Escrito por Francisco da Cunha Leão
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Manuel Maria Barbosa l'Hedois du Bocage
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Não resistimos a uma incursão no campo das letras, susceptível de nos mostrar outra face da psique portuguesa e a libertação dos aspectos melancólicos e abissais que tantas vezes contracenam ou transparecem na acção.
Entre os nervosos destaquem-se os poetas Bocage, Gomes Leal, Sá-Carneiro e Eugénio de Castro, o prosador Fialho de Almeida.
Bocage, um nervoso indisciplinado, inactivo, boémio, de comoção repentista, ao sabor da maré, em fogo de amor, escárneo e desespero. Sá-Carneiro inadaptado narciso («E eu, a Estátua!» «O meu desdém Astral»), hiper-sensitivo em que as imagens se tornam estridentes, se copulam hibridamente em orgias de cor e sexo, numa luxúria aberrante e luxuosa, entre megalómanos assomos («Lord que eu fui de Escócias de outra vida», «Mitrado de oiro e lua», «Que, César, mandei vir dos meus viveiros de África») e obsessões da sua pessoa («Cais de me cismar», «Catedrais de ser Eu», «ó pântanos de Mim?», «Pra que me sonha a beleza...?).
Nervoso altivo deveria ter sido Eugénio de Castro, sobretudo esteticista, aristocrata da palavra e da atitude, com sua joalharia de vocábulos selectos. Expressão precisa, recortada com nitidez e um comportamento menos primário e mais compatível com a vida prática. Certo discolismo ressuma de alguns dos seus poemas.
Em Gomes Leal manifesta-se o nervoso «dissoluto» (
influenciável segundo a escala de Paulhan). Presentista, entregue ao momento, muito inactivo mas de consciência larga, volúvel e aberto aos ventos de todas as direcções - ideológicas, místicas, ou simplesmente exóticas. Tão poeta como vagabundo, vai do janotismo à indigência, oscila entre satânico e piedoso. Tanto apedreja como se comove infantilmente. Vive e poeta sem auto-crítica, anarquicamente, com a liberdade que têm as aves.
A linguagem de Fialho reflecte o sensível frenético, ocioso, de múltiplos interesses e a tudo vibrátil. Rebrilhante, expressiva, morde o exagero, cheia de rebusques nervosos; é deformado espelho da agudeza e mobilidade das impressões e da inconstância do temperamento.
Continuando pelos emotivos primários, se agora considerarmos os activos (coléricos), várias figuras prestes ressaltam: Santo António de Lisboa, José Agostinho de Macedo, Guerra Junqueiro, Leonardo Coimbra.
A vida do taumaturgo português é movimento e luta. «Martelo de Deus», assim chamavam ao pregador franciscano. Duro, contundente fustigador de erros, deveria ter sido. Justo nos parece por isso o comentário de Jaime Cortesão ao dizer que o «franciscano nascera na pele de um irmão de S. Domingos», e ao marcar a distância que vai entre esse colérico apóstolo e a visão popular portuguesa do
Santo Antoninho, curiosa filtragem através da nossa pieguice de um dos mais violentos defensores da Fé (2).
José Agostinho constitui protótipo de colérico polemista. Desregrado, truculento, pletórico de energia, como que criava as dificuldades para ter ensejo de lutar (3).
À família dos «coléricos poetas» (em que é classificado Vítor Hugo) pertence Guerra Junqueiro. Poesia enfática, não raro panfletária, ritmos badalados, mesmo em lirismo. Verbo extravasante de ataque, trombeta de Gedeão a comandar a marcha.
Também o filósofo Leonardo Coimbra nos parece de enquadrar nos coléricos. Sempre empenhado, aproveitando todas as oportunidades para agir, talento demonstrativo e oratório manifesto. Espírito largo convivente, de feição optimista e luminosidade solar. Dado à acção pessoal directa, mas assistemático, ressumam da sua vida e obra emotividade primária e a febre da acção. Pedagogo apóstolo por excelência, vivia o imediatismo e a dialéctica das relações humanas; deixou por isso discípulos.
Passando aos emotivos secundários, estes, numerosos entre nós, dão-nos talvez de preferência a outros caracteres, a nota mais lídima da sensibilidade portuguesa.
Entre os sentimentais: Bernardim, Soares de Passos, Cesário Verde, Eça de Queiroz, Antero de Quental, António Nobre, Raul Brandão, Pascoaes, Afonso Lopes Vieira.
Nos apaixonados: Camões, Agostinho da Cruz, Fernão Mendes Pinto, António Vieira, Herculano, Camilo, Oliveira Martins.
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Padre António Vieira
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O poeta do «Só» é um sentimental puro, introversivo, com aspectos para-nervosos. Se por um lado exibe a espontaneidade da poesia pura, uma espontaneidade fresca, adolescente, e o culto do
eu (a torre de Anto, etc...), António Nobre apenas impulsivamente é presencista; por mais voltas que dê, mesmo em Paris, sente-se apegado à terra onde nasceu, aos velhos afectos, à humanidade que o rodeou na infância; o que vê, ainda que pintado ao vivo, não passa de pretexto para saudades. Reflexivo fora dos repentes, sempre nostálgico (os «males de Anto»), a sua emotividade é retentiva, nutre-se do já vivido.
Teixeira de Pascoaes, um pouco menos emotivo, ainda mais secundário, contempla e vive a natureza em todos os seus elementos, propende a um filosofar cosmogónico, mítico. Insere-se no sub-grupo dos sonhadores, agarrado à sua montanha (o Marão) e ao seu vale (do Tâmega) numa constância de afectos que lhe dissolve os impulsos. Faz da vivência da Saudade a primeira e última substância de tudo quanto existe.
E Antero deu mesmo em sófico poeta, coisa a que são atreitos os vates sentimentais, dado que no sentimental há algo que transita do nervoso ao fleumático, mais ou menos distante de um ou de outro destes dois contra-pólos. No autor dos «Sonetos» e das «Odes Modernas», a secundaridade pendeu ao filosofema e à devoção social. Este o Antero a que Sérgio chama
apolíneo. O primeiro será o
nocturno (4).
Outro sentimental foi Raul Brandão, contemplativo, hiper-sensível à natureza e às agruras dos humildes. Não só há discolismo na sua obra, como sentido trágico. A tragédia do grotesco ninguém a percebeu como ele. O seu gosto da quietude, a elaboração a que sujeitava as impressões, são de um emotivo já secundário, não activo.
Cesário Verde e Eça de Queiroz, a nosso ver, fazem parte da mesma família caracterológica. Ambos emotivos mas secundários, de actividade moderada, sentindo a sedução da novidade bastante contemplativamente, porque no fundo amavam os hábitos e as comodidades do sedentarismo. Aguda sensibilidade, um ou outro impulso de nervos; mas, a par disso, poder de observação objectiva, ironia, e a implacável contenção dos rasgos emotivos. A secundaridade levou Eça de Queiroz ao equilíbrio das proporções e à magistral arquitectura do romance, à disciplina das efusões sentimentais; na mesma, em Cesário, ao domínio dos desabafos no espartilho das formas lapidares, com perfeito senso da medida, já que as não dilata nem sufoca. Também os levou à análise social. Um e outro puderam ver como de fora os seus próprios sentimentos, contê-los e valorizá-los. Situam-se no grupo dos sentimentais para-apáticos, dominando quais artífices pacientes uma substância de emotividade rica. Os elementos delongantes do estilo de Eça, com a adjectivação dilatória e a condescendente ironia, e bem assim os comentários tão naturais de Cesário nas suas deambulações, ora de admiração retida («Milady, é perigoso contemplá-la»), ora de carinhosa troça («A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia/Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...»), («Os querubins do lar flutuam nas varandas») denotam a finura e a mestria da sensibilidade.
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Camilo Castelo Branco
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Muito emotivo e activo nos aparece Camilo, com obra vastíssima e vida tormentosa. A despeito de certos aspectos primários (improvisação, assistematismo, talento para a peripécia romanesca), a importância que dá ao pretérito, a vivência das recordações, o comprazimento na expansão sentimental e na glosa melancólica levam-nos a valorizar-lhe a secundaridade e a alinhá-lo, portanto, nos apaixonados. Seu humor é desigual, eruptivo, indominado, avesso a proporções. Seja. Mas uma vis interior, de apaixonado, caldeia as desconexões numa constância trágica, muito pessoal, que sobressai dos lances nervosos e coléricos do seu génio tão desconcertante.
De apaixonado para-nervoso (Sub-grupo dos proféticos), podemos classificar o Pe. António Vieira. Ardoroso, activo, praticando um cristianismo de promoção de raças e um patriotismo ucrónico, votado ao futuro, à redenção do mundo. Barroco da palavra e orador de vocação, os seus objectivos situam-se distantes, inserem-se num plano ideal de transformação ecuménica. Pertence à família de Santo Agostinho, Carlyle e Nietzsche.
Fernão Mendes Pinto, outro apaixonado. Verdadeira curiosidade pelo Mundo, gosto da aventura, uma existência plerótica de incríveis vicissitudes. Mas não foi só isso que seria de molde a enquadrá-lo na família dos coléricos aventureiros. O autor da «Peregrinação» não se limitou a viver com intensidade o exotismo das terras novas e a descrevê-las incomparavelmente; manifesta, a cada passo, uma tendência reflexiva profunda, serena e a compreensão dos homens, meios sociais, a um tempo repassada de humanismo e sentido crítico. Isto sobreleva-o da mera literatura de viagens ou de aventuras, faz do seu longo livro tão fértil em peripécias, um documento humano ímpar (5).
Pela sua forte secundariedade expressa em avidez pelo documento histórico e gosto de ordenador, a que presidia um espírito extremamente sério e um carácter íntegro, pela coerência, gravidade e amor ao trabalho probo, Herculano cabe nos apaixonados severos. Já Oliveira Martins, menos secundário na emotividade, imaginativo, inclinado à história, aos temas sociais e à intermitência política, está bem nos apaixonados laboriosos.
E Luiz de Camões? Com intenção o deixámos para o fim nesta galeria de apaixonados insignes, dado que propendemos a crer, de acordo com Marques Braga, que a psicologia dos portugueses eminentemente se encontra no maior dos seus poetas. Em visão caracterológica imediata, o seu recorte é de apaixonado-sentimental, classe a que pertence Miguel Ângelo, na qual se evidencia a força do agrupamento ES [emotivo-activo-secundário], com actividade A [apaixonados] que, excedendo a média dos homens, é inferior à dos considerados activos. Oscilou «entre o sentimento da existência íntima e a realização mais ou menos sistemática de uma ordem de determinação» que segundo La Senne é o traço mais profundo deste carácter. A emotividade de Camões faz impressão, embebe toda a sua obra, forma o substracto e o nexo profundo, enebriante de todas as peças, ainda que articuladas; irrompe da própria epopeia como nascente irreprimível, «excesso definitivo da alma sobre a acção». Ígnea personalidade que em si ardendo destruía todos os círculos limitadores (Agostinho da Silva). A par do fôlego passional em que os eventos do amor e da condição humana sentidos na carne são transportados ardentemente, em largos degraus, aos páramos da sublimação ideal, avultam a capacidade sistematizadora e o poder de concepção do autor de
Os Lusíadas.
Os seus vastos, pungentes desalentos, a elaboração filosofada dos estados de alma, opõem-se à primaridade de um lendário trinca-fortes, por alguns sobrevalorizada.
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Túmulo de Luís de Camões no interior do Mosteiro dos Jerónimos.
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Não faltaram à vida do poeta aventura e as mais variadas ocorrências - zaragata, guerra, prisão, tempestade e naufrágio. Para uma definição caracterológica e de estilo, que representa isso perante a magnitude de uma obra onde se estampam grandes e experimentados sofrimentos, congeminações transcendentais e ardorosa vivência idealista? Por certo só uma inteira vida interior, leitura, reflexão, isolamento, - mais do pendor natural de Camões do que forçados - poderiam ter conduzido o seu estro a realizar-se em tão perfeitas criações. Português complexo e completo, ele sintetiza, em estrato genial, uma tendência para a acção logo que preciso intrépida e a propensão reflexiva, profunda, melancólica de um povo no qual o heroísmo enreda as ternuras do coração. O elemento líquido da maior Odisseia - a dos Lusíadas - anda nas almas em desassossego e lágrimas.
Quanto aos não-emotivos na seara das nossas letras parece-nos mínima a sua participação nas maiores alturas.
Ramalho Ortigão é de inscrever nos sanguíneos. Espírito claro, objectivo, interessado em progresso e bem estar-social, sadio, desapaixonado. Amante da ordem, da arte, do ar livre, da vida saudável, capaz de contundência, mas sem emoções febris ou deprimentes. A «ramalhal figura» nada fanática, pouco se dava à lucubração; vivia de poros abertos, impressionável sem desequilíbrio nem nervosismo.
Temos porém a assinalar um caso espantoso, em antítese idiossincrática da generalidade portuguesa, no entanto de altíssima expressão nacional, estranho fruto de um país de paradoxos: Fernando Pessoa, um grande poeta fleumático.
Homem laborioso, discreto e de hábitos, embora avesso a obrigações de horário, pouco expansivo, sentimentalmente instável mas de humor sempre igual, a quem o isolamento não impressionava, tão cumpridor «correspondente estrangeiro» como constante e exímio letrado, no entanto desprendido de dinheiros, sem pressas de publicação nem de glória literária, espírito isento, ensimesmado, capaz de aturada elaboração.
Não emotivo, activo, secundário são os caracteres do fleumático. Como explicar o grande poeta, a sua riqueza de fundo e formas e a variedade dos aspectos, concedendo-lhe apenas fraca emotividade (abaixo da média)? Por uma inteligência, ao que se vê excepcional, que o levou à mais esclarecida compreensão dos outros. A compreensão dos emotivos é instintiva, a dos fleumáticos cerebral. Lorca apreendeu a expressão cigana e a galega, mediante genialidade intuitiva; Fernando Pessoa criou os heterónimos por genialidade inteligente. Facetas da sua maneira de ser? Sem dúvida, mas corporizadas e exploradas, postas a viver e sentir por quem, frio e inteligente, era capaz de se despersonalizar, a ponto de fotograficamente se imprimir por outrem e genialmente «fingir» com base numa fracção emotiva mínima.
Pôde ser um médium da psicologia portuguesa, da alma colectiva nacional que superiormente vazou em termos épicos e míticos, a ponto de, a tal respeito, se tornar um dos autores padrões. De onde resulta contrapolarmente neste país de opostos que o outro dos seus máximos porta-vozes, espécie de Camões da modernidade, veio a ser um ciente jogador de mitos: «sebastianista racional».
O núcleo AS (activo-secundário) existe nos dois. A oposição emotivo-não emotivo explica todo o contraste. A carência de calor emocional impediu a unidade do segundo grande poeta, impediu a fusão das facetas numa só direcção dinâmica.
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Fernando Pessoa
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Tirada a paixão a Camões ficou Fernando Pessoa. «A diferença que há entre Camões e Pessoa é a diferença que há entre um homem e a sua inteligência», diz um ensaísta (6). Dois pólos geniais de uma Pátria, - o apaixonado e o fleumático -, entre a acção e a sua consciência estreme enfeixam os dilatados meridianos de um longo ciclo histórico. O outro Camões que profetizou Pessoa abriria um novo ciclo a consciencializar. E assim tem acontecido na História: Homero - Aristóteles; Cervantes - Unamuno; Shakespeare - Toynbee, etc... (
ob. cit., pp. 200-211).
Notas:
(2) «O Humanismo universalista dos portugueses» - p. 56-57.
(3) Ver Carlos Olavo - «A vida turbulenta de José Agostinho Macedo».
(4) «Ensaios» - vol. IV.
(5) Ver Le Gentil - «Fernão Mendes Pinto e Jaime Cortesão,
ob. cit.