domingo, 23 de janeiro de 2011

Cavaco é um contabilista

Escrito por Orlando Vitorino




Numa entrevista vinda a lume em Vida Mundial (n.º 5, IV série, 21 a 27 de Jun. 1989), Orlando Vitorino diz-nos o essencial sobre Cavaco Silva e a baixa política subordinada a poderes e organizações internacionais. De resto, o filósofo situava-se numa época prenunciadora de um Portugal sem moeda própria e politicamente amordaçado pela burocracia europeísta em queda vertical. Se tivéssemos que caracterizar, em sua mensagem, o entrevistado, deduzindo o presente, não do passado, mas do futuro, diríamos que, para Orlando Vitorino, o fascismo é um fantasma e o comunismo uma múmia.

O autor de Exaltação da Filosofia Derrotada verberava ainda contra a política do Governo e a inveja da oposição. É, pois, com total desassombro que já então denunciava a insídia do sistema eleiçoeiro
: «O povo não elege coisa nenhuma, quem elege são as direcções dos partidos». E também dizia a verdade quando afirmava peremptoriamente que a «Direita em Portugal tem sido terrivelmente estúpida porque se caracteriza por uma incultura atroz».

Demais, Orlando Vitorino, prosseguindo, a seu modo, a linhagem filosófica de Leonardo Coimbra, José Marinho e Álvaro Ribeiro, fora um candidato singular às eleições presidenciais de 1986. Personalidade verdadeiramente independente, que não acreditava num sistema político em que os partidos detêm o monopólio do poder, defendia a existência de um escol radicado na fisionomia espiritual da Pátria portuguesa. E também sabia perfeitamente o que os intelectuais omitem por tibieza, cobardia e rebeldia à verdade, a saber: que as instituições oficiais de cultura universitária não passam de funestas instituições antipatrióticas desde o Marquês de Pombal.


Miguel Bruno Duarte




Cavaco é um contabilista


V.M. – O Professor foi candidato à Presidência da República em 1986. Passados três anos, o que pensa, agora, de Mário Soares?

O.V. - Que não é capaz, e não quer alterar a política existente.

V.M. – E de Cavaco Silva?

O.V. - Que é o que é: um economista exclusivamente e sem consciência da teoria económica que toda a prática da economia supõe, portanto um contabilista.

V.M. – Mas que política é essa que o P.R. não foi capaz de alterar?

O.V. - É uma política assente na prática do Keynesianismo, que é a última tábua a que se agarrou o socialismo naufragado. O Keynesianismo foi adoptado pelo Instituto Superior de Economia, onde se formou Cavaco Silva que depois foi apurar essa teoria a Inglaterra. O que é certo é que se trata de uma pessoa, como toda a gente sabe e o próprio reconhece, sem preparação cultural, logo não pode aprofundar uma prática económica. Aliás, reconheceu-o num livro, que publicou sobre a sua actividade como ministro das Finanças, no Governo de Sá Carneiro, no qual diz que pôs de parte, logo de entrada, o monetarismo porque nenhum deles sabia o que isso era. Cavaco Silva é, como creio que ele próprio diz, um socialista.






V.M. – Acha que é o neoliberalismo que pode resolver os problemas que preocupam o nosso país em termos económicos, ou mesmo políticos?

O.V. - O liberalismo é a ciência da economia. No sentido em que tal como há uma física na qual os fenómenos naturais e o seu estudo constituem a ciência da física, assim também há uma ciência da economia em que os fenómenos económicos estão sujeitos às regras, finalidades e processos que essa ciência conhece.

V.M. – No entanto, repare, mesmo em Física, e relativamente à luz, por exemplo, existem duas teorias que não se excluem mutuamente: a teoria corpuscular ou quântica e a teoria ondulatória que envolve outro tipo de conceitos. Como é que pode afirmar que a economia só pode ser estudada na perspectiva liberal?

O.V. - Não envolve outro tipo de conceitos, mas outro grau de desenvolvimento dos mesmos conceitos. Por exemplo, a física moderna considera que a matéria é divisível até ao ponto elementar em que se foi considerando, ao longo da história da Física, o elemento indivísivel. Passou-se da molécula ao átomo, até ao quanta, uma pura quantidade. Isto não significa que as teorias anteriores sejam diferentes da actual. Na economia há uma realidade que tem os seus processos e modos de funcionamento que são o objecto da ciência económica. Esta é distorcida por finalidades políticas; surgem então conciliações entre a ciência da economia e uma moral ou sentimentalidade.

V.M. – Mas o neoliberalismo ou qualquer outra teoria económica, tem implícita, em si, uma teoria política...

O.V. - No liberalismo não é a ciência económica que implica uma política. É uma política que implica a ciência económica.

V.M. – Que política é essa?

O.V. - É aquela política que considera as sociedades com todos os seus elementos, que são muito variados. Uma das realidades implícitas na política é a economia, mas a política tem que considerar essa realidade naquilo que ela mesma é. Não pode ser uma realidade distorcida por outros domínios, outras finalidades que lhe são alheias. O socialismo é um sentimentalismo que se exprime na fraternidade, na assistência social, naquilo a que se chama justiça social e não se percebe o que é, etc. Suponha que existe um igualitarismo em termos de salários: isso vai contra as realidades económicas porque as pessoas são todas diferentes e todas ganham consoante a sua diferença.

VM – Em princípio seria mais uma questão de igualdade de oportunidades...

O.V. - Isso são já nuances dadas ao mesmo igualitarismo. Como a ciência económica diz que a realidade é incompatível com isso, o socialismo procurou criar uma doutrina económica em que a realidade era distorcida para estar de acordo com o sentimentalismo socialista.

V.M. – No entanto, a acção de Cavaco Silva, ao implementar as privatizações, por exemplo, foge a esse ideal socialista que lhe atribui...

O.V. - O que acontece é que o socialismo adquiriu muita força política: ficou implantado praticamente em todo o mundo e é a doutrina cujos slogans mais seduzem o eleitorado. De modo que os partidos socialistas, verificando a catástrofe a que levava os povos, foram-se agarrando a soluções liberais, mantendo a designação de socialismo, mas tendo um conteúdo socialista cada vez menor.

V.M. – E mais retórico?

Claro, no mau sentido. Exclusivamente retórico. Deu-se uma transferência da acção socialista da economia para outros domínios. Por exemplo, a Alemanha saiu da guerra completamente destroçada, abaixo de zero. No entanto, com o Governo Liberal de Adenauer, que fez aquilo a que se chama o «milagre alemão», o país regressou à prosperidade. Simplesmente, passados uns tantos anos a sedução das massas pelos slogans levou ao poder o Partido Socialista alemão. Era de tal maneira evidente aquela prosperidade criada pelo liberalismo que os socialistas não lhe puderam tocar, desviando a acção socialista para a cultura. O que é certo é que a cultura alemã atingiu os níveis mais baixos de sempre, a situação em que se encontra hoje. Em Portugal está-se a dar um fenómeno semelhante: o PSD, que é um partido socialista, não tem nenhuma solução diferente da do PS. No entanto, são partidos que se opõem um ao outro.






V.M. – Uma questão de jogos de poder...

O.V. - Pois é. Não podemos esquecer que os partidos são associações privadas. Nesta democracia eleitoralista é-lhes dado o monopólio do poder. Portanto, a associação privada que é o Partido Socialista opõe-se à associação privada que é o PSD, ambos querem ter o poder do Estado.

V.M. – Defende então um regime em que não existam essas associações privadas?

O.V. - As associações privadas podem existir sempre. Até para fins políticos, o que não podem é ter o monopólio dos poderes do estado.

V.M.– E como é que pode ser distribuído esse poder?

Por exemplo, qualquer pessoa se pode candidatar às eleições. Só que, do modo que as coisas estão apenas se podem candidatar aqueles que forem escolhidos pelos partidos. O povo não elege coisa nenhuma, quem elege são as direcções dos partidos.

V.M. – E o senhor, quando se candidatou à Presidência da República?

O.V. - É o único orgão do poder em que é reconhecido o direito de os indivíduos se candidatarem. Só aí este sistema tem uma democracia directa. De resto, são os partidos que mandam. Simplesmente, as máquinas eleitorais estão organizadas e quando um indivíduo aparece é cilindrado por elas.

V.M. – Foi essa a sua experiência?

O.V. - Escrevi um livro, que foi completamente sabotado (é impressionante a eficácia de uma sabotagem), e apresentei a questão em Tribunal Constitucional.

V.M. – E qual foi o resultado?

O.V. - Nenhum. Veja bem, a Constituição admite-me capacidade para concorrer à Presidência da República, o Tribunal Constitucional negou-me personalidade jurídica para impugnar os actos eleitorais desta máquina cilindradora que são os partidos. Está a ver a contradição?...

V.M. – Sente que foi, de algum modo, boicotado pela Imprensa?

O.V. - Tudo isso está escrito no tal livro sabotado, mas que aliás teve larga distribuição. Tudo muito bem documentado.

V.M.– Mas porquê?

O.V. - Porque eu era de fora. Não pertencia a nenhum partido.

V.M.– então quem não está nos partidos não tem possibilidade de se exprimir?

O.V. - Claro. São os partidos que têm o monopólio dos poderes do Estado.

V.M. – Que lugar pode ter um independente neste sistema?

O.V. - Não tem possibilidade. Pode, por exemplo, dar uma entrevista como esta que estou a dar, mas sem a certeza de que vai ser publicada. Dei uma entrevista à RTP-Madeira que não foi transmitida, bem como uma outra aos jornais da Madeira que não foi publicada.

V.M. – Por defender o separatismo...

O.V. - Eu não defendia o separatismo, mas que as Regiões Autónomas fossem Estados. Eu entendo que o Estado não é o que há de mais importante na existência de um povo. É a efectividade do Direito. Depois há toda a vida de um povo para a qual existem as grandes entidades como a Nação, a República e a Pátria. Ora a Pátria continuava a ser a mesma, tal como a República e a Nação.

V.M. – Então o Estado limita-se ao Direito?

O.V. - À efectivação do Direito. Nem sequer o faz.


V.M. – É então meramente executivo. E quem é que legisla?

O.V. - Eu admito a criação de orgãos especiais para a elaboração de leis.

V.M. – Como é que se constituem esses orgãos?

O.V. - Trata-se de um colégio recrutado entre as pessoas de reconhecido saber que existem num povo.

V.M. – Defende pois o poder de uma elite?

O.V. - Pois evidentemente. Há sempre uma elite, já que o poder está nas mãos de uma minoria. Neste momento são as direcções dos partidos.

V.M. – Mas esses estão no poder legitimados pelo sistema legal, foram eleitos segundo a lei...

O.V. - Nenhum jornalista ignora que as eleições são uma farsa. Todos têm disso experiência. A legitimidade não reside no facto de haverem documentos que têm a forma literária de leis, provém da lei autêntica.

V.M. – Não percebo como é que legitima o facto de um pequeno grupo de homens, uma minoria, detenha o poder e decida sobre a vida dos outros.

O.V. - Há sempre uma minoria a decidir tudo. Quem nos governa hoje em Portugal é uma minoria. Quando se reconhece que a minoria é que governa ela tem de ser qualificada. Não há pessoas a candidatarem-se para lhe pertencerem, mas pessoas chamadas para fazerem parte dela. São os que reúnem as qualificações pessoais para lhe pertencerem. O sábio é que vai determinar e esclarecer as medidas a adoptar nos domínios da sua especialidade.

V.M. – Mas isso não se tem revelado perigoso ao longo da história?

O. V. - Nunca se fez. O único caso são os marxistas que se consideram como senhores de toda a verdade e saber.

V.M. – O que pensa da Direita em Portugal?

O.V. - Em Portugal, ou temos que considerar que não há uma Direita, ou considera-se de Direita aquelas pessoas que são de algum modo críticas em relação às finalidades do socialismo. Admitamos que, por exemplo, a CIP é uma organização de Direita. O que acontece é que a Direita em Portugal tem sido terrivelmente estúpida porque se caracteriza por uma incultura atroz, a todos os níveis, desde o multimilionário até ao pequeno empregado. São, não só ignorantes, muito incultos, como para eles a cultura é incómoda, qualquer coisa que deve ser tratada desdenhosamente...

V.M. – Porque a cultura é de esquerda?

O.V. - Não. Os esquerdistas é que têm tendência a valorizar a cultura. Mas só na medida em que fazem dela seu instrumento, o que é outra maneira de a negar. Mais eficaz que o procedimento da Direita.

V.M. – É que a Direita quer conservar a cultura para a sua élite, não a dá às massas.

O.V. - A direita não tem elites. As minorias que a comandam são compostas de argentários ou de esperançosos em ser argentários

V.M. – Em termos de partidos, não encontra um de Direita em Portugal?

O.V. - Pois não. Há quatro partidos, nenhum deles de direita.

V.M. – Então o CDS não é de Direita?

O.V. - O CDS é uma coisa evanescente. O Lucas Pires tem sido de tudo, tem feito todo o percurso, chegou a ir a Maputo dizer que o marxismo é que estava certo. A sua acção como ministro da Cultura foi mais marxista que a de Vasco Gonçalves. Trata-se de falsos neoliberais, desde o sr. Ferraz da Costa até ao sr. Lucas Pires. Deixam de se dizer quando o partilham e usufruem.

V.M. – Como analisa a questão da CEE e da integração de Portugal?

O.V. - A CEE tem aquele mesmo equívoco de que falei há pouco relativamente ao socialismo naufragado que se agarra ao liberalismo. Os socialistas, que foram tomando o poder em toda a Europa, trataram de socializar a CEE. Política e economicamente. Por isso a sra. Thatcher diz a verdade quando afirma que a CEE é socialista e socializante, e quando diz que não quer que o socialismo lhe entre pela porta da CEE quando ela o expulsou através da sua política.









V.M. – Seria a favor ou contra a unificação política europeia?

O.V.- Isso é algo que vamos esperar para ver o que acontece. O que eu defenderia é que Portugal estivesse positivamente na CEE, isto é, que se aliasse a acções como a do Governo inglês para que a CEE fosse um órgão de economia liberal e não de economia socialista.

V.M. – Não considera o perigo de, com a integração, Portugal perder os seus contornos culturais próprios?

O.V. - Isso depende do poder da cultura de cada povo. Em França, Inglaterra, Alemanha ou Itália, ninguém pensa que vão perder a sua identidade cultural com a integração na CEE. Porque têm culturas fortes.

V.M. – Então porque é que em Portugal se pensa isso? Temos uma cultura fraca?

O.V. - Em Portugal temos tudo a negar a nossa cultura: as universidades estão há dois séculos a trabalhar para isso, os partidos políticos a procederem na ignorância do que é a cultura e na sua destruição. Não há em Portugal a consciência e a segurança de uma autonomia cultural que lhe permita manter-se no xadrez das culturas europeias.

V.M. – Vai votar nestas eleições?

O.V. - Não. A abstenção também é um voto. Se amanhã aparecerem mais de 50 por cento de abstenções, este sistema político, em consciência e verdade, tem de ser substituído.

V.M. – E qual é o sistema que vem?

O.V. - Um sistema em que os partidos não detenham o monopólio do poder de Estado.


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