Escrito por Roger Scruton
«A palavra divina, ou teologia, foi estudada pelos filósofos orientais; mas os filósofos mediterrâneos, que mais racionalistas se mostraram reduzindo todos os princípios da razão aos princípios da dialéctica, não deixaram de falar e escrever em relação às tradições teológicas. O princípio escolástico, tal como Santo Anselmo o concebeu na relação convergente do Proslogium com o Monologium, não é um processo de reacção obscurantista contra o iluminismo da razão, mas, pelo contrário, um princípio libertador da inteligência humana. Não tem, consequentemente, significação pejorativa ou depreciativa, mas, pelo contrário, significação muito honrosa, o falar-se do escolasticismo de qualquer pensador.»
Álvaro
Ribeiro («A Arte de Filosofar»).
«Decisivo será saber quais as razões da específica forma que, sob vários matizes, assume a filosofia em Portugal, com suas profundas implicações estéticas e religiosas, sua exclusão tão peculiarmente marcada das exigências cientistas ou positivistas. Por isso bem parece urgente determinar as profundas e não extrínsecas ou convencionais razões por que a filosofia portuguesa se emancipa mais tardia e lentamente da teologia e da dogmática, determinar por que motivo os nossos pensadores ou se detêm subitamente a meio de uma promissora carreira especulativa, ou regressam às mesmas formas de ortodoxia das quais o pensamento se libertara.
Torna-se cada vez mais urgente averiguar se foi, como em geral se julga, por insuficiência, receio ou crédula obstinação que os nossos pensadores, como os da vizinha Espanha, se mantiveram perplexos e até renitentes perante os caminhos da filosofia moderna, ou se, pelo contrário, se aperceberam da unilateralidade, hoje patente, em que na linha cartesiana ou baconiana a filosofia europeia se começara desenvolvendo. Notamos, por um lado, que a história não está por inteiro contada, propendemos, por outro lado, a admitir, e cada vez com mais implacável firmeza, que se a causa da verdadeira filosofia não foi assegurada por uma escolástica de inspiração divina e teológica, ela não é também assegurada pela nova escolástica de inspiração humanística e científica.
A causa da filosofia não é a daquele céu, mas não é também a desta terra. Importa primordialmente aprendê-lo. A partir disso será compreendida e valorizada a filosofia que temos e tivemos».
José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).
«Afirmara-se já na Idade Média uma tendência, proveniente de Guilherme de Occam e dos físicos parisienses que o seguiam, para reduzir ao mínimo as noções explicativas da física. Todas as forças, virtudes e qualidades, de que falavam os tratados redigidos em termos escolásticos, passaram a ser suspeitas de existir apenas em palavras indignas do novo vocabulário científico. A ciência livresca, que consta de letras, de palavras e de frases, teria de ser substituída por uma ciência nova a reconstituir platonicamente com números primos, figuras geométricas e sólidos perfeitos, aos quais a inteligência, liberta da imaginação e da sensibilidade, subordinaria as aparências, os fenómenos e os comportamentos dos corpos observáveis e observados.»
Álvaro
Ribeiro («Apologia e Filosofia»).
«O Céu dos modernos é um delírio para as asas dos aviões planetários e, porventura, ultraplanetários; o Céu de Platão era o mundo real das ideias, pátria das almas, em desterro no mundo da geração, corrupção e morte.»
Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem
de Sempre»).
«Os principais sistemas filosóficos que dominaram na Idade Média satisfaziam o pensamento progressista ou o pensamento revolucionário dos homens mais cultos. Para uns, efectivamente, a ciência tinha diante de si pleno caminho que lhe permitia realizar um progresso indefinido ou atingir gradualmente a perfeição do saber; para outros, a ciência não progredia, efectuava revolução em torno de verdades eternas, competindo ao magistério adaptá-las às variantes das gerações humanas. Estas duas formas de ordem, a que a ciência estava submetida, – a ordem progressiva, imitando os movimentos nas superfícies dos corpos terrestres e a ordem revolucionária imitando os movimentos dos corpos celestes, – pressupunham, porém, a fixidez do método se não do sistema.
Estes dois modos de conceber o movimento científico não satisfaziam já aos pensadores do fim da Idade Média. Os cientistas da Idade Moderna, conscientes destas dificuldades, não fizeram mais do que combinar os dois tipos de movimento mecânico, não imaginaram nem inteligiram o movimento natural. Só nos séculos XVIII e XIX, com a atenção directa aos fenómenos da Natureza, se restabeleceram noções equivalentes à esquecida doutrina aristotélica da relação da potência com o acto.»
Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).
«Aquela filosofia que hoje se ensina nas escolas com a designação de "filosofia moderna", caracteriza-a Hegel por "abandonar totalmente o domínio da teologia filosofante" e constituir "o ponto de partida daquilo que os franceses chamam as ciências exactas". O que lhe é essencial, o primado da vontade, recebe-o todavia a filosofia moderna da teologia escolástica. Por isso dizemos que só aparentemente ela representa uma ruptura com a teologia, filosofante ou não, e antes a prolonga dando-lhe, precisamente no abandono da expressão teológica e na construção das ciências exactas, as condições para um triunfo que, há quatro séculos indiscutido, hoje podemos ver ter sido, e estar sendo, ilusório.
Tal como é entendida escolarmente, a filosofia moderna teve o seu primeiro pensador em Descartes e o último em Hegel. "Herói do pensamento" - chama Hegel a Descartes; e acrescenta: "Jamais se poderá insistir bastante nem com suficiente amplitude expor a acção exercida por este homem sobre o seu tempo e sobre o desenvolvimento da filosofia em geral"; "com ele, podemos enfim sentirmo-nos em casa, como o mareante que grita depois de uma longa e temorosa viagem por turbulentos mares: Terra!"
Num trecho do seu Discurso do Método, enuncia Descartes aquilo a que deve dedicar-se a filosofia:
"... em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, pode encontrar-se uma outra, prática, que, conhecendo o poder e as acções do fogo, da água, do ar, dos céus e de todos os corpos que nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres dos nossos artesãos, de igual modo os poderíamos utilizar em tudo aquilo para que servem, tornando-nos assim como que donos e senhores da natureza".
Tão significativo texto, o mais significativo quanto aos propósitos da filosofia moderna, abre com o repúdio dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, e certo tom desdenhoso da expressão pressupõe que já então ela se podia dar por repudiada. Essa filosofia é a escolástica, de que será portanto o contrário essa outra, prática, que Descartes preconiza. Na clara segurança do texto não aflora a mínima suspeita de que a filosofia prática venha, não substituir, mas prolongar a especulativa ou escolástica. Assim se forma a imagem de ruptura que, da sua época e do seu pensamento, Descartes transmite: aí, o futuro se dissocia e libertará do passado. Não se trata de uma mesma filosofia que terá tido a primeira fase na escolástica e a segunda, dela complementar, no pensamento chamado moderno. Aquele todo que, fundado no primado da vontade, nós vimos ter reunido a patrística agostiniana, a escolástica medieval e o pensamento científico e ao qual se adunava a designação de filosofia moderna ou até, numa sugestão de mais verídico rigor, a de filosofia nórdica, aqui surge decididamente negado. Uma ruptura se declara.
Quem parece ter seguramente sabido que de ruptura se não tratava, terão sido os pensadores meridionais: os ibéricos da neo-escolástica, os aristotélicos conimbricenses, Pedro da Fonseca. Também Pedro da Fonseca enaltece o princípio da liberdade e faz ceder o teocentrismo escolástico perante o antropocentrismo renascentista; mas ainda polemiza contra o nominalismo e o escotismo e, sobretudo, acentua o carácter transcendente da criação. Assim participa, por um lado, na nova fase humanista da filosofia moderna enquanto, por outro lado, procura preservar a possibilidade de conciliação com a filosofia antiga, possibilidade comprometida no escotismo e, em especial, na evanescência do que há de essencial e perene, se não eterno, na natureza quando reduzida, mediante a ideia de criação sem garantia transcendente, a formas de existência efémeras e acidentais. Ora a neo-escolástica de Pedro da Fonseca é que é, propriamente, essa filosofia especulativa que se ensina nas escolas [Desde o século XIII até ao século XVI, o livro de ensino da lógica, ou arte de pensar, utilizado na generalidade das escolas da Europa foram as Sumas de Pedro Hispano, só substituídas, a partir do século XVI, pelas Institutiones Dialecticae, de Pedro da Fonseca, que, no tempo de Kant, ainda era o livro seguido no ensino da filosofia]».
Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).
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«Ao princípio de substância substituiu a ciência moderna os princípios de conservação: conservação do movimento com Descartes, conservação da força viva com Leibniz, conservação da energia com Helmholtz. Resultaram estes princípios de um esforço para reduzir todos os fenómenos à identidade e da identidade à unidade, mas tal esforço foi em vão. A diversidade é necessária, reaparece no seu momento próprio com a designação antiga de causas ocultas, ou com outras designações que ocultam novos conceitos, pelo que se infere que a ciência humana tem de apoiar-se numa classificação real e realista para resistir aos absurdos da abusiva formalização.»
Álvaro
Ribeiro («Apologia e Filosofia»).
«À inversão da nomenclatura na filosofia moderna corresponde uma mudança radical na tonalidade e no sentido da vida. Assim o que hoje se chama idealismo parece corresponder ao que na Idade Média se chamava realismo.
Os realistas eram os que admitiam a existência dos universais, seja, a realidade da ideia. Os platónicos eram realistas, os platónicos são para o pensamento moderno idealistas. O que significava esta inversão?
Uma mudança do sentido da vida, a transposição da acentuação afectiva: do espírito para os sentidos, da contemplação para a acção e para acção no plano das realidades materiais.
A matéria, o plano físico, as descobertas, o comércio e mais tarde a indústria impuseram-se à atenção e fixaram o interesse humano no plano da sua realidade: eis o real. O ideal será o futuro, a aspiração no mesmo plano, o desejo de novas e melhores conquistas ou será o lugar de imaginação e desejo onde as aspirações superiores recalcadas projectem a sua ansiedade de viver. O messianismo temporal duma civilização perfeita ou a névoa duma esperança e a propulsão duma potência de ser anónima e panteísta passando no homem a soerguê-lo e a realizar-se.
O idealismo moderno é um humanismo de suficiência ou dispersão, em que o homem é o criador ou o ponto de passagem de forças impessoais que, atravessando-o e subindo-o por agora, acabarão por o dissolver na vastidão do seu inconsciente anonimato.
O idealismo posterior ao cristianismo é uma regressão e deliquescência, como veremos, enquanto que o idealismo realista anterior é um esforço do homem integral para encontrar o equilíbrio da sua personalidade em apoio na realidade do Espírito.
Por isso lhe chamaremos simplesmente idealismo, guardando os nomes de panteísmo e voluntarismo para as formas modernas e contemporâneas dos chamados idealismos.»
Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).
«O anti-teologismo da Idade Moderna foi completado com o anti-metafisicismo da Crítica da Razão Pura. A actualidade dessa obra demonstra-se nos sistemas nossos contemporâneos que, directa ou indirectamente, aceitam a gnosiologia de Kant. No mundo de línguas românicas o descrédito da teologia e da metafísica deve-se, porém, e principalmente, à vulgarização da obra de Augusto Comte.»
Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).
«A filosofia é essencialmente a metafísica: esta é a sua alma.
(...)
a metafísica é, antes de mais, uma ontologia do espírito.
Que terá dado o cristianismo a esta
metafísica?
Por
si e directamente, a sua própria metafísica, a Pessoa divina a preencher o
vazio requerido em termos de Ideal pelas exigências insofismáveis do pensamento
e do amor humano.
Mas teria
então acabado a metafísica, visto que onde se sabe não é preciso procurar? Não;
a pesquisa filosófica, para os cristãos, como para os gregos, é a maior nobreza
do homem e a marca evidente do seu alto destino. Somente cristãos procuram no
mistério, sabendo que ele, sendo inesgotável pelo pensamento humano, lhe não é
vedado por nenhuma incapacidade radical, por nenhum forçoso e forçado
agnosticismo.
Mais:
o cristão procura na penumbra, mergulha num oceano insondável, mas sabe que não
há trevas indefectíveis e tem ainda a certeza de que entre a sua alma purificada,
entre o seu espírito e Deus, existe uma profunda ligação, uma integral
dependência, um como contacto na penumbra, um conhecimento de conaturalidade.
Não que a filosofia e a revelação se misturem, mas sim que o cristão procure, na certeza e na alegria de Fé, até onde pode ir o seu conhecimento natural da vida, do espírito e das relações do espírito com Deus.»
Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).
«A filosofia portuguesa decaiu profundamente ao afastar-se da escolástica e do aristotelismo, tradicionais no país. O Marquês de Pombal, procedendo como quem sabe o que não quer enquanto ignora o que quer, considerava Aristóteles como um filósofo abominável, indigno de ser mencionado nos compêndios escolares, e até mandou cancelar, censurar ou suprimir as referências que eram feitas ao Estagirita na tradução portuguesa do tratado de lógica de António Genovesi. Não prescreveu, porém, qual o sistema filosófico que deveria ser adoptado no ensino universitário, porque o espírito do reformador estava apenas preocupado com o ensino politécnico, quer dizer, da ciência e da tecnologia, enfim, da habilitação sindical.
A decadência dos estudos filosóficos no período do liberalismo religioso, político e económico que sucedeu ao "reinado" do Marquês de Pombal, explica perfeitamente que os estudiosos mais sérios vissem no sistema de Augusto Comte um plano aceitável para a reforma da educação portuguesa. A tal apostolado se dedicou Teófilo Braga, que tendo sido primeiramente atraído por Hegel e Vico, assimilou, ensinou e divulgou o sistema positivista, logo que para tal obteve cadeira no Curso Superior de Letras de Lisboa (1872). Entendia o ilustre professor que a reforma filosófica deve preceder a reforma política, já que tal era a motivação do Partido Republicano Português, mas os revolucionários impacientes e apressados desrespeitaram a ordem normal, impuseram ao País instituições determinadas pela fraseologia mitológica e metafísica, e precipitaram os acontecimentos para o abismo retrógrado que tem sido julgado pelos historiadores esclarecidos.
A filosofia portuguesa, disciplinada durante quatro séculos pelos textos de Aristóteles, traduzidos em latim segundo os comentários de Santo Tomás, não poderia crescer, florescer e frutificar perante a literatura romântica e realista do liberalismo religioso, político e económico. A Universidade não aceitou a lição de Jorge Hegel ou de Augusto Comte, dois escolásticos, na construção da enciclopédia das ciências filosóficas. O século XIX foi, por isso, um século de decadência nos estudos liceais e universitários, e caracterizado por reduzida produção de escritos originais de estudos especulativos.»
Álvaro
Ribeiro («Memórias de Um Letrado» II).
«...Idade Média quer dizer escolástica, e escolástica significa verdade, eterna filosofia, delimitação rigorosa de um domínio dentro do qual tudo é verdade, fora do qual tudo é erro. Nestas condições, os grandes sistemas escolásticos serão expostos de modo tal que pareçam conter a solução antecipada de todos os problemas filosóficos e a refutação de todos os erros. Assim nos surgem essas exposições da doutrina tomista onde vemos um S. Tomás refutar antes de tempo os erros de Locke, Kant, Spencer e Bergson».
Étienne Gilson («La Philosophie au Moyen
Age»).
«A lógica aristotélica daria expressão, comunicação e demonstração a três tradições religiosas que conviria unificar. Antes do aristotelismo de Santo Alberto Magno já a Escolástica estava habilitada a resolver o problema da solidariedade da teologia cristã com a filologia latina e com a filosofia grega, num corpo doutrinal capaz de flutuar sobre as correntes que dissolvem as relações da razão com a fé. Efectivamente a fé define-se, nos dizeres de S. Paulo, como a relação do visível com o invisível. Esta relação só é apreensível por símbolos, mas como o símbolo se presta a uma pluralidade de interpretações que faculta o trânsito da heterodoxia para a heresia, tiveram os Santos Padres e os concílios o cuidado de procurar fórmulas inequívocas, para o que recorreram aos termos da filosofia grega e da eloquência romana. Os doutores escolásticos não só continuaram a missão dos concílios, que na definição da fé procede da flutuação simbólica para a fixação dogmática, mas quiseram também fazer a dedução cronológica dos dogmas, que não é arbitrária ou artificial porque deve reflectir o plano divino segundo as sistematizações teológicas, ou sumas. Os séculos XII e XIII são os séculos das sumas, entre as quais se distinguem as de Hugo de S. Vítor, a de Pedro Lombardo, a de Alexandre de Halles e a de S. Tomás. Ora os autores dessas sumas quiseram também fixar a argumentação probante de cada um desses dogmas. O ideal seria de com tais encadeamentos de raciocínios querer forçar a convicção dos leigos, dos gentios e dos infiéis.
Explica-se assim a formação do racionalismo medieval, precursor do racionalismo moderno. A partir dele vai sendo cada vez mais condicionada, e depois restringida, a liberdade de interpretar os símbolos, os mistérios e os sacramentos, agora definidos numa rigorosa sequência de palavras, em fórmulas que se denominam dogmas. Maior liberdade é concedida às artes plásticas que exprimem pensamentos vedados às artes da palavra. Estas ficam perfeitamente limitadas nos colégios, nos mosteiros e nas Universidades. Além da rigorosa disciplina do trívio, a constituição das Universidades consolida o predomínio da filosofia grega e do direito romano, doutrinas estas que hão-de estruturar a própria Igreja Católica. Depois de fortes lutas contra a teologia, que ainda defende a fé em termos de S. Paulo, e que ainda defende a tradição, a revelação e o sobrenatural, procuram os escolastas tornar independentes a filosofia jurídica e a filosofia natural, segundo um racionalismo que constituirá sem dificuldade o direito, a sociologia e a tecnologia.
(...) A formação medieval do racionalismo moderno nem sempre aparece claramente descrita pelos historiadores da filosofia. Ela está, porém, patente na obra de Étienne Gilson, que considera a libertação da razão humana e a consequente laicização da sociedade concluídas no século XIII. No dizer do ilustre escritor, seria S. Tomás de Aquino o primeiro dos filósofos modernos e Renato Descartes o último dos filósofos escolásticos. Esta afirmação, que a uns parecerá paradoxal e a outros surpreendente, merece ser meditada por quantos julgam que a história do pensamento europeu deve ser estudada a partir da história da filosofia grega. Depois da expulsão da Companhia de Jesus, um tipo de escolástica não-aristotélica foi precariamente esboçado pelas ordens religiosas de tradição medievalista ou moderna. Com o advento do liberalismo tudo se modificou, a ponto de a Escolástica ser considerada anacrónica sobrevivência de tenebrosa história política e eclesiástica.»
Álvaro
Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).
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«Como assinalou Mário Ferreira dos Santos, muitas das pretensas inovações introduzidas pela moderna escola analítica já estavam formuladas com séculos de antecedência – e algumas delas impugnadas – nas obras de Duns Scot, de Guilherme de Ockam, de Pedro Abelardo e sobretudo dos grandes escolásticos espanhóis e portugueses da Renascença, que Leibniz (ele próprio um inovador lógico) tanto admirava.»
Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).
«Tardiamente se afirmou entre nós a nítida separação entre a razão e a fé, na transição do ensino franciscano para a adopção da síntese albertino-tomista. Os próprios dominicanos estão longe de admitir um racionalismo tal como se formulou na Companhia de Jesus. O racionalismo medieval, ensinado nas universidades europeias pelos compêndios dos escolásticos portugueses, aperfeiçoa-se no racionalismo moderno, principalmente depois da difusão da obra de Descartes.
Interpretamos toda a filosofia moderna como a demonstração de que o racionalismo medieval é insuficiente para elaborar um sistema filosófico. Kant, que estudou o ideal de razão pura nas obras dos Conimbricenses, completou essa demonstração. A não ser que se renuncie a filosofar, conforme propõe e impõe o positivismo, há que admitir verdades enunciadas em proposições de origem tradicional, revelada e sobrenatural, porque só elas tornam inteligível tudo o mais, só elas pacificam a ansiedade humana.»
Álvaro
Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).
«Reporto-me aqui às breves explicações orais que dei sobre o “argumento de Sto. Anselmo”. Esse argumento é apresentado originariamente sob a forma de uma prece. Como ninguém em seu perfeito juízo – muito menos um monge experiente – pode orar a um Deus duvidoso, está claro que o argumento não é oferecido como resposta à dúvida quanto à existência ou inexistência de Deus, mas como um aprofundamento intelectual da experiência da prece. O esquema lógico do argumento, no entanto, pode ser abstraído – separado imaginariamente – do seu contexto originário e ser discutido “em si mesmo”. Mas aí ele já não será o argumento de Sto. Anselmo e sim uma cópia esquemática esvaziada de seu conteúdo experiencial, apta a ser reproduzida sob uma infinidade de formulações verbais diferentes e até mesmo codificada em símbolos matemáticos para fins de análise computadorizada. E então os debates quanto à sua validade ou invalidade lógica poderão prosseguir indefinidamente, animando os serões dos amadores de argumentos, enriquecendo o mercado editorial e alimentando carreiras universitárias, sem que isso aumente em um grama sequer a compreensão do pensamento de Sto. Anselmo ou, mais ainda, da técnica anselmiana da conversão de uma prática devocional em experiência intelectual – técnica sem a qual nada se pode entender não apenas da filosofia do próprio Anselmo, mas de toda a tradição escolástica que se lhe seguiu.»
Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).
A modernidade antecipada pelo racionalismo medievo
A
tradição que fez de Descartes o fundador da filosofia moderna não nos deve
fazer erigir uma barreira intransponível entre o pensamento do século XVII e
tudo o que o precedeu e tornou possível. O método da filosofia mudou
radicalmente em resultado dos argumentos de Descartes. Apesar disso, muito do
conteúdo da disciplina não se alterou. Não devemos, pois, ficar surpreendidos
se alguém nos mostrar que uma ideia filosófica da modernidade foi já antecipada
por pensadores da Idade Média, nas numerosas tentativas destes pensadores, quer
para reconciliar religião e filosofia, quer para as dividir.
O espírito de Platão e o do seu aluno e
crítico Aristóteles têm pairado sobre a filosofia ao longo da sua história, e é
nestes autores que em última análise podemos encontrar as raízes de quase todas
as controvérsias filosóficas medievais. Cada um deles legou ao mundo argumentos
e concepções de poder intelectual e dramático superlativo, e não é, portanto,
surpresa que a sua influência se tenha sentido em toda a parte onde foram
lidos. Todas as religiões mediterrânicas importantes – judaísmo, cristianismo e
islão – procuram assimilar as suas doutrinas ou apresentar uma alternativa que
fosse igualmente persuasiva e igualmente compatível com o nosso sentido intuitivo
da natureza do mundo e do nosso lugar nele.
De Platão e da tradição neoplatónica, os
homens medievais herdaram uma cosmologia que justificava a crença numa
realidade supra-sensível e que, ao mesmo tempo, apresentava uma imagem elevada
da nossa aptidão para aceder a esta última. Platão argumentou que a verdade do
mundo não se revela à percepção sensível, mas somente à razão; que as verdades
da razão são necessárias, eternas e (como hoje diríamos) a priori; que através do cultivo da razão, o homem pode vir a
conhecer-se a si próprio, a Deus e ao mundo, e aquilo que estas coisas são em
si mesmas, libertas das nuvens sombrias da experiência. Os neoplatónicos
desenvolveram a cosmologia do Timeu de modo a torná-la uma teoria da criação na
qual o mundo inteiro emana da luz intelectual da autocontemplação de Deus. A
razão, sendo a parte do homem que participa da luz intelectual, conhece as
coisas não como elas parecem ser, mas como elas são. Esta teoria – inicialmente
uma teoria metafísica – parecia implicar uma «filosofia natural» (uma
filosofia natural que contém elementos platónicos, quer aristotélicos. De
acordo com esta filosofia natural, a terra e as coisas terrenas residem no
centro de esferas concêntricas, cada uma delas representando sucessivas ordens
de intelecção, e todas subordinadas à última esfera, a esfera da imutabilidade,
onde Deus reside na companhia dos abençoados. A razão é a aspiração a esta
última esfera e a mortalidade do homem é a oportunidade para ascender a ela. Esta
ascensão depende de se abandonarem as preocupações com as coisas efémeras e
sensíveis, por forma a contemplar-se a verdade eterna. Esta «filosofia
natural», exposta de modo persuasivo por Boécio (c. 480-424 d. C.) na sua Consolação da Filosofia (uma das obras
mais populares de filosofia jamais escritas), influenciou o predecessor deste,
Santo Agostinho (354-430 d. C.) – que, não obstante, reteve uma postura céptica
face a muitos aspectos da metafísica de Platão –, e reaparece depois, numa ou
noutra variante, descrita, defendida e celebrada em incontáveis obras
literárias medievais e do início da Renascença, quer em poemas populares, quer
em obras-primas como O Conto do Cavaleiro
de Chaucer, A Divina Comédia de Dante e a Faerie Queene de Spenser.
Dante Alighieri |
A visão consoladora da física
neoplatónica não era, no entanto, acompanhada por nenhum remédio contra a
incerteza metafísica. Uma mente inquisitiva podia descobrir dificuldades
insuperáveis em todos os pontos do sistema neoplatónico. Por exemplo, o que é
esta «razão» da qual o nosso conhecimento da verdade última depende, e quais
são as leis subjacentes ao seu modo de operar? Em que sentido gera ela uma
compreensão eterna e não apenas transitória, e como aprendemos a distinguir uma
da outra? Qual é a natureza de Deus, e como sabemos que ele existe? Quais as
leis que governam o movimento e a geração das coisas sublunares, e como é a
hipótese platónica – de que a estada do homem entre as coisas sublunares é
temporária e que o propósito do seu ser reside noutro lugar – compatível com a
sujeição do homem a essas leis? Em todos os seus aspectos, a cosmologia
neoplatónica levanta problemas filosóficos. Estes problemas não parecem
susceptíveis de solução científica. Pelo contrário, eles derivam precisamente
da ideia de que a percepção sensória, que é o principal veículo do pensamento
científico, nos leva não à verdade mas à ilusão sistemática (apesar de ser,
por vezes, persuasiva).
À medida que as teorias de Aristóteles
começaram a tornar-se conhecidas entre os pensadores europeus – filtradas pelos
escritos dos filósofos e teólogos árabes que, por assim dizer, delas se
apropriaram por direito de conquista –, foram avidamente estudadas como fonte
de novas respostas para estas perplexidades metafísicas. Alguns dos argumentos
aristotélicos eram conhecidos dos primeiros cristãos. Em particular, estes
argumentos tinham sido usados para formular filosoficamente a doutrina da
Trindade. Foi graças aos filósofos de Alexandria – sobretudo Clemente (c.
150-215) e Orígenes (c. 185-254), que tinham ambos notado as inadequações
inerentes ao neoplatonismo da sua época – que todos os recursos da filosofia
grega foram usados na tentativa de se conseguir uma exposição coerente do dogma
cristão. E com a vitória sobre o arianismo, e a consequente aceitação da
doutrina da Trindade, um dos mais importantes conceitos aristotélicos, o
conceito de substância, ocupou um lugar central na formulação do credo da
Igreja cristã. Assim, na altura em que o Concílio de Niceia (325) declarou o
Filho como consubstancial ao Pai, a dependência da teologia relativamente à
metafísica aristotélica tornou-se um facto. Boécio, no seu escrito sobre a
Trindade e nas suas traduções de Aristóteles que sobreviveram, muito fez para
fortalecer esta dependência. Mas foi só mais tarde, no fim da «Idade das
Trevas», que o conteúdo da metafísica aristotélica começou a entrar plenamente nas especulações filosóficas pelas quais a cosmovisão cristã procurava
encontrar-se a si mesma; e por essa altura as teorias aristotélicas já haviam
sido sistematizadas e adaptadas por pensadores como Al-Farabi (875-950),
Avicena (890-1037) e Averróis (c. 1125-c.1189), todos eles muçulmanos, e Moisés
Maimónides (1135-1204), um judeu versado nas especulações filosóficas usadas na
altura para defender o Alcorão. A doutrina aristotélica entrou, portanto, na
arena da teologia trazendo já a marca de um monoteísmo que a tinha achado
congenial.
A conversão final dos teólogos cristãos
à maneira de pensar aristotélica ocorreu durante os séculos XI e XII, e levou,
com a criação de universidades em centros tão importantes como Paris e Pádua,
ao surgimento da corrente filosófica que ficou conhecida por «Escolástica». A
grande luminária desse movimento foi São Tomás de Aquino (1225-1274), cuja Suma Teológica se propunha fornecer uma
descrição completa da relação entre homem e Deus apoiando-se apenas no
raciocínio filosófico e pondo de parte asserções místicas ou a fé. O seu mestre
era em todos os aspectos Aristóteles, e a síntese subsequente da doutrina
cristã com a metafísica aristotélica – conhecida, devido ao seu criador, por
tomismo – permaneceu até hoje como a mais persuasiva das fundamentações da
teologia cristã.
Para perceber os desenvolvimentos subsequentes da história da filosofia, é preciso ter alguma ideia das concepções, disputas e teorias que emergiram da tentativa de ajustar as doutrinas neoplatónica e aristotélica ao quadro de uma religião monoteísta, e, no processo, de reconciliar a ciência e a moralidade clássicas com os dogmas da fé. Contrariamente ao que vieram a pensar os seus sucessores, os filósofos medievais não eram meros escravos da autoridade, nem desistiam facilmente de especulações que os pusessem em conflito com a Igreja ou com o Estado.
O conceito de substância
A lógica aristotélica, exposta nos
trabalhos conhecidos como Organon, foi preservada em parte por Boécio, sendo
mais tarde transmitida na totalidade pelos eruditos do islão. Qualquer
proposição, pensava-se, tem de ter pelo menos duas partes, e, em
correspondência com essas duas partes, a própria realidade deve dividir-se em
substâncias e atributos, sendo estes últimos «predicados das», ou «inerentes
às», primeiras. A distinção tem a sua origem na lógica e na tentativa
aristotélica de classificar todos os «silogismos» válidos dentro de um único
esquema. Mas essa tentativa acarretava óbvias consequências metafísicas. Se as
substâncias podiam mudar em termos de atributos, elas tinham de permanecer ao
longo dessas mudanças. Além disso, se nos podemos referir a substâncias é
porque podemos separá-las, pelo menos em pensamento, dos atributos a que podem
estar num dado momento associadas. Assim, devemos distinguir a «essência» de
uma substância – aquilo sem o qual esta não poderia ser a coisa particular que
é – dos seus «acidentes», as propriedades que nela podem mudar sem que ela
deixe de ser aquilo que é. Finalmente, são as substâncias, na perspectiva de
Aristóteles, os constituintes últimos da realidade, e o nosso conhecimento do
mundo consiste em tentar classificá-las em géneros e espécies.
Um dos problemas que os medievais legaram aos seus sucessores do século XVII foi o de saber se, ou em que medida, faz sentido dizer que uma substância cessa de existir ou que uma substância foi criada. Percebemos que existe uma tendência na metafísica aristotélica para olhar toda a mudança como uma mudança nos atributos de uma substância. Para muitos filósofos influenciados por Aristóteles, estas «mudanças na existência» não têm explicação. Filósofos posteriores foram mais longe, argumentando que uma substância contém dentro de si a explicação de todos os seus predicados. Neste caso torna-se difícil perceber como é que uma substância pode criar ou destruir outra, excepto através de um milagre. Ora, dada a natureza das coisas, os milagres estão para além das capacidades de compreensão do entendimento humano. Um problema adicional surgiu com a inaptidão da lógica tradicional para distinguir completamente entre termos individuais e de espécie, por um lado, e termos quantitativos (ou de «massa»), por outro. Por exemplo, «homem» – que pode denotar seja um indivíduo seja a classe que o subsume – refere-se a substâncias individuais. E expressa também um predicado que em geral descreve essas mesmas substâncias. Mas o que dizer de «neve» ou de «água»? Não há «neves» ou «águas» individuais, excepto num sentido ténue, sentido esse que suprimiria uma distinção fundamental para o pensamento científico, ou seja, a distinção entre «material» e «coisa», entre o que pode ser medido e o que pode ser contado. A dificuldade de empurrar a ideia de «material» para o quadro conceptual de «substância» é responsável por muita da rejeição da ciência aristotélica durante o século XVII. Por esta razão, mesmo que outra não houvesse, o conceito de substância viria a tornar-se o foco da investigação filosófica.
A natureza dos universais
Qualquer filosofia que ponha a si mesma
questões sérias relativas à natureza das substâncias tem também de analisar a natureza
dos «atributos» ou «propriedades» que lhes são inerentes. A cosmologia
neoplatónica tinha transformado o mundo das Ideias platónico – o mundo onde
residem as «formas», inalteradas, imutáveis e apenas conhecidas pela razão – na
abençoada esfera da imutabilidade. Mas a velha disputa metafísica entre
Aristóteles e Platão quanto à natureza dos universais permaneceu no centro das
discussões no pensamento medieval. Isto porque essa disputa tinha relação com
aquele que é porventura o tema mais importante da teoria do conhecimento, a
questão de se saber até que ponto o mundo é cognoscível pela razão. Usando como
texto básico uma passagem da Isagoge de Porfírio, transmitido e comentado por
Boécio, os filósofos procuraram saber se os géneros e as espécies existem
apenas na mente ou na realidade; e, no caso de se verificar a segunda
alternativa, se eles existem em substâncias individuais ou separadas delas. Em
resposta a esta questão, alguns filósofos reafirmaram a posição platónica
original, defendendo a existência independente de universais no mundo das
«ideias». Outros foram para o extremo oposto, abraçando o nominalismo,
defendendo que os universais são meros nomes e que só existem entidades
individuais. Não há uma realidade independente que corresponda à ideia de
«azul»: a única coisa que acontece é que nós classificamos certas coisas
apondo-lhes esse rótulo.
Um dos mais importantes pensadores a defender o nominalismo (numa certa versão) – Guilherme de Ockham (floruit 1300-1349) – combinou o nominalismo com uma doutrina do empirismo, de acordo com a qual a razão, longe de ser a única autoridade a indicar-nos o modo de ser das coisas, está subordinada aos sentidos e depende destes (da investigação empírica). Este empirismo não era de modo algum incomum no pensamento medieval. Já fora pressagiado por Aristóteles e, até certo ponto, sancionado por São Tomás, que apoiou a fórmula escolástica «nihil in intellectus quod nisi prius in sensu» («nada há no entendimento que não tenha estado primeiro nos sentidos»), um dito que, ao menos numa certa interpretação, implica um completo cepticismo relativo aos poderes da razão. Ockham estava disposto a desenvolver esse cepticismo ao máximo, e a combiná-lo, como o fizeram outros empiristas mais tarde, com uma teoria da natureza e da função da linguagem que removeria as bases de muitas das teses tradicionais produzidas em nome da razão. No curso do desenvolvimento dessa teoria, Ockham viria a antecipar muitas das concepções de filósofos posteriores, incluindo a teoria da causalidade de Hume, a teoria das relações de Leibniz e o ataque ao espaço e ao tempo absolutos. Seguido no seu cepticismo pelo vigoroso Nicolau d’Autrecourt (c. 1300-depois de 1350), Ockham desafiou poderosamente muitos dos dogmas da Igreja, defendendo que estes não deviam fundar-se na razão (esta nunca teria envergadura suficiente para poder abarcá-los), mas na fé. Desta maneira, a antiga disputa sobre a natureza dos universais serviu como foco para a crescente cisão entre empirismo e racionalismo (como acabaram por ser conhecidas estas correntes). Além do mais, tornou-se cada vez mais evidente, no decurso dessas disputas, que muitas coisas na filosofia, talvez mesmo a própria possibilidade da filosofia, dependem da verdade acerca da linguagem. Foi consequentemente na era escolástica que a filosofia começou a incorporar a teoria do significado e o estudo do uso da linguagem como um aspecto central dos seus argumentos. Deste estudo emergiram importantes teorias específicas – tal como a das ideias abstractas (adoptada por Pedro Abelardo [1079-1142] e legada a Locke e ao empirismo britânico) e a doutrina de que as entidades não devem ser multiplicadas para lá do necessário. Esta última doutrina, conhecida por navalha de Ockham (embora não se encontre de facto nos escritos de Ockham), forneceu a inspiração para muito do pensamento científico posterior. Foi também nesta época que surgiu a ideia da centralidade da lógica na filosofia e da necessidade de distinções subtis na discussão de todos os problemas filosóficos.
O argumento ontológico
Sem surpresa, a tradição racionalista e
platónica do pensamento especulativo dispôs-se mais prontamente a apoiar o dogma
teológico do que o cepticismo empirista inspirado em grande medida no ataque de
Aristóteles à teoria das Ideias de Platão. No entanto, foi um argumento
aristotélico, quer no conteúdo quer na forma, que acabou por ter uma influência
decisiva sobre a teologia medieval. Este argumento é conhecido por prova ontológica
(adoptando-se uma expressão de Kant) da existência de Deus. A descoberta desta
prova é normalmente atribuída a Santo Anselmo, arcebispo de Cantuária (1033-1109),
mas não é uma distorção se dissermos que se vislumbra em certas passagens da Metafísica de Aristóteles e nos
comentários de Al-Farabi e Avicena. Foi rejeitada por São Tomás na sua
exposição sistemática das bases da doutrina cristã. Pertencia, contudo, a uma
classe de argumentos de que faziam parte outros que São Tomás tendia a aceitar.
Argumentos que tinham em comum o facto de fazerem uso do conceito de ser
necessário – um ser cuja essência implica a sua existência – para oferecer uma
prova da existência de Deus.
Formulado de modo muito simples, o argumento
de Santo Anselmo diz o seguinte: entendo por «Deus» uma entidade maior do que
tudo aquilo que pode ser pensado. Suponha-se que Deus, assim definido, não
existe. Posso, não obstante, pensar
que existe. Mas uma entidade que existe é maior do que uma entidade que não existe. Logo, é possível pensar em algo maior do que Deus, nomeadamente,
numa entidade que é não só maior do que tudo o que pode ser pensado, mas além
disso existe. Porém, isto não está de acordo com a definição. Logo, a hipótese –
Deus não existe – tem de ser falsa.
Se
válido, o argumento estabelece não só que Deus existe, mas também que existe
necessariamente, pois segue-se da sua natureza (da sua essência) que ele existe.
Versões ulteriores (como a defendida por Descartes) apoia-se na ideia de que a
existência é uma perfeição e, portanto, uma propriedade daquilo que é perfeito.
Não é inteiramente claro se o argumento de Santo Anselmo se apoia nesse
pressuposto; na verdade, não é de todo claro ainda hoje se os pressupostos de
que o argumento parte são ou não questionáveis. Alguns filósofos pensam que se
trata de um argumento válido, embora necessite de uma nova e mais aperfeiçoada
reformulação; outros pensam que foi definitivamente refutado por Kant, quando
este procurou provar que «a existência não é verdadeiramente um predicado»,
Seja como for, apesar da sua aparência sofística, o argumento apresenta uma
tenacidade filosófica peculiar, sendo aceite numa ou noutra versão por todos os
grandes racionalistas do século XVII.
Há, em particular, uma razão que explica a popularidade do argumento entre os teólogos medievais. É que ele dá credibilidade à ideia de Deus como «ser necessário». Muitos escritores tentaram mostrar que, para existir alguma coisa que seja contingente, deve haver alguma coisa que exista necessariamente (ou que seja causa sui, causa de si mesmo). O argumento ontológico fornece uma descrição deste ser que existe necessariamente e, portanto, uma resposta para a questão fundamental da metafísica, a questão de se saber porque é que (ou por que razão) existe alguma coisa. Ou (numa formulação mais tendenciosa) porque há-de o Ser ser? Vemos também aqui a origem daquela sombria disputa, que parece sobreviver nas páginas obscuras dos filósofos existencialistas, relativa à relação entre existência e essência. Se não houver um ser no qual coincidam existência e essência, o que dizer dos outros seres? Será que as coisas contingentes (entre as quais nos devemos colocar) partilham de uma essência que precede a sua existência, ou acontece, no caso destas, que a existência é anterior à essência? Quando discutirmos esta questão, de momento ainda escassamente inteligível, será importante ter em mente a sua relação com as discussões medievais sobre a natureza de Deus e sobre os universais, que muitos pensadores modernos podem irreflectidamente considerar de interesse meramente académico.
(In Roger Scruton, Breve História da Filosofia Moderna: De Descartes a Wittgenstein, Guerra e Paz, Janeiro de 2022, pp. 29-37).