quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Moçambique Terra Queimada (vii)

Escrito por Jorge Jardim




Jorge Jardim e a filha Carmo Jardim


(...) informação esclarecedora foi-me dada pelo Comandante Alpoim Galvão que sempre muito apreciei e com o qual mantinha contacto.

Promovido por distinção, na Guiné, e condecorado com a "Torre de Espada" o Com. Galvão não se conformava com os rotineiros métodos clássicos de conduzir a guerra e procurava outras soluções para os conflitos que enfrentávamos. Fizera sugestões concretas ao Gen. Costa Gomes, pouco antes da minha chegada a Lisboa. Foi impedido de prosseguir com o esquema e ouvira o seguinte comentário, que me reproduziu: "Deixe-se disso e limite-se a cumprir as suas ordens militares. O único agente secreto 'oficial' é o Jardim. E esse já chega".

Advertindo-me quanto ao significado desta reacção de Costa Gomes, o Com. Alpoim Galvão acrescentara, no seu estilo franco e pitoresco: "Tenha todo o cuidado porque ele lhe tem um pó que se nota. Desconfia que você planeia alguma coisa, mas não o pode provar. Fará tudo para o apanhar numa curva".

De outras origens amigas eu ia recebendo avisos para que me preparasse de modo a não ser surpreendido por alguma acção directa contra mim.

Acabei por me decidir a provocar uma conversa franca com Baltazar Rebelo de Sousa, numa tarde de domingo, em sua casa na Rua São Bernardo, à Estrela.

Apesar da nossa intimidade eu tinha de respeitar as limitações que lhe resultavam do cargo que exercia no governo e por isso compreendi que evitasse concretizar os avisos amigos que me deu.

Referiu-me que havia, nas altas esferas, soma apreciável de relatórios dirigidos contra a minha suspeita actuação. Eram provenientes de várias fontes e nem eu era capaz de suspeitar de quais elas fossem. Mencionou as especulações em torno da minha ligação com o Dr. Domingos Arouca, a agitação provocada pelo conhecimento das minhas viagens a Lusaka e, até, os rumores quanto ao meu entendimento com o Dr. Almeida Santos!

As denúncias classificavam o meu nacionalismo moçambicano como próximo de ser subversivo e apoiavam-se nos meus escritos no "NB" onde defendia soluções políticas que atentavam contra a unidade nacional.

Fiquei grato pela amizade das advertências e nem ousei comentar quanto era diferente o que lhe escutava em Lisboa daquilo que havíamos conversado em Moçambique. (...)


Sondagem de opiniões


Durante a minha permanência em Lisboa visitei com a frequência habitual o Gen- Kaulza de Arriaga.

Era tido como o representante da linha mais intransigente quanto à política ultramarina, mas é interessante registar que, paralelamente, o acusavam de preconizar ampla democratização da vida portuguesa, segundo os padrões ocidentais, e que nesse terreno classificava as tímidas aberturas de Marcello Caetano no âmbito da "renovação".

Contou-me os convites que recebera e recusara para participar no elenco governativo e referiu-me, até, o atrito surgido com o susceptível primeiro-ministro a quem enviara interessante livro de análise à situação portuguesa.

Kaúlza de Arriaga e Carmo Jardim


Kaulza defendia que a eleição do chefe de estado deveria ser feita por sufrágio universal, para lhe garantir autêntica representatividade popular e preconizava a progressiva liberalização da imprensa para nela poderem expressar as tendências políticas inegavelmente existentes. A isto e nas largas horas de conversa, na sua casa da Avenida João XXI, opunha eu o receio da infiltração comunista e o eventual domínio das estruturas por uma minoria que sabíamos ser activamente militante e duramente disciplinada. Mas ele sustentava que era preferível correr tais riscos, minimizáveis pela autoridade que as Forças Armadas podiam assegurar a essas iniciativas democratizadoras, do que enfrentarmo-nos com uma explosão incontrolada que tinha todas as probabilidades de ocorrer.

Nisso, os acontecimentos vieram a dar-lhe razão.

Sendo certo que a intervenção de Kaulza fora decisiva, em 1961, para neutralizar a tentativa militar do Gen. Botelho Moniz (em que Costa Gomes participara) não é menos verdade que nunca tinha sido um salazarista incondicional. Acompanhei de perto a sua actuação nessa altura (quanddo fui chamado de Moçambique) e até colaborei, mais tarde, na revisão do relato que escreveu e veio a ser divulgado, parcialmente, com interpretações tendenciosas.

Kaulza de Arriaga apoiou nessa altura Salazar, como tantos o fizeram, por concordância com a sua atitude perante o problema ultramarino. Havia que travar uma chacina, que havia sido desencadeada com cerca de 2.000 vítimas em menos de dez dias, e que defender o multi-racialismo contra o ódio racial. Nunca o fez por concordância com a doutrina política do Presidente do Conselho.

Pode dizer-se que o inverso quase que se passou comigo e recordo que nessa altura criticou, amigavelmente,, a minha incondicional dedicação a Salazar. Chegou mesmo a afirmar-me, quando eu me opunha às suas críticas, que a minha inteligência parecia bloqueada em tudo o que atingisse o chefe do governo...

Como político e como militar, manteve-se sempre coerente com esta posição.

Mas é curioso anotar que a minha fidelidade ao pensamento de Salazar, que mais intimamente conhecia, me permitiu evoluir com o tempo (e sobretudo com a vivência das realidades) mais afoitamente do que Kaulza, na procura de soluções realistas para o Ultramar.

O Gen. Arriaga entendia que a questão ultramarina residia mais na descentralização descolonizadora do que na efectiva autonomia política dos territórios. No fundo a sua tese avizinhava-se da que veio a ser defendida pelo Gen. Spínola, no livro "Portugal e o Futuro" de que adiante me ocuparei.

Na sua concepção geoestratégica, que lhe ouvi desenvolver no Instituto de Altos Estudos Militares quando participei num curso que organizou, os territórios ultramarinos (descentralizados administrativamente) só lucrariam em integrar-se num grande espaço, o da Nação Portuguesa, em época dominada pelas super-dimensões económico-políticas.

Aceitando o mérito da tese eu tinha, porém, que reconhecer que isso não respondia às realidades históricas e até emocionais que se consubstanciavam na ânsia dos povos em disporem de si próprios. Nem que fosse para decidirem integrar-se, mas livremente, numa "Comunidade" supra-nacional.

Afigurava-se-lhe que a opção por mim proposta continha o risco de comprometer aquilo que chamava a "opção nacional". Se o meu esquema fosse divulgado poderia enfraquecer a decisão dos combatentes e poderia conduzir a que muitos se inclinassem para uma posição de compromisso. Tal proposta , e sobretudo vinda de mim, debilitaria a condução da guerra e a viabilidade de serem obtidas outras soluções.

Linha Maginot


Argumentei que se tardássemos em seguir a "minha opção" chegaríamos ao extremo de ver tombar a possibilidade de se manter a "opção nacional" sem dispormos de linha política de onde pudéssemos salvar o essencial. Parecia-me temerário confiar na capacidade de resistência dessa "linha Maginot" que, se fosse flanqueada, nos deixaria ante uma "terceira opção" dramática: a capitulação e o abandono.

Nisso, infelizmente, fui eu a ter razão.


Ofensiva desencadeada


Entretanto passava-se a tragicomédia que o Doutor Marcello Caetano descreve no seu "Depoimento" (páginas 189 e 204) e da qual me chegavam filtrados ecos.

Sucediam-se as notícias sobre projectos de golpes e contra-golpes, com muita fantasia misturada à realidade da insatisfação galopante dos militares. O ambiente era de tensão. Nessa altura ainda não se criara o hábito de viver em clima "golpista".

O livro do Gen. António de Spínola estava prestes a aparecer e o seu conteúdo ia sendo desvendado, em hábil jeito publicitário.

Tendo merecido uma autorização ministerial, que demonstra o grau de confiança que o governo depositava no Gen Costa Gomes, o livro teve expansão sensacional.

Tanto como o livro, esgotaram-se as tiragens do parecer de Costa Gomes que vale a pena recordar. É documento de que não se deve perder memória.

Assunto: PORTUGAL E O FUTURO

1. O livro com o título em epígrafe escrito pelo sr. Gen. António de Spínola apresenta, de uma forma elevada, a solução que julga melhor para resolver o maior problema com que a Nação se debate - a guerra no Ultramar.

2. O Gen. Spínola defende com muita lógica uma solução equilibrada que podemos situar mais ou menos a meio de duas soluções extremas: a independência pura, simples e imediata de todos os territórios ultramarinos, patrocinada pelos comunistas e socialistas, e a integração num todo homogéneo de todas aquelas parcelas, preconizada pelos extremistas da direita.

Não necessitamos desenvolver grande argumentação para concluirmos que essas soluções devem ser postas de lado, a primeira por ser lesiva dos interesses nacionais e a segunda por ser inexequível.

3. Julgo que o livro está em condições de ser publicado, acrescentando, mesmo, que o Gen. Spínola acaba de prestar desta forma, ao país, serviços que devem ser considerados tão brilhantes como os que com tanta galhardia e integridade moral prestou nos campos de batalha.




General Spínola



Por motivo das viagens que referi, apenas tive possibilidade de obter o livro ao regressar a Lisboa, em 28 de Fevereiro, e de conhecer cópia do parecer que o havia apadrinhado.

Li e reli atentamente aquelas 250 páginas duma prosa que tinha o inegável mérito de afirmar o que criticamente quase toda a gente dizia mas que continuava a deixar sem solução os problemas que a todos preocupavam. Efectivamente, o renascer tardio da tese do federalismo (ultrapassada pelos anseios que se haviam corporizado) corria paralelo com um confuso esquema de autodeterminação a decidir pela soma dos votos de todos os povos que se encontravam integrados na soberania portuguesa.

No "Portugal e o Futuro" escrevia-se concretamente (a páginas 108) o que a seguir reproduzo:

"Mas se por portugueses de hoje entendermos todos os que por lei são cidadãos, a sua esmagadora maioria é africana; e como tal, bem diversa terá de ser a concepção de vontade colectiva e do 'facto nacional'. A vontade colectiva dos vinte e cinco milhões de cidadãos nacionais é por certo diferente daquela em que pretende fundar-se um artificioso conceito de 'facto nacional' e que, como tal, é afastado da discussão."

A ideia de conceber uma "vontade colectiva", expressa democraticamente pela maioria aritmética dos votos daquelas diversas gentes, arredava a possibilidade de se afirmar a "vontade autêntica" de cada um dos territórios. Os pobres guinéus ou os remotos timorenses ficariam diluídos nessa vontade abstracta e nunca mais poderiam fazer escutar a sua voz.

Construindo esse novo "facto nacional", tão artificioso como aquele que se condenava, ignorava-se a realidade já viva de distintos "factos nacionais" só polarizáveis, livremente, no conjunto da "Comunidade Lusíada". Embora fosse certo que o autor apontava para esse objectivo, deixava-se enlear em espiral de contradições que o levava a definir os contornos da "Comunidade Portuguesa", com conteúdo muito diverso e em que o Brasil caberia.

Assim, afirmava (a páginas 125):

"O Ultramar tem que ser parte integrante da Nação: e sê-lo-á, todavia, mas em quadro diferente, e é por isso que realmente valerá pena lutar".

Com tais conceitos certamente que a luta continuaria. Era impensável que as vontades locais se submetessem à vontade colectiva, por mais democrática que fosse a forma desta se afirmar. Surgiriam problemas de rebeldia ou agudizar-se-iam os já existentes, com a consequência de se agravarem as tensões com a Metrópole (desproporcionada detentora de mais de um terço da "vontade colectiva") em vez de se estreitarem os laços que era viável manter.

Ninguém, fora das fronteiras, apoiaria tal forma de autodeterminação e o estudo dos resultados parciais do sufrágio daria renovada autoridade às forças interessadas em explorar a divisão.

Correndo tudo pelo melhor, acabaríamos por regressar ao ponto de partida sem resolver o problema da guerra no Ultramar.




Mais realista era a política da "autonomia progressiva e participada" que o Doutor Marcello Caetano adoptara e não recusava a independência se esta traduzisse a vontade local, autenticamente expressa. Várias vezes, perante mim, o tinha admitido e confirma no seu livro que ao governo português nunca repugnou tal ideia.

De todo o modo, o impacto de "Portugal e o Futuro" foi tremendo. Nunca terá havido livro tão sofregamente lido em todos os quadrantes portugueses e as sínteses publicadas no estrangeiro (acentuando, sobretudo, as críticas formuladas à política ultramarina) tiveram destaque invulgar.

O movimento militar, que se corporizava, encontrou nesta obra e no prestígio pessoal do seu autor a alavanca impulsionadora de que carecia. Ao longo das suas páginas cada um descobria a frase ou argumento mais do seu agrado.

Pode compreender-se isso como atitude honesta dos menos politizados, mas o apoio de sectores solidamente doutrinados só pode ser explicado pelo propósito de erguerem o livro como estandarte de revolta e para depois o abandonarem como inútil bandeira ideológica.

Foi isso o que veio a acontecer.

Se os acontecimentos da Beira actuaram como detonador do "Movimento", o livro funcionou como carga explosiva.


Abusos de confiança


Quanto ao apadrinhamento contido no parecer do Gen. Costa Gomes, os factos passados posteriormente (na "original" descolonização portuguesa) evidenciavam a exploração premeditada e oportunista que o conduziu.

Porque inteligência lhe não falta é impossível acreditar na sinceridade com que condenava as independências dos territórios ultramarinos como lesivas dos interesses nacionais, enquanto que só arredava a tese integracionista por a entender inexequível. Até parecia, no que escreveu, que este caminho integracionista não lhe era, em si mesmo, desagradável.

General António de Spínola na Guiné-Bissau.


Considerava como equilibrada a solução defendida pelo Gen. Spínola que tinha de saber, pelas mesmas razões de inteligência, não oferecer a mais remota viabilidade. Tanto assim que nunca a tentou ou encorajou sempre que lhe competiu intervir no processo da descolonização.

Não vem ao caso discutir a versão oficial de que a aprovação do ministro, para a publicação de "Portugal e o Futuro" foi dada sem conhecimento do texto e louvando-se, apenas, no parecer do Gen. Costa Gomes.

O que é certo é que este nunca desmentiu essa alegação do governo, apesar de não lhe haverem faltado meios e tempo para o fazer. Parece indiscutível que aceita essa verdade que traduz a extrema confiança depositada, pelo doutor Marcello Caetano, no chefe do Estado Maior General.

E também importa reter, desde já, que o texto do livro foi levado pelo Gen. Costa Gomes na sua maleta de serviço, quando se deslocou a Moçambique em coincidência com os acontecimentos da Beira.

Tinha-o, pois, em seu poder quando começou a politização do "Movimento dos Capitães", em mais uma das coincidências que caracterizaram a sua intervenção no processo revolucionário português.

No regresso a Portugal, e como se não se desse conta do que em seu redor se passava, não perdeu tempo em apresentar o parecer tranquilizador, nos termos que anteriormente recordei.

Beneficiava, para isso, da confiança que nele depositava, também, o autor do livro.

"Portugal e o Futuro" converteu-se no instrumento de um desastre histórico. Ainda que contra os intuitos generosos de quem o escreveu, como generosas haviam sido as manipuladas motivações da população da Beira e como também foi a reacção dos militares injustamente agravados.

Povos inteiros vieram a ser sacrificados, sepultando-se nos escombros, a "vontade colectiva" de vinte e cinco milhões de pessoas.

Por coincidência, no deflagrar e na condução oportuna do processo, existe o traço comum da presença de uma pessoa: o Gen. Costa Gomes.

Coincidência que se repetiu na oportunidade do parecer, apoiado na confiança simultânea do governo e do general que escrevera o livro.

Não é de mais repeti-lo.

Porque parece estarmos perante um duplo abuso de confiança.

E que não veio a ficar por aí.


Oposição e doutrina


Estávamos em Março de 1974 e, nos primeiros dias do mês, desloquei-me ao Principado de Liechtenstein para participar numa reunião do Instituto de Estudos Políticos que regularmente se congrega em Bendern, a poucos quilómetros de Vaduz. Sempre dediquei o meu interesse a esses encontros, onde convergem personalidades europeias de reconhecido mérito, desde que ali fui introduzido pela mão amiga do Almirante Sarmento Rodrigues.

As sessões de trabalho permitem a actualização de conhecimentos informativos no âmbito de estudos conduzidos com objectividade e no mais aberto diálogo tolerante das várias tendências em presença.

Acompanhei o Prof. Adriano Moreira, a quem me prende funda amizade, e ali nos encontrámos com o Dr. Serra Brandão, economista e antigo oficial da Marinha que desempenhava altos cargos de confiança governamental nos Caminhos de Ferro de Benguela e na Companhia Mineira do Lobito.

Para além do programa do Instituto seria inevitável que conversássemos os três sobre o livro do Gen. Spínola que levara comigo e cedi aos meus companheiros para leitura.

Adriano Moreira, a quem as teorias do federalismo nunca tinham atraído, considerava inviável a solução preconizada. Por outro lado, não acreditava que o Doutor Marcello Caetano levasse a qualquer bom termo as teses da "autonomia progressiva".

Em claro antagonismo ao hesitante acompanhamento político do governo, entendia que só uma radical modificação, autenticamente liberalizadora, da cena portuguesa, poderia impedir que a comédia que em seu entender se representava, viesse a degenerar em tragédia. Citou os atropelos cometidos na Universidade, a atrofia intelectual do país e a estagnação da capacidade imaginativa que, pela selecção de medíocres, se projectava no governo.

Depois de haver sido sub-secretário de Estado, Adriano Moreira tinha desempenhado as funções de Ministro do Ultramar na fase difícil de 1961/1962. Dispondo de sólida formação e sendo dos espíritos mais vivos e inteligentes que conheci, tinha realizado actividade verdadeiramente revolucionadora com a introdução de medidas legislativas audazes e corajosa revisão de estruturas que o tempo tornara desactualizadas. Percorrera, sem medo, o norte de Angola na fase mais crítica de 1961 (acompanhado por Kaulza de Arriaga) e galvanizara civis e militares eliminando erros e oferecendo justiça.






Tinha notória incompatibilidade com Silva Cunha e podia-se dizer que era homem da oposição mais aberta ao regime do Doutor Marcello Caetano, com quem estava, pessoalmente, de relações cortadas.

Conhecia o Gen. Spínola, a quem respeitava como soldado, mas em quem não confiava como político. Estava inteirado da personalidade de Costa Gomes e, por isso, fazia dele julgamento objectivo.

Na viagem de regresso, no comboio de Sargans a Zurich, voltámos ao tema, tendo como companheiro Alfredo Sanchez-Bella, destacada e lúcida figura de político espanhol que ocupara muitos anos as funções de embaixador do seu país e fora recentemente ministro do governo de Madrid.

Adriano foi claro nas suas críticas ao regime que se mantinha em Portugal e nas soluções que preconizava. Ouvindo-o dissertar, com a lógica inteligente que o caracteriza, era clara a sua decisão às soluções democráticas de tipo ocidental com preferência aberta pelas mais modernas correntes sociais da Igreja Católica.

Avancei com o meu esquema e os meus contactos de Lusaka. Encontrei, sobretudo, incredulidade sobre as possibilidades de concretização e não me alarguei a desenvolver projectos. Percebi que para Adriano e para Serra Brandão, o caso ultramarino passava antes de mais, pela resolução do problema português centrado em Lisboa.

Sem recusar o acerto dessa apreciação, eu tinha ideias diferentes sobre outras possíveis soluções. Claro que, cada vez mais, me afastava do recomendado propósito de manter a via da legalidade.


(...) Razões de esperança


Seriam cinco horas da madrugada quando um dos meus colaboradores me telefonou avisando do que se passava.

Sintonizei o "Rádio Clube Português" (crismado de "Emissora da Liberdade") e escutei os comunicados. A partir daí, acompanhei interessadamente, como toda a gente, o que se estava a passar.

Ainda dei uma larga volta pela cidade usando o carro da embaixada e vestindo o uniforme do motorista. Ninguém me incomodou nessas digressões, mas fiquei sem perceber ao certo como corriam as coisas, porque era impossível identificar a qual dos lados pertenciam as tropas que se deslocavam ou ocupavam os principais pontos da cidade.

Ao fim da tarde tudo parecia consumado com a rendição do Doutor Marcello Caetano ao Gen. Spínola.

Nessa altura ainda se ignorava onde estaria o Chefe de Estado e aventavam-se as mais diversas hipóteses. Chegou a constar que embarcara num navio de guerra para os Açores de onde defenderia a legitimidade constitucional que representava.

Depois, foi difundida a notícia da sua detenção, comprovando-se que esse plano de emergência não existia.

No Brasil, contou-me o Almirante Américo Thomaz que permanecera em sua casa (no Restelo) sem que alguém se preocupasse com ele ou com ele contactasse. Tudo se passou como se não houvesse de ter-se em conta a sua posição. Só já de noite o foram buscar, muito depois da rendição do Presidente do Conselho.

Tudo muito estranho para um golpe de Estado.

Se uns pecaram por ineficiência, parece que outros o terão feito por negligência.


A Junta de Salvação Nacional


Já pela madrugada dentro, a televisão apresentou a Junta de Salvação Nacional presidida pelo Gen. António de Spínola que leu a proclamação do "Movimento das Forças Armadas".

Dos membros designados pela JSN só não estava presente o Gen. Diogo Neto cuja chegada de Moçambique se aguardava.



Leitura do programa do MFA pelo General Spínola, presidente da Junta de Salvação Nacional.



O Gen. Spínola era, fora de dúvida, patriota convicto que deixara a situação de reserva (que lhe permitia auferir atractivos vencimentos em empresas) para, voluntariamente, combater na Guiné, qualidades indispensáveis de soldado que lhe valeram os mais altos galardões. A expressão política do seu livro, que já comentei, não alterava essa imagem. Podia ser inconformista perante a indecisão governamental e confuso na argumentação de soluções. Mas era honesto nos propósitos que se propunha.

Carlos Galvão de Melo, nesse primeiro instante, apresentava-se como uma das figuras mais válidas da revolução. Tinha invulgar estatura intelectual, com coragem e capacidade técnica sempre reveladas, quer como piloto, quer como condutor de homens. Para além do valor militar, que comprovara em Angola, dispunha de preparação política, treino económico e independência de carácter. Nunca se enfeudara a ninguém e certamente que nunca o faria.

O Brig. Jaime Silvério Marques (que, de prisioneiro acidental dos insurrectos, passara a governante) era militar consciente e probo. Com passado honroso, havia sido governador de Macau evidenciando uma coragem e firmeza de atitudes que o situava acima de qualquer suspeita. Ninguém podia pôr em causa o seu patriotismo e a sua valia profissional.

Dos da Marinha, conhecia bem o Com. Rosa Coutinho com quem tivera contactos em Moçambique e que me substituíra a capitanear o "Adamastor", do Clube Naval de Lourenço Marques, na regata do Cabo ao Rio de Janeiro, no princípio de 1971. Toda a tripulação fora unânime em tecer-lhe elogios e o feito fizera-o merecer a Ordem do infante Dom Henrique de que justificadamente se orgulhava. Tivera o azar de ser aprisionado pelos congoleses, por excesso de confiança, quando realizava trabalhos hidrográficos no rio Zaire e sofrido sevícias humilhantes às mãos da soldadesca de Kinshasa e dos homens de Holden Roberto. Portara-se com estoicismo e parecia recuperado desse compreensível trauma. Não sendo uma grande figura na Marinha era, no entanto, oficial estimado, com uma carreira marcada pelo infortúnio.

Quanto ao Com. Pinheiro de Azevedo, apenas dele tinha ouvido falar como militar eficiente, disciplinador e mesmo com tendência para a dureza. Era respeitado pelos jovens oficiais de quem essas informações me tinham chegado. Também não era personalidade de destaque, parecendo incluir-se entre os menos politizados e estando, por isso, longe de ser um politizante. Caracterizava-se pelo seu notável equilíbrio e senso comum.

Assim, no conjunto, a JSN apresentava-se como constituindo equilibrado cefalismo militar (cobrindo os três ramos) que encimava uma revolução triunfante em que a Forças Armadas assumiam as responsabilidades governativas.

Ao fim e ao cabo, o pronunciamento quase se limitara a realizar a opção sugerida pelo Doutor Marcello Caetano, no último trimestre de 1973, ao próprio Gen. Costa Gomes: "Por mim, não tinha apego ao Poder e se as Forças Armadas queriam impor a sua vontade só tinham uma coisa a fazer: assumir o governo".

Foi isso, exactamente, o que fizeram e sem encontrarem resistência.

A figura de Costa Gomes, sempre abrigado pelos óculos escuros, era, no grupo da JSN, a única que se me apresentava como preocupante incógnita. Mantendo as suas conhecidas preferências ocupava lugar subalterno, detrás do Gen. Spínola de quem fora chefe apenas escassas semanas atrás. Isso poderia, no entanto, explicar-se pelo prestígio nacional que Spínola conquistara.

Mas também podia ser mais uma manobra destinada a granjear a confiança da opinião pública, em todos os sectores, anestesiando eventuais desconfianças.

Por mim, tive dúvidas desde o primeiro momento. Pouco tardaram em converter-se em certezas.


O MFA e o Ultramar


(...) Conhecendo-se, hoje,a influência que o Maj. Melo Antunes teve na elaboração daquele "Programa" [MFA] e sendo públicas as suas atitudes ulteriores (em escalada que culmina na defesa do reconhecimento do regime do "MPLA" em Angola) terá de entender-se que a sua posição de redactor ou a sua transigência às imposições que lhe chegavam, é gémea em premeditação e sinceridade, com o parecer do Gen. Costa Gomes sobre o "Portugal e o Futuro".

Efectivamente, no capítulo das "medidas a curto prazo" o "Programa do MFA" era inequívoco quando dispunha:


"A política ultramarina do Governo Provisório, tendo em atenção que a sua definição competirá à Nação, orientar-se-á pelos seguintes princípios:

a) Reconhecimento de que a solução das guerras no Ultramar é política e não militar;

b) Criação das condições para um debate franco e aberto, a nível nacional, do problema ultramarino;

c) Lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz".



Tem interesse assinalar aspecto importante de que só depois me inteirei.







No texto oficial do "Programa do MFA", que veio a ser publicado no "Diário do Governo" e tenho vindo a citar, há diferença significativa em relação ao texto inicial, na parte que se refere ao Ultramar. Essa versão inicial só foi reproduzida pelo jornal "República" (então de afinidades socialistas) e no dia 26 de Abril. Presume-se que haja sido recolhido directamente dos redactores do "Programa" e antes deste vir a ser corrigido.

Nessa outra forma existia mais uma alínea que, segundo o que se lê naquele jornal, prescrevia:


"c) Claro reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e adopção acelerada de medidas tendentes à autonomia administrativa e política dos territórios ultramarinos, com efectiva e larga participação das populações autóctones".


Para além da omissão desta expressiva alínea, o texto "oficial" é inteiramente idêntico.

O Maj. Sanches Osório (que foi activo revolucionário e desempenhou o cargo de Ministro da Comunicação Social, no II Governo Provisório) viria a esclarecer, mais tarde, as vicissitudes que o "Programa" atravessou até ao último momento. Tudo está descrito no seu livro "O Equívoco do 25 de Abril".

Segundo ele e confirmando o que anteriormente referi, a redacção definitiva do "Programa" fora confiada ao Maj. Melo Antunes, um dos oficiais mais politizados do "Movimento" e com fortes tendências marxistas, servidas por uma inteligência fria.

Ignora-se a quem tenha pertencido a iniciativa daquele corte do "Programa" em aspecto tão importante para a definição do método descolonizador. Mas o que revela, sem dúvida, é uma preocupação coincidente com o "original processo" de que Melo Antunes viria a ser o principal autor e de que haveria de vangloriar-se.

De qualquer forma e na altura em que foi divulgado, o "Programa do MFA" parecia ser insusceptível de interpretações dúbias quanto à política ultramarina. A esse esquema ajustava-se, sem esforço, aquilo que eu negociara em Lusaka e tudo quanto tinha publicamente afirmado no "NB".

Acreditei que tinha chegado a oportunidade de levar por diante aquele projecto e, por isso, escrevi editorial que fiz publicar no "Notícias da Beira", com o máximo destaque, no dia 3 de Maio.

Desta prosa enviei cópia, com carta atenciosa, ao Gen. António de Spínola por forma a que conhecesse o artigo antes de aparecer no jornal, mas já depois de a publicação estar determinada.

Sob o título "A nossa posição - Atitude e Programa" recordei o que naquelas colunas havia escrito, critiquei o que havia de criticável nas hesitações governativas recentes e, apelando para a unificação de todas as tendências, manifestei apoio ao "Programa do MFA" defendendo, sem as mencionar concretamente, as soluções acordadas, meses antes, sob a égide do Presidente Kaunda e do Presidente Banda.

Os jornais, conhecendo o artigo, foram levados sem demora a Blantyre, onde Pombeiro de Sousa se apressou a fazer a tradução para conhecimento do Presidente Banda. Logo depois, fê-la seguir para Lusaka.

O acolhimento, nas duas capitais africanas, foi o mais favorável possível com reafirmação do apoio para a orientação preconizada.

O Dr. Banda, numa conferência de imprensa, foi muito expressivo ao referir-se à revolução portuguesa, afirmando a esperança "de que tudo mudasse para melhor" e prevendo para breve "encorajadores desenvolvimentos em Moçambique". Assegurava que o Malawi faria tudo quanto estivesse ao seu alcance para ajudar a evolução mais favorável.


O Governador Geral necessário


Para além das afirmações programáticas do "MFA" eu tinha outras razões para ser optimista nas informações que fazia chega a Blantyre, pela via do consulado do Malawi na Beira.

Com efeito recolheramos, na "AGIM", notícias seguras de que o Gen. Silvino Silvério Marques iria ser nomeado governador-geral e comandante-chefe de Moçambique. Tratava-se de uma escolha feliz e já anteriormente mencionei o alto conceito em que tinha este militar que o Doutor Marcello Caetano tão injustamente tratou.

Certifiquei-me de ser segura a notícia recolhida pelo nosso incansável redactor-chefe, Magalhães Monteiro, e procurei estabelecer contacto com o Gen. Silvério Marques.

Finalmente, encontrámo-nos em casa de amigo comum e confirmou-me que o convite lhe havia sido formulado pelo Gen. Spínola, perante a Junta de Salvação Nacional e que até já escolhera os seus colaboradores mais directos que seguiriam (como seguiram) antes dele, para Lourenço Marques.

Revelei-lhe, então, em todo o pormenor, os resultados das minhas sucessivas deslocações à Zâmbia, mostrei-lhe os textos do "Programa de Lusaka" e não ocultei as vias de contacto que tinha com os nacionalistas moçambicanos. Nisto ocupámos a noite, até alta madrugada, ficando impressionado e surpreendido com os progressos que eu realizara. Entendia que nos encontrávamos por um caminho em que muito interessava prosseguir. Afirmou a necessidade urgente de nos avistarmos, os dois, com o Presidente da JSN.

General Silvino Silvério Marques (2.º a contar da esq.).




Tem importância assinalar que o Gen. Silvino Silvério Marques sempre defendera a solução integracionista, publicando um trabalho notável que intitulara "Estratégia Estrutural Portuguesa". Não tínhamos, pois, a mesma atitude perante os problemas, mas unia-nos o mesmo amor à África Portuguesa e às suas gentes. O general era um multi-racialista convicto sem ser conduzido a isso, apenas pela via da sua lúcida inteligência. Adoptava tal doutrina com impressionante sinceridade de sentimentos e quase que com fervor religioso. Bem o tinha demonstrado nos tempos em que havia sido governador-geral em Angola.

Por tudo isto, nos nossos diferentes caminhos convergentes, aceitava, sem preconceitos mesquinhos, o contributo que eu lhe poderia oferecer para se alcançarem os objectivos nacionais integrados nos propósitos da autodeterminação (ob. cit., pp. 190-191; 196-205; 217-220; 222-225).

Continua


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