domingo, 26 de setembro de 2010

Moçambique Terra Queimada (ix)

Escrito por Jorge Jardim







Perseguição e atropelos


Durante os 23 dias da minha reclusão na embaixada, muito havia acontecido.

Acompanhei isso pelos jornais, pelo écran do televisor e pelas informações que me chegavam. Mas certos aspectos só os vim a reconstituir e relacionar, posteriormente.

Constituíra-se o primeiro governo provisório português, sob a honrada presidência do Prof. Adelino da Palma Carlos que viria a demitir-se, em meio de Julho, afirmando não dispor de poderes para governar.


Governo Provisório em Moçambique


Almeida Santos ocupara a inovada pasta da Coordenação Interterritorial, com responsabilidade de conduzir a acção descolonizadora, e nela haveria de sobreviver ao longo dos sucessivos governos (cada vez mais pró-comunistas) de Vasco Gonçalves, realizando acção que não surpreendeu ninguém e que para sempre o responsabilizará. Só viria, mais de um ano volvido, a abandonar Vasco Gonçalves, num gesto de dignidade tardia que lhe permitiu continuar no governo, em novo cargo.

Em meteórica viagem a Angola e Moçambique, Almeida Santos fizera democráticas sondagens às preferências locais, nada ficando a dever ao mais puro estilo colonialista. Os acolhimentos populares que recebeu não foram propiciadores e nalguns ensejos teve de buscar a porta de saída mais segura.

Julgo que, ao menos, foi sincero e realista quando, nalguns encontros, aconselhou os brancos a retirarem os haveres e o físico, já que ninguém poderia responsabilizar-se pelo que aconteceria depois da independência que inevitavelmente se avizinhava. Isso foi dito a pessoas concretas e identificadas e disso deu exemplo com as precauções que tomou (retirando o mais que pôde) e foram publicamente conhecidas com escândalo. Para além das transferências “legais”, oportunamente realizadas e algumas delas documentáveis insofismavelmente, tentou ampliar essas providências, já muito depois de ser ministro. Disponho da identificação da pessoa que utilizou como intermediário e do testemunho de quem proporcionou o contacto.

Oficiais do “MFA” detectaram por outro lado, segundo directamente me referiram, avultados movimentos suspeitos de capitais em que o Dr. Almeida Santos estaria envolvido. Chegou mesmo a ser organizado processo. Mas nunca teve seguimento.

Mas o pior não havia de ser isso.

Fiel ao apadrinhamento do Gen. Costa Gomes no seu acesso às cadeiras do governo, o novo ministro conseguiu afastar a nomeação do Gen. Silvino Silvério Marques para governador-geral de Moçambique. Cancelou-se a decisão que o Gen. Spínola, cara a cara, me havia confirmado haver sido tomada pela Junta de Salvação Nacional. Silvino Silvério Marques foi atirado para a fogueira de Angola, onde o seu amor por aquelas gentes o sacrificaria numa missão que Lisboa tornava irrealizável.

Para Moçambique foi imposto o Dr. Soares de Melo.

Tratava-se de “democrata” convicto. Amigo e homem de confiança de Almeida Santos. Caracterizado pela mais evidente incapacidade governativa.





Viria a demitir-se poucas semanas depois, tendo conseguido estabelecer inimaginável grau de confusionismo e arrastar o território para o pânico e para o caos.

Correspondia isso ao planeamento delineado e que adiante referirei.

Para tal havia sido indispensável arredar a presença do Gen. Silvino Silvério Marques cuja honestidade se temia.

Acendia-se o primeiro fogacho da grande queimada.

Um advogado de Lourenço Marques riscara o primeiro fósforo…

No acto de posse dos dois governadores-gerais, em 11 de Junho, o Presidente da República pronunciara um excelente discurso doutrinário em que continuava a sustentar a tese da autodeterminação, evoluindo para fórmulas mais realísticas do que as que se continham em “Portugal e o Futuro”.

De forma categórica proclamava:

“Poderão, pois, estar tranquilos os africanos que se mantiveram neutros, porque não lhes será negado, por essa razão, o direito de optar. Poderão estar tranquilos os africanos que se nos confiaram e ao nosso lado combateram, tendo já feito a sua opção. E poderão estar tranquilos os europeus que chamam à África a sua terra a ali se sentem cidadãos como quaisquer outros; não os abandonaremos na cobarde procura do fácil e na demagógica busca da popularidade”.

Não creio que o Gen. Spínola mentisse conscientemente. Tudo o que se passou, de então até hoje, evidencia, no entanto, como milhões de pessoas foram traídas por essas palavras.

Quantos dramas elas provocaram.






O ministro Almeida Santos proferiu, no acto, um discurso empolgante de que parece útil recortar alguns passos mais significativos, começando pela saudação ao Gen. António de Spínola:

“Saudação que, sendo dirigida a V. Ex.ª, Senhor Presidente da República, é como que dirigida ao redimido povo português, que V. Ex.ª, lidimamente, representa e encarna. Não creio que a nossa história ofereça outros momentos – se é que oferece algum – em que com tanta homogeneidade de sentimentos o povo se tenha identificado com o seu Chefe. É V. Ex.ª a pessoa e o magistrado para que convergem, aí se encontrando, as aspirações, as ansiedades e as esperanças dos portugueses”.

Por si só, estas declarações traduziam o endosso, aliás natural para um membro do governo, de toda a orientação e das garantias anteriormente expressas pelo Presidente da República. Parece dispensável recordar o que veio a passar-se, poucos meses depois, com radical mudança de atitudes.

O ministro alargou-se, depois, em críticas à centralização exercida pelo Ministério do Ultramar, sublinhando como pelo telefone se davam ordens a territórios distantes. Parecia entender que isso era sinónimo do mais despótico colonialismo.

Referindo-se à escolha feita do governador-geral de Moçambique, afirmou exactamente:

“Moçambique, com confortante convergência, quis para seu governador o Dr. Henrique Soares de Melo. É natural de Moçambique, advogado brilhante e prestigiado, democrata de todas as horas, da alma, de longa data defensor do princípio da autodeterminação com todas as consequências, pessoa dotada de proverbiais dotes de inteligência, equilíbrio e ponderação. Eu próprio – aliás seu amigo – teria votado nele”.

A verdade é que, com tão tremendas qualidades (que pareciam ofuscar os méritos de Ayres de Ornelas e António Enes), o Dr. Soares de Melo viria a exercer um governo desastrado nos escassos 45 dias que se manteve no poder e nem sequer abandonou o condenado hábito de obedecer às ordens telegráficas do ministro. O colonialismo só tomava novas roupagens, tanto quanto possível “democráticas”, porque regressava às suas piores formas.

A linha dinástica estava definida: Costa Gomes escolhera Almeida Santos e este votara no seu amigo Soares de Melo, afastando o incómodo Gen. Silvino Silvério Marques que não lhes teria feito o jogo.

Nada podia ser mais claro.


Aliás, a inovação que o Dr. Almeida Santos com tanto ênfase destacara “de ter sido a primeira vez que a nomeação dos Governadores de Angola e Moçambique foi precedida de uma directa auscultação da vontade das populações” não voltou mais a repetir-se. Ainda que com o mesmo ministro a desempenhar as mesmas funções em sucessivos governos, cada vez mais “democráticos”.

Recearam, sem dúvida, repetir a experiência.


Mandato de captura, contas congeladas e inquéritos


Depois de regularizar a minha situação junto das autoridades espanholas, que foram impecáveis mas rigorosas no cumprimento das formalidades, comecei a ser assaltado por jornalistas que depressa descobriram onde me encontrava.

Aliás, não me escondi e nem tinha motivo para isso, confiado no respeito espanhol pela legalidade em que imediatamente me integrara.

Afastei-me de quaisquer comentários sobre a situação portuguesa e concentrei-me nos problemas de Moçambique. Afirmei o propósito de ali regressar quanto antes com a força dos direitos que ninguém me poderia retirar. Disse do meu convencimento de que o governo não se atreveria a impedir-me de o fazer e não ousaria deter-me. Defendi a autodeterminação a caminho da independência multi-racial, com aberta participação dos movimentos nacionalistas e integração numa “Comunidade Lusíada”.

Critiquei o governo que o Dr. Soares de Melo acabava de constituir, afirmando que não tinha qualquer representatividade: nem racial, nem política e nem regional.

Creio que nisso só tive o mérito da primazia porque, depois, todos vieram a dizer o mesmo.

O próprio Samora Machel havia de declarar:

“É erro grave o que o governo português está a cometer. Esse governo não é popular, não é governo de Moçambique. É governo provisório colonial. Representa os interesses dos colonialistas. São representantes de Lisboa. Tenhamos essa noção bem fixa”.

Há que reconhecer que tinha razão e que tinha sido, na verdade, muito grave o erro cometido pelo Dr. Almeida Santos complicando, em obediência a plano de que quero crer que foi joguete, o xadrez descolonizador.

Alguns amigos meus criticaram-me pela clareza com que eu disse a verdade.

Continuo a não estar arrependido apesar das consequências que sofri. Pelo menos, houve o mérito de logo se definirem posições.

Em 18 de Junho todos os jornais, moçambicanos e portugueses, publicavam a seguinte nota oficiosa do governo geral de Moçambique:

“Foi divulgada pela agência “Reuter” uma notícia que refere ter o Sr. Eng.º Jorge Pereira Jardim abandonado a embaixada do Malawi em Lisboa, contrariando uma determinação das autoridades portuguesas.

A sua presença foi, posteriormente, assinalada em Madrid donde partiu para destino desconhecido e onde deu uma conferência de imprensa na qual afirmou que regressaria brevemente a Moçambique e em que desafiava as autoridades deste Estado a prendê-lo.


Lourenço Marques. A cidade vista da Igreja de Nossa Senhora de Fátima.


Porque tais afirmações constituem um desprestigiante e aberto desafio às autoridades deste Estado legalmente constituídas e porque a sua presença em Moçambique poderá, eventualmente, tornar-se nociva, dá-se a público conhecimento, de que foram tomadas as seguintes medidas:

- Emissão, pelas autoridades competentes, dum mandato de captura contra o referenciado;

- Congelamento de todas as suas contas bancárias existentes neste Estado;

- Averiguação da sua responsabilidade criminal, por actos praticados durante a vigência do anterior regime”.


Trata-se de um documento notável que pareceria impróprio de “advogado brilhante e prestigioso”, “democrata de todas as horas, da alma” e “pessoa dotada de proverbiais dotes de inteligência, equilíbrio e ponderação" para me ater aos qualificativos que lhe atribuíra o ministro Almeida Santos”.

Quando os jornalistas voltaram a procurar-me em Madrid, onde permanecia e sem sequer mudar de hotel, fiz-lhes notar que a nota oficiosa era um modelo de prepotência. Passava-se mandato de captura e determinava-se o congelamento de bens com base em recortes de jornais, sem se conceder ao acusado a mais ligeira possibilidade de defesa. Acrescentava-se, depois, que se iria averiguar da responsabilidade criminal por actos eventualmente cometidos sem ao menos se mencionar a suspeita de quais eles fossem.

Fazia-se tudo ao contrário das mais elementares normas jurídicas.

Comentei: “Pelo que me informam, parece que o Dr. Soares de Melo evidencia preocupantes tendências fascistas”. Isto enfureceu os provisórios governantes de Moçambique que voltaram a sentir-se desprestigiados.


Cumpriam-se ordens de Lisboa


A verdade da história veio a ser averiguada depois.


Polana Aérea 1 (Lourenço Marques, 1965).


Por telegrama de 15 de Junho dirigido ao governador-geral de Moçambique pelo secretário-geral do Ministério da Coordenação Interterritorial, determinava-se aquela ordem de captura, o congelamento das contas bancárias e a publicidade das medidas adoptadas “justificando-as na medida do possível”!

Cópia deste telegrama veio a tombar em mãos amigas e do seu conhecimento fiz uso em sucessivas exposições ao governo de Moçambique e ao Presidente da República Portuguesa. Fiz quatro exposições, intervaladas, desde Outubro de 1974 a Outubro de 1975 e nelas sempre insisti para que me fosse dado conhecimento do resultado das “averiguações” que naquela nota oficiosa (de Junho de 1974) se ameaçava irem ser realizadas. Até hoje não obtive outra resposta que não fosse o burocrático ofício acusando a recepção. Ao menos está provado que as receberam.

Ninguém desmentiu as minhas denúncias e ninguém foi capaz de me acusar de qualquer acto criminoso, apesar de haverem sido interrogadas, detidas e pressionadas as pessoas que mais de perto comigo conviviam ou colaboraram.

Neste método de intimidação até o meu corajoso advogado acabou por ser preso, em Dezembro de 1974, pelas autoridades portuguesas na Beira. Pedi-lhe que deixasse de intervir no processo, para não ser vítima de novos abusos.

Falta, ainda, acrescentar que o director da polícia judiciária, em Lourenço Marques, entendeu não haver fundamento legal para a passagem do mandato de captura que lhe havia sido determinada pelo procurador da República em obediência a despacho do Dr. Soares de Melo. Isso de nada valeu e a determinação foi mantida, com o protesto daquele funcionário.

A polícia judiciária moçambicana remeteu, depois, carta precatória ao Ministro da Coordenação Interterritorial pedindo o fundamento daquela ordem. Também nunca foi recebida resposta.

Um telegrama do ministério, em Lisboa, tinha mais força do que a lei. Assombra recordar as diatribes do Dr. Almeida Santos contra a prepotência do regime derrubado que “teve o telefone por principal instrumento” dos seus métodos coloniais. Até parece que o telégrafo estava fora do âmbito das suas intenções reprovadoras, já que o usou com tanta desenvoltura.

Lourenço Marques (1908).


Seja como for, o certo é que me vi privado de todos os direitos e roubado dos meus bens, só por ter tido a coragem de dizer aos jornais (em Junho de 1974) o que toda a gente pensava e com razão comprovada, do governo provisório de Moçambique. Também é certo que a minha numerosa família, com as contas bancárias congeladas, teve de viver do apoio financeiro de amigos e, até, da comovedora subscrição de trabalhadores africanos da Beira que a fora, entregar, abnegadamente, a minha mulher.

Também tive a compensação moral de nada se ter provado no duro inquérito que me quis atingir.

Se tal rigor fosse sempre aplicado, tenho dúvidas se a mesma inocência poderia ser demonstrada por quem se apropriou de serviço da China existente na residência oficial de alto comando, em Angola, ou tentou comprar clandestina e ilegalmente, pedras preciosas no decurso de uma visita de trabalho ao interior do território.

Esses actos foram praticados pelo Gen. Costa Gomes ou sua mulher, conforme me declarou pessoa identificada e de idoneidade indesmentível.

Denuncio factos concretos. Coisa que contra mim nunca aconteceu.

Aliás, o mesmo Gen. Costa Gomes fez enviar telegraficamente, para Moçambique, instruções para que as Forças Armadas interviessem no caso de eu pôr pé em Moçambique, apresando o meu avião. Acrescentava-se que me deviam abater, se necessário.


A tranquilidade do senhor ministro


Li, ultimamente, que o Dr. António de Almeida Santos (agora transplantado para o Ministério da Comunicação Social) revelara compreensível tranquilidade quanto às acusações que circulam, em todas as bocas, sobre a existência das suas contas na Suíça.

Em argumento de advogado sustentava e com razão, que é quem acusa que compete provar. Até estou de acordo. Mesmo quando se saiba como há coisas difíceis de provar.

Só aconteceu que no meu caso a mesma norma jurídica não funcionou. Fui acusado, fui vítima de atropelos e prepotências, tive a vida profissional destruída e congelaram-me as contas. E sem nada se darem ao trabalho de provar.

Tudo por ordem do Dr. Almeida Santos.


Lourenço Marques. Igreja de Santo António, da Polana.


Parece que as regras do jogo não são sempre as mesmas e que só funcionam quando esteja em causa “um ministro revolucionário” que logo acontece ser um dos responsáveis oficiais pela descolonização que lançou para a miséria e para o desespero, centenas de milhar de pessoas. E a essas, nem se lhes trocava o dinheiro ultramarino que traziam para sobreviver uns dias. Para essas, não houve transferências. Nem para Portugal.

A tranquilidade do senhor ministro não seria a mesma se fosse consentida a minha entrada, legal, no país de que é governante e se as testemunhas pudessem depor livremente num tribunal independente.

Se quem acusa tem de provar, não é menos verdade que para o fazer tem de dispor de garantias. Tem de ter garantia de que não se lhe arma uma cilada depois de se declarar nada haver “política, pessoal ou criminalmente” em seu desabono. Tem de ter a garantia de não lhe confiscarem os bens e se justificar esse abuso “na medida do possível”. Tem de ter a garantia de não ser dada ordem para o abaterem como animal selvagem.

Essas garantias, sabe o Dr. Almeida Santos que me foram negadas. Até me foi negado conhecimento das condições do inquérito que, por sua ordem, me foi mandado instaurar há quase dois anos.

Se quem acusa tem de provar, onde estão as provas daquilo que o levou a condenar-me sem julgamento?

Mas sei o que isso me tem custado e, mais ainda, o que tem custado a tantos outros sem ninguém se dar ao trabalho de produzir provas, perante a indiferença do mesmo senhor ministro que, na impunidade da sua força, exige provas para aquilo que toda a gente sabe a seu respeito.

Cuidado porém. As contas da Suíça ou os prédios em Portugal podem não passar de pretexto para desviar as atenções dos actos mais graves que, como ministro, o Dr. Almeida Santos cometeu ou daqueles de que foi cúmplice.

As vítimas de Moçambique, os milhares de mortos ou desterrados de Angola, a guerra civil de Timor são coisas de que não se pode desviar a atenção. E nesses casos há provas.

Parece que só se salvou Macau porque a China não consentiu, ali, a “descolonização original”.

Se o repto que o Dr. Almeida Santos lançou não é uma farsa e se quer, mesmo, ser julgado com provas, lanço-lhe o desafio para nos encontrarmos, perante tribunal, desde que me ofereça (e às demais testemunhas) o mínimo de garantias que são exigíveis.

Se não o fizer, também não perde pela demora.

Quem já esperou dois anos…

Um livro não é uma carta. Por isso não espero resposta.


Regresso a África


Permaneci alguns dias em Espanha, reencontrando-me com amizades que em Madrid consolidara nos meus distantes tempos de estudante ou quando ali desempenhei missões oficiais de colaboração entre os dois países peninsulares. Não era, aliás, segredo para ninguém a formação hispânica que recebera e que levara, mesmo, a ser considerado como excessivamente “iberista”.

Cape Town


Tomei a precaução de limitar os meus contactos com jornalistas e pedi a amigos, na África do Sul, para fazerem em meu nome reservas de hotel em Johannesburg, Cape Town, Durban e Salisbúria. Esta medida deu o efeito desejado, pois os jornalistas portugueses e moçambicanos referenciaram, com copiosos detalhes, a minha suposta presença nessas paragens. Até se chegou a noticiar que eu teria estado em Moçambique e houve quem assegurasse ter-me visto na Beira, movimentando todo um aparato policial.

Com isso deixavam-me tranquilo na Europa, como mais me interessava.

Em Londres encontrei-me com Pombeiro de Sousa que me informou sobre o que se passara em África durante a minha forçada imobilização.


Encontro oficial em Lusaka


Depois da visita a Blantyre e encontro com o Presidente Banda, o Dr. Kaunda tinha feito informar Pombeiro de Sousa de que a “Frelimo” estaria disposta a realizar um primeiro contacto informal com representantes do novo regime português. Sugeria-se que tivesse lugar em Lusaka nos últimos dias de Maio ou começos de Junho. Samora Machel encabeçaria a delegação da “Frelimo” e tudo se passaria sob os auspícios da Zâmbia.

Entretanto, era recebida a informação de que Lisboa não considerava desejável a nossa intervenção nesses contactos, nem como elementos de ligação, e Pombeiro de Sousa encaminhou o convite do Dr. Kaunda para as vias oficiais portuguesas, dando dele conhecimento ao encarregado de negócios de Portugal no Malawi, Dr. Matos Proença. Este logo enviou mensagem para o seu ministério.

A resposta tardava em chegar, porque Costa Gomes confiava mais no resultado das diligências que pessoalmente movimentara em Moçambique, causando enervamento em Lusaka. O Dr. Kaunda recorreu, então, aos bons ofícios do governo britânico.

O único telex que a embaixada portuguesa em Blantyre recebeu do seu ministério limitava-se a determinar que cessassem as funções de Pombeiro de Sousa como cônsul honorário de Portugal. Nisso transparecia a influência vingativa de Futcher Pereira, antigo embaixador do Malawi, que fora dos raros diplomatas a precipitar-se na adesão ao novo regime em evidente manobra de apagar a lembrança do servilismo com que actuara na situação política anterior. Um dos casos mais graves tinha surgido em consequência da activa colaboração entre Futcher Pereira e o sub-director Vinhas, da “PIDE”, na condução de acções clandestinas contra elementos da “Frelimo” em território do Malawi. A isso, sempre se opusera firmemente Pombeiro de Sousa, com o meu inteiro apoio e concordância.

A demissão de cônsul honorário de Portugal, ao cabo de uns quinze anos de trabalho dedicado, era a consequência daquela atitude que assumira contra as pretensões policiais de Futcher Pereira.

O encontro de Lusaka que o Dr. Kaunda propusera por nosso intermédio, veio a concretizar-se nos primeiros dias de Junho com a presença do Dr. Mário Soares (então Ministro dos Negócios Estrangeiros) e do Maj. Otelo Saraiva de Carvalho (representando o “MFA”).

Não foram felizes as exteriorizações de camaradagem em que Mário Soares foi pródigo, no ostensivo abraço a Samora Machel e não correram paralelas com a eficiência negociadora.

Samora Machel e Mário Soares


Os dirigentes da Zâmbia e da “Frelimo” desconfiaram daquela exuberância e não entendiam a despreocupação de um ministro português (fosse qual fosse a sua ideologia política) pelo acautelamento de aspectos fundamentais. Perante a total impreparação para tratar os problemas, as coisas chegaram ao ponto de ser a “Frelimo” a sugerir uma agenda de trabalhos em que se mencionavam os assuntos que, presumivelmente, os delegados portugueses desejariam abordar e esclarecer.

Pelos dados concretos que tive a oportunidade de conhecer creio, ainda, que o Dr. Mário Soares foi, sobretudo, vítima da preocupação de se valorizar, interna e externamente, como obreiro da descolonização. Com isso conquistaria prestígio pessoal e para o seu partido, apresentando-se como o mais dotado para o diálogo e mais capaz de encontrar as soluções que se impunham.

Cometeu um erro táctico muito grave porque veio a recair sobre ele a responsabilidade, enquanto outros manobravam por canais diferentes, em premeditado plano que o utilizava como figura de fachada.

Há que reconhecer, objectivamente, que não lhe cabem as maiores culpas em tudo o que veio a acontecer. O Dr. Mário Soares, foi marioneta habilmente explorada. Todavia, se não lhe pertenceu a iniciativa da manobra, já não se pode libertar de nela ter participado com os resultados conhecidos.

Por outro lado, carecia de apoio profissional válido por parte dos conselheiros diplomáticos que o rodeavam e que da África sabiam muito pouco. Entre os maus elementos que abundavam no Ministério dos Negócios Estrangeiros teve a pouca sorte de escolher os piores.

De qualquer modo este primeiro encontro de Lusaka redundou num fracasso, perdendo-se semanas preciosas e afastando-se, cada vez mais, a possibilidade de uma negociação digna.


Otelo não pôde encontrar-se comigo


Carmo Jardim, instrutora dos Grupos Especiais Pára-Quedistas.


Entretanto, Otelo Saraiva de Carvalho estabelecera contacto comigo, através de amigos comuns.

Nunca nos tínhamos visto mas parecia haver certa comunicabilidade entre nós. Sem sabermos bem porquê, criou-se um vínculo de simpatia mútua e vim a ter razões de agradecimento pela protecção dada, em Portugal, à minha família e extrema correcção com que se ocupou da sua segurança.

O Maj. Saraiva de Carvalho queria encontrar-se comigo e, depois de arredadas hipóteses que sugeriu, tudo se combinou para podermos conversar em Madrid, num hotel da zona do aeroporto, em 27 de Junho. Pombeiro de Sousa deslocar-se-ia comigo, de Londres, onde logo regressaríamos.

Na aparência, Otelo havia regressado de Lusaka no convencimento de que a minha intervenção poderia ser útil. Tivera instintivamente a percepção do falhanço que fora aquele encontro com a “Frelimo” e os oficiais do “MFA”, em Moçambique, insistiam junto dele por uma solução urgente que eu poderia estar em condições de obter.

Mandou-me perguntar, pelo nosso canal de contacto, se eu aceitaria que Mário Soares estivesse também presente no nosso encontro.

Eu também nunca vira Mário Soares e não conhecia dele mais do que se ia lendo nos jornais ou ia ouvindo nos comentários, políticos e pessoais, que a seu respeito circulavam. Não tinha qualquer interesse em conhecê-lo, mas não recusei a sugestão por admitir que, do diálogo, pudesse resultar alguma coisa de útil para Moçambique.






Havia até acontecido que quando escapei de Portugal, Mário Soares respondera a perguntas de jornalistas, ao embarcar para Otawa, no aeroporto de Lisboa, dizendo que eu me ausentara “de forma mais ou menos clandestina” e por motivos que só eu poderia conhecer, dado que contra mim nada existia pessoal, política ou criminalmente. Quando os homens da informação me mostraram esses comentários do ministro, é evidente que não fui amável. Respondi: “Ou se trata de um mentiroso ou de um ignorante; em qualquer das hipóteses não me parece que seja posição recomendável para um ministro com tão especiais responsabilidades no governo português.

Julgo que o Dr. Mário Soares não gostou do que eu disse (e que os jornais reproduziram como o haviam feito com as suas declarações) mas a verdade é que eu não podia dizer outra coisa. Estava certo da existência do mandato de captura, que até fora mostrado a correspondentes estrangeiros e não podia esquecer o aparatoso cerco à embaixada em Lisboa.

Se o ministro sabia disso e afirmava o que afirmou, não tinha outro qualificativo que não fosse o de mentiroso (mesmo que mentindo diplomaticamente), mas se o não conhecia, tratava-se de ignorância e altamente preocupante.

Efectivamente, o chefe do Estado Maior General, Francisco da Costa Gomes, emitiu despacho determinando a minha imediata captura no dia 1 de Junho e essa decisão foi circulada no dia 4, a todas as entidades policiais e equivalentes. Não era crível que dela não tivesse conhecimento o Ministro dos Negócios Estrangeiros, no dia 18 de Junho.

Admito, hoje, que de facto a desconhecesse, o que retira a suspeita de haver mentido, neste caso. Mas isso confirma a hipótese da ignorância, evidenciando os métodos usados para converter os mais destacados governantes em joguetes de um planeamento premeditado.

Aceitar conduzir o grave problema da descolonização na ignorância, não recomenda ninguém para chefe de partido político, com certa representatividade, e muito menos para as sérias responsabilidades do governo.

Tudo quanto tenho deixado referido veio a ter plena confirmação com o cancelamento do encontro com Otelo de Saraiva de Carvalho. À última hora e invocando afazeres militares inadiáveis, foi anulado aquele encontro.

Mais tarde, um oficial da sua confiança haveria de revelar-me, em Cáceres, que a alteração do planeado resultara de terminante proibição por parte do Gen. Costa Gomes a quem Otelo referira o projecto.





Costa Gomes persistia, assim, em conduzir pelas suas vias a descolonização, temendo, mesmo, que um revolucionário insuspeito como Otelo de Saraiva de Carvalho (e eventualmente Mário Soares) pudesse ser influenciado pelo conhecimento de existirem possibilidades de negociação que não se enquadravam nos seus desígnios.

O posterior envio de Otelo Saraiva de Carvalho a Cuba integra-se no mesmo planeamento. Era evidente que um jovem oficial impetuoso e com deficiente cultura política, seria presa fácil da atractiva personalidade de Fidel de Castro. Isso atirá-lo-ia para a extrema-esquerda onde poderia ser útil a certos intuitos políticos ou onde poderia ser inutilizado se mostrasse demasiada capacidade de competição.

Ambas as coisas vieram a acontecer (ob. cit., pp. 259-271; 273-275).

Continua


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