser humano deve aperfeiçoar o seu caminho individual» (in O Livro dos Cinco Anéis, Coisas de Ler, 2002, pp. 17-19 e 23-30).














Musashi vs. Shirakura Dengoemon
















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