terça-feira, 29 de abril de 2014

Memória e Identidade (ii)

Escrito por João Paulo II








«(...) A terceira parte do "segredo" foi escrita por ordem de Sua Ex.cia Rev.ma o Senhor Bispo de Leiria e da (...) Santíssima Mãe, no dia 3 de Janeiro de 1944.

(...) O envelope foi guardado primeiramente pelo Bispo de Leiria. Para se tutelar melhor o "segredo", no dia 4 de Abril de 1957 o envelope foi entregue ao Arquivo Secreto do Santo Ofício. Disto mesmo, foi avisada a Irmã Lúcia pelo Bispo de Leiria.

Segundo apontamentos do Arquivo, no dia 17 de Agosto de 1959 e de acordo com Sua Eminência o Cardeal Alfredo Ottaviani, o Comissário do Santo Ofício, Padre Pierre Paul Philippe OP, levou a João XXIII o envelope com a terceira parte do "segredo de Fátima". Sua Santidade, "depois de alguma hesitação", disse: "Aguardemos. Rezarei. Far-lhe-ei saber o que decidi".

Na realidade, a decisão do Papa João XXIII foi enviar de novo o envelope selado para o Santo Ofício e não revelar a terceira parte do "segredo".

Paulo VI leu o conteúdo com o Substituto da Secretaria de Estado, Sua Ex.cia Rev.ma D. Ângelo Dell'Acqua, a 27 de Março de 1965, e mandou novamente o envelope para o Arquivo do Santo Ofício, com a decisão de não publicar o texto.

João Paulo II, por sua vez, pediu o envelope com a terceira parte do "segredo", após o atentado de 13 de Maio de 1981. Sua Eminência o Cardeal Franjo Seper, Prefeito da Congregação, a 18 de Julho de 1981 entregou a Sua Ex.cia Rev.ma D. Eduardo Martínez Somalo, Substituto da Secretaria de Estado, dois envelopes: um branco, com o texto original da Irmã Lúcia em língua portuguesa; outro cor-de-laranja, com a tradução do "segredo" em língua italiana. No dia 11 de Agosto seguinte, o Senhor D. Martínez Somalo devolveu os dois envelopes ao Arquivo do Santo Ofício.

Como é sabido, o Papa João Paulo II pensou imediatamente na consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria e compôs ele mesmo uma oração para o designado "Acto de Entrega", que seria celebrado na Basílica de Santa Maria Maior a 7 de Junho de 1981, solenidade de Pentecostes, dia escolhido para comemorar os 1600 anos do primeiro Concílio Constantinopolitano e os 1550 anos do Concílio de Éfeso. O Papa, forçadamente ausente, enviou uma radiomensagem com a sua alocução. Transcrevemos a parte do texto, onde se refere exactamente o acto de entrega:

"Ó Mãe dos homens e dos povos, Vós conheceis todos os seus sofrimentos e as suas esperanças, Vós sentis maternalmente todas as lutas entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas, que abalam o mundo, acolhei o nosso brado, dirigido no Espírito Santo directamente ao vosso Coração, e abraçai com o amor da Mãe e da Serva do Senhor aqueles que mais esperam por este abraço e, ao mesmo tempo, aqueles cuja entrega também Vós esperais de maneira particular. Tomai sob a vossa protecção materna a família humana inteira, que, com enlevo afectuoso, nós Vos confiamos, ó Mãe. Que se aproxime para todos o tempo da paz e da liberdade, o tempo da verdade, da justiça e da esperança".


Mas, para responder mais plenamente aos pedidos de Nossa Senhora, o Santo Padre quis, durante o Ano Santo da Redenção, tornar mais explícito o acto de entrega de 7 de Junho de 1981, repetido em Fátima no dia 13 de Maio de 1982. E, no dia 25 de Março de 1984, quando se recorda o fiat pronunciado por Maria no momento da Anunciação, na Praça de S. Pedro, em união espiritual com todos os Bispos do mundo precedentemente "convocados", o Papa entrega ao Imaculado Coração de Maria os homens e os povos, com expressões que lembram as palavras ardorosas pronunciadas em 1981:

"E por isso, ó Mãe dos homens e dos povos, Vós que conheceis todos os seus sofrimentos e as suas esperanças, Vós que sentis maternalmente todas as lutas entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas, que abalam o mundo contemporâneo, acolhei o nosso clamor que, movidos pelo Espírito Santo, elevamos directamente ao vosso Coração: Abraçai, com amor de Mãe e de Serva do Senhor, este nosso mundo humano, que Vos confiamos e consagramos, cheios de inquietude pela sorte terrena e eterna dos homens e dos povos.

De modo especial vos entregamos e consagramos aqueles homens e aquelas nações que desta entrega e desta consagração têm particularmente necessidade.

'À vossa protecção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus'! Não desprezeis as súplicas que se elevam de nós que estamos na provação!"

Depois o Papa continua com maior veemência e concretização de referências, quase comentando a Mensagem de Fátima nas suas predições infelizmente cumpridas:

"Encontrando-nos hoje diante Vós, Mãe de Cristo, diante do vosso Imaculado Coração, desejamos, juntamente com toda a Igreja, unir-nos à consagração que, por nosso amor, o vosso Filho fez de Si mesmo ao Pai: 'Eu consagro-Me por eles - foram as suas palavras - para eles serem também consagrados na verdade' (Jo 17, 19). Queremos unir-nos ao nosso Redentor, nesta consagração pelo mundo e pelos homens, a qual, no seu Coração divino, tem o poder de alcançar o perdão e de conseguir a reparação.

A força desta consagração permanece por todos os tempos e abrange todos os homens, os povos e as nações; e supera todo o mal, que o espírito das trevas é capaz de despertar no coração do homem e na sua história e que, de facto, despertou nos nossos tempos.

Oh quão profundamente sentimos a necessidade de consagração pela humanidade e pelo mundo: pelo nosso mundo contemporâneo, em união com o próprio Cristo! Na realidade, a obra redentora de Cristo dever ser participada pelo mundo por meio da Igreja.






Manifesta-o o presente Ano da Redenção: o Jubileu extraordinário de toda a Igreja.

Neste Ano Santo, bendita sejais acima de todas as criaturas Vós, Serva do Senhor, que obedecestes da maneira mais plena ao chamamento Divino!

Louvada sejais Vós, que estais inteiramente unida à consagração redentora do vosso Filho!

Mãe da Igreja! Iluminai o Povo de Deus nos caminhos da fé, da esperança e da caridade! Iluminai de modo especial os povos dos quais Vós esperais a nossa consagração e a nossa entrega. Ajudai-nos a viver na verdade da consagração de Cristo por toda a família humana do mundo contemporâneo.

Confiando-Vos, ó Mãe, o mundo, todos os homens e todos os povos, nós vos confiamos também a própria consagração do mundo, depositando-a no vosso Coração materno.

Oh Imaculado Coração! Ajudai-nos a vencer a ameaça do mal, que se enraíza tão facilmente nos corações dos homens de hoje e que, nos seus efeitos incomensuráveis, pesa já sobre a vida presente e parece fechar os caminhos do futuro!

Da fome e da guerra, livrai-nos!

Da guerra nuclear, de uma autodestruição incalculável, e de toda a espécie de guerra, livrai-nos!

Dos pecados contra a vida do homem desde os seus primeiros instantes, livrai-nos!

Do ódio e do aviltamento da dignidade dos filhos de Deus, livrai-nos!

De todo o género de injustiça na vida social, nacional e internacional, livrai-nos!

Da facilidade em calcar aos pés os mandamentos de Deus, livrai-nos!

Da tentativa de ofuscar nos corações humanos a própria verdade de Deus, livrai-nos!

Da perda da consciência do bem e do mal, livrai-nos!

Dos pecados contra o Espírito Santo, livrai-nos!

Acolhei, ó Mãe de Cristo, este clamor carregado do sofrimento de todos os homens! Carregado do sofrimento de sociedades inteiras!



Ajudai-nos com a força do Espírito Santo a vencer todo o pecado: o pecado do homem e o "pecado do mundo", enfim o pecado em todas as suas manifestações.

Que se revele uma vez mais, na história do mundo, a força salvífica da Redenção: a força do Amor misericordioso! Que ele detenha o mal! Que ele transforme as consciências! Que se manifeste para todos, no vosso Imaculado Coração, a luz da Esperança!"

A Irmã Lúcia confirmou pessoalmente que este acto, solene e universal, de consagração correspondia àquilo que Nossa Senhora queria: "Sim, está feita tal como Nossa Senhora a pediu, desde o dia 25 de Março de 1984" (carta de 8 de Novembro de 1989). Por isso, qualquer discussão e ulterior petição não tem fundamento.

(...) Uma orientação para a interpretação da terceira parte do "segredo" tinha sido já oferecida pela Irmã Lúcia, numa carta dirigida ao Santo Padre a 12 de Maio de 1982, onde dizia:

"A terceira parte do segredo refere-se às palavras de Nossa Senhora: 'Se não, [a Rússia] espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas' (13-VII-1917).

A terceira parte do segredo é uma revelação simbólica, que se refere a este trecho da Mensagem, condicionada ao facto de aceitarmos ou não o que a Mensagem nos pede: 'Se atenderem a meus pedidos, a Rússia converter-se-á e terão paz, se não, espalhará os seus erros pelo mundo, etc'.


Porque não temos atendido a este apelo da Mensagem, verificamos que ela se tem cumprido, a Rússia foi invadindo o mundo com os seus erros. E se não vemos ainda, como facto consumado, o final desta profecia, vemos que para aí caminhamos, a passos largos. Se não recuarmos no caminho do pecado, do ódio, da vingança, da injustiça atropelando os direitos da pessoa humana, da imoralidade e da violência, etc.


E não digamos que é Deus que assim nos castiga; mas, sim, que são os homens que para si mesmos se preparam o castigo. Deus apenas nos adverte e chama ao bom caminho, respeitando a liberdade que nos deu; por isso os homens são responsáveis".


A decisão tomada pelo Santo Padre João Paulo II de tornar pública a terceira parte do "segredo" de Fátima encerra um pedaço de história, marcado por trágicas veleidades humanas de poder e de iniquidade, mas permeada pelo amor misericordioso de Deus e pela vigilância cuidadosa da Mãe e da Igreja».

TARCISIO BERTONE, SDB, Arcebispo emérito de Vercelli, Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé («A Mensagem de Fátima»).



Concílio Vaticano II


«(...) Alguns católicos tradicionalistas estão convencidos de que todos os ocupantes do trono papal desde que Pio XII morreu em 1958 têm sido a tal ponto enganadores e mentirosos que não merecem o título de Papa. Os tradicionalistas - não confundir com os católicos regulares que possuem uma visão mais "tradicional" ou conservadora - gostariam de regressar às crenças e práticas no seio da Igreja anteriores à grande varridela de mudanças modernizantes trazida pelo Concílio Vaticano II. João XXIII queria "abrir as janelas ao mundo", como ele dizia. Ao fazê-lo, deixou entrar um enxame de dissidentes.

O Vaticano II reviu a liturgia do "Rito Romano" com séculos de idade. Também advogou a aproximação e unidade das diferentes Igrejas cristãs e a promoção de mais diálogo entre três fés completamente diferentes. Outras das suas ideias liberalizantes incluía a aceitação do direito dos indivíduos a seguir a religião da sua escolha. Os tradicionalistas ficaram boquiabertos. Alguns objectavam sobretudo contra as mudanças no ritual da missa. Outros sentiam-se mais geralmente alienados, tanto que saíram da Igreja principal e abriram as suas próprias capelas, igrejas, escolas, seminários e mosteiros no seio de dioceses católicas já existentes.

Os mais inconformados de todos eram os chamados sedevacantistas. Os membros deste relativamente novo movimento crêem que os maçons se infiltraram na única Igreja verdadeira ao mais alto nível com o fim de a destruir. Os sedevacantistas dizem que o Vaticano II foi uma farsa. Denunciam João XXIII e os seus sucessores como heréticos. Paulo VI (1963-78), João Paulo I (1978) e João Paulo II (1978-2005) não eram verdadeiros católicos e portanto desempenharam ilegitimamente o cargo. Eram "anti-papas" e lançaram o Vaticano na apostasia. Bento XVI é culpado do mesmo. A sua visão de Fátima é que o terceiro Segredo se referia a esta crise no seio da Igreja. Era altamente relevante em 1960, logo antes do Vaticano II, mas a hierarquia da Igreja tentou deliberadamente suprimi-lo.












A condenação mais firme e agressiva do tratamento dado ao Terceiro Segredo pelo Vaticano partiu dos apoiantes do Fatima Center, Centro de Fátima, um apostolado canadiano fundado pelo padre Nicholas Gruner. Nascido em Montreal em 1942, Gruner formou-se na Universidade MacGill e fez estudos de pós-graduação em teologia na Universidade Pontifícia de S. Tomás de Aquino, em Roma. Ordenado padre em 1976, pensou entrar para uma comunidade franciscana de língua inglesa em Itália, mas em vez disso regressou ao Canadá e dedicou a sua vida a divulgar a mensagem de Fátima, tornando-a compreendida, apreciada e obedecida. Em 1978, lançou uma publicação intitulada Fátima Crusader, A Cruzada de Fátima.

Depois, tratou de expandir o Fatima Center, sediado em Fort Erie, no Ontário, através da utilização sábia de todos os meios de comunicação modernos. Usando a imprensa escrita, a rádio e a televisão e um enorme sítio da Internet chamado Fátima Network, atraiu uma grande audiência em toda a América do Norte e um pouco por todo o mundo.

Gruner repetia sem cansaço dois pontos: o Papa devia sem mais delongas consagrar a Rússia e revelar o Terceiro Segredo. A consagração da Rússia como era pedida na segunda parte do segredo era vital. A escolha entre a paz mundial e a aniquilação das nações dependia de a Igreja levar a cabo esta consagração - e levá-la a cabo como deve ser, insistia ele. Isto queria dizer que o Papa, juntamente com todos os bispos em todas as catedrais do mundo, deve realizar cerimónias numa data determinada. Devem procurar perdão desta forma para os erros passados da Rússia e pô-la na senda da devoção total ao Deus dos Cristãos.

Sobre a recusa da Igreja em divulgar o Terceiro Segredo, Gruner afirmava que toda a gente merecia conhecer o seu conteúdo, não apenas os papas e os seus conselheiros mais próximos. Tinha a certeza de que o Terceiro Segredo alertava contra o que chamou de "desorientação diabólica". Apelava a uma divulgação total e franca porque esse era o desejo comum da Virgem e da Irmã Lúcia.

Ao contrário dos sedevacantistas, Gruner professara lealdade ao Papa, mas as suas incessantes críticas sobre o tratamento dado ao Terceiro Segredo irritaram o Vaticano e envolveram-no num conflito verbal com as autoridades do santuário de Fátima.


(...) Nas escaramuças verbais das semanas e meses seguintes, os partidários de Gruner não mostraram piedade. Carlos Evaristo, um luso-canadiano que trabalhava para Gruner, tinha feito as combinações necessárias às viagens para a conferência d'A Cruzada de Fátima. O delegado de patente mais elevada era um cardeal indiano de nome Antony Padiyare. Este sacerdote pediu uma reunião com a Irmã Lúcia para tentar clarificar as questões que preocupavam Gruner e passar esta informação aos colegas delegados. O cardeal levou Evaristo para o encontro, como intérprete. O bispo Francis Michaelappa de Mysore, na Índia, e o padre Francisco Pacheco, do Brasil, também estiveram presentes na conversa, que teve lugar no Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra. Interrogada sobre se a consagração da Rússia tinha sido feita de acordo com o pedido de Nossa Senhora, Lúcia é citada dizendo: "Sim, sim, sim". A vidente disse que tinham sido feitas as consagrações parciais pelo Papa Pio XII em 1942, mas que faltava a inclusão dos bispos do mundo. Realizaram-se consagrações feitas por Paulo VI no encerramento do Vaticano II e por João Paulo II em 1982, mas só em 1984 é que a consagração foi feita com a participação dos bispos do mundo. Isso foi feito diante de dez mil pessoas na Basílica de S. Pedro em Roma. Embora a Rússia não tenha sido especificamente mencionada pelo nome durante a cerimónia, na opinião de Lúcia, os desejos da Virgem Maria foram cumpridos.

Segundo Evaristo, Lúcia repetiu "uma vez e outra" que a consagração tinha sido bem feita. Interrogada acerca do padre Gruner, Lúcia disse que tinha ouvido falar dele e de que ele não acreditava que ela tinha confirmado que a consagração tinha sido feita correctamente. Ele tinha publicado muitas interpretações erradas na sua revista. "Diga ao Padre que ele deve ser humilde e aceitar que a consagração foi feita e que está a pedir de mais. Talvez ele tenha baseado as suas teorias em falsas interpretações que andam por aí. Ele devia mudar o seu apostolado e transformá-lo num grande meio de espalhar a mensagem de Fátima".

Outro tema central desta conversa de duas horas foi o Terceiro Segredo. Lúcia dizia que, ao contrário da opinião popular, Nossa Senhora não tinha estipulado que o segredo fosse publicamente revelado em 1960. Na verdade, Ela não pediu que fosse revelado de todo a mais ninguém senão ao Papa. Era com o Santo Padre a decisão de contar o Terceiro Segredo a mais alguém. Lúcia não sabia se o Terceiro Segredo se referia às Sagradas Escrituras ou tinha algo a ver com o Concílio Vaticano II.






(...) No ano seguinte, Evaristo serviu de intérprete numa segunda entrevista de Lúcia, desta vez com o cardeal Ricardo Vidal das Filipinas. O encontro decorreu no convento carmelita e demorou uma hora. Oito outras pessoas, incluindo a Madre Superiora de Lúcia, estiveram presentes. A entrevista foi gravada em áudio. Sobre a questão da consagração da Rússia, Lúcia confirmou uma vez mais que, na sua opinião, a consagração tinha sido feita. Explicando, disse que a Virgem Maria tinha usado a palavra Rússia "porque a Rússia representava os erros do mundo todo".

Gruner e os seus seguidores continuavam em fúria. Lúcia foi apresentada a contradizer ela própria a mensagem de Fátima e todas as afirmações que anteriormente fizeram sobre o tema ao longo de sententa e cinco anos. Concluíram que, se Lúcia não tinha sido vítima de traição por parte de Evaristo, ou se não estávamos diante de falsidades proferidas por uma impostora, talvez tivesse dito o que disse em resultado de coacção, em obediência a ordens superiores, ou por uma combinação de persuasão e declínio das faculdades mentais. "Seja qual for o cenário escolhido, a conclusão é sempre a mesma: a Irmã Lúcia foi traída por aqueles que promoveram esta sua retractação", insistia Chistopher A. Ferrara do A Cruzada de Fátima. Francis Alban e Chistopher A. Ferrara, na sua biografia de Gruner, Fatima Priest, escreveram: "O panfleto de Evaristo apresenta uma nova Irmã Lúcia que serve de patético boneco de ventríloquo às forças anti-Fátima, repudiando obedientemente tudo o que a Irmã Lúcia de Fátima dissera antes. O panfleto é uma verdadeira declaração de capitulação na qual a nova Irmã Lúcia encontra forrma de lançar no olvido o que a antiga Irmã Lúcia tinha dito a todo o mundo".

Insistiram que o Vaticano tinha deliberadamente evitado realizar uma consagração específica da Rússia com medo de que isso causasse embaraços diplomáticos e fosse um escolho ao diário político crescente entre o Ocidente e o bloco comunista de Leste. Também continuavam a insistir que o Terceiro Segredo estava a ser escandalosamente ocultado por intervenção de ateus maçons. Tais acusações foram proferidas no Congresso Internacional sobre a Paz no Mundo Fátima 2000, organizado pelo A Cruzada de Fátima, em Roma, em Novembro de 1996.

Os críticos incluíam o arcebispo Emmanuel Milingo, delegado especial ao Conselho Papal para a Pastoral dos Nómadas e Migrantes. Era um afamado exorcista e fundador de uma ordem de freiras com conventos na Zâmbia e em Roma. Defendia que o Vaticano tinha sido infiltrado por activistas satânicos.

O padre Malachi Martin, um especialista em Vaticano, autor de muitas obras, comentava: "O arcebispo de Milingo é um bom bispo e a sua ideia de que existem satanistas em Roma é completamente correcta. Quem tenha lidado com o estado do Vaticano nos últimos trinta e cinco anos está bem consciente de que o príncipe das trevas teve, e tem, os seus delegados na corte de S. Pedro em Roma". O padre Martin disse que, quando era secretário do cardeal Augustin Bea no Vaticano, o seu chefe saiu de uma reunião com o Papa João XXIII "visivelmente abalado" depois de ter visto a folha manuscrita por Lúcia contendo o Terceiro Segredo».

Len Port («O Fenómeno de Fátima»).





«(...) Existem versões em que se conta que as pessoas que conheceram o conteúdo do [Terceiro] segredo ficaram aterradas. Numa obra de Jacques Vallée, lê-se o seguinte:

"Um homem, que sei digno de crédito, obteve uma descrição interessante da cena que se seguiu à abertura da mensagem de Fátima, efectuada, em 1960, por João XXIII. Este acontecimento teve lugar em segredo, no escritório pontifício, mas um secretário pôde observar os cardeais quando eles deixaram o Santo Padre; eles tinham no rosto uma expressão de horror. Levantando-se do seu assento, o secretário aproximou-se dum prelado que conhecia bem; ele foi doce mas energicamente empurrado pelo cardeal que atravessou o seu caminho como um homem que acaba de ver um espectro".

Conhecendo nós, hoje, o conteúdo da terceira parte do Segredo, podemos avaliar a preocupação dos cardeais e mais presentes. A ser uma profecia fidedigna, anunciava-se que o Papa iria ser morto, juntamente com imensa gente de todas as condições sociais e uma cidade seria destruída, certamente imaginando que só poderia ser Roma e lá ia o Vaticano juntamente. Seria talvez o fim dos tempos do papado.

Aliás, havia mesmo profecias que se assemelhavam, e dignas de crédito, como uma atribuída ao Papa Pio X. Conta-se que, em 1909, quando concedia uma audiência, caiu em transe. Quando recuperou a consciência, declarou: "O que vi é terrífico! Eu... ou o meu sucessor... o Papa, abandonará Roma e, depois de sair do Vaticano, terá de caminhar sobre os cadáveres dos seus padres"».

Fina d'Armada («Fátima e as Profecias de Nostradamus»).









«(...) Os partidários das pseudociências, do espiritualismo new age e das religiões tradicionais têm pelo menos uma característica em comum: fazem afirmações extraordinárias baseadas em afirmações que não podem ser verificadas. Os ovnilogistas, por exemplo, tentaram mostrar que os globos luminosos e as luzes estranhas vistas em Fátima em 1917 eram causadas por extraterrestres e não por um visitante divino dos céus. A teoria dos ovnis e extraterrestres foi exposta à saciedade em vários livros, mas não passa de uma conjectura.

Com o mesmo desprezo pelas provas verificáveis demonstrado pelos pseudocientistas, alguns pretensos especialistas levaram para a Internet as suas visões do Terceiro Segredo de Fátima. Alguns foram buscar pistas a um artigo numa publicação alemã, a Neues Europa, editada em 1963. O artigo continha um grande extracto supostamente do texto original do Terceiro Segredo. O editor da publicação, Louis Emrich, defendia que, embora o extracto não fosse uma citação do que a Virgem Maria realmente disse a Lúcia, era uma representação justa do que ela queria significar. O momento escolhido para a publicação era relevante não só por causa da crescente frustração face ao fim do prazo para revelar o Terceiro Segredo, mas porque a União Soviética e o Ocidente estavam envolvidos em conversações sobre o armamento nuclear.

Segundo Emrich, círculos diplomáticos de Washington, Londres e Moscovo estavam a par do conteúdo do Terceiro Segredo. O Papa Paulo VI mostrara o texto ao Presidente Kennedy, ao primeiro-ministro Macmillan e ao Presidente Khrushchev, as principais figuras nas conversações sobre não-proliferação das armas nucleares. O texto tinha-os abalado. A mensagem do Terceiro Segredo da Virgem Maria causou uma impressão tão grande que acabou por desempenhar um papel importante na assinatura do tratado de 1963 de limitação dos testes nucleares, dizia Emrich.


Nikita Khrushchev e J. F. Kennedy


O "extracto" do Terceiro Segredo publicado na Neues Europa tinha quase setecentas palavras. O seu ponto principal era que, a menos que a humanidade se emendasse, toda a gente estaria sujeita a castigos sem paralelo. A Virgem Maria teria dito: "Satanás reina nas mais altas posições e determina a direcção das coisas. Conseguirá escavar túneis e rastejar mesmo até às mais altas esferas da Igreja. Conseguirá seduzir a mente de grandes académicos que inventam armas que podem destruir metade da humanidade em segundos. Terá o poder entre as pessoas sob o seu jugo e induzi-las-á a fabricarem armas em massa".

A Virgem Maria teria continuado a avisar que se a humanidade não fizesse as correcções que indicara, Ela própria recomendaria a Deus que infligisse um castigo apropriado na forma de uma "grande, grande guerra na segunda metade do século XX". Deu pormenores. "Fogo e fumo cairão dos céus e as águas dos oceanos serão feitas em vapor; a sua forma explodirá pelos ares e tudo o que está de pé ruirá. Milhões e milhões de homens perecerão de hora a hora e os que sobreviverem vão invejar os que morreram. Por toda a parte haverá angústia, miséria por toda a terra e ruínas em todos os países. Atenção, o tempo está a encurtar-se, o abismo está a tornar-se mais largo e não há saída; o justo morrerá com os maus, os poderosos com os humildes, os príncipes da Igreja com os seus fiéis, os soberanos do mundo com os seus povos; por toda a parte reinará triunfante, através do mal dos loucos e dos partidários de Satanás que então governarão sozinhos o mundo".

Havia uma série de razões para pensar que esta versão do que a Virgem Maria disse em Fátima não merecia mais confiança do que a tese de que as aparições foram obra de homenzinhos verdes vindos do espaço exterior. Por exemplo, é improvável que o Vaticano mostrasse um documento tão autodepreciativo aos líderes políticos, especialmente ao Presidente Khrushchev. Não houve nenhuma "grande, grande guerra" na segunda metade do século XX. Emrich afirmava repetidamente no seu artigo que o Terceiro Segredo foi confiado a Lúcia a 13 de Outubro de 1917. De facto, Lúcia tinha sempre dito que a Virgem Maria lhe disse o segredo a 13 de Julho. Com setecentas palavras, o "excerto" não teria seguramente cabido em vinte e seis linhas e numa só folha de papel manuscrita. O artigo da Neues Europa era interessante, mais que não seja como ilustração da extravagância a que chegara a especulação em torno do Terceiro Segredo».

Len Port («O Fenómeno de Fátima»).


«(...) Por debaixo das maiores cidades, especialmente nos Estados Unidos, existem cidades subterrâneas (...). Muitas vezes os terminais à superfície e subterrâneos existem por debaixo de lojas maçónicas, esquadras de polícia, aeroportos e edifícios governamentais das maiores cidades... e mesmo até nas cidades menores.






Washington DC






Nova Iorque














David Icke







(...) Considerando que os laboratórios de Los Alamos, no Novo México, tinham um protótipo nuclear de uma espécie de berbequim que conseguia literalmente derreter túneis na Terra a uma velocidade de 12 km por hora há quarenta anos, imagine como estão agora esses sistemas subterrâneos.

Estas sub-cidades também oferecem acessos simples aos sindicatos criminais organizados, que operam à superfície».

David Icke («Guia da Conspiração Global e como acabar com ela»).


«(...) - De que parte do Mundo vem para que lhe pareçamos tão estranhos e nos pareça tão estranho? - inquiriu o meu anfitrião. - Tenho visto indivíduos de quase todas as raças diferentes da nossa, tirando os selvagens primevos que vivem nos mais desolados e remotos recantos da Natureza inculta, desconhecedores de outra luz além da que lhes provém de fogos vulcânicos e resignados a tactearem na escuridão, como muitos animais serpejantes, rastejantes e até voadores. Mas você não pode pertencer a essas tribos bárbaras, embora, por outro lado, também não pareça pertencer a qualquer povo civilizado.

A última observação irritou-me um pouco e levou-me a redarguir que tinha a honra de pertencer a uma das nações mais civilizadas da Terra, e que, no que à luz respeitava, e embora admirasse o engenho e o não olhar a despesas com que o meu anfitrião e os seus concidadãos tinham conseguido iluminar as regiões em que os raios do Sol não penetravam, não podia conceber que alguém que tivesse visto o céu pudesse comparar o seu esplendor com as luzes artificiais inventadas para satisfazer as necessidades do homem. Mas o meu anfitrião dissera que tinha visto indivíduos da maioria das raças diferentes da sua, exceptuando os desgraçados bárbaros a que aludira. Seria possível que nunca tivesse estado na superfície da Terra, que se estivesse a referir apenas a comunidades enterradas nas suas entranhas?






(...) Depois virou-se para mim e fez-me diversas perguntas acerca da superfície da Terra e dos corpos celestes e, embora eu lhe respondesse o melhor que sabia, as minhas respostas pareceram não o satisfazer nem convencê-lo. Abanou serenamente a cabeça e, mudando de assunto com certa brusquidão, perguntou-me como descera eu de um mundo para outro, como lhe aprazia dizer. Respondi-lhe que, sob a superfície da Terra, havia minas contendo minérios, ou metais, essenciais às nossas necessidades e ao nosso progresso em todas as artes e indústrias; e depois expliquei-lhe resumidamente como, ao explorarmos uma dessas minas, eu e o meu infortunado amigo tivéramos um vislumbre das regiões a que descêramos, e como essa descida custara a vida ao meu amigo. Apelei para a corda e para os grampos e ganchos levados pelo garoto para a casa onde primeiro me tinham recebido, como testemunho da veracidade da minha história.

Então o meu anfitrião tratou de me interrogar quanto aos hábitos e modos de vida das raças da parte superior da Terra, especialmente das que eram consideradas mais adiantadas na civilização que lhe aprazia definir como "a arte de difundir numa comunidade a felicidade tranquila própria de um lar virtuoso e bem governado". Desejando, naturalmente, representar com as cores mais favoráveis o mundo de onde provinha, aludi apenas ao de leve, e indulgentemente, às antiquadas e decadentes instituições da Europa, a fim de discorrer em pormenor acerca da presente grandeza e previsível preeminência da gloriosa república americana, na qual a Europa procura invejosamente o seu modelo e prevê tremulamente o seu fim. Escolhendo como exemplo da vida social dos Estados Unidos a cidade em que o progresso avança a um ritmo mais rápido, lancei-me numa animada descrição dos hábitos morais de Nova Iorque. Mortificado por ver, pelo rosto dos meus interlocutores, que não estava a produzir a impressão favorável que previra, escolhi um tema mais elevado e falei da excelência das instituições democráticas, da promoção de uma felicidade tranquila pelo governo do partido e do modo como tais instituições difundiam tal felicidade pela comunidade, preferindo para o exercício do poder e a aquisição de honrarias, os cidadãos mais humildes no capítulo da propriedade, instrução e carácter. Recordando afortunadamente a peroração, acerca da influência purificadora da democracia americana e do seu previsível alastramento pelo Mundo, feita por certo eloquente senador (por cujo voto no Senado uma companhia de caminhos-de-ferro a que meus irmãos pertenciam acabara de pagar 20 000 dólares), repeti as suas inflamadas previsões do magnífico futuro que sorriria à Humanidade quando a bandeira da liberdade flutuasse num continente inteiro e dois milhões de cidadãos inteligentes habituados desde a infância ao uso diário de revólveres, aplicassem a um universo escolhido a doutrina do patriota Monroe...».

Bulwer Lytton («A Raça Futura»).







«(...) Talvez o leitor se recorde que descobrimos, atrás do escritor Machen, uma sociedade iniciática inglesa: a Golden Dawn. Essa sociedade neopagã, da qual faziam parte grandes inteligências, nascera da Sociedade da Rosa-Cruz inglesa, fundada por Wentworth Little em 1867. Little estava em comunicação com membros da Rosa-Cruz. Recrutou os seus adeptos, em número de 144, entre os dignitários mações. Um dos adeptos era Bulwer Lytton.

Bulwer Lytton, erudito genial, célebre em todo o Mundo pela sua narrativa Os Últimos Dias de Pompeia, não esperava sem dúvida que um dos seus romances, dezenas de anos mais tarde, inspirasse na Alemanha um grupo místico pré-nazi. No entanto, em obras como A Raça que nos há-de suplantar ou Zanoni, pretendia aludir às realidades do mundo espiritual, e mais especialmente do mundo infernal. Considerava-se um iniciado. Através da efabulação romanesca exprimia a certeza de que existem seres dotados de poderes sobre-humanos. Esses seres suplantar-nos-ão e conduzirão os eleitos da raça humana a caminho de uma formidável mutação.

É preciso prestar atenção a esta ideia de mutação de raça, pois viremos a reencontrá-la em Hitler, e ainda se não extinguiu. É preciso também dar atenção à ideia dos "Superiores Desconhecidos". Encontramo-la em todas as místicas ordens negras do Oriente e do Ocidente. Habitando debaixo da terra ou vindos de outros planetas, gigantes semelhantes a esses que dormiriam sob uma carapaça de ouro nas criptas tibetanas, ou então presenças informes e terrificantes, tais como descrevia Lovecraft, esses "Superiores Desconhecidos" evocados nos ritos pagãos e luciferinos existirão realmente? Quando Machen fala do mundo do Mal, "cheio de cavernas e de habitantes crepusculares", é ao outro mundo, àquele onde o homem toma contacto com os "Superiores Desconhecidos", que se refere, como discípulo da Golden Dawn. Parece-nos certo que Hitler partilhava dessa crença. Mais: que ele pretendia ter a experiência de contactos com os "Superiores".

Citámos a Golden Dawn e a Sociedade do Vril alemã. (...) Não temos a loucura de pretender explicar a história por meio de sociedades iniciáticas. Mas veremos, curiosamente, que tudo teve importância e que, através do nazismo, foi "o outro mundo" que exerceu autoridade sobre nós durante alguns anos. Ficou vencido. Mas não morreu, nem do outro lado do Reno, nem noutros sítios. Isso não é horroroso, a nossa ignorância é que é horrorosa.

(...) Pedimos-lhe que não despreze esta comparação e a sua lição, a pretexto de que a Golden Dawn e o nazismo são, aos olhos do historiador razoável, coisas completamente diferentes. O historiador é razoável, mas a história não o é. São as mesmas crenças que animam os dois homens [Samuel Mathers e Rauschning], as suas experiências fundamentais são idênticas, a mesma força os impele. Pertencem à mesma corrente de pensamento, à mesma religião. Essa religião ainda não foi verdadeiramente estudada. Nem a Igreja, nem o racionalismo, que é outra igreja, o permitiram...».

Louis Pauwels e Jacques Bergier («O Despertar dos Mágicos»).


«(...) a figura de Crowley, mestre do ocultismo e simultaneamente agente dos serviços secretos ingleses, líder na Grã-Bretanha de uma sociedade que é análoga a uma seita ocultista alemã, merece que se mantenha presente, tanto mais que em 1940 escreveu a Churchill, enviando-lhe um talismã “para fazer que cessassem as incursões aéreas” e afirmara em seguida: “ na verdade, fui eu a vencer a guerra!”».

Giorgio Galli («Hitler e o Nazismo Mágico. As Componentes Esotéricas do III Reich»).




Aleister Crowley







Aleister Crowley e Fernando Pessoa



























Albert Speer, o arquitecto da Germânia. Ver aqui











«(...) Don Juan insistia que o meu nível de energia, que tinha vindo a aumentar constantemente, chegara um dia a um limiar que me permitia ignorar suposições e preconceitos sobre a natureza do homem, a realidade e a percepção. Nesse dia, enamorara-me do conhecimento, independentemente da lógica ou do valor funcional e, sobretudo, independentemente da conveniência pessoal.

Quando a minha investigação objectiva sobre o assunto dos seres inorgânicos deixou de ter qualquer importância para mim, o próprio Don Juan tocou no assunto da minha viagem em sonhos a esse mundo e disse:

- Penso que não tens noção da regularidade dos teus encontros com os seres inorgânicos.

Ele tinha razão. Eu nunca me dera ao trabalho de pensar nisso. Comentei sobre como era estranho o meu descuido.

- Não é um descuido - disse ele. - É a natureza daquele domínio que promove o segredo. Os seres inorgânicos envolvem-se em mistério, em escuridão. Pensa no seu mundo: estacionário, fixo, para nos atrair como borboletas a uma luz ou a uma chama. Há uma coisa que o emissário não se atreveu a dizer-te até agora: que os seres inorgânicos querem a nossa percepção, ou a percepção de qualquer ser que caia nas suas malhas. Eles dão-nos conhecimento, mas exigem um pagamento: o nosso ser total.

- Quer dizer, Don Juan, que os seres inorgânicos são como os pescadores?

- Exactamente. Num dado momento, o emissário mostrar-te-á homens que foram apanhados lá dentro, ou outros seres que não são humanos mas que também foram apanhados lá dentro.

A minha reacção devia ter sido de repulsa e medo. As revelações de Don Juan afectaram-me profundamente, mas na medida em que suscitaram uma curiosidade irreprimível. Eu estava quase ofegante.






- Os seres inorgânicos não podem forçar ninguém a ficar com eles - prosseguiu Don Juan. - Viver no mundo deles é uma questão voluntária. No entanto, eles são capazes de prender qualquer um de nós satisfazendo os nossos desejos, mimando-nos e fazendo-nos as vontades. Tem cautela com a percepção imóvel. Uma percepção desse tipo procura o movimento e fá-lo, como te disse, criando projecções, por vezes projecções fantasmagóricas.

Pedi a Don Juan que explicasse o que significava "projecções fantasmagóricas". Ele disse que os seres inorgânicos se agarram aos sentimentos recônditos dos sonhadores e brincam implacavelmente com eles. Criam fantasmas para agradar aos sonhadores ou para os assustar. Lembrou-me que eu tinha lutado com um desses fantasmas. Ele explicou que os seres inorgânicos são projeccionistas fantasmáticos, que se deliciam a projectarem-se a si próprios como quadros nas paredes.

- Os antigos feiticeiros foram destruídos pela sua confiança vã nessas projecções - continuou ele. - Os antigos feiticeiros acreditavam que os seus aliados tinham poder. Ignoravam o facto de os seus aliados serem energia ténue projectada através dos mundos, como um filme cósmico.

- Está a contradizer-se, Don Juan. O senhor mesmo disse que os seres inorgânicos são reais. Agora diz-me que são meras gravuras.







- Eu queria dizer que os seres inorgânicos, no nosso mundo, são como filmes projectados numa tela; e posso ainda acrescentar que são como filmes de energia rarefeita projectada através das fronteiras de dois mundos.

- E os seres inorgânicos no seu próprio mundo? Eles também são como filmes?

- Certamente que não. O seu mundo é tal real como o nosso mundo. Os antigos feiticeiros retratavam o mundo dos seres inorgânicos como uma bolha de cavernas e poros a flutuar num espaço escuro. E retratavam os seres inorgânicos como canas ocas atadas umas às outras, como as células dos nossos corpos. Os antigos feiticeiros chamavam a esse imenso feixe o labirinto da penumbra...».

Carlos Castaneda («Arte de Sonhar»).





A MEMÓRIA MATERNA DA IGREJA


Tendo-se verificado enormes mudanças nos últimos decénios, em diversas partes do mundo, fala-se muito da necessidade de adaptar a Igreja à nova realidade cultural; isto obriga a colocar-se a questão da identidade da Igreja também. Como definiria, Santo Padre, os componentes de tal identidade?




Para responder a esta pergunta, é conveniente recordar outra dimensão da questão. Ao narrar os acontecimentos da infância de Jesus, afirma São Lucas: «Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração» (Lc 2, 51). Trata-se da recordação das palavras e sobretudo dos factos relativos à encarnação do Filho de Deus. Maria guardava no seu coração a memória do mistério da Anunciação, porque aquele tinha sido o instante da concepção do Verbo encarnado no seu ventre (cf. Jo 1, 14); guardava a memória dos meses em que o Verbo esteve oculto no seu seio. Depois veio a hora do nascimento do Senhor com tudo o que tinha acompanhado tal acontecimento; Maria recordava como nascera Jesus em Belém: dado que não havia lugar na hospedaria, viera ao mundo num curral (cf. Lc 2, 7). Mas o seu nascimento dera-se numa atmosfera transcendente: os pastores dos campos vizinhos vieram prestar homenagem ao Menino (cf. Lc 2, 15-17); sucessivamente, chegaram a Belém também os Magos do Oriente (cf. Mt 2, 1-12). Depois, juntamente com São José, Maria teve de fugir para o Egipto, a fim de salvar o Filho da crueldade de Herodes (cf. Mt 2, 13-15). Tudo isto permanecia fielmente guardado na memória de Maria, sendo Ela - como justamente se deduz - quem o transmitira a Lucas durante os seus numerosos encontros, tal como o confidenciara também a João, a quem fora entregue por Jesus na hora da morte.

Certo é que João resume todos os acontecimentos da infância numa frase: «E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós» (Jo 1, 14), encastoando esta única afirmação no magnífico prólogo do seu Evangelho; mas é verdade também que somente em João encontramos a descrição do primeiro milagre realizado por Jesus, a pedido da Mãe (cf. Jo 2, 1-11); como foi ainda João - e só ele - que conservou as palavras de Jesus, quando, na hora da agonia, a ele precisamente entregou a Mãe (cf. Jo 19, 26-27). Obviamente, todas estas coisas, conservava-as Maria esculpidas de forma indelével na memória. «Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração» (Lc 2, 51).











A memória de Maria é uma fonte de singular importância, uma fonte incomparável, para conhecer Cristo. Ela não é apenas testemunha do mistério da Encarnação, para o qual deu conscientemente a sua cooperação; mas acompanhou também passo a passo a progressiva manifestação do Filho que crescia ao pé d'Ela. Conhecem-se os factos pelos Evangelhos. Com doze anos, Jesus deixa intuir a Maria a especial missão que Ele recebeu do Pai (cf Lc 2, 49). E mais tarde, quando deixar Nazaré, a Mãe ficará sempre em certa medida ligada a Ele: isto mesmo se deduz do milagre de Caná da Galileia (cf. Jo 2, 1-11), e não só (cf. Mc 3, 31-35; Mt 12, 46-50; Lc 8, 19-21). Maria será testemunha, particularmente, no mistério da paixão e seu cumprimento no Calvário (cf. Jo 19, 25-27). Embora os textos bíblicos não o digam, pode-se pensar que tenha sido Ela a primeira a quem apareceu o Ressuscitado; em todo o caso, Maria presencia a sua ascensão ao Céu, está com os Apóstolos no Cenáculo à espera da descida do Espírito Santo e é testemunha da Igreja no dia de Pentecostes.

Esta memória materna de Maria é particularmente importante para a identidade humano-divina da Igreja. Pode-se afirmar que à memória de Maria foi beber precisamente a memória do novo Povo de Deus, revivendo na Celebração Eucarística factos e ensinamentos de Cristo recebidos também dos lábios da Mãe. Aliás, também é uma memória materna a da Igreja, visto que também ela é mãe, uma mãe que recorda; em grande parte, a Igreja guarda o que estava ausente nas recordações de Maria.

Esta memória eclesial aumenta com o crescimento da Igreja, que se verifica sobretudo através do testemunho dos apóstolos e do sofrimento dos mártires. É uma memória que se manifesta pouco a pouco na história, a começar dos Actos dos Apóstolos, mas não se identifica totalmente com a história: é algo de específico: o termo técnico usado para o qualificar é Tradição. Esta palavra está associada com a função activa de recordar transmitindo. Na realidade, que é a tradição senão o compromisso assumido pela Igreja de transmitir (em latim, tradere) o mistério de Cristo e o conjunto da sua doutrina que ela guarda na sua memória? Na realização deste compromisso, a Igreja é sustentada constantemente pelo Espírito Santo; na hora da despedida, Cristo falou do Espírito Santo aos Apóstolos nestes termos: Ele «ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito» (Jo 14, 26). Por isso a Igreja, quando celebra a Eucaristia que é o «memorial» do Senhor, fá-lo apoiada pelo Espírito Santo, que diariamente desperta e guia a sua memória. À tão estupenda como misteriosa obra do Espírito é que a Igreja deve, de geração em geração, a sua identidade essencial; e isto dura já há dois mil anos.




A memória desta identidade fundamental, com que Cristo dotou a sua Igreja, tem-se demonstrado mais forte do que todas as divisões introduzidas pelos homens nesta herança. Ao início do terceiro milénio, os cristãos, apesar de divididos, estão cientes de que, à essência mais profunda da Igreja, pertence a unidade, não a divisão; a torná-los conscientes disso são antes de mais nada as palavras da instituição da Eucaristia: «Fazei isto em memória de Mim» (Lc 22, 19) - palavras unívocas que não admitem divisões nem separações.

Esta unidade da memória, que acompanha a Igreja através das gerações no arco da história, exprime-se de modo particular na memória de Maria; e isto, também porque Maria é uma mulher. Bem vistas as coisas, a memória pertence mais ao mistério da mulher que do homem: é assim na história das famílias, na história das estirpes e das nações; e assim é na história da Igreja também. Muitos elementos explicam o culto mariano na Igreja, a presença de tantos santuários dedicados a Maria nas várias regiões da terra. A este respeito, diz o Concílio Vaticano II: Maria é «figura da Igreja, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo (...). Com efeito, no mistério da Igreja, a qual é também com razão chamada mãe e virgem, a bem-aventurada Virgem Maria foi adiante, como modelo eminente e único de virgem e mãe» (4). Maria foi adiante, porque é a memória mais fiel, ou melhor, porque a sua memória é o reflexo mais fiel do mistério de Deus, n'Ela transmitido à Igreja e, através da Igreja, à humanidade.

Não se trata apenas do mistério de Cristo; n'Ele, é o mistério do homem que se revela desde o início. Provavelmente não há outro texto tão simples e, simultaneamente, tão completo sobre os primórdios do homem como o dos primeiros três capítulos do livro do Génesis. Lá não se descreve apenas a criação do ser humano como homem e mulher (cf. Gn 1, 27), mas é apresentada de forma muito clara a questão da sua vocação particular no universo. Além disso, deixa intuir, de modo sintético mas suficientemente claro, quer a verdade sobre o estado originário do homem, um estado de inocência e felicidade, quer o cenário muito diverso do pecado e das suas consequências - designado pela teologia escolástica como status naturae lapsae (estado de natureza decaída) -, quer ainda a imediata iniciativa de Deus em ordem à redenção (cf. Gn 3, 15).




A Igreja guarda em si mesma a memória da história do homem desde o início: a memória da sua criação, da sua vocação, da sua elevação e queda. Dentro desta moldura essencial, inscreve-se toda a história do homem, que é história de redenção. A Igreja é uma mãe que, à semelhança de Maria, conserva no coração a história dos seus filhos, assumindo como próprios todos os problemas que lhes são conaturais.

Pôde constatar-se um eco claro desta verdade no Grande Jubileu do ano 2000, que a Igreja viveu certamente como o jubileu do nascimento de Jesus Cristo, mas também como o jubileu dos primórdios do homem, do seu aparecimento no mundo, da sua elevação e a da sua vocação. A constituição Gaudium et spes afirma justamente que o mistério do homem só se revela plenamente em Cristo: «Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime» (5). A este propósito, São Paulo escreveu o seguinte: «O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão é um espírito vivificante. Mas não é o espiritual que vem primeiro, é sim o natural; o espiritual vem depois. O primeiro homem, tirado da terra, é terreno; o segundo veio do Céu. Qual foi o homem terreno, tais são também os homens terrenos; qual é o homem celestial, tais serão os homens celestiais. E, assim como reproduzimos em nós a imagem do terreno, procuremos reproduzir também a imagem do celestial» (1 Cor 15, 45-49).






Este foi o significado essencial do Grande Jubileu. A efeméride do ano 2000 foi um acontecimento importante não só para o cristianismo, mas também para a família humana inteira. A questão sobre o homem, que incessantemente se põe, encontra plena resposta em Jesus Cristo; pode-se dizer que o Grande Jubileu foi o Jubileu simultaneamente do nascimento de Cristo e da resposta à pergunta sobre o significado e o sentido de sermos homens. E tudo isto tem a ver com a dimensão da memória: a memória de Maria e da Igreja servem uma vez mais para ajudar o homem a reencontrar a própria identidade nesta transição do milénio.


«ALGUÉM TINHA GUIADO AQUELA BALA...»

Naquele 13 de Maio de 1981, como se deram verdadeiramente os factos? O atentado e os eventos que se lhe seguiram não puseram a descoberto qualquer verdade, talvez esquecida, sobre o Papado? Não é possível ler nisso uma mensagem especial sobre a sua missão pessoal, Santo Padre? Vossa Santidade foi visitar à prisão o homem que fizera o atentado, tendo-se encontrado com ele face a face. Como vê hoje, depois de tantos anos, as vicissitudes daqueles dias? O atentado e os factos relacionados com o mesmo que significado adquiriram na sua vida?

João Paulo II: Tudo aquilo foi testemunho da graça divina. Vejo aqui uma certa analogia com a prova a que foi sujeito o Cardeal Wyszynski durante a sua detenção; mas a experiência do Primaz da Polónia durou mais de três anos, enquanto a minha se reduziu a um período bastante breve, só alguns meses. Agca sabia disparar bem, e disparou certamente para me eliminar. Mas, foi como se «alguém» tivesse guiado e desviado aquela bala...

Stanislaw Dziwisz: Agca disparou para matar. Aquele tiro deveria ter sido mortal. A bala atravessou o corpo do Santo Padre, ferindo-o no ventre, no cotovelo direito e no dedo indicador esquerdo; e caiu depois no meio de nós ambos - o Papa e eu. Ouvi mais dois disparos; foram feridas duas pessoas que estavam perto de nós.

Perguntei ao Santo Padre: «Onde?» Respondeu: «No ventre». «E dói?» - «Dói».







Não havia, perto, qualquer médico; não se podia perder tempo a pensar. Imediatamente transferimos o Santo Padre para a ambulância, e dirigimo-nos a grande velocidade para a Policlínica Gemelli. O Santo Padre rezava em voz baixa; depois, já durante o percurso, perdeu a consciência.

Foram vários elementos a decidir da vida ou da morte. Pensemos no problema do tempo, o tempo necessário para chegar ao hospital: alguns minutos mais, um pequeno obstáculo na estrada... e seria demasiado tarde. Em tudo isto, é visível a mão de Deus; tudo o indica.

João Paulo II: Sim, recordo aquela viagem para o hospital; durante algum tempo estive consciente. Tinha a sensação de que iria resistir; sentia grande dor - motivo este que fazia temer - mas nutria dentro de mim uma insólita confiança.

Disse ao Padre Stanislaw que perdoava ao agressor. O que depois aconteceu no hospital, já não o recordo.

Stanislaw Dziwisz: Depois da chegada à Policlínica, o Santo Padre foi levado quase logo para a sala operatória. A situação era muito séria: o organismo do Santo Padre tinha perdido muito sangue; a pressão sanguínea descia de forma assustadora, e mal se sentia bater o coração. Os médicos sugeriram-me que administrasse a Unção dos Enfermos; fi-lo prontamente.

João Paulo II: Praticamente estava já do outro lado.

Sanislaw Dziwisz: Depois fez-se uma transfusão de sangue.

João Paulo II: As complicações posteriores e o alongamento de todo o processo de cura foram, aliás, consequência daquela transfusão.

Stanislaw Dziwisz: o organismo rejeitou o primeiro sangue; mas encontraram-se médicos do próprio hospital que deram o seu sangue para o Santo Padre. Esta segunda transfusão correu bem. Os médicos fizeram a operação pouco convencidos da sobrevivência do Paciente. Como se compreende, não se preocuparam minimamente com o dedo atingido pela bala. «Se sobreviver, depois algo se fará por este problema» - disseram-me. Na realidade, a ferida do dedo cicatrizou depois sozinha, sem qualquer tratamento particular.






Após a operação, o Santo Padre foi transferido para a sala de reanimação. O medo dos médicos era que sobreviesse uma infecção; esta poderia ser fatal, naquela situação. Alguns orgãos internos do Santo Padre estavam comprometidos; a operação tinha sido muito difícil. Mas tudo se cicatrizou perfeitamente, sem qualquer complicação, quando se sabe que, depois de operações tão complexas, é frequente havê-las.

João Paulo II: Em Roma, o Papa moribundo; na Polónia, o luto... Na minha Cracóvia, os universitários organizaram uma manifestação: «a marcha branca» (6). Quando fui à Polónia, disse: «Vim para vos agradecer aquela "marcha branca"». Estive também em Fátima a agradecer a Nossa Senhora.

Ó meu Deus, que dura foi aquela experiência! Acordei apenas no dia seguinte, pelo meio-dia; e disse ao Padre Stanislaw: «Ontem, não rezei Completas».

Stanislaw Dziwisz: Para ser exacto, Vossa Santidade perguntou-me: «Rezei Completas?» Pensava realmente que estivéssemos ainda no dia anterior.

João Paulo II: Não estava realmente a par do que sabia o Padre Stanislaw; a mim não me tinham dito quão grave fosse a situação. Além disso, durante bastante tempo, estive simplesmente inconsciente.

Ao voltar a mim, não me sentia muito em baixo; pelo menos ao princípio...

Stanislaw Dziwisz: Os três dias seguintes foram tremendos: o Santo Padre sofria muitissimo. De facto, havia drenagens de cortes por toda a parte. Apesar disso, a convalescença decorreu rapidamente; no início de Junho, o Santo Padre voltou para casa, não lhe tendo sido imposta sequer uma dieta específica.

João Paulo II: Como se vê, tenho um organismo bastante forte.

Stanislaw Dziwisz: Só mais tarde é que o organismo foi atacado por um vírus perigoso, facto este que se ficou a dever à primeira transfusão ou então ao enfraquecimento geral. Ao Santo Padre tinha sido ministrada uma enorme quantidade de antiobióticos para protegê-lo contra a infecção; e isso reduziu sensivelmente as defesas imunitárias. Foi assim que se desenvolveu outra doença: o Santo Padre foi novamente transferido para o hospital.

Em virtude dos tratamentos médicos intensivos, melhorou tanto o seu estado de saúde que os médicos decidiram que se podia proceder a uma nova intervenção, complementar das operações cirúrgicas feitas no dia do atentado. Para tal, o Santo Padre escolheu a data de 5 de Agosto, o dia de Nossa Senhora das Neves, que no calendário litúrgico é recordada como Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior.

E também aquela segunda fase de tratamentos foi superada. No dia 13 de Agosto - três meses depois do atentado -, os médicos emitiram um comunicado que informava da conclusão dos seus tratamentos hospitalares. O Paciente pôde tornar definitivamente a casa.







Cinco meses depois do atentado, o Santo Padre voltou à Praça de São Pedro para encontrar de novo os fiéis. Não apresentava sombra alguma de medo, nem qualquer stress, ainda que os médicos tivessem avisado que tal poderia verificar-se. Disse então: «De novo me tornei devedor da Santíssima Virgem e de todos os Santos Patronos. Poderia esquecer que o acontecimento na Praça de São Pedro se realizou no dia e na hora em que, há mais de sessenta anos, se recorda em Fátima, em Portugal, a primeira aparição da Mãe de Cristo a pobres pastores? Em tudo aquilo que sucedeu exactamente nesse dia, notei uma extraordinária protecção e solicitude maternal. Esta mostrou-se mais forte do que a bala assassina».

João Paulo II: Durante o tempo de Natal de 1983, fui à prisão visitar aquele que fez o atentado; falámos longamente. Como todos sabem, Ali Agca é um sicário profissional; isto quer dizer que o atentado não foi uma iniciativa sua, mas foi outro que o idealizou e comissionou a ele. Durante todo o colóquio, ficou claro que Ali Agca continuava a interrogar-se como foi possível ter falhado o atentado. Fizera tudo o que era preciso, cuidando o mínimo detalhe; e todavia a vítima escolhida tinha escapado à morte. Como pôde isso acontecer?

O dado mais interessante é que aquela inquietude o tinha levado a pôr-se o problema religioso. Perguntava que era feito do segredo de Fátima, em que consistia esse segredo; neste ponto se fixou principalmente o seu interesse, queria sobretudo saber isso.

Através daquelas insistentes perguntas, ele manifestava talvez que tinha percebido o dado verdadeiramente importante. Provavelmente Ali Agca intuíra que acima do seu poder, acima do poder de disparar e matar, havia uma Força mais alta; e tinha então começado a procurá-La. Espero que A tenha encontrado.

Stanislaw Dziwisz: Classificarei como uma graça do Céu o miraculoso regresso do Santo Padre à vida e à saúde. A nível humano, o atentado ficou um mistério: não o clarificou o processo nem a prolongada detenção do agressor. Fui testemunha da visita do Santo Padre a Ali Agca na prisão. O Papa tinha-lhe perdoado publicamente já no primeiro discurso após o atentado; da parte do recluso, porém, não ouvi as palavras: «Peço perdão». Interessava-lhe apenas o segredo de Fátima. Várias vezes o Papa recebeu a sua mãe e os familiares e perguntava frequentemente por ele aos capelões do estabelecimento prisional.









A nível divino, o mistério é o inteiro desenrolar-se deste dramático acontecimento, que enfraqueceu a saúde e as forças do Santo Padre, mas em nada travou a eficácia e a fecundidade do seu ministério apostólico na Igreja e no mundo.

Penso que não seja exagerado aplicar neste caso o dito: Sanguis martyrum semen christianorum (7). Decerto havia necessidade daquele sangue na Praça de São Pedro sobre o lugar do martírio dos primeiros cristãos.

O primeiro fruto daquele sangue foi, sem dúvida, a união da Igreja inteira numa grande oração pela salvação do Papa. Durante toda a noite que se seguiu ao atentado, os peregrinos que tinham vindo para a Audiência Geral e uma multidão cada vez maior de romanos estiveram a rezar na Praça de São Pedro. Nos dias seguintes, nas catedrais, igrejas e capelas do mundo inteiro foram celebradas Missas e ofereceram-se súplicas segundo as intenções do Santo Padre. Ele mesmo aludiu a isto, dizendo: «Sinto dificuldade em pensar em tudo isto sem me comover, sem um profundo reconhecimento para com todos: para com aqueles que no dia 13 de Maio se uniram em oração, e quantos nela perseveraram por todo este tempo. (...) Agradecido estou a Cristo Senhor e ao Espírito Santo, o qual, por meio deste facto sucedido na Praça de São Pedro no dia 13 de Maio às 17h17, moveu tantos corações para a oração comum. E, pensando nesta grande oração, não posso esquecer estas palavras dos Actos dos Apóstolos que se referem a Pedro: "A Igreja rezava a Deus, instantemente, por ele" (Act 12, 5» (8).

João Paulo II: Vivo constantemente com a noção de que, em tudo o que digo e faço no cumprimento da minha vocação e missão, do meu ministério, acontece algo que não é de minha exclusiva iniciativa. Sei que não sou eu sozinho a agir naquilo que faço como Sucessor de Pedro.

Vejamos o exemplo do sistema comunista. Como já disse anteriormente, contribuiu certamente para a sua queda a deficiente doutrina económica; mas invocar unicamente factores económicos seria uma simplificação bastante ingénua. Por outro lado, sei bem que seria ridículo pensar que foi o Papa que abateu com as próprias mãos o comunismo.

Penso que a explicação se encontra no Evangelho. Quando os primeiros discípulos, enviados em missão, voltam para junto do Mestre, exclamam: «Senhor, até mesmo os demónios se nos sujeitaram em teu nome!» (Lc 10, 17). Cristo respondeu-lhes: «Não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem; alegrai-vos, antes, por estarem os vossos nomes escritos nos Céus» (Lc 10, 20).

E, noutra altura, acrescentou: «Dizei: Somos servos inúteis, fizemos o que devíamos fazer» (Lc 17, 10).

Servos inúteis... A consciência do «servo inútil» vai crescendo em mim no meio de tudo o que sucede ao meu redor - e penso ser esta a posição justa.

Voltemos ao atentado... Penso que este tenha sido uma das últimas convulsões das ideologias da prepotência, desencadeadas no século XX. O despotismo foi praticado pelo fascismo e pelo nazismo, tal como o foi pelo comunismo. O despotismo, motivado com idênticos argumentos, desenvolveu-se também aqui na Itália: as Brigadas Vermelhas assassinavam homens inocentes e honestos.

Construção das Torres Gémeas, inauguradas em 4 de Abril de 1973.



Philippe Petit "atravessa as Torres Gémeas" (7 de Agosto de 1974).


































































O Pentágono atingido no 11 de Setembro de 2001.
















Relendo hoje, à distância de alguns anos, a transcrição dos colóquios de então, noto que as manifestações de violência dos «anos de chumbo se atenuaram notavelmente. Neste último período, porém, estenderam-se pelo mundo as chamadas «redes do terror», que constituem uma ameaça constante para a vida de milhões de inocentes. Impressionante confirmação disso mesmo, foram o abate das Torres Gémeas em Nova Iorque (11 de Setembro de 2001), o atentado na estação de Atocha em Madrid (11 de Março de 2004) e o massacre de Beslan na Ossétia (1-3 de Setembro de 2004). Aonde nos levarão estas novas erupções de violência?

A queda, primeiro, do nazismo e, depois, da União Soviética foi o registo duma falência: mostrou o absurdo total da violência em grande escala tal como era teorizada e praticada por aqueles sistemas. Quererão os homens ter em conta as dramáticas lições que a história lhes oferece? Ou deixar-se-ão, pelo contrário, tentar pelas paixões que se radicam no espírito humano, acolhendo uma vez mais as nefastas sugestões da violência?

O crente sabe que a presença do mal anda sempre acompanhada pela presença do bem, da graça. São Paulo escreveu: «Mas o dom gratuito não é como a falta. Se, pela falta de um só, morreram muitos homens, com muita mais razão a graça de Deus, dom contido na graça de um só Homem, Jesus Cristo, se concedeu com abundância a muitos homens» (Rm 5, 15). Estas palavras conservam a sua actualidade nos nossos dias também; a redenção continua. Onde cresce o mal, ali cresce também a esperança do bem. Nos nossos tempos, o mal desenvolveu-se desmesuradamente, servindo-se da obra de sistemas perversos que praticaram em larga escala a violência e o despotismo. Não falo aqui do mal praticado por indivíduos para interesses pessoais ou através de iniciativas individuais: o mal do século XX não foi um mal em edição pequena, por assim dizer «artesanal»; foi um mal de proporções gigantescas, um mal que se valeu das estruturas estatais para cumprir a sua obra nefasta, um mal erecto em sistema.

Ao mesmo tempo, porém, a graça divina manifestou-se com superabundante riqueza. Não há mal de que Deus não possa tirar um bem maior, nem sofrimento que não saiba transformar em estrada que conduz a Ele. O Filho de Deus, oferecendo-Se livremente à paixão e morte na cruz, tomou sobre Si todo o mal do pecado; o sofrimento de Deus crucificado não é apenas uma forma de sofrimento a par de outras, nem uma aflição mais ou menos grande, mas é um sofrimento de grau e medida incomparáveis. Cristo, sofrendo por todos nós, conferiu um novo sentido ao sofrimento, introduziu-o numa nova dimensão, numa nova ordem: a do amor. É verdade que o pecado entra na história do homem com o pecado original; o pecado que é aquele «aguilhão» (cf. 1 Cor 15, 55-56) que nos faz sofrer, que fere mortalmente o ser humano. Mas, a paixão de Cristo na cruz deu um sentido radicalmente novo ao sofrimento, transformou-o a partir de dentro: introduziu na história humana, que é história de pecado, um sofrimento que abre a porta à esperança da libertação, da eliminação definitiva daquele «aguilhão» que atormenta a humanidade; o sofrimento que queima e destrói o mal com a chama do amor, e até do pecado tira um florescimento pluriforme de bem.






Todo o sofrimento humano, toda a dor, toda a doença encerram uma promessa de salvação, uma promessa de alegria: «Alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa» - escreve São Paulo (Col 1, 24). Isto vale para todo o sofrimento provocado pelo mal, incluindo o mal social e político enorme que actualmente divide e abala o mundo: o mal das guerras, da opressão de indivíduos e povos; o mal da injustiça social, da dignidade humana espezinhada, da discriminação racial e religiosa; o mal da violência, do terrorismo, da corrida aos armamentos. Todo este mal existe no mundo também para despertar em nós o amor, que é dom de si próprio no serviço generoso e desinteressado a quem foi visitado pelo sofrimento.

No amor que tem a sua fonte no coração de Cristo, está a esperança para o futuro do mundo: Cristo é o Redentor do mundo; «pelas suas chagas, fomos curados» (Is 53, 5).

(in op. cit., pp. 137-141; 149-157).


Notas:

(4) Lumen gentium, 63.

(5) Gaudium et spes, 22.

(6) Alude-se ao cortejo que se realizou em Cracóvia, no domingo a seguir ao atentado: nele tomaram parte dezenas de milhar de estudantes e cidadãos comuns vestidos de branco, para simbolizar a oposição às trevas do mal e da violência. Da esplanada da Blonia, o cortejo dirigiu-se, em silêncio, pela avenida Trzech Wieszczów, Rua Karmelicka, Rua Szewska até à Praça do Mercado (Rynek), onde, ao meio-dia, o Cardeal Franciszek Macharski, Arcebispo de Cracóvia, celebrou a Santa Missa [N. d. R.].

(7) «O sangue dos mártires torna-se semente de cristãos».

(8) Catequese na Audiência Geral de 7 de Outubro de 1981, 4-4, em: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 11/X/1981), 472.














Primeiras peregrinações ao local das Aparições de Nossa Senhora do Rosário.





















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