quinta-feira, 27 de maio de 2010

Minimum e Maximum em Aristóteles (i)

Escrito por Mário Ferreira dos Santos







Os entes do mundo físico não são apenas seres matemáticos, mas seres que pertencem a uma espécie, que têm uma forma, uma natureza específica, uma physis, no sentido aristotélico (...).

Ao examinar a filosofia grega anterior a Aristóteles, encontramos o pensamento de Anáxagoras, que apresentava a tese de que os corpos, na natureza, são divisíveis ao infinito.

Aristóteles na "Física" opõe-se tenazmente a essa tese. Aceitando a divisibilidade infinita do contínuo, negava-a, porém, quanto aos corpos físicos. É que a natureza dêsses corpos admite uma divisão somente até um determinado limite. E não só afirmava um limite mínimo de divisibilidade, como também um limite máximo de aumento. E fundava-se, não em especulações meramente filosóficas, mas também na experiência.

Os indivíduos de uma espécie revelam um máximo e um mínimo, cujos limites não podem ultrapassar, conservando a mesma forma. Assim também as qualidades têm um maximum e um minimum. E a prova encontramo-la nos animais que crescem até um máximo e não podem ultrapassá-lo, como tudo na natureza. E se tal se dá, não deve haver uma divisibilidade ao infinito. A carne e os ossos não podem ser divisíveis ao infinito, afirmava. Há-de haver um limite em que a carne dividida deixa de ser carne, porque, do contrário, seríamos levadas a um infinitamente carne, o que também comprova a nossa experiência científica actual.

Desta forma, as partículas devem ser divisíveis até um certo limite, mas divisíveis dentro da sua espécie, e ultrapassado tal limite, passariam a ser de uma espécie diferente. E essa tese é aplicável a todas as substâncias naturais. Consequentemente, afirmava ainda, o mínimo de uma determinada espécie deve ter uma grandeza própria (ipsa peperasmena), grandeza que é determinada pela natureza específica.

Em pleno séc. XVI, Benedicto Pereira dizia: "descobrir quais são precisamente os limites da grandeza, superior e inferior (quer referir-se ao maximum e ao minimum), para cada espécie de corpos naturais, é muito difícil, para não dizer impossível" (citado por Hoenen). A física moderna procura alcançá-los, seguindo os desejos de Pereira, sem que os físicos talvez o saibam. E que são hoje o peso atómico e o peso molecular, senão os limites das grandezas determinadas que desejava achar Pereira?

Não são estas hoje as bases da química moderna? E não é ao atomismo de Demócrito, como pensavam os mecanicistas do século passado e seus representantes neste, que se deve tal coisa, mas sim à concepção dos minima de Aristóteles.






No tempo de Pereira, tal era impossível realizar-se, dada a deficiência dos meios técnicos disponíveis. Foi com Dalton, dois séculos e meio depois, que Pereira obteve uma resposta ao seu desejo. Entre os cartesianos não se procuraria tal, pois aceitavam a divisibilidade infinita dos corpos, nem muito menos na concepção democrítea, que não a alcançaria, se Dalton não tivesse dado uma guinada para Aristóteles, em vez de permanecer totalmente na concepção mecanicista, embora sem o saber.

É importante êste ponto para melhor clareza do pensamento aristotélico, e, ainda mais, para compreender-se a valia ou não de certas afirmativas de físicos modernos que negam a Aristóteles o direito que lhe cabe.

(...) Tomás de Aquino, afirmando a divisibilidade in infinitum dos corpos matemáticos, afirmava, não obstante, um limite de divisibilidade dos corpos físicos.

Permanecia assim na posição aristotélica. Tal não o sabiam alguns autores modernos (e entre êles Duhen), que vão atribuir à teoria dos minima a Aegidius Romanus, sem compreender que essa era uma teoria aceita na Idade Média entre os escolásticos, inclusive os escotistas.

Aegidius Romanus, em seus comentários à Física de Aristóteles, expõe a sua tese sôbre a grandeza, estabelecendo três maneiras diferentes:

1. enquanto pura grandeza, abstraindo-a da matéria.

2. de maneira mais concreta, como realizada em certa matéria, mas sem especificar que espécie de matéria.

3. mais concretamente, como realizada numa matéria cuja natureza é especificamente determinada.

A primeira, que é a que a geometria concebe, é divisível ao infinito, como o é também a segunda, desde que a matéria é indeterminada. Mas, na terceira, esta não pode ser dividida indefinidamente, sem que haja mudança da sua natureza, como a água não pode ser dividida sempre sem que deixe de ser água. Um metro cúbico pode ser infinitamente divisível, não um metro cúbico de água, pois em certo limite deixariam as partículas de serem água.

Essa doutrina não é de Aegidius Romanus, sem que tal desmereça em nada o imenso valor desse filósofo, injustamente desconhecido em nossos dias. Antes dele, Robertus Lincolniensis (também conhecido por Robert Grosse-Teste) e ainda em Averroes e, Tomás de Aquino, como já dissemos, era tal teoria afirmada, como o fôra antes por Aristóteles (como se vê na "Física", I, cap. 4, e nos comentários de Tomás de Aquino, lect. 9, n. 9). Não procede, portanto, a afirmação de Duhen, que essa doutrina surgiu na Idade Média por influxo de Demócrito e Epicuro, pois já era aristotélica.

São Tomás de Aquino

Afirmava Tomás de Aquino que os limites da quantidade são particulares. Que nos mostra a química moderna senão a validez de tal afirmativa? Há em todas as coisas um arithmós plethos (um número de sua totalidade), número no bom sentido pitagórico, e que revela a sua forma corporeitatis, a forma da corporeidade, que incluindo a forma imutável específica, tolera, na linguagem escotista, um maximum e um minimum, que são múltiplos, segundo os planos. Assim um cristal existe apenas segundo determinados limites de temperatura e a energia térmica interna tem um máximo e um mínimo. Um ser que é tal, exige muitos maxima e minima, dentro dos quais ele subsiste com sua forma específica. O ser humano conhece desses maxima e minima, não só intrínsecos como extrínsecos.

E este é o sentido claro para onde se orienta a dialéctica que deseja ser uma lógica concreta, e, portanto, científica. Que faz a ciência senão buscar através de seus métodos conhecer os maxima e minima, intrínsecos e extrínsecos dos sêres, pois esta constituição hic et nunc de um corpo depende, não só dos intrínsecos como dos extrínsecos, dentro de cujos limites é o que é? Podemos não conhecê-los, mas sabemos que . Nos tempos medievais era difícil estabelecê-los, mas hoje já pode colocá-los a ciência em grande parte. O pensamento medieval, seguindo a linha aristotélica, estava no bom caminho, não obstante tudo quanto se disse e se diz contra esse pensamento todos aqueles, precisamente, que não o conhecem, e julgam que não podem perder o seu tempo em examiná-lo (1).

O contínuo forma uma íntima unidade. Se é divisível é contudo não diviso. Não é um mero agregado de partes que se avizinham, se tocam. É uma totalidade com unidade intrínseca. E este aspecto é importante. Forma êle uma estrutura coerente, tensionalmente coesa. É uma tensão, em suma, que, como tal, é qualitativamente diferente do conjunto quantitativo das suas partes.

Este aspecto, que hoje podemos salientar em face do que já se obteve no conhecimento científico, já era notado por Aristóteles e não incidentalmente. Toda a sua obra já contém todos os germes da concepção tensional, que é a nossa, embora exposta como novos argumentos e sob fundamentos que nos oferecem os actuais conhecimentos da ciência, mas sem excluir a grandiosa contribuição aristotélica, e a que foi dada pelos medievais, infelizmente esquecida durante o período do domínio do mecanicismo e do racionalismo, do empirismo, etc.


Ver aqui


Num todo, as partes estão em potência enquanto tais. Assim, na água, o oxigêneo e o hidrogêneo estão em potência como tais, pois, nesta, aquêles não são totalmente o que eram em acto, quando ainda não a constituiam. Desta forma se pode compreender o êrro, metafisicamente reprovável, da aceitação de um infinito quantitativo actual.

Basta considerarmos êste ponto: toda a extensão é medível, portanto reductível numéricamente a números. E numa série ilimitada de números, podemos sempre acrescentar mais uma unidade. Portanto, o infinito matemático é apenas potencialmente infinito, pois podemos sempre acrescentar mais um.

Um infinito numérico em acto é metafisicamente absurdo. Não se pode desconhecer que alguns matemáticos, como Hilbert, trabalharam com o infinito actual, e também Poincaré, e outros. Mas se o infinito potencial é possível, não o é o actual. Se as partes de um composto fôssem actuais poder-se-ia aceitar uma multiplicidade infinita. Mas o princípio de unidade nega essa suposição. Por isso, tais matemáticos tinham de chegar a conclusões falsas. O contínuo não pode ser divisível ao infinito. E tal se dá porque a parte, como tal, não está em acto na totalidade, o que é uma tese da concepção tensional, que em nossa obra "Teoria Geral das Tensões" provaremos com outros argumentos.

Convém compreender bem o significado de "potencialmente infinito". Não se deve considerar, como o que pode tornar-se infinitamente actual, pois neste caso estaríamos, outra vez, imersos na mesma dificuldade. Infinitamente potencial deve ser considerado no genuino sentido aristotélico e dos medievais, como o contínuo que pode ser divisível in infinitum, isto é, uma divisibilidade que pode sempre ser actuada porém não exaurida na sua potencialidade; é uma potência à multiplicidade, mas que não pode ser realizada em acto totalmente, pois, do contrário, deixaria de ser potencialmente infinita.

Dentro dos quadros da ciência actual, pode dizer-se que num fenômeno físico muda alguma coisa na matéria; enquanto num fenômeno químico muda a própria matéria.

Ostwald mostra que tais distinções não são totalmente nítidas, mas não obstante as aceita.

Essa era a solução aristotélica entre a alteração e a geração e a corrupção.



Manuel Kant



Se dizemos, que o hidrogêneo e o oxigêneo são partes da água, não devemos compreender que, neste caso, como o hidrogêneo e o oxigêneo antecedem à água, que se dê uma prioridade das partes ao todo, como é comum ver-se na filosofia, por exemplo em Leibnitz, Kant, etc. Como mostra a nossa concepção tensional, o todo é qualitativamente outro que suas partes, pois o hidrogêneo e o oxigêneo, na água, virtualizam características, e assumem aspectos diferentes. Por isso as partes, nesse sentido, são potenciais no todo e não actuais. A presença do H. e do O, na água, não é de enquanto tais, o que é importante nunca esquecer. São aspectos como este, que permitem à concepção tensional oferecer uma nova visão do mundo sem excluir o que há de positivo nas construções filosóficas do passado. Sôbre este ponto é importante a crítica de Schopenhauer em seu "O Mundo como Vontade e Representação" (I, pág. 588), onde mostra a improcedência do argumento Kantiano (capítulo: Crítica da Filosofia Kantiana. Na edição argentina de "Biblioteca Nueva", pág. 375 em diante, sobretudo da pág. 444 em diante).

Os corpos devem a sua posição a uma "modalidade intrínseca" que os escolásticos chamavam "ubi" - e que Suarez tão bem estudou ao tratar da ubiquação em suas famosas "Disputationes Metaphysicas". Dessa modalidade intrínseca decorre a posição do corpo. Encontramos essa teoria na concepção do éter de Lorenz, em que um corpo obtém sua posição ou lugar, mediante um contacto "interno", com uma porção do éter. É o éter interposto que marca a distância entre dois corpos. Se não se pode medir o movimento do corpo em relação ao éter, pode-se, no entanto, medir em relação a outro corpo. Se o éter de Lorenz existe, êste pode ser considerado como meio universal de localização, como mostra Hoenen.

Se não se aceita a teoria do contacto, teríamos de aceitar a da localização, como a de Demócrito, por exemplo. Neste caso, os átomos estariam separados pelo nada. E como se tocariam se há o nada entre eles, pois tocar no nada não é o mesmo que não tocar? Entre êsses sêres não haveria distância, pois não há um intermédio, pois êste é nada. E como poderiam mover-se nesse nada? Demócrito sentiu o absurdo da idéia, daí ter exclamado, para salvar-se da aporia, que "até o não-ser existe", emprestando, assim, ao vazio, um ser; o que era negar o próprio princípio mecanicista.

A teoria do contacto, que é a de Tomás de Aquino, é aceita, sem que o soubesse, por Einstein ao afirmar: "Se se forma ... o conceito dos corpos, a experiência sensível constringe a estabelecer relações locais entre os corpos, isto é, relações de mútuo contacto. O que indicamos como relações espaciais entre os corpos, não é nada mais que isso. Portanto, sem o conceito dos corpos, nenhum conceito de relações espaciais entre os corpos, e sem o conceito das relações espaciais, nenhum conceito de espaço" (Cit. por Hoenen).



Albert Einstein



O éter de Lorenz é um campo real. Como poderiam surgir efeitos físicos do nada, que é nada? A gravitação é algo real, e o campo de gravidade actua sôbre a "massa". Esta é uma substância, no genuino e filosófico sentido dêsse termo, algo subsistente de per si. Aceita Einstein, (que na verdade combateu o éter de Lorenz) que, no entanto, o espaço revela acidentes físicos caracterizados matemàticamente. E como poderiam tais acidentes se dar sem uma substância? Se o espaço tem "qualidades físicas", e as qualidades são acidentes, são acidentes de algo, já que o acidente não é um ser de per si, com perseitas. Por isso Hoenen acusa a Einstein de combater apenas a palavra éter, mas terminando por estabelecê-lo ao afirmar que há algo subsistente, ao afirmar os acidentes (Aristóteles e as Mutações, Livraria e Editora Logos, S. Paulo, 1995, pp. 161-167).



Notas:

(1)
Não se julgue haver em nossas palavras qualquer submissão ao pensamento escolástico. Apenas julgamos que pertence ele ao patrimônio cultural que herdamos, e a missão de quem deseja fazer filosofia exige o seu estudo, dele aproveitando tudo quanto de melhor oferece para o processo filosófico, que deve prosseguir adiante e não estacionar.

Continua


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