segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Terceiro Mundo (iv)

Escrito por Franco Nogueira




JFK



Ver 12, 3 e 4





«Salazar dizia-me: "Kennedy é um garoto". Não tínhamos dúvidas de que os americanos nos trariam muitas dores de cabeça».

«O Elbrick disse-me que a Inglaterra estava a vender mais à Índia depois da independência do que antes da independência. E aconselhou-nos a seguir o exemplo. Mas para nós o negócio nunca foi a questão essencial».


Marcello Gonçalves Mathias



«...desumano, insolente e desinteressado o bem-estar das populações das áreas onde se fixa [o big business dos Estados Unidos]».


Armando Gonçalves Pereira



«Apossaram-se de Washington os intelectuais e teóricos de Harvard. Solidariedades de alianças, compromissos morais, princípios legais, tudo foi varrido».

«O Ocidente está a ser derrotado nas Nações Unidas».

«Portugal não terá interesse numa "vitória dos Estados Unidos sobre a União Soviética" se para isso Portugal for sacrificado».


Franco Nogueira



«Nogueira foi bem claro ao garantir que Portugal lutará até ao limite das suas forças para manter os seus territórios ultramarinos e que disso poderá resultar uma guerra mundial. Perguntei-lhe então se Portugal iria ao extremo de arrastar o Mundo inteiro por causa de Angola, ao que ele respondeu afirmativamente, dizendo que para Portugal Angola era muito mais importante do que Berlim».

Charles Burke Elbrick (embaixador dos EUA em Portugal).





«O Governo português não tem dúvidas de que incidentes da natureza dos que ocorreram em Luanda estão a ser preparados por agentes do terrorismo internacional».

«Inacreditável selvajaria...».


Vasco Garin



«Em Kinshasa, Roberto era o nosso homem».


John Stockwell (Chefe da task force da CIA em Angola).



«...São os próprios americanos que nos andam a tramar em Angola...».


«Os Americanos ou conseguem matar-me, ou eu morro. Caso contrário, terão de lutar anos para conseguirem deitar-nos abaixo».

«Ah! se eu tivesse menos vinte anos!... Havia de pôr os brancos contra os brancos em África, e os pretos contra os pretos, e brancos e pretos uns contra os outros, e nós haveríamos de sair incólumes no meio de tudo».

«Só nos faltava mais essa desgraça [a existência de vastos jazigos de petróleo no Norte de Angola e no território de Cabinda]».


Oliveira Salazar



«Uma palavra final de aviso: a nossa ajuda clandestina a líderes africanos e à educação de jovens africanos não pode permanecer clandestina por muito tempo. Devemos preparar-nos para as consequências de qualquer revelação a esse respeito...».


William H. Taft III



«...a Grã-Bretanha e outras nações europeias têm partilhado com os Estados Unidos, aos olhos dos portugueses, o ónus das atitudes antiportuguesas nas Nações Unidas».


Theodore Xanthaky




Nikita Khrushchev e JFK


«O espectáculo dos Estados Unidos a votarem ao lado da União Sociética contra os seus próprios aliados na NATO é um motivo de grande preocupação para qualquer pessoa que preze a Aliança Atlântica».

Adlai Stevenson



«Não restam dúvidas de que se trata do governo de um homem só e que não há lá outro homem como ele. O mais provável é que, se Salazar morrer ou perder os seus poderes, Portugal volte à confusão da qual ele o arrancou».


Dean Acheson



«Portugal está em saldos, com uma carteira de privatizações que inclui TAP, EDP e REN, entre outras, bancos a necessitar de capital, indústrias a abrir falência e casas desvalorizadas pela crise cativam os angolanos, que vêem Portugal como um patamar estratégico».

«O BCI, banco de capitais maioritariamente angolanos, comprou o banco [BPN] por 40 milhões de euros».

«Não é por acaso que o presidente José Eduardo dos Santos foi considerado o 6.º mais poderoso da economia portuguesa pelo "Jornal de Negócios". Em Março de 2009 afirmou que os investimentos "eram tímidos" mas em 2010 3,8% do mercado bolsista português era de capital angolano. Foi Isabel dos Santos, a toda-poderosa filha do presidente, quem começou a dar a cara em Portugal, quando em finais de 2009 adquiriu 10% do capital da ZON por 160 milhões de euros. Consolidou a presença através de holdings, detidas pela engenheira licenciada em Inglaterra e pela Sonangol - a petrolífera estatal angolana presidida por Manuel Vicente, já indicado como "futuro presidente". Atrás do topo da hierarquia surge um séquito que inclui Hélder Dias Vieira, chefe da casa militar, com interesses no Douro e na área financeira, o ex-ministro Higino Carneiro, que tem investimentos na hotelaria e restauração em Lisboa, e outros da lista dos dez mais ricos de Angola, como a família van Dunen ligada à Newshold - dona do "Sol", ou o general João de Matos, ligado à finança».


(«Angolanos à conquista de Portugal», in Suplemento do Correio da Manhã, Edição n.º 11 791, 2011).






«OS MITOS INTERNACIONAIS E A NAÇÃO PORTUGUESA»: Texto baseado na Conferência proferida na «Casa do Infante», na cidade do Porto, em 4 de Junho de 1968






Em obediência a mitos que se apossaram dos espíritos, bateu-se no mundo toda uma geração. Àqueles que saíam da adolescência há trinta anos, e muito antes que pudessem assumir responsabilidades na vida, foram apontados os valores fundamentais por cuja defesa se lhes disse que valia a pena o sacrifício supremo. Estava em causa na Europa e no mundo a liberdade do homem e das pátrias. Violentavam as consciências e obscureciam a razão sistemas totalitários; e o caminho de imperialismos abatia povos e suprimia velhas nações. Nunca alguém ousou falar de interesses, nem apresentar ambições que não se escudassem nos mais puros princípios. Era dito, a todos quantos então tinham vinte anos, que se cuidava apenas de salvaguardar ideais em que o homem encontrava a solução dos seus problemas. Disseminaram-se ideias-força que continham em si um apelo e implicavam um desafio moral aos homens bons; e para as corporizar ergueram-se símbolos por cujo preito morreram milhões. Reivindicavam as nações que então se diziam proletárias o direito à partilha das riquezas da terra e dos benefícios da técnica. Lançou o Japão o projecto de uma ordem nova na Ásia Oriental, para garantir a paz e a prosperidade gerais na área. As nações proletárias da Europa, da década de 1930, repudiavam o sistema de segurança colectiva em nome da libertação de homens da mesma raça, para os reunir numa só pátria, ou em nome do direito a um espaço vital que afiançasse um bem-estar igualitário. Personalizaram-se sentimentos e doutrinas. O Chanceler austríaco Dolfuss foi havido por paladino da independência dos povos, e o seu martírio deu prestígio à ideia. O Presidente Bénès, da Checoslováquia, identificou-se com a causa da democracia; era o guardião escutado dos direitos individuais; e dirigia-se aos homens com o peso e a ressonância de quem se sentia depositário dos seus destinos. O Marechal Pilsudski, da Polónia, consubstanciava o princípio das nacionalidades. E Chamberlain, Primeiro Ministro do Reino Unido, durante um instante de emoção teve a seus pés o mundo agradecido: era o homem que tinha sabido calcar orgulhos, e que a quaisquer ambições ou riscos havia conseguido antepor o ideal da paz entre os povos. Acreditou-se que assim seria, para muitas e muitas gerações, e o Parlamento francês aprovou por uma maioria de 550 votos em 575 os acordos de Munich. Quando todos estes valores, e mitos, e figuras, ficaram ameaçados e foram atacados, a humanidade vibrou de angústia, e para enfrentar acontecimentos que haviam escapado ao domínio dos governos apenas na guerra se viu o único caminho praticável. Mas foi então feita a afirmação suprema: essa guerra era de certeza a última, e por isso merecia todos os sacrifícios, porque a vitória seria garantia da paz para sempre e da abertura duma idade nova. Para o efeito, a Europa, a África e a Ásia foram mergulhadas em seis anos de luta sem quartel. Recordemos a hecatombe de Stalinegrado, o massacre de Katyn, os bombardeamentos de Coventry e de Londres, as bombas atómicas que pulverizaram Nagasaki e Hiroshima, as destruições de Berlim e de Varsóvia; e as campanhas da África do Norte, e do Pacífico, e das selvas da Ásia; e os milhões de mortos e feridos, e de estropiados, e de prisioneiros. Ao fim, quando cessou o pesadelo, o mundo habitava entre escombros, as estruturas políticas e económicas estavam desmanteladas, e os povos eram destroços humanos cujo destino constituía um mistério. Tudo isto correu há três décadas somente. Mas dir-se-ia que os homens e os Estados já hoje deixaram apagar das suas memórias frágeis aqueles seis anos dramáticos e convulsos. Das ruínas, todavia, uma coisa emergiu ainda durante algum tempo: a esperança de que tudo não houvesse sido em vão e que o sacrifício colectivo abrira aos homens uma nova idade alicerçada numa ordem nova.

Aqueles a quem cabia dissipar as angústias do mundo, e organizar a paz e eliminar as causas de guerra, conceberam a instituição das Nações Unidas como uma nova ideia-força em torno da qual poderia afirmar-se a reconciliação da humanidade exausta. Eram ambiciosos os propósitos: dizia-se no preâmbulo da Carta que se pretendia para sempre libertar «do flagelo da guerra as gerações futuras», assegurar «iguais direitos para todos os homens e para todas as nações grandes ou pequenas», impor justiça e respeito pela lei internacional, e «promover o progresso social numa mais ampla liberdade». Erigiu-se em mito a ONU: o mundo foi persuadido de que a organização constituía a esperança derradeira de sobrevivência dos povos. Aquela surgia assim como um vasto pretório democrático, regulador dos conflitos internacionais, promotor do desenvolvimento, garante dos direitos humanos, e nivelador das diferenças entre as nações, corrigindo a preponderância dos impérios através da igualdade qualitativa das pátrias. Procurava-se estruturar na adesão à ética da Carta a confluência de sistemas políticos e económicos díspares, presumindo-se que o respeito pela nova lei internacional e a prossecução do ideal de paz seriam automáticos numa humanidade fustigada por seis anos de guerra. Na imaginação dos mais ousados ou dos mais ingénuos firmou-se a ideia de que estava próxima a era do Governo mundial, de que decorreria a abolição das soberanias nacionais; e começou a aperfeiçoar-se o embrião de futuras instituições universais, sem se excluir mesmo o estabelecimento de uma força colectiva permanente que velaria pela ordem pública no mundo.







Ao mesmo tempo que assim se pretendia reforçar a ONU, compreendia-se no entanto que no desarmamento residia a pedra fundamental para uma paz duradoura. Por isso o desarmamento geral e completo foi o segundo mito que capturou a imaginação dos povos no limiar da idade nova. Era sinónimo de paz, no sentido de ausência de guerra; mas também foi havido como sinónimo de progresso económico e desenvolvimento técnico porque, para estímulo de um e outro, libertava os recursos financeiros indispensáveis. Deixou assim o problema do desarmamento de interessar somente os grandes impérios: mesmo os povos mais modestos reivindicaram uma voz na sua solução, e dir-se-ia haverem acreditado que com os seus anseios coincidiam os desejos e os interesses das potências, e que as dificuldades encontradas para desarmar o mundo eram apenas técnicas ou adjectivas.

Por isso – e estamos perante outra das ideias-força actuais – insistem os povos no desenvolvimento económico e no progresso técnico acelerados. Constitui uma obsessão a que tudo se diria ficar subordinado. Aquela insistência, e o desejo que a impulsiona, são em si inteiramente legítimos, e colocar o progresso ao alcançe das massas, tão rapidamente quanto possível, é imperativo dos governos e das instituições internacionais. Consiste o problema, porém, em saber se os actos dos países ricos e o comportamento dos que constituem o terceiro mundo têm contribuído para realizar aquele objectivo, ou se serão os mais idóneos para o alcançar. Entendeu-se, com efeito, que o desenvolvimento dos povos modestos era uma responsabilidade moral dos países abastados e altamente evoluídos, e que estes deviam distrair para aquele fim uma parte do seu trabalho. Assentou-se em que o avanço do terceiro mundo deveria ser veloz e espectacular, e nisso não haveria mal se não se pensasse que o segredo do êxito estava na industrialização maciça, sem se cuidar de lançar primeiro as bases de uma administração capaz e eficiente.

Mas lado a lado com o objectivo do desenvolvimento acelerado afirmou-se a necessidade moral da independência política de territórios, porque esta foi correlacionada com aquele. Na verdade, acreditou-se ou fez-se acreditar que a independência política de um território era panaceia para todos os problemas: por si, constituía um método de promoção social, representava uma segurança da liberdade individual, prestava uma garantia de avanço técnico e económico, sendo assim capaz, em suma, de estruturar um Estado, lançar uma administração e implantar uma pátria mesmo onde esta não existisse. Foi portanto o mundo levado ao que se designou por descolonização, e esta apresentou-se como um imperativo de consciência, um acto salutar para eliminar as causas do conflito, um gesto esclarecido de sabedoria política para libertar de encargos as potências com soberania em espaços ultramarinos. Essa descolonização efectuar-se-ia sob o signo de um tipo de democracia: chamou-se-lhe autodeterminação: e como a democracia e como a paz, a autodeterminação foi havida como indivisível. Quer isto dizer que forma uma responsabilidade colectiva: não será completa nem estará segura enquanto não for universalmente aplicada, e sempre do mesmo modo: e isso sem distinções e sem atender a considerações de número de habitantes e recursos e sem olhar às estruturas e estádios sociológicos dos vários povos.

E assim encontramos as grandes coordenadas em que, após o rescaldo da última guerra, se tem procurado organizar a nova comunidade universal: a busca do governo mundial através das Nações Unidas; a paz pela lei e pelo desarmamento; o progresso técnico e o desenvolvimento económico acelerados; os direitos humanos e a independência dos povos fundados na autodeterminação, sujeita à fiscalização e censura internacionais. Têm sido estes os grandes ideais com que se procurou emocionar os corações dos homens e aliciar as vontades, e à sua sombra a todos nos tem sido dito que sobre a humanidade ia descer uma ordem nova e mais perfeita. Dir-se-ia que o fulgor destas ideias-força tem cegado muitos olhos deslumbrados, e dir-se-ia também que se tem sido incapaz de distinguir naquelas o que há de incontestavelmente de mito ao serviço de novos impérios.


Reverso do Grande Selo dos Estados Unidos, instituído em 1782. O ano de 1776 (indicado na base da pirâmide em numeração romana) pode estar, porventura, relacionado com a fundação da «Ordo Illuminati Germanicus», levada a cabo por um professor de Direito Canónico: Adam Weishaupt (1748-1830). A finalidade de uma tal associação, desde logo infiltrada na Maçonaria, era o estabelecimento de uma "Nova Ordem dos Tempos" (Novus Ordo Seclorum). "Annuit Coeptis" significa "Ele aprova nossos actos".


Porque, com efeito, temos de perguntar: serão na realidade novas as bases da nova sociedade? Serão de facto eficazes os instrumentos com que se procura apetrechar a comunidade para garantir o progresso e o bem comum? Tomemos a Organização das Nações Unidas e o seu projecto de governo mundial. A ideia de uma autoridade universal, no sentido de abranger todo o mundo conhecido, já nós a poderemos encontrar no conceito da Respublica Romana e depois no da Respublica Cristiana. Sem recuar a tempos tão remotos, todavia, recordar-se-á que no século XV o Rei Jorge da Boémia elaborou uma organização do Estado Universal; e no séc. XVII William Penn escreveu o Ensaio para a paz presente e futura na Europa, em que propunha um sistema de decisões por votos ponderados (caberiam três a Portugal) e previa o uso da força contra os desobedientes. Mais tarde, um outro inglês, John Bellers, sugeriu a constituição de um Estado Europeu dotado de um sistema para resolver todas as disputas acerca dos direitos dos Príncipes. Já no séc. XVIII, o Abade de Saint-Pierre compunha a Memória para tornar a paz perpétua na Europa e entrevia o estabelecimento de um congresso e um senado perpétuos, tendo o plano interessado Rousseau vivamente. Pouco depois Bentham publicava o Plano para uma Paz Universal e Perpétua, e no mesmo sentido propuseram seguidamente os filósofos alemães do séc. XVIII uma confederação geral universal. Podemos mesmo descer a um pormenor e inquirir se será nova a ideia de uma força internacional de manutenção da paz, que tantos hoje advogam como vital para a segurança colectiva. Neste particular, será de lembrar que já Sully, o conselheiro de Henrique IV de França, sugeria em 1609 a formação de um exército internacional de 100 000 soldados de infantaria, 25 000 cavaleiros e 120 canhões, destinado a executar as decisões do Conselho Geral Europeu composto por quarenta membros. Afigura-se aliás historicamente comprovado que neste «grande desígnio» de Sully se inspirou o Presidente Woodrow Wilson, dos Estados Unidos, quando três séculos mais tarde lançou a sua Sociedade das Nações. Mas por estes dados rudimentares tirados da história política já poderemos entrever as vicissitudes das tentativas de um governo mundial ou planetário e de manter a paz entre os homens. Trata-se de um desideratum, de resto, que se enquadra num permanente ideal cristão, que sempre recomendou a paz.

O desarmamento, por sua vez, também corresponde a um desejo que nunca morreu no homem; e a negociação frustrada de um desarmamento geral e completo depois de cada guerra constitui um traço tão comum na história de todos os tempos que será descabido exemplificá-lo. Na época que todos vivemos também não tem avançado um passo o problema: e não se sabe se é a impotência das instituições ou simplesmente o instinto de conservação dos Estados que mantém o mundo em posição de combate.

Mas que resultados se têm alcançado através das demais ideias-força com curso nas duas últimas décadas? Depois da euforia dos primeiros ensaios, parece que o mundo dos subdesenvolvidos começa a sentir-se decepcionado perante os obstáculos intransponíveis que os países ricos têm acumulado no seu caminho. As potências industriais, tanto capitalistas como socialistas, dizem-se com efeito prontas a aceitar a responsabilidade moral de auxiliar o terceiro mundo e a atribuir para tanto uma generosa percentagem do rendimento do seu próprio trabalho. Mas da declaração de princípio à sua execução mantém-se um largo abismo que ainda não foi transposto; e as alterações dos sistemas monetários internacionais, as oscilações nos preços das matérias-primas fornecidas pelo terceiro mundo, e as flutuações do custo dos produtos manufacturados que este tem de adquirir – tudo isto pode anular os auxílios que os países ricos afirmam conceder generosamente aos países pobres. Isto explica o que é por todos averiguado: sem embargo das múltiplas instituições internacionais para erguer os povos pobres ao nível a que todos têm direito, e não obstante os altos princípios morais que todos decerto desejam acatar, é indisputável o facto de que os ricos se acham cada vez mais ricos, e os pobres cada vez mais pobres. Se se tiver em conta que a maioria do terceiro mundo é formada pelos descolonizados, daqui se concluirá qual a natureza da descolonização e a extensão do desastre a que a autodeterminação indiscriminada tem conduzido.



E aqui cumpre sublinhar três aspectos fundamentais. Já vimos que as Nações Unidas e algumas potências nos dizem que a autodeterminação, para ser segura e completa, é indivisível como a democracia e a paz. Lançou-se este slogan, e não se reparou nos seus riscos. Quando se declara indivisível a paz, por esse facto se considera a guerra ilegal. Mas quando se alega que a autodeterminação e um tipo exclusivo de organização política são indivisíveis, então temos de aceitar que ao mesmo tempo estamos a legitimar e a justificar a alegação que se faça da indivisibilidade do comunismo, do socialismo, do capitalismo ou de qualquer outra ideologia política ou sistema económico; e estamos também a lançar os germens de um conflito pois que a oposição entre duas legitimidades só pela força pode ser dirimida. Estamos em plena negação da coexistência pacífica, que por outro lado se tem procurado organizar em moldes aceitáveis. Isto significa que tem de haver mais de uma forma de autodeterminação, e que todas têm de poder coexistir e de ser havidas por válidas. E o segundo aspecto importante é este: se se aceita a responsabilidade colectiva da autodeterminação, cai-se implicitamente, para a efectivar, na sua fiscalização internacional; esta, porém, só é exercida sobre os pequenos países, porque as grandes potências têm meios de se eximir ou de desacatar qualquer ingerência estranha; e deste modo se explica que a fiscalização do respeito pelos direitos humanos nunca se tenha podido praticar na União Soviética, ou nos Estados Unidos, ou na China. E isto me conduz ao terceiro aspecto fundamental. A ideia da responsabilidade colectiva em matéria de autodeterminação dos povos inteiramente coincide com a velha ideia imperial do «fardo do homem branco». Esta assentava na convicção de que constituía responsabilidade moral do homem branco envidar todos os sacrifícios pelo progresso do homem negro ou amarelo. Esse altruísmo ímpar do homem branco foi fonte de lutas entre as nações europeias – cada uma desejando ser mais dadivosa do que as demais e querendo sobretudo talhar-se na África e na Ásia amplas esferas de influência, onde pudessem vender os seus produtos e obter a bom preço as matérias-primas para as suas indústrias. E é precisamente também este o fundamento da autodeterminação actual. As grandes potências mundiais, com indústrias e mercados insaciáveis, também hoje nos afirmam ser por virtude de uma obrigação moral pesada, a que se não podem furtar, e em obediência a altos princípios ideológicos, a que não conseguem subtrair-se, que são compelidas a defender a autodeterminação indiferenciada em toda a parte, ainda que para tanto hajam de arruinar os povos autodeterminados e ofender amigos e aliados, pisando seus direitos e interesses legítimos. Entre esta situação e a de ontem é nenhuma a diferença. A descolonização foi assim impulsionada em termos que não são de independência política e económica para os novos estados, e em muitos casos representarão simples reconversão ou transferência de soberanias.

E de tudo tiraremos uma conclusão geral: as grandes ideias-força, os altos princípios, os mitos difundidos nas últimas décadas, mergulham as suas raízes em ideias ou conceitos que vêm de longe. A sua novidade, o seu fascínio, o sortilégio que provocam derivam sobretudo do vocabulário usado, e dos poderosos meios técnicos com que se disseminam e repetem as novas frases herméticas. Não se diga, porém, que não há matéria nova, ou que se não alteraram muitas estruturas, e é isso que teremos de ver.

Mas antes convirá referir uma outra ideia-força, que tem sido rodeada de grande prestígio e a que no Ocidente se tem devotado um particular culto. Designamente muitos de nós em Portugal lhe atribuímos subido valor. Estou a pensar no mito da Europa: na ideia de que a Europa deve ser construída numa base supranacional, de modo a erguer-se como força de envergadura poderosa que baste para a colocar em pé de igualdade com os grandes impérios surgidos depois da guerra. Por outras palavras: uma Europa despojada de soberanias nacionais, descarnada da sua diversidade, federal no plano político, monolítica no plano moral e social. A esta ideia de pátria europeia se amparam muitos, arrastados pela atracção das coisas aparentemente diferentes. No que particularmente nos toca, julgam alguns de nós que o destino de Portugal está no apego a essa Europa unitária, e que àquela nova pátria europeia poderíamos confiar a nossa segurança e o nosso rápido desenvolvimento: esta seria uma alternativa compensadora do abandono a que entretanto teríamos votado os caminhos do Ultramar.



Imperador Carlos Magno



Esta é a ideia de hoje. Mas a história mais elementar diz-nos que esta ideia tem pelo menos dois mil anos. Não se trata de incompreensão perante um novo fenómeno: é análise fria do quadro actual que nos impõe essa conclusão. Já a Respublica Romana ou a Respublica Cristiana não haviam sido mais do que tentativas de uma pátria europeia. No plano político como no militar, o Império de Carlos Magno constituiu a mais acabada realização de uma Europa Unida e de um Mercado Comum, cujas fronteiras coincidiam quase exactamente com as que hoje delimitam a Comunidade Económica europeia. Mas logo sobrevieram as nações, e a história da Europa consistiu na acomodação de umas com as outras. Entramos no séc. XVIII e assistimos ao embate entre o que então se chamava o cosmopolitismo e o princípio das nacionalidades. Com a Revolução Francesa o choque produz-se entre a Europa do direito dos povos e a Europa das hegemonias. Temos novas tentativas de construção da Europa pelo império: a Europa napoleónica, a Europa da Santa Aliança, a Europa hitleriana. E se quiséssemos, acaso com algum simplismo, sistematizar vinte séculos de história europeia, poderíamos dizer que esta tem sucessivamente girado em torno de um princípio, de uma força, e de um interesse. Mas é na diversidade que a Europa tem encontrado a sua expressão.

Caberá aqui perguntar o que é a Europa. É antes de mais uma força de ânimo, de matriz cristã; depois é a liberdade de espírito, à maneira grega; seguidamente, é o culto da lei, da ordem, da grande administração, nos moldes romanos; e por último é a técnica, a ciência, o rigor, o respeito pelo homem como um valor em si, o domínio da natureza, a disciplina fundada na lei geral, a distinção entre o privado e o público, a vocação universalista, e a multiplicidade e fragmentação criadora. Foi nestas bases que a Europa viveu a sua grandeza, e que tem sido portadora de uma mensagem que o mundo aceitou. A cooperação, a unidade económica, e um sentido comum dos interesses mundiais europeus, são hoje indispensáveis; mas ir para além desses limites é correr o risco de abafar o ímpeto fecundo da Europa. Aqueles que noutros continentes advogam e solicitamente recomendam uma Europa supranacional, unida, federada, têm no pensamento uma Europa cingida às suas fronteiras geográficas, sem posições no Mundo e sem intervenção no plano internacional. E isto porque uma Europa que seja uma simples península da Ásia e que não disponha de posições políticas ou outras para além das suas praias, terá de se confiar à protecção de além-Atlântico, decerto condicionada aos interesses nacionais e à linha ideológica de quem protege.

É dentro deste quadro que por esse vasto mundo se desencadeia uma propaganda infatigável destinada a incutir na Europa um complexo de culpa, um dever de expiar crimes e redimir faltas, e tudo isto é dito e repisado até à saturação, para entibiar a consciência dos europeus como se estes habitassem um continente maldito. Dir-se-ia que tão-somente a Europa cometeu erros, provenientes da malignidade e torpeza ética do homem do continente europeu, enquanto os outros apenas se determinam pelos mais altos e mais desinteressados princípios. E por isso é no repúdio daquela culpa sem fundamento que a Europa poderá retomar a sua marcha interrompida pela guerra e sofreada pelos impérios não-europeus.






Não se conclua, porém, que se mantém idêntico o mundo desde a guerra de 1939-1945. Se as situações históricas se repetem, e se a natureza das forças em conflito não sofre as alterações que seríamos levados a supor pela nova terminologia usada, a verdade é que nas últimas décadas dois factos apresentam um interesse vital para os destinos do homem e da civilização. Refiro-me à emergência de novos impérios e à revolução tecnológica. Das ruínas da guerra, da fadiga dos povos que arcaram com a sangria dos combates, das dúvidas suscitadas quanto a um padrão de valores morais a respeitar, saíram em escombros os impérios tradicionais que, filiados no velho concerto europeu, durante mais de um século asseguravam a estabilidade do mundo. Demitiu-se das suas responsabilidades o império britânico; reconverteram-nas o império francês e alguns outros; e o complexo de culpa com que se tem procurado desfazer toda a Europa, sob o pretexto artificioso de a unir, arrastou o continente europeu ao abandono. Ergueram-se no mundo, por outro lado, os impérios chinês, russo e norte-americano. De momento, o potencial humano da China não é apoiado nos meios económicos, técnicos e militares que bastem para assegurar uma hegemonia que transcenda os aspectos regionais. Mas os recursos da União Soviética e dos Estados Unidos permitem-lhes estar presentes em força e agir nos quatro cantos da terra. Dir-se-á que essa sempre foi a característica dos impérios de escopo mundial. Bastará recordar o exemplo do império britânico: era uma organização económica e comercial que se apoiava na arma suprema da época – a esquadra britânica – e numa rede mundial de bases militares. Não tentava o Reino Unido, todavia, organizar o mundo num quadro moral e ideológico novo; e por isso, assegurados os interesses britânicos, os seus desejos de intervenção na vida dos povos eram nenhuns. Mas é diferente o objectivo da União Soviética e dos Estados Unidos da América. Estes têm como fim único estruturar, segundo o modelo que se traçaram, uma ordem nova planetária, e sujeitar o mundo a uma disciplina de poder que limite, em número e em potencial, os centros autónomos de decisão política e militar. Sob pretexto de que têm de conduzir uma luta global, ambos praticam um intervencionismo de proporções mundiais; e declaram agir com sacrifício em nome de princípios de que estariam ausentes os seus interesses próprios. Atribuem-se assim imperativos de consciência e mandatos colectivos cujo fundamento aliás não descobrimos em nenhuma ordem revelada ou positiva. Sentem-se forçados a tomar posição judicativa, ao mesmo tempo ideológica e moral, em face de governos e de instituições alheias, e a actuar em conformidade; e arrogam-se o direito de definir os interesses nacionais dos vários países, querendo impor-lhes essa definição.







Não se pretende dirigir uma crítica a quem quer que seja; mas a mais sóbria análise política leva-nos à conclusão de que, na ordem nova que se anuncia, há uma significativa coincidência permanente entre os interesses nacionais dos grandes impérios mundiais e os princípios de que se fazem apóstolos quanto a terceiros. E por isso somos obrigados a dizer que as super-potências mundiais assumiram perante os homens e perante a história responsabilidades gravíssimas; e parece duvidoso que uma ordem nova construtiva possa ser fundada sobre a instabilidade inerente ao intervencionismo em escala universal.

Mas as grandes potências apoiam-se, de momento, nas conquistas da era tecnológica. Esta contém, na verdade, uma das mais belas promessas. É inultrapassável o prestígio das conquistas técnicas e científicas, e dir-se-ia que delas fiamos a felicidade do homem para sempre. Por isso se começou a medir a eficiência dos governos e a legitimidade de uma política pelo grau de prosperidade individual e progresso material que assegurasse. A construção de sociedades afluentes ou pletóricas é avidamente desejada; e para se lhes dar um conteúdo e uma justificação moral disseminou-se a ideia de que só o homem rico é um homem livre e de que apenas numa sociedade de abundância está garantida a plenitude dos direitos humanos. É toda uma nova civilização que se anuncia: a do poder nuclear, a dos ordenadores e computadores electrónicos, a das grandes empresas mundiais sem nacionalidade, a da organização dos ócios, a da sociedade de participação e contestação, a sociedade humana pós-industrial; o ano dois mil aparece no horizonte como uma linha de fractura cerce e abrupta com o passado; e o futuro é apresentado como uma fase finita, estanque, delimitada, permanente, que se segue à actual, como se a vida aí se suspendesse em moldes definitivos e como se a um futuro não se seguisse outro, e outro, num fluir sem paragem. Acima de tudo, exige-se rapidez: esquece-se se as economias podem aguentar o peso do que se pretende e das reivindicações que se apresentam e, ao mesmo tempo, continuar a progredir e ser independentes. A verdade, porém, é que a grande revolução tecnológica requer recursos vultuosíssimos na fase actual; e esses apenas as grandes potências mundiais os possuem. Daí a sua hegemonia; e esta manter-se-á enquanto detiverem o monopólio da fonte de que emana o poder, ou enquanto outra fonte não for descoberta. Por isso as maiores potências não se cansam de propagar os ideais de prosperidade, abundância, integração supranacional; mantêm a ficção de um organismo internacional de feição democrática, mas procuram organizar a comunidade das nações em termos aristocráticos, reservando-se o manejo sem restrições da energia nuclear e das alavancas económicas; e à sombra daqueles grandes mitos por todo o vasto terceiro mundo desceu de 30% a produtividade média nos últimos cinco anos.






Sim: os recursos económicos, o poder nuclear, o domínio da revolução tecnológica, o controle das matérias-primas e do trabalho dos países subdesenvolvidos, os grandes arsenais militares – tudo isto confere às grandes potências um poderio que se diria irresistível. Mas não é: não podem tudo. Porque, para além da agitação que promovem, têm esquecido o elemento humano; e é este, por retardado e fraco que seja, que compele a União Soviética a ser prudente na Europa de leste e os Estados Unidos a ser cautelosos perante outras dificuldades que tem enfrentado.

Na definição da atitude portuguesa não nos deveremos determinar por emoção, ou por simpatia, ou malevolência, ou ódio em favor ou contra um povo ou outro. Não se trata de ser amigo ou inimigo de quem quer que seja. Haveremos de nos cingir à análise dos factos, para assim mantermos clara e fria a nossa visão. E a primeira consideração que se afigura vital é esta: para nós, os interesses portugueses têm prioridade absoluta sobre todos os demais, e a satisfação ou a cooperação com os interesses alheios não podem nunca realizar-se com atropelo dos nossos. Isto significa, antes de mais, que a noção de pátria tem de estar sempre presente e viva no nosso espírito. E é bem que falemos de pátria, de nação portuguesa. Todos sabemos que se condena hoje o nacionalismo, que se tem por ideia ultrapassada, e que a linha de fronteira é havida como uma aberração e um arcaísmo. Mas atentemos em que aqueles que condenam o nacionalismo, e o tratam pejorativamente, são precisamente os mesmos que, para si próprios, mais cultivam e exaltam a ideia da pátria. Na União Soviética todo o sistema de educação e propaganda se baseia na história russa, nos mitos russos, nas glórias russas, na defesa e promoção, em suma, da pátria russa. Nos Estados Unidos, a educação, a propaganda, o enquadramento psicológico e social da juventude não se destinam a formar um homem, dotado de espírito universalista, mas um cidadão americano, impregnado de orgulho de o ser, o convicto de que ser americano constitui a única expressão válida de patriotismo e de cidadania política. Acreditar que está desprestigiado o conceito de pátria, e que o nacionalismo não tem hoje razão de ser, é ponto de vista de que só os simples poderão partilhar. E daqui podemos atingir uma segunda conclusão, e que será esta: não se justifica que procedamos como se os estrangeiros, pelo facto de o serem, tivessem razão contra nós, e como se fossem sagrados os princípios de que se fazem arautos para sua exclusiva conveniência; e nem há que ficarmos confusos porque nos criticam, ou que recear dar-lhes a resposta que for apropriada. Quer isto dizer que nenhum motivo há para inibições morais nem sobressaltos de consciência, e lembremo-nos de que não são formados de santos nem de super-homens os demais povos. Não há que sublimar os nossos adversários: temos que ser friamente realistas na valoração e julgamento que deles façamos. E somos conduzidos a uma terceira conclusão. Uma política digna desse nome tem que saber, a cada momento, distinguir o que é acessório do que é essencial, e o que é passageiro do que é duradouro. Não podemos tomar decisões definitivas para satisfação do que for provisório. Está o perigo, portanto, em que nos deixemos persuadir de que é permanente e definitivo o que é somente provisório. Perante os mitos que enleiam os espíritos, e as ideias-força que capturam as imaginações, e as dúvidas que perturbam as consciências, muitos deixam-se arrastar, e ficam convictos de que a ordem nova, além de ser nova, é definitiva e irreversível. Decerto: no mundo muita coisa poderá ser aperfeiçoada e actualizada; mas no que nos toca tomemos como directrizes o nosso interesse e não actuemos ao sabor das ideias insufladas por outros. Porque, além de manejar com destreza um novo vocabulário, que impressiona muitos pelo seu hermetismo e audácia, e de utilizar meios técnicos de dissimulação veloz e maciça, a ordem nova é acima de tudo uma criação de forças imperiais que procuram realizar-se no mundo. As decisões que tomemos no essencial, todavia, essas são definitivas e irrevogáveis; se ao tomá-las procuramos satisfazer o adversário para o apaziguar, estaríamos já a fazer a sua política e a não a nossa; e quando nos apercebêssemos do ludíbrio seria inviável arrepiar caminho.





Diz-nos a história desta nossa nação que a identidade das situações e analogia dos conflitos se mantém para além da evolução dos princípios teóricos e das revoluções ideológicas. Não temos que sair do continente africano para estabelecer esta verdade. Firmámo-nos em África com títulos morais e jurídicos por todos havidos como válidos, e a Nação Portuguesa, tal como então a constituímos, teve na época reconhecimento internacional pacífico. A contestação dos nossos direitos surgiu, porém, quando as potências se quiseram assenhorear do continente africano, e este passou a ser elemento de peso no jogo internacional. Então se elaboraram doutrinas de maior elevação moral, e todas eram no sentido de destruir em África a nação portuguesa. Lançou-se o princípio da liberdade dos mares contra Portugal quando se quis atacar o poder naval português. Proclamou-se o sistema do «pacto colonial» quando se quis restringir a liberdade de navegação portuguesa, e o seu acesso aos portos africanos de outrem. Condenou-se Portugal em nome do anti-esclavagismo quando a escravatura, que toda a Europa praticara maciçamente, deixou de ser economicamente proveitosa e passou, por esse facto, a afrontar de súbito a consciência das maiores potências. Advogou-se o direito de visita e de inspecção a navios nossos, e admitiu-se a legitimidade do bloqueio de alguns portos portugueses para, segundo era alegado, assim melhor se executarem os objectivos ideológicos da comunidade internacional. Defendeu-se a internacionalização dos problemas africanos quando as potências, pela sua força, tiveram a certeza de poder dominar essa internacionalização e encaminhá-la em seu proveito. Defendeu-se o critério da ocupação de territórios como base da legitimidade de soberania; mas não antes de se ter garantido por expedições militares a ocupação do que interessasse. Depois considerou-se que em nome da justiça entre as potências seria útil delimitar em África as respectivas esferas de influência; mas estas deveriam equilibrar-se utilizando territórios portugueses e deixando intactos os dos mais fortes. No mesmo sentido operou mais tarde a doutrina dos mandatos. E ainda nessa direcção foi entendida e aplicada a teoria do «fardo do homem branco»: era a ideia de um generoso dever colectivo do concerto europeu perante o homem africano, e a que apenas as potências poderiam naturalmente fazer face: e também nos nossos dias, finalmente, o conceito de autodeterminação parece constituir um dever que a si mesma se impõe a comunidade internacional, atribuindo-se algumas grandes potências, sem que alguém lho houvesse solicitado, a responsabilidade de zelar pelo seu rigoroso cumprimento: e tanto num caso como noutro pretendeu-se excluir Portugal. Mas através de todos estes séculos de história alguns traços comuns devemos salientar: Portugal funda-se em África na validade dos seus títulos e na legalidade internacional vigente; depois as super-potências elaboram novos conceitos ideológicos e assentam novas estruturas legais e políticas no plano internacional, e umas e outras servem acima de tudo os respectivos interesses nacionais; ataca-se seguidamente Portugal porque se recusa a adoptar aqueles altos princípios ideológicos e humanitários; e essa recusa portuguesa é havida como um obstáculo ao desenvolvimento da África, como um agravo à consciência da humanidade, como um embaraço à grandiosa estratégia política do Ocidente, e por isso condenar Portugal e privá-lo das suas províncias constituem, hoje como no passado, imperativos de moral, além de sábios e salutares actos políticos.






Mas se sairmos da África, e confrontarmos a nossa posição com princípios actuais de escopo mundial, não são diferentes as nossas conclusões. Não possuem as Nações Unidas força além da que as grandes potências quiserem dar-lhes; estas apenas apoiam a organização quando a mesma actuar em conformidade com os respectivos interesses nacionais; e temos de afirmar que aquele organismo internacional não se determina pelos princípios éticos inscritos na Carta nem obedece a qualquer sentido de equidade política. Por isso se tem de dizer que as Nações Unidas não reflectem uma qualquer opinião pública, nem traduzem o peso de um julgamento moral. O Governo de Moscovo desrespeitou as trinta ou quarenta resoluções votadas contra a União Soviética, além de haver aplicado o veto no Conselho de Segurança uma centena de vezes, de uma das quais fomos vítimas no caso de Goa; a União Indiana tem repudiado todas as resoluções do Conselho acerca de Cachemira; o Egipto e Israel sempre ignoraram as decisões daquele órgão e da Assembleia; os Estados Unidos da América expressamente se recusaram a cumprir o que há anos foi votado sobre o desarmamento e energia atómica. Nenhuma perturbação de espírito ou escrúpulo de consciência nos deve causar o não-cumprimento de resoluções da ONU, sobretudo quando as mesmas, como é o caso no que nos toca, constituem clamorosas ilegalidades – e foram votadas para satisfazer os objectivos aparentes do terceiro mundo e os objectivos reais dos impérios. Nem devemos equacionar o nosso prestígio internacional com os votos da ONU, nem pensar que estamos isolados porque estamos em minoria na Assembleia. Mas uma das principais acusações da ONU contra Portugal consiste em afirmar que constituímos uma ameaça à paz e à segurança internacionais. Arrasta-se há doze anos a acusação; nesse período assistimos às crises de Berlim, e ao conflito do Suez, e à aventura militar do Congo, e ao esmagamento da Hungria, e ao embate de Cuba, e à conquista de Goa, e à luta da Indochina, à ocupação da Checoslováquia, e às guerras no Médio Oriente e na Nigéria; perante tudo isto ficou impotente a ONU; mas segundo esta, é a protecção das populações e territórios portugueses que ameaça a paz e a segurança internacionais. Decerto que a paz é um valor em si, e um bem que deve ser defendido, e ninguém responsável e lúcido pode ser paladino da guerra. Mas salvo se se tomou a iniciativa da agressão, não há e não pode haver paz unilateral; e quando à vítima de um ataque se recomenda a paz a todo o preço, sem que os atacantes hajam sido persuadidos a cessar o ataque, está-se a negar a mais elementar legítima defesa e a advogar o que se chama uma solução política, que no fundo é a paz nos termos do adversário. Mas toda esta problemática surge para nós em ligação com o Ultramar. E isto nos reconduz ao outro dos grandes mitos actuais: o da descolonização. Somos arguidos de colonialismo, e a acusação firma-se em dois pressupostos: o de que o Ultramar português é uma nódoa de subdesenvolvimento no esplendor e na prosperidade que a descolonização trouxe a toda a África; e o de que estamos negando os direitos humanos mais elementares. Temos de rejeitar, por falsos, os dois pontos. Aqui na metrópole temos de tomar consciência, e de proclamar sem temor, que Angola e Moçambique estão entre os territórios mais desenvolvidos da África negra ao sul do Sahará; e no que respeita a direitos humanos, não parece que estes sejam eficazmente protegidos na Nigéria, ou no Congo, ou na Etiópia, ou em quase todas as outras regiões da África; mas são respeitados nos nossos territórios, e por isso admitimos sem esforço que é do interesse português recusar que às populações portuguesas, sejam negras ou brancas ou mestiças, se imponha uma autodeterminação que inevitavelmente, fatalmente, as submeteria ao império económico, financeiro e militar de potências não-africanas. Alega-se por outro lado que devíamos abandonar os caminhos do ultramar – porque os tempos são outros, e porque uma integração na Europa nos daria segurança e prosperidade, e nos alinharia com o progresso e a modernização europeias. Há os que sentem então a sedução de pertencer a organizações de tendência supranacional sem se aperceberem de que por esses atalhos deixaríamos de ser o que somos para passarmos a ser o que não queremos. Cingidos ao que o Infante D. Henrique chamava o território «de aquém», seríamos uma entidade de limitada expressão internacional. Também neste particular, de resto, a história desta Pátria nos diz que as estradas da Europa são ilusórias, e custosas, e que a nossa tipicidade assenta na fidelidade à nossa vocação de povo ultramarino.






Desta investigação sumária parece evidente o paralelismo entre os principais mitos do mundo actual que foram lançados e em que se apoiam as grandes forças internacionais, e os ataques que nos são dirigidos no plano mundial. Isso significa que sofremos o embate dos grandes interesses e ambições e que somos acusados e atacados porque estamos no seu caminho. Daqui deveremos compreender que é inviável tentar conciliar ou apaziguar os adversários mediante transigências parcelares. Porque, com efeito, os interesses só se consideram satisfeitos quando efectiva e realmente o forem; mas então já nós teríamos cessado de ser o que somos, e as ambições apenas se detêm quando acomodadas no arranjo global a que conseguirem chegar. Por isso tem de ser imperativo da nossa política nacional procurar atravessar, tão incólumes quanto possível, a tempestade da actual revolução planetária; porque, restabelecida a ordem pública internacional e firmadas as modernas Tordesilhas mundiais, os novos impérios, já então saturados, serão os mais extremados defensores da lei, dos direitos adquiridos, e da moral. Temos de ser fortes até essa altura, para que seja respeitada a nossa integridade dentro do lugar que nos cabe. Mas tudo isto significa também que são inúteis, além de perigosos, todos os compromissos políticos. Nenhum seria respeitado: e cada cedência nossa seria tão-somente o ponto de partida para nova e mais ampla exigência. E não nos convençamos de que, condescendendo no acessório e no secundário, conseguiríamos guardar e salvar o fundamental: porque é no fundamental que o adversário tem os olhos fitos: e não se deixa iludir ou persuadir que o obteve sem que o haja alcançado na verdade. Não pensemos, assim, que o segredo da nossa vitória está numa maleabilidade e flexibilidade, de cuja falta nos acusam os que rigidamente nos lançam sempre as mesmas acusações eternas; nem julguemos ser viável cruzar os caminhos do mundo sem problemas, sem dificuldades, sem sacrifícios, como se vivêssemos numa irrealidade que pudéssemos comandar a nosso gosto; e nem se diga que os portugueses estão alheios ao mundo de hoje, e apartados dos seus problemas, e dos seus valores, e das suas novas subtilezas, e das suas novas verdades, porque são precisamente um profundo sentido realista e um claro entendimento dos problemas, e dos mitos, e das ambições em presença, que nos dizem que não nos deixemos ofuscar por tudo quanto, ao fim e ao cabo, é transitório e fugaz nas perspectivas da história. Para além do imediato, e para além daquele pequeno futuro a que se referem os mitos modernos, temos de ver o futuro a longo prazo, nas perspectivas do tempo; e não nos esqueçamos de que o que fizermos aqui tem imediatas repercussões no Ultramar. Finalmente, não imaginemos ser praticável adoptar políticas contraditórias, colhendo os benefícios de ambas, de modo que ao mesmo tempo se conserve esta nação multirracial e pluricontinental e se contentem os adversários que a querem destruir.



Jorge Félix



Tudo isto põe à prova a nossa vontade e a nossa coragem. Fala-se hoje muito em desafios. Pois eu falarei do desafio português – do repto que esta nossa velha Nação lança a todos nós, seja qual for a idade que tenhamos, perguntando-nos se estamos à altura dos direitos e dos interesses permanentes de Portugal. Mas essa pergunta é sobretudo dirigida às gerações que, além das que se batem em África, despontam hoje para as responsabilidades da vida. A mocidade pede que se compreenda e dissipe a sua inquietação. A juventude pede que se lhe assinalem as esperanças no futuro. Pois pode dizer-se-lhe que o conjunto desta metrópole e seu ultramar consentem todos os sonhos. Estão lançadas e em progresso as grandes estruturas; possuímos os recursos; a nova tecnologia permite os mais audaciosos planos e empreendimentos; e as posições estratégicas sem par, de que dispomos no Atlântico e no Índico, constituem cartas vitais no jogo a que nos obrigam. É este o repto de Portugal à juventude: porque esta tem de estar consciente dos direitos que são seus, dos interesses legítimos que são seus, e da grandeza do futuro que pode ser o seu: e tem de resolver se, no foro íntimo da sua consciência, estaria preparada para aceitar a responsabilidade de ser a primeira na história de Portugal a negar os sentimentos e os esforços que foram os de todas gerações precedentes – sem excepção (in ob. cit., pp. 209-245).


Um comentário:

  1. Bem haja pela lembrança de textos desse grande português que foi Alberto Franco Nogueira. Estes trechos dobre o Terceiro Mundo podiam ser actualizados com o que o Embaixador diz sobre o Terceiro Mundo nas pp. 180-181 da sua última obra publicada em vida - Juízo Final (1992). Aliás um livro de leitura urgente e purgante para os tempos de hoje, e que bem merecia uma chamada de atenção neste blogue que tão bem o merece.

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