quarta-feira, 30 de novembro de 2022

A modernidade antecipada pelo racionalismo medievo

Escrito por Roger Scruton




«A palavra divina, ou teologia, foi estudada pelos filósofos orientais; mas os filósofos mediterrâneos, que mais racionalistas se mostraram reduzindo todos os princípios da razão aos princípios da dialéctica, não deixaram de falar e escrever em relação às tradições teológicas. O princípio escolástico, tal como Santo Anselmo o concebeu na relação convergente do Proslogium com o Monologium, não é um processo de reacção obscurantista contra o iluminismo da razão, mas, pelo contrário, um princípio libertador da inteligência humana. Não tem, consequentemente, significação pejorativa ou depreciativa, mas, pelo contrário, significação muito honrosa, o falar-se do escolasticismo de qualquer pensador.»

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).


«Decisivo será saber quais as razões da específica forma que, sob vários matizes, assume a filosofia em Portugal, com suas profundas implicações estéticas e religiosas, sua exclusão tão peculiarmente marcada das exigências cientistas ou positivistas. Por isso bem parece urgente determinar as profundas e não extrínsecas ou convencionais razões por que a filosofia portuguesa se emancipa mais tardia e lentamente da teologia e da dogmática, determinar por que motivo os nossos pensadores ou se detêm subitamente a meio de uma promissora carreira especulativa, ou regressam às mesmas formas de ortodoxia das quais o pensamento se libertara.

Torna-se cada vez mais urgente averiguar se foi, como em geral se julga, por insuficiência, receio ou crédula obstinação que os nossos pensadores, como os da vizinha Espanha, se mantiveram perplexos e até renitentes perante os caminhos da filosofia moderna, ou se, pelo contrário, se aperceberam da unilateralidade, hoje patente, em que na linha cartesiana ou baconiana a filosofia europeia se começara desenvolvendo. Notamos, por um lado, que a história não está por inteiro contada, propendemos, por outro lado, a admitir, e cada vez com mais implacável firmeza, que se a causa da verdadeira filosofia não foi assegurada por uma escolástica de inspiração divina e teológica, ela não é também assegurada pela nova escolástica de inspiração humanística e científica.

A causa da filosofia não é a daquele céu, mas não é também a desta terra. Importa primordialmente aprendê-lo. A partir disso será compreendida e valorizada a filosofia que temos e tivemos».

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»). 

 

«Afirmara-se já na Idade Média uma tendência, proveniente de Guilherme de Occam e dos físicos parisienses que o seguiam, para reduzir ao mínimo as noções explicativas da física. Todas as forças, virtudes e qualidades, de que falavam os tratados redigidos em termos escolásticos, passaram a ser suspeitas de existir apenas em palavras indignas do novo vocabulário científico. A ciência livresca, que consta de letras, de palavras e de frases, teria de ser substituída por uma ciência nova a reconstituir platonicamente com números primos, figuras geométricas e sólidos perfeitos, aos quais a inteligência, liberta da imaginação e da sensibilidade, subordinaria as aparências, os fenómenos e os comportamentos dos corpos observáveis e observados.»

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).

 

«O Céu dos modernos é um delírio para as asas dos aviões planetários e, porventura, ultraplanetários; o Céu de Platão era o mundo real das ideias, pátria das almas, em desterro no mundo da geração, corrupção e morte.»

Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).


«Os principais sistemas filosóficos que dominaram na Idade Média satisfaziam o pensamento progressista ou o pensamento revolucionário dos homens mais cultos. Para uns, efectivamente, a ciência tinha diante de si pleno caminho que lhe permitia realizar um progresso indefinido ou atingir gradualmente a perfeição do saber; para outros, a ciência não progredia, efectuava revolução em torno de verdades eternas, competindo ao magistério adaptá-las às variantes das gerações humanas. Estas duas formas de ordem, a que a ciência estava submetida, – a ordem progressiva, imitando os movimentos nas superfícies dos corpos terrestres e a ordem revolucionária imitando os movimentos dos corpos celestes, – pressupunham, porém, a fixidez do método se não do sistema.

Estes dois modos de conceber o movimento científico não satisfaziam já aos pensadores do fim da Idade Média. Os cientistas da Idade Moderna, conscientes destas dificuldades, não fizeram mais do que combinar os dois tipos de movimento mecânico, não imaginaram nem inteligiram o movimento natural. Só nos séculos XVIII e XIX, com a atenção directa aos fenómenos da Natureza, se restabeleceram noções equivalentes à esquecida doutrina aristotélica da relação da potência com o acto.»

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).

«Aquela filosofia que hoje se ensina nas escolas com a designação de "filosofia moderna", caracteriza-a Hegel por "abandonar totalmente o domínio da teologia filosofante" e constituir "o ponto de partida daquilo que os franceses chamam as ciências exactas". O que lhe é essencial, o primado da vontade, recebe-o todavia a filosofia moderna da teologia escolástica. Por isso dizemos que só aparentemente ela representa uma ruptura com a teologia, filosofante ou não, e antes a prolonga dando-lhe, precisamente no abandono da expressão teológica e na construção das ciências exactas, as condições para um triunfo que, há quatro séculos indiscutido, hoje podemos ver ter sido, e estar sendo, ilusório.

Tal como é entendida escolarmente, a filosofia moderna teve o seu primeiro pensador em Descartes e o último em Hegel. "Herói do pensamento" - chama Hegel a Descartes; e acrescenta: "Jamais se poderá insistir bastante nem com suficiente amplitude expor a acção exercida por este homem sobre o seu tempo e sobre o desenvolvimento da filosofia em geral"; "com ele, podemos enfim sentirmo-nos em casa, como o mareante que grita depois de uma longa e temorosa viagem por turbulentos mares: Terra!"

Num trecho do seu Discurso do Método, enuncia Descartes aquilo a que deve dedicar-se a filosofia:

"... em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, pode encontrar-se uma outra, prática, que, conhecendo o poder e as acções do fogo, da água, do ar, dos céus e de todos os corpos que nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres dos nossos artesãos, de igual modo os poderíamos utilizar em tudo aquilo para que servem, tornando-nos assim como que donos e senhores da natureza".

Tão significativo texto, o mais significativo quanto aos propósitos da filosofia moderna, abre com o repúdio dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, e certo tom desdenhoso da expressão pressupõe que já então ela se podia dar por repudiada. Essa filosofia é a escolástica, de que será portanto o contrário essa outra, prática, que Descartes preconiza. Na clara segurança do texto não aflora a mínima suspeita de que a filosofia prática venha, não substituir, mas prolongar a especulativa ou escolástica. Assim se forma a imagem de ruptura que, da sua época e do seu pensamento, Descartes transmite: aí, o futuro se dissocia e libertará do passado. Não se trata de uma mesma filosofia que terá tido a primeira fase na escolástica e a segunda, dela complementar, no pensamento chamado moderno. Aquele todo que, fundado no primado da vontade, nós vimos ter reunido a patrística agostiniana, a escolástica medieval e o pensamento científico e ao qual se adunava a designação de filosofia moderna ou até, numa sugestão de mais verídico rigor, a de filosofia nórdica, aqui surge decididamente negado. Uma ruptura se declara.

Quem parece ter seguramente sabido que de ruptura se não tratava, terão sido os pensadores meridionais: os ibéricos da neo-escolástica, os aristotélicos conimbricenses, Pedro da Fonseca. Também Pedro da Fonseca enaltece o princípio da liberdade e faz ceder o teocentrismo escolástico perante o antropocentrismo renascentista; mas ainda polemiza contra o nominalismo e o escotismo e, sobretudo, acentua o carácter transcendente da criação. Assim participa, por um lado, na nova fase humanista da filosofia moderna enquanto, por outro lado, procura preservar a possibilidade de conciliação com a filosofia antiga, possibilidade comprometida no escotismo e, em especial, na evanescência do que há de essencial e perene, se não eterno, na natureza quando reduzida, mediante a ideia de criação sem garantia transcendente, a formas de existência efémeras e acidentais. Ora a neo-escolástica de Pedro da Fonseca é que é, propriamente, essa filosofia especulativa que se ensina nas escolas [Desde o século XIII até ao século XVI, o livro de ensino da lógica, ou arte de pensar, utilizado na generalidade das escolas da Europa foram as Sumas de Pedro Hispano, só substituídas, a partir do século XVI, pelas Institutiones Dialecticae, de Pedro da Fonseca, que, no tempo de Kant, ainda era o livro seguido no ensino da filosofia]».

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).









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«Ao princípio de substância substituiu a ciência moderna os princípios de conservação: conservação do movimento com Descartes, conservação da força viva com Leibniz, conservação da energia com Helmholtz. Resultaram estes princípios de um esforço para reduzir todos os fenómenos à identidade e da identidade à unidade, mas tal esforço foi em vão. A diversidade é necessária, reaparece no seu momento próprio com a designação antiga de causas ocultas, ou com outras designações que ocultam novos conceitos, pelo que se infere que a ciência humana tem de apoiar-se numa classificação real e realista para resistir aos absurdos da abusiva formalização.»

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).


«À inversão da nomenclatura na filosofia moderna corresponde uma mudança radical na tonalidade e no sentido da vida. Assim o que hoje se chama idealismo parece corresponder ao que na Idade Média se chamava realismo.

Os realistas eram os que admitiam a existência dos universais, seja, a realidade da ideia. Os platónicos eram realistas, os platónicos são para o pensamento moderno idealistas. O que significava esta inversão?

Uma mudança do sentido da vida, a transposição da acentuação afectiva: do espírito para os sentidos, da contemplação para a acção e para acção no plano das realidades materiais.

A matéria, o plano físico, as descobertas, o comércio e mais tarde a indústria impuseram-se à atenção e fixaram o interesse humano no plano da sua realidade: eis o real. O ideal será o futuro, a aspiração no mesmo plano, o desejo de novas e melhores conquistas ou será o lugar de imaginação e desejo onde as aspirações superiores recalcadas projectem a sua ansiedade de viver. O messianismo temporal duma civilização perfeita ou a névoa duma esperança e a propulsão duma potência de ser anónima e panteísta passando no homem a soerguê-lo e a realizar-se.

O idealismo moderno é um humanismo de suficiência ou dispersão, em que o homem é o criador ou o ponto de passagem de forças impessoais que, atravessando-o e subindo-o por agora, acabarão por o dissolver na vastidão do seu inconsciente anonimato.

O idealismo posterior ao cristianismo é uma regressão e deliquescência, como veremos, enquanto que o idealismo realista anterior é um esforço do homem integral para encontrar o equilíbrio da sua personalidade em apoio na realidade do Espírito.

Por isso lhe chamaremos simplesmente idealismo, guardando os nomes de panteísmo e voluntarismo para as formas modernas e contemporâneas dos chamados idealismos.»

Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).


«O anti-teologismo da Idade Moderna foi completado com o anti-metafisicismo da Crítica da Razão Pura. A actualidade dessa obra demonstra-se nos sistemas nossos contemporâneos que, directa ou indirectamente, aceitam a gnosiologia de Kant. No mundo de línguas românicas o descrédito da teologia e da metafísica deve-se, porém, e principalmente, à vulgarização da obra de Augusto Comte.»

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»). 


«A filosofia é essencialmente a metafísica: esta é a sua alma.

(...) a metafísica é, antes de mais, uma ontologia do espírito.

Que terá dado o cristianismo a esta metafísica?

Por si e directamente, a sua própria metafísica, a Pessoa divina a preencher o vazio requerido em termos de Ideal pelas exigências insofismáveis do pensamento e do amor humano.

Mas teria então acabado a metafísica, visto que onde se sabe não é preciso procurar? Não; a pesquisa filosófica, para os cristãos, como para os gregos, é a maior nobreza do homem e a marca evidente do seu alto destino. Somente cristãos procuram no mistério, sabendo que ele, sendo inesgotável pelo pensamento humano, lhe não é vedado por nenhuma incapacidade radical, por nenhum forçoso e forçado agnosticismo.

Mais: o cristão procura na penumbra, mergulha num oceano insondável, mas sabe que não há trevas indefectíveis e tem ainda a certeza de que entre a sua alma purificada, entre o seu espírito e Deus, existe uma profunda ligação, uma integral dependência, um como contacto na penumbra, um conhecimento de conaturalidade.

Não que a filosofia e a revelação se misturem, mas sim que o cristão procure, na certeza e na alegria de Fé, até onde pode ir o seu conhecimento natural da vida, do espírito e das relações do espírito com Deus.»

Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).


«A filosofia portuguesa decaiu profundamente ao afastar-se da escolástica e do aristotelismo, tradicionais no país. O Marquês de Pombal, procedendo como quem sabe o que não quer enquanto ignora o que quer, considerava Aristóteles como um filósofo abominável, indigno de ser mencionado nos compêndios escolares, e até mandou cancelar, censurar ou suprimir as referências que eram feitas ao Estagirita na tradução portuguesa do tratado de lógica de António Genovesi. Não prescreveu, porém, qual o sistema filosófico que deveria ser adoptado no ensino universitário, porque o espírito do reformador estava apenas preocupado com o ensino politécnico, quer dizer, da ciência e da tecnologia, enfim, da habilitação sindical.

A decadência dos estudos filosóficos no período do liberalismo religioso, político e económico que sucedeu ao "reinado" do Marquês de Pombal, explica perfeitamente que os estudiosos mais sérios vissem no sistema de Augusto Comte um plano aceitável para a reforma da educação portuguesa. A tal apostolado se dedicou Teófilo Braga, que tendo sido primeiramente atraído por Hegel e Vico, assimilou, ensinou e divulgou o sistema positivista, logo que para tal obteve cadeira no Curso Superior de Letras de Lisboa (1872). Entendia o ilustre professor que a reforma filosófica deve preceder a reforma política, já que tal era a motivação do Partido Republicano Português, mas os revolucionários impacientes e apressados desrespeitaram a ordem normal, impuseram ao País instituições determinadas pela fraseologia mitológica e metafísica, e precipitaram os acontecimentos para o abismo retrógrado que tem sido julgado pelos historiadores esclarecidos.

A filosofia portuguesa, disciplinada durante quatro séculos pelos textos de Aristóteles, traduzidos em latim segundo os comentários de Santo Tomás, não poderia crescer, florescer e frutificar perante a literatura romântica e realista do liberalismo religioso, político e económico. A Universidade não aceitou a lição de Jorge Hegel ou de Augusto Comte, dois escolásticos, na construção da enciclopédia das ciências filosóficas. O século XIX foi, por isso, um século de decadência nos estudos liceais e universitários, e caracterizado por reduzida produção de escritos originais de estudos especulativos.»

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado» II).


«...Idade Média quer dizer escolástica, e escolástica significa verdade, eterna filosofia, delimitação rigorosa de um domínio dentro do qual tudo é verdade, fora do qual tudo é erro. Nestas condições, os grandes sistemas escolásticos serão expostos de modo tal que pareçam conter a solução antecipada de todos os problemas filosóficos e a refutação de todos os erros. Assim nos surgem essas exposições da doutrina tomista onde vemos um S. Tomás refutar antes de tempo os erros de Locke, Kant, Spencer e Bergson».

Étienne Gilson («La Philosophie au Moyen Age»).


«A lógica aristotélica daria expressão, comunicação e demonstração a três tradições religiosas que conviria unificar. Antes do aristotelismo de Santo Alberto Magno já a Escolástica estava habilitada a resolver o problema da solidariedade da teologia cristã com a filologia latina e com a filosofia grega, num corpo doutrinal capaz de flutuar sobre as correntes que dissolvem as relações da razão com a fé. Efectivamente a fé define-se, nos dizeres de S. Paulo, como a relação do visível com o invisível. Esta relação só é apreensível por símbolos, mas como o símbolo se presta a uma pluralidade de interpretações que faculta o trânsito da heterodoxia para a heresia, tiveram os Santos Padres e os concílios o cuidado de procurar fórmulas inequívocas, para o que recorreram aos termos da filosofia grega e da eloquência romana. Os doutores escolásticos não só continuaram a missão dos concílios, que na definição da fé procede da flutuação simbólica para a fixação dogmática, mas quiseram também fazer a dedução cronológica dos dogmas, que não é arbitrária ou artificial porque deve reflectir o plano divino segundo as sistematizações teológicas, ou sumas. Os séculos XII e XIII são os séculos das sumas, entre as quais se distinguem as de Hugo de S. Vítor, a de Pedro Lombardo, a de Alexandre de Halles e a de S. Tomás. Ora os autores dessas sumas quiseram também fixar a argumentação probante de cada um desses dogmas. O ideal seria de com tais encadeamentos de raciocínios querer forçar a convicção dos leigos, dos gentios e dos infiéis.

Explica-se assim a formação do racionalismo medieval, precursor do racionalismo moderno. A partir dele vai sendo cada vez mais condicionada, e depois restringida, a liberdade de interpretar os símbolos, os mistérios e os sacramentos, agora definidos numa rigorosa sequência de palavras, em fórmulas que se denominam dogmas. Maior liberdade é concedida às artes plásticas que exprimem pensamentos vedados às artes da palavra. Estas ficam perfeitamente limitadas nos colégios, nos mosteiros e nas Universidades. Além da rigorosa disciplina do trívio, a constituição das Universidades consolida o predomínio da filosofia grega e do direito romano, doutrinas estas que hão-de estruturar a própria Igreja Católica. Depois de fortes lutas contra a teologia, que ainda defende a fé em termos de S. Paulo, e que ainda defende a tradição, a revelação e o sobrenatural, procuram os escolastas tornar independentes a filosofia jurídica e a filosofia natural, segundo um racionalismo que constituirá sem dificuldade o direito, a sociologia e a tecnologia.

(...) A formação medieval do racionalismo moderno nem sempre aparece claramente descrita pelos historiadores da filosofia. Ela está, porém, patente na obra de Étienne Gilson, que considera a libertação da razão humana e a consequente laicização da sociedade concluídas no século XIII. No dizer do ilustre escritor, seria S. Tomás de Aquino o primeiro dos filósofos modernos e Renato Descartes o último dos filósofos escolásticos. Esta afirmação, que a uns parecerá paradoxal e a outros surpreendente, merece ser meditada por quantos julgam que a história do pensamento europeu deve ser estudada a partir da história da filosofia grega. Depois da expulsão da Companhia de Jesus, um tipo de escolástica não-aristotélica foi precariamente esboçado pelas ordens religiosas de tradição medievalista ou moderna. Com o advento do liberalismo tudo se modificou, a ponto de a Escolástica ser considerada anacrónica sobrevivência de tenebrosa história política e eclesiástica.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).





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«Como assinalou Mário Ferreira dos Santos, muitas das pretensas inovações introduzidas pela moderna escola analítica já estavam formuladas com séculos de antecedência – e algumas delas impugnadas – nas obras de Duns Scot, de Guilherme de Ockam, de Pedro Abelardo e sobretudo dos grandes escolásticos espanhóis e portugueses da Renascença, que Leibniz (ele próprio um inovador lógico) tanto admirava.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).

 

«Tardiamente se afirmou entre nós a nítida separação entre a razão e a fé, na transição do ensino franciscano para a adopção da síntese albertino-tomista. Os próprios dominicanos estão longe de admitir um racionalismo tal como se formulou na Companhia de Jesus. O racionalismo medieval, ensinado nas universidades europeias pelos compêndios dos escolásticos portugueses, aperfeiçoa-se no racionalismo moderno, principalmente depois da difusão da obra de Descartes.

Interpretamos toda a filosofia moderna como a demonstração de que o racionalismo medieval é insuficiente para elaborar um sistema filosófico. Kant, que estudou o ideal de razão pura nas obras dos Conimbricenses, completou essa demonstração. A não ser que se renuncie a filosofar, conforme propõe e impõe o positivismo, há que admitir verdades enunciadas em proposições de origem tradicional, revelada e sobrenatural, porque só elas tornam inteligível tudo o mais, só elas pacificam a ansiedade humana.»

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).

 

«Reporto-me aqui às breves explicações orais que dei sobre o “argumento de Sto. Anselmo”. Esse argumento é apresentado originariamente sob a forma de uma prece. Como ninguém em seu perfeito juízo – muito menos um monge experiente – pode orar a um Deus duvidoso, está claro que o argumento não é oferecido como resposta à dúvida quanto à existência ou inexistência de Deus, mas como um aprofundamento intelectual da experiência da prece. O esquema lógico do argumento, no entanto, pode ser abstraído – separado imaginariamente – do seu contexto originário e ser discutido “em si mesmo”. Mas aí ele já não será o argumento de Sto. Anselmo e sim uma cópia esquemática esvaziada de seu conteúdo experiencial, apta a ser reproduzida sob uma infinidade de formulações verbais diferentes e até mesmo codificada em símbolos matemáticos para fins de análise computadorizada. E então os debates quanto à sua validade ou invalidade lógica poderão prosseguir indefinidamente, animando os serões dos amadores de argumentos, enriquecendo o mercado editorial e alimentando carreiras universitárias, sem que isso aumente em um grama sequer a compreensão do pensamento de Sto. Anselmo ou, mais ainda, da técnica anselmiana da conversão de uma prática devocional em experiência intelectual – técnica sem a qual nada se pode entender não apenas da filosofia do próprio Anselmo, mas de toda a tradição escolástica que se lhe seguiu.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).





A modernidade antecipada pelo racionalismo medievo


A tradição que fez de Descartes o fundador da filosofia moderna não nos deve fazer erigir uma barreira intransponível entre o pensamento do século XVII e tudo o que o precedeu e tornou possível. O método da filosofia mudou radicalmente em resultado dos argumentos de Descartes. Apesar disso, muito do conteúdo da disciplina não se alterou. Não devemos, pois, ficar surpreendidos se alguém nos mostrar que uma ideia filosófica da modernidade foi já antecipada por pensadores da Idade Média, nas numerosas tentativas destes pensadores, quer para reconciliar religião e filosofia, quer para as dividir.

O espírito de Platão e o do seu aluno e crítico Aristóteles têm pairado sobre a filosofia ao longo da sua história, e é nestes autores que em última análise podemos encontrar as raízes de quase todas as controvérsias filosóficas medievais. Cada um deles legou ao mundo argumentos e concepções de poder intelectual e dramático superlativo, e não é, portanto, surpresa que a sua influência se tenha sentido em toda a parte onde foram lidos. Todas as religiões mediterrânicas importantes – judaísmo, cristianismo e islão – procuram assimilar as suas doutrinas ou apresentar uma alternativa que fosse igualmente persuasiva e igualmente compatível com o nosso sentido intuitivo da natureza do mundo e do nosso lugar nele.

De Platão e da tradição neoplatónica, os homens medievais herdaram uma cosmologia que justificava a crença numa realidade supra-sensível e que, ao mesmo tempo, apresentava uma imagem elevada da nossa aptidão para aceder a esta última. Platão argumentou que a verdade do mundo não se revela à percepção sensível, mas somente à razão; que as verdades da razão são necessárias, eternas e (como hoje diríamos) a priori; que através do cultivo da razão, o homem pode vir a conhecer-se a si próprio, a Deus e ao mundo, e aquilo que estas coisas são em si mesmas, libertas das nuvens sombrias da experiência. Os neoplatónicos desenvolveram a cosmologia do Timeu de modo a torná-la uma teoria da criação na qual o mundo inteiro emana da luz intelectual da autocontemplação de Deus. A razão, sendo a parte do homem que participa da luz intelectual, conhece as coisas não como elas parecem ser, mas como elas são. Esta teoria – inicialmente uma teoria metafísica – parecia implicar uma «filosofia natural» (uma filosofia natural que contém elementos platónicos, quer aristotélicos. De acordo com esta filosofia natural, a terra e as coisas terrenas residem no centro de esferas concêntricas, cada uma delas representando sucessivas ordens de intelecção, e todas subordinadas à última esfera, a esfera da imutabilidade, onde Deus reside na companhia dos abençoados. A razão é a aspiração a esta última esfera e a mortalidade do homem é a oportunidade para ascender a ela. Esta ascensão depende de se abandonarem as preocupações com as coisas efémeras e sensíveis, por forma a contemplar-se a verdade eterna. Esta «filosofia natural», exposta de modo persuasivo por Boécio (c. 480-424 d. C.) na sua Consolação da Filosofia (uma das obras mais populares de filosofia jamais escritas), influenciou o predecessor deste, Santo Agostinho (354-430 d. C.) – que, não obstante, reteve uma postura céptica face a muitos aspectos da metafísica de Platão –, e reaparece depois, numa ou noutra variante, descrita, defendida e celebrada em incontáveis obras literárias medievais e do início da Renascença, quer em poemas populares, quer em obras-primas como O Conto do Cavaleiro de Chaucer, A Divina Comédia de Dante e a Faerie Queene de Spenser.


Dante Alighieri



A visão consoladora da física neoplatónica não era, no entanto, acompanhada por nenhum remédio contra a incerteza metafísica. Uma mente inquisitiva podia descobrir dificuldades insuperáveis em todos os pontos do sistema neoplatónico. Por exemplo, o que é esta «razão» da qual o nosso conhecimento da verdade última depende, e quais são as leis subjacentes ao seu modo de operar? Em que sentido gera ela uma compreensão eterna e não apenas transitória, e como aprendemos a distinguir uma da outra? Qual é a natureza de Deus, e como sabemos que ele existe? Quais as leis que governam o movimento e a geração das coisas sublunares, e como é a hipótese platónica – de que a estada do homem entre as coisas sublunares é temporária e que o propósito do seu ser reside noutro lugar – compatível com a sujeição do homem a essas leis? Em todos os seus aspectos, a cosmologia neoplatónica levanta problemas filosóficos. Estes problemas não parecem susceptíveis de solução científica. Pelo contrário, eles derivam precisamente da ideia de que a percepção sensória, que é o principal veículo do pensamento científico, nos leva não à verdade mas à ilusão sistemática (apesar de ser, por vezes, persuasiva).

À medida que as teorias de Aristóteles começaram a tornar-se conhecidas entre os pensadores europeus – filtradas pelos escritos dos filósofos e teólogos árabes que, por assim dizer, delas se apropriaram por direito de conquista –, foram avidamente estudadas como fonte de novas respostas para estas perplexidades metafísicas. Alguns dos argumentos aristotélicos eram conhecidos dos primeiros cristãos. Em particular, estes argumentos tinham sido usados para formular filosoficamente a doutrina da Trindade. Foi graças aos filósofos de Alexandria – sobretudo Clemente (c. 150-215) e Orígenes (c. 185-254), que tinham ambos notado as inadequações inerentes ao neoplatonismo da sua época – que todos os recursos da filosofia grega foram usados na tentativa de se conseguir uma exposição coerente do dogma cristão. E com a vitória sobre o arianismo, e a consequente aceitação da doutrina da Trindade, um dos mais importantes conceitos aristotélicos, o conceito de substância, ocupou um lugar central na formulação do credo da Igreja cristã. Assim, na altura em que o Concílio de Niceia (325) declarou o Filho como consubstancial ao Pai, a dependência da teologia relativamente à metafísica aristotélica tornou-se um facto. Boécio, no seu escrito sobre a Trindade e nas suas traduções de Aristóteles que sobreviveram, muito fez para fortalecer esta dependência. Mas foi só mais tarde, no fim da «Idade das Trevas», que o conteúdo da metafísica aristotélica começou a entrar plenamente nas especulações filosóficas pelas quais a cosmovisão cristã procurava encontrar-se a si mesma; e por essa altura as teorias aristotélicas já haviam sido sistematizadas e adaptadas por pensadores como Al-Farabi (875-950), Avicena (890-1037) e Averróis (c. 1125-c.1189), todos eles muçulmanos, e Moisés Maimónides (1135-1204), um judeu versado nas especulações filosóficas usadas na altura para defender o Alcorão. A doutrina aristotélica entrou, portanto, na arena da teologia trazendo já a marca de um monoteísmo que a tinha achado congenial.

A conversão final dos teólogos cristãos à maneira de pensar aristotélica ocorreu durante os séculos XI e XII, e levou, com a criação de universidades em centros tão importantes como Paris e Pádua, ao surgimento da corrente filosófica que ficou conhecida por «Escolástica». A grande luminária desse movimento foi São Tomás de Aquino (1225-1274), cuja Suma Teológica se propunha fornecer uma descrição completa da relação entre homem e Deus apoiando-se apenas no raciocínio filosófico e pondo de parte asserções místicas ou a fé. O seu mestre era em todos os aspectos Aristóteles, e a síntese subsequente da doutrina cristã com a metafísica aristotélica – conhecida, devido ao seu criador, por tomismo – permaneceu até hoje como a mais persuasiva das fundamentações da teologia cristã.

Para perceber os desenvolvimentos subsequentes da história da filosofia, é preciso ter alguma ideia das concepções, disputas e teorias que emergiram da tentativa de ajustar as doutrinas neoplatónica e aristotélica ao quadro de uma religião monoteísta, e, no processo, de reconciliar a ciência e a moralidade clássicas com os dogmas da fé. Contrariamente ao que vieram a pensar os seus sucessores, os filósofos medievais não eram meros escravos da autoridade, nem desistiam facilmente de especulações que os pusessem em conflito com a Igreja ou com o Estado.


O conceito de substância

A lógica aristotélica, exposta nos trabalhos conhecidos como Organon, foi preservada em parte por Boécio, sendo mais tarde transmitida na totalidade pelos eruditos do islão. Qualquer proposição, pensava-se, tem de ter pelo menos duas partes, e, em correspondência com essas duas partes, a própria realidade deve dividir-se em substâncias e atributos, sendo estes últimos «predicados das», ou «inerentes às», primeiras. A distinção tem a sua origem na lógica e na tentativa aristotélica de classificar todos os «silogismos» válidos dentro de um único esquema. Mas essa tentativa acarretava óbvias consequências metafísicas. Se as substâncias podiam mudar em termos de atributos, elas tinham de permanecer ao longo dessas mudanças. Além disso, se nos podemos referir a substâncias é porque podemos separá-las, pelo menos em pensamento, dos atributos a que podem estar num dado momento associadas. Assim, devemos distinguir a «essência» de uma substância – aquilo sem o qual esta não poderia ser a coisa particular que é – dos seus «acidentes», as propriedades que nela podem mudar sem que ela deixe de ser aquilo que é. Finalmente, são as substâncias, na perspectiva de Aristóteles, os constituintes últimos da realidade, e o nosso conhecimento do mundo consiste em tentar classificá-las em géneros e espécies.



Um dos problemas que os medievais legaram aos seus sucessores do século XVII foi o de saber se, ou em que medida, faz sentido dizer que uma substância cessa de existir ou que uma substância foi criada. Percebemos que existe uma tendência na metafísica aristotélica para olhar toda a mudança como uma mudança nos atributos de uma substância. Para muitos filósofos influenciados por Aristóteles, estas «mudanças na existência» não têm explicação. Filósofos posteriores foram mais longe, argumentando que uma substância contém dentro de si a explicação de todos os seus predicados. Neste caso torna-se difícil perceber como é que uma substância pode criar ou destruir outra, excepto através de um milagre. Ora, dada a natureza das coisas, os milagres estão para além das capacidades de compreensão do entendimento humano. Um problema adicional surgiu com a inaptidão da lógica tradicional para distinguir completamente entre termos individuais e de espécie, por um lado, e termos quantitativos (ou de «massa»), por outro. Por exemplo, «homem» – que pode denotar seja um indivíduo seja a classe que o subsume – refere-se a substâncias individuais. E expressa também um predicado que em geral descreve essas mesmas substâncias. Mas o que dizer de «neve» ou de «água»? Não há «neves» ou «águas» individuais, excepto num sentido ténue, sentido esse que suprimiria uma distinção fundamental para o pensamento científico, ou seja, a distinção entre «material» e «coisa», entre o que pode ser medido e o que pode ser contado. A dificuldade de empurrar a ideia de «material» para o quadro conceptual de «substância» é responsável por muita da rejeição da ciência aristotélica durante o século XVII. Por esta razão, mesmo que outra não houvesse, o conceito de substância viria a tornar-se o foco da investigação filosófica.


A natureza dos universais

Qualquer filosofia que ponha a si mesma questões sérias relativas à natureza das substâncias tem também de analisar a natureza dos «atributos» ou «propriedades» que lhes são inerentes. A cosmologia neoplatónica tinha transformado o mundo das Ideias platónico – o mundo onde residem as «formas», inalteradas, imutáveis e apenas conhecidas pela razão – na abençoada esfera da imutabilidade. Mas a velha disputa metafísica entre Aristóteles e Platão quanto à natureza dos universais permaneceu no centro das discussões no pensamento medieval. Isto porque essa disputa tinha relação com aquele que é porventura o tema mais importante da teoria do conhecimento, a questão de se saber até que ponto o mundo é cognoscível pela razão. Usando como texto básico uma passagem da Isagoge de Porfírio, transmitido e comentado por Boécio, os filósofos procuraram saber se os géneros e as espécies existem apenas na mente ou na realidade; e, no caso de se verificar a segunda alternativa, se eles existem em substâncias individuais ou separadas delas. Em resposta a esta questão, alguns filósofos reafirmaram a posição platónica original, defendendo a existência independente de universais no mundo das «ideias». Outros foram para o extremo oposto, abraçando o nominalismo, defendendo que os universais são meros nomes e que só existem entidades individuais. Não há uma realidade independente que corresponda à ideia de «azul»: a única coisa que acontece é que nós classificamos certas coisas apondo-lhes esse rótulo.

Um dos mais importantes pensadores a defender o nominalismo (numa certa versão) – Guilherme de Ockham (floruit 1300-1349) – combinou o nominalismo com uma doutrina do empirismo, de acordo com a qual a razão, longe de ser a única autoridade a indicar-nos o modo de ser das coisas, está subordinada aos sentidos e depende destes (da investigação empírica). Este empirismo não era de modo algum incomum no pensamento medieval. Já fora pressagiado por Aristóteles e, até certo ponto, sancionado por São Tomás, que apoiou a fórmula escolástica «nihil in intellectus quod nisi prius in sensu» («nada há no entendimento que não tenha estado primeiro nos sentidos»), um dito que, ao menos numa certa interpretação, implica um completo cepticismo relativo aos poderes da razão. Ockham estava disposto a desenvolver esse cepticismo ao máximo, e a combiná-lo, como o fizeram outros empiristas mais tarde, com uma teoria da natureza e da função da linguagem que removeria as bases de muitas das teses tradicionais produzidas em nome da razão. No curso do desenvolvimento dessa teoria, Ockham viria a antecipar muitas das concepções de filósofos posteriores, incluindo a teoria da causalidade de Hume, a teoria das relações de Leibniz e o ataque ao espaço e ao tempo absolutos. Seguido no seu cepticismo pelo vigoroso Nicolau d’Autrecourt (c. 1300-depois de 1350), Ockham desafiou poderosamente muitos dos dogmas da Igreja, defendendo que estes não deviam fundar-se na razão (esta nunca teria envergadura suficiente para poder abarcá-los), mas na fé. Desta maneira, a antiga disputa sobre a natureza dos universais serviu como foco para a crescente cisão entre empirismo e racionalismo (como acabaram por ser conhecidas estas correntes). Além do mais, tornou-se cada vez mais evidente, no decurso dessas disputas, que muitas coisas na filosofia, talvez mesmo a própria possibilidade da filosofia, dependem da verdade acerca da linguagem. Foi consequentemente na era escolástica que a filosofia começou a incorporar a teoria do significado e o estudo do uso da linguagem como um aspecto central dos seus argumentos. Deste estudo emergiram importantes teorias específicas – tal como a das ideias abstractas (adoptada por Pedro Abelardo [1079-1142] e legada a Locke e ao empirismo britânico) e a doutrina de que as entidades não devem ser multiplicadas para lá do necessário. Esta última doutrina, conhecida por navalha de Ockham (embora não se encontre de facto nos escritos de Ockham), forneceu a inspiração para muito do pensamento científico posterior. Foi também nesta época que surgiu a ideia da centralidade da lógica na filosofia e da necessidade de distinções subtis na discussão de todos os problemas filosóficos.


O argumento ontológico

Sem surpresa, a tradição racionalista e platónica do pensamento especulativo dispôs-se mais prontamente a apoiar o dogma teológico do que o cepticismo empirista inspirado em grande medida no ataque de Aristóteles à teoria das Ideias de Platão. No entanto, foi um argumento aristotélico, quer no conteúdo quer na forma, que acabou por ter uma influência decisiva sobre a teologia medieval. Este argumento é conhecido por prova ontológica (adoptando-se uma expressão de Kant) da existência de Deus. A descoberta desta prova é normalmente atribuída a Santo Anselmo, arcebispo de Cantuária (1033-1109), mas não é uma distorção se dissermos que se vislumbra em certas passagens da Metafísica de Aristóteles e nos comentários de Al-Farabi e Avicena. Foi rejeitada por São Tomás na sua exposição sistemática das bases da doutrina cristã. Pertencia, contudo, a uma classe de argumentos de que faziam parte outros que São Tomás tendia a aceitar. Argumentos que tinham em comum o facto de fazerem uso do conceito de ser necessário – um ser cuja essência implica a sua existência – para oferecer uma prova da existência de Deus.

Formulado de modo muito simples, o argumento de Santo Anselmo diz o seguinte: entendo por «Deus» uma entidade maior do que tudo aquilo que pode ser pensado. Suponha-se que Deus, assim definido, não existe. Posso, não obstante, pensar que existe. Mas uma entidade que existe é maior do que uma entidade que não existe. Logo, é possível pensar em algo maior do que Deus, nomeadamente, numa entidade que é não só maior do que tudo o que pode ser pensado, mas além disso existe. Porém, isto não está de acordo com a definição. Logo, a hipótese – Deus não existe – tem de ser falsa.

Se válido, o argumento estabelece não só que Deus existe, mas também que existe necessariamente, pois segue-se da sua natureza (da sua essência) que ele existe. Versões ulteriores (como a defendida por Descartes) apoia-se na ideia de que a existência é uma perfeição e, portanto, uma propriedade daquilo que é perfeito. Não é inteiramente claro se o argumento de Santo Anselmo se apoia nesse pressuposto; na verdade, não é de todo claro ainda hoje se os pressupostos de que o argumento parte são ou não questionáveis. Alguns filósofos pensam que se trata de um argumento válido, embora necessite de uma nova e mais aperfeiçoada reformulação; outros pensam que foi definitivamente refutado por Kant, quando este procurou provar que «a existência não é verdadeiramente um predicado», Seja como for, apesar da sua aparência sofística, o argumento apresenta uma tenacidade filosófica peculiar, sendo aceite numa ou noutra versão por todos os grandes racionalistas do século XVII.

Há, em particular, uma razão que explica a popularidade do argumento entre os teólogos medievais. É que ele dá credibilidade à ideia de Deus como «ser necessário». Muitos escritores tentaram mostrar que, para existir alguma coisa que seja contingente, deve haver alguma coisa que exista necessariamente (ou que seja causa sui, causa de si mesmo). O argumento ontológico fornece uma descrição deste ser que existe necessariamente e, portanto, uma resposta para a questão fundamental da metafísica, a questão de se saber porque é que (ou por que razão) existe alguma coisa. Ou (numa formulação mais tendenciosa) porque há-de o Ser ser? Vemos também aqui a origem daquela sombria disputa, que parece sobreviver nas páginas obscuras dos filósofos existencialistas, relativa à relação entre existência e essência. Se não houver um ser no qual coincidam existência e essência, o que dizer dos outros seres? Será que as coisas contingentes (entre as quais nos devemos colocar) partilham de uma essência que precede a sua existência, ou acontece, no caso destas, que a existência é anterior à essência? Quando discutirmos esta questão, de momento ainda escassamente inteligível, será importante ter em mente a sua relação com as discussões medievais sobre a natureza de Deus e sobre os universais, que muitos pensadores modernos podem irreflectidamente considerar de interesse meramente académico.

(In Roger Scruton, Breve História da Filosofia Moderna: De Descartes a Wittgenstein, Guerra e Paz, Janeiro de 2022, pp. 29-37).



domingo, 27 de novembro de 2022

O intelecto e a intelecção

Escrito por Aristóteles




«A “física” aristotélica não se limita a investigar a natureza em geral e os seus princípios, o universo físico e a sua estrutura, mas também estuda os seres que estão no universo, os inanimados, os animados que carecem de razão, e os seres animados e providos desta (o homem). Aos seres animados o Estagirita dedica uma atenção especial, escrevendo uma grande quantidade de tratados, entre os quais sobressai pela sua profundidade, originalidade e valor especulativo o célebre tratado Da Alma...

Os seres animados distinguem-se dos inanimados porque possuem um princípio que lhes confere a vida, e este princípio é a alma. Mas, que é a alma?

Para responder a esta pergunta, Aristóteles remonta à sua concepção metafísica hilemórfica da realidade. Todas as coisas, em geral, são um composto de matéria e forma, sendo a matéria potência enquanto a forma é enteléquia ou acto. Não há dúvida de que isto se aplica também aos seres vivos. Ora, observa o Estagirita, os corpos vivos têm vida, mas não são a vida e, portanto, são como um substracto material e potencial de que a alma é forma e acto. “Assim, pois, escreve Aristóteles, a alma é necessariamente substância, entendida como forma de um corpo natural que tem vida em potência. Mas a substância (entendida como forma) é acto perfeito. Assim, pois, a alma é acto perfeito de um corpo do género especificado”. E continua: “(...) a alma é acto perfeito primeiro de um corpo natural que tem vida em potência”; “visto que temos de dar uma definição geral válida para toda a alma, tal definição poderia ser o acto perfeito primeiro de um corpo natural orgânico”».

Giovanni Reale («Introdução a Aristóteles»).


«Não dizemos que a alma, onde o intelecto se encontra, supere de tal maneira a matéria corporal que não exista no corpo, mas que o intelecto, a que Aristóteles dá o nome de “potência da alma”, não é o acto de um corpo. Com efeito, a alma não é o acto de um corpo mediante as suas potências, mas é por si mesma o acto do corpo que dá ao corpo o seu ser específico. Mas algumas das suas potências são o acto de certas partes do corpo, aperfeiçoando-as com vista a certas operações: é assim que a potência em que o intelecto consiste não é o acto de nenhum corpo, pois a sua operação não se realiza através de um orgão corporal.»

São Tomás de Aquino («A Unidade do Intelecto Contra os Averroístas»).


«O acto intelectivo é análogo ao acto perceptivo; o primeiro é uma recepção ou assimilação das formas inteligíveis, tal como o acto perceptivo consiste na assimilação da forma sensível, mas difere profundamente da faculdade perceptiva, porque não está misturado com o corpo nem com algo corpóreo.»

Giovanni Reale («Introdução a Aristóteles»).


«Os livros de Aristóteles De Anima, com os tratados que contêm quanto aos aspectos e estados particulares da alma, são, hoje e sempre, a melhor obra, talvez a única com interesse especulativo, que há a esse respeito. O fim essencial de uma filosofia do Espírito, só pode ser o de introduzir de novo, no conhecimento do Espírito, o conceito, e também, por consequência despertar a compreensão daqueles livros aristotélicos».

Hegel («Lições da História da Filosofia»).





«O pensamento lógico consiste, essencialmente, de coerência entre esquemas. Ele é uma vasta estruturação de relações de contigüidade, sucessão, pertinência, oposição, semelhança, diferença, escalaridade hierárquica, etc. etc. Como poderia realizar estas operações diretamente sobre a variedade inesgotável dos dados sensíveis? Se estes não estivessem previamente selecionados, resumidos e simplificados na memória e imaginação, seria preciso a força de um pensamento divino para conter toda a multiplicidade inabarcável do que nos chega pelos sentidos. Mas o pensamento lógico não opera direto sobre o percebido, e sim somente sobre a parte selecionada e simplificada que se deposita e permanece na memória, sob a forma de esquemas ou espécies.

É assim que se torna possível a conquista suprema do pensamento lógico: o conceito. O conceito abarca numa só operação mental não somente espécies de entes, e espécies de espécies, isto é, gêneros. E de gênero em gênero pode ir subindo, para abarcar as relações mais gerais e universais até conceber as relações meramente possíveis e as gradações de possibilidade que hierarquizam e relacionam as possibilidades entre si.

Mas o conceito é nada mais que um esquema puramente verbal (ainda que inexpresso), que simplifica ainda mais o esquema sensível com que a memória por sua vez resumia toda uma espécie de seres. Isto quer dizer que o pensamento só age desde um certo nível de generalidade para cima. Daí a importância estratégica da imaginação: para os cinco sentidos, só existe o aqui e agora, o caso concreto, o dado imediato; para o pensamento, só existe o conceito, o geral, o esquema de esquemas, cada vez mais rarefeito e universal. Sem a mediação imaginativa, essas duas faculdades cognitivas estariam separadas por um abismo. O homem teria talvez sensações como um coelho; e talvez por dentro até pensasse alguma coisa, como um computador; mas não poderia pensar sobre o que sente de fa[c]to, isto é, raciocinar sobre a experiência vivida; nem poderia, de outro lado, orientar a experiência pelo raciocínio, buscando novos conhecimentos. Seria tão eficiente quanto um computador operado por um coelho, e tão vivo quanto um coelho desenhado na tela de um computador.»

Olavo de Carvalho («Aristóteles em Nova Perspectiva»).


«A imaginação é aquele factor de conhecimento, ou factor gnósico, a que mais devem os estudos humanísticos. Se a razão é, efectivamente, o que distingue e separa a humanidade da animalidade, a imaginação é o factor divinizante. A gnosiologia positivista reduziu o conhecimento a meras interpretações de sinais, tomando por tipo a percepção animal, mas a gnosiologia transcendente prova que a interpretação depende da relação de espírito a espírito.

Erram e enganam todos quantos confundem imaginação criadora com a fantasia delirante. A distinção dos dois fenómenos psíquicos, designados por fantasma e por imagem, era já conhecida pelos filósofos da Antiguidade, mas tornou-se clássica, isto é, elementarmente escolar, desde que Coleridge a expôs e defendeu na Biografia Literária (1817). Combatendo a gnosiologia cartesiana, que postula a separação abissal entre a matéria e o espírito, conseguiu o célebre poeta inglês redescobrir, ou descobrir, a doutrina esotérica de Aristóteles.»

Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).

 

«Uma lógica que fosse a repetição da gramática, como erradamente a supõem alguns em Álvaro Ribeiro dizendo que ele não fez mais do que pensar uma filosofia da linguagem, é logo superada pela proposição de que os tropos é que realizam a relação da língua com o pensamento. Assim explica que entre a língua e o pensamento não há uma relação unívoca mas de convergência e de divergência. Esta afirmação implica que há pensamento sem palavras, como se verifica entre os amantes. Também aqui o pensamento aparece como mediação. O amor entre o homem e a mulher não é só o amor entre dois corpos distintos, mas entre duas imaginações que podem atingir o êxtase.

O pensamento é do domínio angélico. O que é próprio do homem é a razão que movimenta as relações de convergência e de divergência com a língua por meio de silogismos em que o termo médio é um tropo. Pelo tropo, sobretudo pela metáfora, a razão compõe-se com a imaginação. A imaginação é, porém, do domínio da alma, porquanto é ela que faz a relação da sensação com a razão, que é o espírito do homem. Seria interessante verificar neste momento como, pela actividade da mediação, as tríades se encadeiam umas com as outras em escada, o que poderá fazer-nos julgar que haja em Álvaro Ribeiro uma adesão ao emanatismo, gnóstico ou neoplatónico.

O homem foi criado por Deus, mas a criação não cessou com a queda do homem na história, depois do pecado original. (...) O pecado original é um pecado de imaginação ou, se preferirdes por ser mais claro, um pecado de magia. Álvaro Ribeiro insurge-se contra as explicações do pecado original que nele vêem a relação carnal entre o homem e a mulher. Já Adão tinha conhecido Eva quando se deu o pecado de que temos notícia pelo Génesis.

Há uma degeneração na carne que serviu de carro ou de veículo ao amor de Adão por Eva quando ele a conheceu. Os cinco sentidos ou sensos, como prefere dizer Álvaro Ribeiro, puras irradiações do sentido interno, o sensorium communis dos escolásticos, pelo pecado original emergiram na carne e a imaginação passou a confundir-se com a sensação. Com efeito, sem a imaginação não seríamos capazes de reconhecer uma rosa. Sem a imaginação nunca a sensação seria percepção.

Deixemos, porém, este assunto que é o mais difícil e misterioso da obra de Álvaro Ribeiro, mas retenhamos a ideia de que o homem é uma tríade vivente composta de corpo, alma e espírito. A alma é mediadora entre o corpo e o espírito em analogia ou correspondência da imaginação entre a sensação e a razão.»

António Telmo («Teoria da Imaginação em Álvaro Ribeiro», in «Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa», Ciclo de Palestras).


«Se a imaginação e a sensação fossem realmente idênticas, seria a imaginação efectivamente possível em todos os seres vivos - tal parece não ser o caso: não se verifica existir imaginação alguma na formiga, na abelha ou na larva. Mais uma vez, são verdadeiras as sensações enquanto que, pelo contrário, falsa, a maior parte das imaginações. Nem tão pouco poderemos afirmar "eu imagino que isto seja um homem", funcionando os nossos sentidos com precisão acerca desse mesmo objecto, unicamente, então, poderemos dizer que o será quando não conseguirmos apreendê-lo distintamente. E assim, tal como dissemos anteriormente, até as visões podem aparecer ao homem quando tem os olhos fechados.»

Aristóteles («De Anima»).

 

«Uma das coisas mais difíceis para a mente moderna compreender sobre as condições do ambiente na Atlântida é que a própria natureza dos elementos e a forma como estes se combinavam era completamente diferente na altura. Podemos dizer de forma totalmente justificada que a água, nessa fase da evolução terrestre, era muito mais rarefeita do que a água de hoje, e o ar, da mesma forma, era muito mais denso.

Para a percepção sensorial contemporânea, a Atlântida surgira como se estivesse oculta por neblinas densas. No entanto, os atlantes não eram de forma alguma prejudicados por esta situação, porque não obtinham a sua experiência do mundo dos sentidos através de uma percepção sensorial directa. Viviam numa espécie de consciência visual nítida, em que imagens coloridas reflectiam com exactidão as realidades do mundo sensorial.

A distinção mais acentuada entre o homem contemporâneo e o atlante antigo tem a ver com as tremendas alterações, na evolução da consciência humana, que ocorreram desde essa altura.

O homem moderno é mais consciente quando está acordado no mundo dos sentidos, e vive uma total eliminação da autoconsciência durante o sono. Mas os atlantes viviam uma diminuição de consciência durante o dia, enquanto trabalhavam no mundo dos sentidos. À noite, viviam uma grande intensificação da consciência, na qual tinham uma visão consciente directa das hierarquias celestiais no Macrocosmo, com as quais tinham meios de comunicação mágicos.»

Trevor Ravenscroft («A Lança do Destino»).


«Os homens são incapazes de se aperceberem do que fazem, quando estão acordados, precisamente como esquecem o que fazem quando a dormir.»

Heraclito de Éfeso


«Admitindo sem discussão, e em conformidade com a opinião corrente nos meios de cultura greco-latina, que a noção de alma seja anterior e inferior à noção de consciência, para admitir também a hipótese de que nem todos os animais são conscientes, teremos de reconhecer na fala, e mais ainda na razão, a característica da consciência humana. Assim interpretamos, aliás, que na obra de Aristóteles a Psicologia prepare a Retórica e esta por sua vez o Organon. Efectivamente só a palavra nos adverte, e só o discurso nos assegura, de que somos consciências em convívio com outras consciências.

A autognose mais séria, obrigando-nos à intuspecção, logo nos propicia o conhecimento de uma dualidade no íntimo do nosso ser. A palavra consciência (latim conscientia, grego suneidesis) designa muito bem essa dialéctica, esse diálogo interior a que sempre estamos mais ou menos atentos, diálogo que nos momentos dramáticos de interesse moral nos obriga a apreciar o nosso passado e a projectar o nosso futuro. A fala da alma, o logos da psique, que é o verdadeiro e restrito objecto da psicologia, determina o lugar desta ciência no seu respectivo grupo científico, o qual, abrangendo a biotipologia, a fisiognomia e a caracterologia, adquire a designação geral de antropologia.»

Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).


O intelecto e a intelecção


Quanto àquela parte da alma, a qual lhe permite conhecer e pensar, seja ela separável de si mesma ou, ainda, não separável de si mesma segundo a sua extensão respectiva, podendo, aliás, sê-lo segundo a respectiva noção – é uma situação que é necessário examinar: ver qual será o carácter que a pode distinguir assim como precisar o próprio processo de intelecção. Se é a intelecção análoga à sensação, deverá ela constituir, nessa eventualidade, ou uma espécie de paixão sob o efeito da acção daquilo que é inteligível ou, então, ser qualquer outra coisa semelhante.

O princípio da intelecção deve, portanto, ser inalterável, tendo, por outro lado, a capacidade de receber a forma ou algo enquanto forma (por isso, não pode ser idêntico a esta mesma) e, além disso, deverá ele proceder em relação aos objectos inteligíveis do mesmo modo que assim procede a faculdade dos sentidos em relação aos objectos sensíveis.

Por conseguinte, será necessário que assim seja precisamente, em virtude de, em tudo aquilo que pensa, ser “sem mistura alguma” – segundo o diz realmente Anaxágoras – a fim de poder “dominar”, isto é: para poder conhecer. É que, se porventura manifesta ele a sua forma que lhe é própria perante uma que lhe é estranha, apresentará consequentemente em relação a esta última um obstáculo que se interpõe no meio; do mesmo modo, também não evitará ele a natureza propriamente dita para além do ser em potência.

Por conseguinte, aquilo que é denominado “intelecto da alma” (digo “intelecto” quando me refiro àquilo pelo qual a alma pensa discursivamente e pode conceber) não poderá, nos seres, ser outra coisa senão em acto antes de pensar. Eis, pois, a razão por que já não é possível afirmar-se que um princípio se encontra como que “mesclado” com o corpo: apresentaria, neste caso, uma tal qualidade, como, por exemplo, o quente ou o frio, ou, então, seria munido de um orgão, tal como sucede com a faculdade sensitiva – mas, pelo contrário, isso não se verifica. Além disso, existe alguma razão em se afirmar que a alma é o domicílio das formas, conquanto se ressalve não ser toda a alma mas apenas a alma intelectiva e, ainda, não serem as ditas formas em enteléquia mas, antes, em potência.




Que a impassibilidade da faculdade sensitiva e a inalterabilidade da faculdade intelectiva não possam ser da mesma natureza, tal constitui um facto evidente, em relação a isso também assim se considerando os orgãos corporais e o sentido propriamente ditos.

A sensação não é por si só capaz de captar coisa alguma depois de um estímulo muito forte dos sentidos: não somos nós capazes de, por exemplo, nos aperceber de quaisquer sons depois de um som intenso, o mesmo se verificando com os odores ou as cores muito fortes – não nos é possível sentir ou ver. O intelecto, pelo contrário, sempre que pensa um objecto claramente inteligível, não será totalmente incapaz de conhecer os objectos inteligíveis inferiores – torna-se, sobretudo, ainda maior a sua capacidade de o fazer. Com efeito, a faculdade sensitiva não é independente de um orgão sensorial, o intelecto pode, no entanto, sê-lo plenamente. Assim sendo, no momento em que este se torna em cada um dos seus objectos, naquele sentido preciso de disso ter o completo conhecimento, sendo aquele enquanto acto (que é, afinal, aquilo que acontece sempre que transitamos para os actos propriamente ditos), permanecerá ele, então, em potência, todavia, de uma maneira diferente daquela que se verificava antes de ter intuído ou ido ao encontro do objecto, podendo, por isso, dizer-se que lhe é possível pensar em si próprio.

Sabemos nós que uma coisa é a grandeza e outra, a essência formal da grandeza; a mesma observação vale para a água e a essência formal da água e para muitos outros casos, embora não todos, porquanto em certos casos se verifica uma identidade. Sendo assim, segue-se o facto de se julgar acerca da essência formal da carne, ou da própria carne em si, recorrendo-se às diferentes faculdades ou, então, a uma só faculdade de diferentes modos. A carne realmente não existe separada da matéria, implicando, porém, à maneira de um simulacro, uma forma definida numa matéria definida. Mais uma vez, é através da faculdade sensitiva que nos é possível julgar acerca do frio e do quente, assim como acerca de todas aquelas qualidades cuja proporção devida forma a própria carne. Contudo, é por intermédio de um sentido diferente (ou, então, razoavelmente distinto, ou ainda a ele relativo, naquela mesma maneira em que uma linha curva o é em relação a si mesma quando, depois de ter sido endireitada, se torna, ela própria, numa linha recta) que podemos julgar a essência da carne. Além disso, entre os objectos abstractos, a noção de “recta” implica a noção de “chato” – isto é: “plano” – porquanto se encontra sempre combinada com a extensão; sendo, todavia, a sua essência, quer “recta” quer o “facto de ser recta” não tenham obviamente que ser a mesma coisa, algo de diferente – chamemos-lhe, nesse caso, dualidade. Por conseguinte, será devido a uma diferente faculdade, ou, então, à mesma, ela própria, embora de modo diferente, que nos é possível julgar. De uma maneira geral, assim como as coisas são separáveis da matéria, assim também o será tudo aquilo que ao intelecto diz respeito.




Poderá, então, levantar-se a seguinte questão: se o intelecto é simples e inalterável, nada havendo que se lhe assemelhe absolutamente, como afirma, aliás, Anaxágoras, como poderá ele assim pensar, se pensar é uma forma de sofrer uma alteração? É que é efectivamente enquanto elemento de dois termos em simultâneo que ele age, por um lado, e sofre, por outro. Além disso, um segundo problema consiste na circunstância de o próprio intelecto poder possivelmente constituir o próprio objecto do pensamento. Na eventualidade de assim ser, ou o intelecto se encontra presente em todos os outros objectos (caso o intelecto e o objecto de pensamento o sejam em si, não em virtude de qualquer outra coisa, e, ainda, na hipótese de ser aquilo que é pensado sempre idêntico quanto à forma); ou, então, possuirá em si algum elemento comum que o há-de tornar objecto do pensamento, tal como sucede com todas as outras coisas; ou, ainda, temos de nos socorrer, por outro lado da explicação anteriormente referida “sofrendo uma alteração em virtude de um elemento comum”. O intelecto é, por conseguinte, potencialmente idêntico aos objectos do pensamento, nada podendo ser, porém, até àquele momento em que pensa. Aquilo que o intelecto pensa deve nele encontrar-se incluído, tal como as cartas contidas numa tabuinha: nelas coisa alguma pode encontrar-se inscrita enquanto enteléquia; ora, é precisamente isto aquilo que sucede com o intelecto. Além disso, é ele inteligível em si próprio, assim como todos os outros objectos do pensamento. No que diz respeito às coisas desprovidas de matéria, aquilo que pensa e aquilo que é pensado são o mesmo absolutamente, sendo o conhecimento teorético o mesmo que o seu objecto. (Em relação ao facto de não ser sempre possível pensar-se, convirá examinar a razão por que assim acontece). Naquelas coisas providas de matéria, cada um dos objectos do pensamento só poderá estar presente em potência. Assim sendo, enquanto os objectos materiais não podem em si mesmos incluir o próprio intelecto (porquanto é fora da matéria que o intelecto lhes é potencialmente idêntico), o intelecto, ainda assim, manterá a capacidade de poder ele próprio ser pensado.

(In Aristóteles, Da Alma (De Anima), Edições 70, pp. 100-104).