quinta-feira, 7 de março de 2019

A descoberta do processo sugestivo da hipnose pelo Abade Faria

Escrito por Egas Moniz





«José Custódio de Faria, também conhecido em Portugal e em França pelo nome de Abade Faria, nasceu em 30 de Maio de 1756 na aldeia de Candolim, no concelho de Bardês, em Goa. Baptizado na Igreja de Nossa Senhora da Esperança, era de nobre ascendência, pois seu pai, Caetano Vitorino de Faria, descendia do brâmane Antú Sinay, convertido ao cristianismo nos finais do século XVI, e sua mãe, D. Rosa Maria de Sousa, pertencia a uma ilustre e abastada família portuguesa conhecida pelos "Quencrós". O casal separar-se-ia por volta de 1764, com o ingresso de Caetano de Faria na vida eclesiástica e o recolhimento de D. Rosa Maria de Sousa ao convento de Santa Mónica, em Goa, onde fora prioresa, segundo a tradição.

Partindo para Lisboa com apenas quinze anos de idade, em 21 ou 22 de Fevereiro de 1771, José Custódio de Faria, acompanhado de seu pai, ali desembarcara a 23 de Novembro do mesmo ano. Por conseguinte, sob a protecção do Núncio Apostólico em Lisboa, o Arcebispo de Tiro, Monsenhor Inocêncio Conti, pai e filho largaram para Roma em 1772. Já na Cidade Eterna, o primeiro obteve o grau de doutor em teologia e o segundo, como interno, realizou os seus estudos no Colégio da Propaganda Fide, subsidiados pelo rei D. José I. Volvido o seu progenitor à capital portuguesa em 1777, José Custódio de Faria prosseguiria o curso teológico até 1780, ano, aliás, em que fora ordenado presbítero e em que concluíra a sua tese de doutoramento sobre a Trindade, dedicada à rainha D. Maria I e ao rei D. Pedro III.

Já com vinte e quatro anos de idade, o jovem teólogo voltara para Lisboa, onde, no meio eclesial e aristocrático, conquistara o respeito e a admiração dos seus compatriotas. Entretanto, seu pai, pessoa influente na corte, deixara-se envolver na conjuração de Goa de 1787 (também conhecida pela Rebelião dos Pintos), cujo móbil tivera em vista expulsar os portugueses do Governo da Índia. O motivo do seu envolvimento nessa conjuração encontra-se no estado de relaxação que atribuía às ordens religiosas, bem como à sua indignação "contra os ministros e militares", para não dizer "contra tudo o que é português na Índia, por conta das vexações e o abatimento com que tratam os naturais, maltratando-os com dispêndios e violências e extorquindo-lhes tudo quanto têm". Detido no Convento dos Paulistas, à Calçada do Combro, em Julho de 1788, não se sabe ao certo se o seu filho já teria então partido para Paris, embora se admita a sua saída na Primavera de 1788. Quanto ao seu possível envolvimento, fica também a dúvida: "se foi [para Paris] antes [de Julho de 1788], não pode ter fugido a perseguições ou receios, inexistentes ou desconhecidos; se foi depois, não se compreende porque não foi preso." Seja como for, consta que, em Paris, assistira às peripécias da Revolução Francesa, chegando a dirigir, em 5 de Outubro de 1795, um batalhão de revolucionários da Secção de Ponceau, contribuindo assim para a queda da Convenção. Travou ainda, por essa altura, estreitas relações com um discípulo de Franz Mesmer, o marquês de Puységur, a quem, aliás, sempre reconhecera a importância dos ensinamentos obtidos no domínio das práticas hipnóticas.

Tendo professado filosofia em Marselha em 1811 (sendo, ao fim de um ano, transferido para Nimes), e sido eleito membro da Sociedade Médica daquela cidade, José Custódio de Faria só alcançaria, porém, um considerável prestígio aquando das suas conferências na rua Clichy. As sessões do sacerdote luso-indiano, por onde, curiosamente, grassava o interesse feminino, acabariam, contudo, por ser objecto da mais vil incompreensão, até porque, na sua essência, eram realizadas à luz de uma doutrina filosófica inacessível ao homem comum. Logo, perante a malevolência e a crescente onda de insinuações injustas, o nosso compatriota vira, entretanto, a sua própria existência reduzida à condição de simples capelão num convento de religiosas. Todavia, isso jamais o inibira de redigir a sua obra acerca do sono lúcido – de que foi apenas publicado o primeiro tomo –, vindo, por fim, a falecer em consequência de uma apoplexia, a 20 de Setembro de 1819.»

Miguel Bruno Duarte («Noemas de Filosofia Portuguesa». Versão especialmente revista).



«A irradiação da filosofia portuguesa no mundo


Álvaro Ribeiro responde, com um sorriso de tristeza:

- É certo, mas quem nega, não apenas a irradiação da filosofia portuguesa no mundo, como até a sua existência e valor, demonstra que não estudou o problema, que se limitou a repetir o que os outros disseram. 

Insisto:

- Mas como se explica esta ignorância ou esta indiferença, da parte de pessoas que são ou deviam ser responsáveis?

Álvaro Ribeiro olha em sua volta, fixa os olhos por instantes nas árvores que generosamente dão a sua sombra às mesas, a esta hora da tarde e volta a olhar-me:

- Quando andaram no liceu, nunca ninguém lhes falou dos portugueses Pedro Hispano, Leão Hebreu, Pascoal Martins, cujas obras ainda não estão traduzidas em português. O efeito do liceu é decisivo. Nos três últimos anos do Liceu forma-se, reforma-se ou deforma-se a mentalidade. Uma vez admitidos nas escolas superiores, não mais pensaram senão em estudar as matérias para exame. Também nunca ouviram falar no Abade Faria e, se sabem que ele existe, foi porque leram "O Conde de Monte Cristo", de Alexandre Dumas.»

Entrevista a Álvaro Ribeiro




«Encontrava-se em Paris, há poucos anos, um homem que fazia publicamente a experiência do sonambulismo. Em cada dia (em 1815) reunia em sua casa umas 60 pessoas e era raro que, entre estas, não se encontrassem cinco ou seis, susceptíveis de entrar em sonambulismo. Não se esquecia de declarar abertamente que não possuía nenhum segredo, nenhum poder extraordinário, tudo o que obtinha dependia da vontade das pessoas sobre as quais actuava. Nem por isso os efeitos se deixavam de produzir. Este homem, possuidor sob vários aspectos de espírito superior, era o Abade Faria.»

François-Joseph Noizet


«Este português oriundo de Goa [o Abade Faria] pode ser considerado um importante precursor da Psicanálise.

Na sua Autobiografia, escreveu Freud que ao estabelecer-se, em 1886, em Viena, em consultório privado, para tratar doentes do sistema nervoso, apenas tinha ao seu alcance duas armas terapêuticas: a electroterapia e a hipnose. Acerca da primeira tornou-se-lhe evidente que as instruções dos melhores livros não tinham mais íntimas relações com a realidade do que a mitologia dos livros de sonhos "egípcios" que se vendiam como literatura de cordel em Viena. O mesmo não se passava com a hipnose que parecia agir sobre os doentes, fazendo aparecer e desaparecer sintomas, como Freud, ele próprio, tinha verificado ao contactar com Charcot e os seus discípulos na Salpêtrière em Paris (1885-86).

Freud, a seguir ao primeiro contacto com Charcot, volta a França em 1889, por vários meses. Em Nancy admira o trabalho do grande Liébault, entre as classes trabalhadoras, nos arredores da cidade e, em Nancy, também assiste às "espantosas experiências" de Bernheim, em doentes do Hospital da cidade. Na visita a Bernheim fazia-se acompanhar de uma sua doente de Viena, histérica, que não conseguira tratar de modo totalmente satisfatório pela hipnose. Bernheim não solucionou o caso mas, utilizando a sugestão mostrou-lhe a existência de "poderosos processos mentais" que permaneciam afastados da Consciência i. e., levou-o mais longe na descoberta do Inconsciente. Portanto o hipnotismo que, tinha na Áustria uma reputação de processo fraudulento e perigoso, permitia-lhe em França apreciar a uma nova luz a patologia das neuroses.

Sem dúvida, a má reputação da hipnose era uma herança de Mesmer, médico austríaco que tanto agitara os espíritos na Áustria e França, com o seu "magnetismo animal".

Afirma Freud (sempre na Autobiografia) que o emprego da hipnose lhe ensinou alguma coisa mais do que a simples sugestão hipnótica. No seu sono hipnótico era possível abordar a psique do doente, que fornecia no estado de adormecimento informações sobre o aparecimento dos sintomas e sobre a génese da doença, que não podiam ser elucidados no estado de vigília. "Este procedimento", escreve Freud, "aparecia-me como mais eficaz do que a simples sugestão que ordena ou proíbe".

Freud acrescenta ter aprendido este modo de agir com Joseph Breuer, médico judeu, clínico geral, catorze anos mais velho que Freud, e muito em voga em Viena nessa época. Tinham-se conhecido quando Freud trabalhava ainda no laboratório de Brücke.

Porém se Freud recebeu de Breuer ensinamentos, sobre a talking cure, esta não era uma descoberta de Breuer, pois já fora usada por Puységur e pelo abade Faria, que lhe chamavam "sonambulismo artificial" e "sono lúcido", respectivamente.

A descoberta foi atribuída por muitos investigadores a Mesmer. Mas o hipnotismo que foi utilizado por Freud na investigação e tratamento dos seus primeiros doentes pouco tem a ver com os processos do mesmerismo. Mesmer não dava aos seus doentes quaisquer instruções para dormirem. Antes os ligava à célebre tina ou celha (baquet) que tinha sido previamente "magnetizada", por ele, ou então fazia manipulações (passes) no corpo do doente. O resultado final devia ser uma crise que, reproduzia de um modo agudo os sintomas de que o doente já sofria (asma, dores, etc.), ou que o conduzia a uma crise convulsiva de tipo histérico.

O verdadeiro fundador do hipnotismo foi Puységur. Armand de Chastenet, marquês de Puységur, era de família nobre, oficial de artilharia, diplomata. Ao contrário de Mesmer, que exercia a medicina e tinha elevadas pretensões económicas, Puységur trabalhava para satisfazer a sua curiosidade científica e com fins filantrópicos. Dividia a sua vida entre deveres militares e diplomáticos, e pesquisas realizadas no seu cabinet de physique que, como muitos aristocratas do seu tempo, tinha instalado no seu castelo de Buzancy, perto de Soissons.

Puységur toma contacto com Mesmer e pretende aplicar as teorias deste último. Mas, ao começar a tratar os seus doentes pelo método da "celha" ou dos "passes", constata que os doentes não fazem qualquer crise de tipo nervoso, com movimentos desordenados, antes adormeciam em estranho e calmo sono. Embora adormecidos respondiam às perguntas que lhes faziam, mostravam dotes de memória e lucidez mais marcados do que quando se encontravam no seu estado normal. Assim, por exemplo, o doente Victor Race, que o marquês trata por longo tempo de uma doença respiratória, no estado de hipnose, consegue lembrar-se do lugar onde escondera o testamento pelo qual a mãe lhe legara determinada propriedade, testamento esse que desde há muito considerava perdido.


A este estado que descobriu, chamou Puységur sonambulismo artificial, por contraste com o sonambulismo natural que não era induzido pela influência de terceiros. O facto que Puységur tenha conseguido "sonambulismo" e Mesmer "crises" é explicável pelas diferenças de reacção transferencial que daí advinham. Mesmer era dramático e ousado, Puységur era paciente e tranquilizador.

Os tratamentos de Puységur tiveram imenso êxito e o aristocrata-cientista foi consultado por milhares de doentes. Isso levou-o a "magnetizar" uma árvore da sua propriedade. Da árvore pendiam cordas que pacientes ligavam às partes doentes do seu corpo. Adormeciam calmamente e eram acordados por Puységur, que lhes esfregava as mãos, ou lhes ordenava de beijar as folhas da árvore - o que também provocava o acordar.

Puységur, à semelhança de Mesmer, também tinha como verdadeira a existência de um fluido que passava do "magnetizador" para o "magnetizado". Mas chamava a esse fluido "vontade" e acreditava que era transmitido através das mãos do hipnotizador, para o corpo do doente.

Apesar das suas árvores e das suas teorias mágicas, Puységur foi o verdadeiro fundador do hipnotismo. Se não fosse Puységur, talvez hoje não existisse hipnotismo e Mesmer apenas fosse lembrado como um indivíduo que provocava epidemias histéricas do mesmo tipo, das surgidas durante a Idade Média, ou mesmo durante a Idade Moderna.

O nosso compatriota José Custódio de Faria, o Padre Faria, é porém o verdadeiro iniciador da teoria sugestiva ou psicológica do hipnotismo, como depois foi reconhecido por Liébault, Bernheim e muitos outros.

Faria chamou à hipnose sono lúcido, e atribui-lhe: (a) uma causa predisponente, a impressionabilidade da pessoa; (b) uma causa imediata que é a concentração, quer dizer, a pessoa não deve ser distraída por ruídos, não deve estar inquieta, ou preocupada, e apenas se deve ligar à ideia do sono; (c) uma causa ocasional que é a ordem dada pelo hipnotizador para dormir.

Faria critica expressamente as teorias "fluídicas" de Mesmer e Puységur, para o hipnotismo, dizendo: "Não posso conceber como a espécie humana foi buscar a causa deste fenómeno a uma celha, a uma vontade externa, a um fluido magnético, a um calor humano, a mil outras extravagâncias deste género, enquanto esta espécie de sono é comum à natureza humana através dos sonhos, e a todos os indivíduos que se levantam, andam ou falam durante o sono."

Do ponto de vista técnico Faria é muito avançado e produz apenas o adormecimento por técnicas verbais ("concentre-se", "durma") e psico-sensoriais (fixação de um objecto).

Quanto aos resultados da hipnose, não aceita a extra-lucidez, a dupla vista, nem que a hipnose seja uma panaceia para todos os males - ao contrário do que acontecia com todos os seus contemporâneos e vários dos seus sucessores.

Utiliza a hipnose para a produção de sugestões hipnóticas (paralisias, anestesias, alucinações sensoriais, ou curas de sintomas psicossomáticos) quer para a produção de sugestões pós-hipnóticas (quer dizer, ordens a ser cumpridas pelo hipnotizado a seguir ao acordar do sono hipnótico, sendo o intervalo de tempo, mediando entre a ordem e a sua execução, fixado pelo hipnotizador).

Faria foi durante muito tempo ignorado mesmo por aqueles que se ocupavam especialmente de hipnotismo. Isto porque as suas teorias chegaram demasiado cedo para o seu tempo. A sua importância só viria a ser reconhecida mais tarde por Liébault (1823-1904), e hoje ocupa um lugar destacado em todas as histórias da hipnose, especialmente nas publicadas em França. Infelizmente o seu livro De la cause du sommeil lucide, desde há muito esgotado, é na nossa época quase impossível de encontrar, e em Portugal o único lugar que conheço onde pode ser consultado é na Biblioteca Nacional de Lisboa.

Podemos considerar que a Psicologia passou a existir apenas desde que houve uma tentativa coroada de êxito de intervir "operatoriamente" sobre o espírito, por meios psíquicos. Essa primeira tentativa foi a hipnose iniciada por Puységur. O primeiro investigador a propor uma teoria científica correcta dessa intervenção foi Faria. De modo que podemos marcar o início da psicologia científica em um português, em Faria, que sendo discípulo de Puységur levou muito mais longe a sua doutrina científica. Apesar dos seus inegáveis méritos científicos, Faria nunca alcançou a nomeada que merecia. Se é universalmente conhecido, isso acontece mais em relação com a Literatura do que com a História das Ciências. Chateaubriand fala dele nas Mémoires d'outre-tombe e Alexandre Dumas deu-lhe imortal renome ao torná-lo um personagem do romance O Conde de Monte-Cristo - mas sem que aí a sua verdadeira nacionalidade e a sua importância no avanço da ciência psicológica sejam correctamente identificadas.»

Pedro Luzes («Cem Anos de Psicanálise»).








«Sigo o meu caminho com a precisão e a segurança de um sonâmbulo.»





AS SESSÕES DA RUA CLICHY


Faria começou o seu curso sobre o magnetismo em Paris, a 11 de Agosto de 1813. Alcançou para isso as necessárias licenças ao prefeito da polícia e obteve de Butet de Sarte, professor primário, uma sala na sua escola da rua de Clichy, n.º 49, junto ao antigo jardim de Tivoli.

As conferências realizavam-se às quintas-feiras e a admissão custava 5 francos. O salão abrigava uma grande quantidade de senhoras e alguns homens. Uns vinham no propósito de alcançar a cura dos seus males, muitos à busca de sensações novas ou atraídos pela curiosidade das práticas magnéticas, e ainda outros para arranjar pretextos de troça e ditos de espírito tão peculiares ao feitio gaulês.

Em breve a sua notoriedade foi enorme em Paris. O curso tronou-se um verdadeiro acontecimento mundano, como, anos antes, o foram as sessões de Mesmer. Os jornais fizeram-lhe a divulgação do nome, embora nem sempre lhe fossem favoráveis. A Gazette de France, de 21 de Agosto de 1813, dedica-lhe um longo artigo assinado por L'Hermite de la Chaussé d'Antin (1), que merce ser recordado neste momento. Intitulava-se O Sonambulismo e o padre Faria e é uma reportagem e uma crítica às cenas presenciadas.

Começa o articulista por se insurgir contra os charlatães estrangeiros, que encontram sempre auditório em Paris no propósito de fazer fortuna, imputação injusta pelo que respeita ao padre português. E recorda o escocês Lax, Willars, Bletton, Mesmer… E enfileira a seu lado o nome de Faria.

Trata primeiro da assistência, que «era brilhante, numerosa, composta, na maior parte, de mulheres na flor da idade. A maioria delas trazia as mais favoráveis disposições à nova doutrina». «Sentei-me ao lado de Mme. Maur» - continua o jornalista - «e pude ver através da sua atraente fisionomia as diferentes modificações que lhe imprimiam a credulidade, a confiança e a persuasão. O padre Faria, acompanhado de cinco ou seis raparigas, aparecia no recinto que lhe era reservado, numa das extremidades da sala.»

Depois, descrevendo o magnetizador, diz que a sua tez, escurecida pelo sol de Goa, não prejudicava a regularidade dos traços fisionómicos e, querendo fazer espírito e insinuar razões ocultas do seu sucesso sobre a assistência feminina, chega a afirmar que «as suas ouvintes não tinham mais prejuízos que a doce Desdémona».

Nada consta, porém, na vida do padre Faria, no capítulo das tentações morosas. Se foi dado a devaneios, não deram tanto nas vistas que deles ficassem vestígios. A sua cor estranha, a expressão fisionómica, os poderes ocultos que lhe atribuíam podiam ter impressionado favoravelmente as frequentadoras da rue Clichy; mas, ou por apego a princípios religiosos ou ainda pelo peso dos sessenta, que se avizinhavam, não esquadrinhámos na sua vida episódio que o coloque mal em matéria pecadora.

A referência vaga do eremita da Chaussée-d'Antin é a única que encontrámos nos documentos compulsados.

A sessão principiava por uma conferência em que, no dizer do articulista, «era tão grotesco pelo estilo que, se não viesse dum estrangeiro, seria interrompida às gargalhadas.» Deve haver exagero nesta apreciação. O padre Faria não conhecia a fundo a língua francesa, mas praticava-a de há muito e escrevi-a com uma certa facilidade.

Não tinha elegância na exposição, por vezes era obscuro, como pode reconhecer-se no seu livro [??!]; contudo, o seu estilo estrangeirado não chegava a ser ridículo. Era, porém, pouco agradável na sua exposição. Não interessava, não conseguia prender o auditório. Este não o acompanhava nas suas divagações filosóficas.

O jornalista faz, todavia, uma apreciação inexacta das suas doutrinas, atribuindo-lhe a afirmação de que considerava o magnetismo a base de toda a instrução, o fundamento de todas as ciências, a chave de todos os conhecimentos humanos.


E acrescenta: «Antes de ter ouvido este filósofo da costa do Malabar, quem poderia imaginar que o magnetismo não só nos pode revelar os segredos da medicina, a causa, a sede e o remédio de todas as doenças, mas ainda fazer-nos conhecer a configuração, a matéria, o movimento dos astros e a natureza dos seus habitantes? Devemos, por isso, ficar tranquilos sobre os progressos futuros da medicina e da astronomia. Mais: a moral é, por sua vez, esclarecida pelo magnetismo: todas as virtudes e todas as verdades dele derivam; a própria política está submetida à sua acção.»

Esta apreciação está em desacordo com a maioria das opiniões expendidas por Faria na sua obra. Alguns erros e exageros devia apregoar [??!]; mas a seu tempo demonstraremos que não eram tantos quantos lhes são atribuídos neste artigo, em que havia mais o propósito de fazer espírito do que crítica. Assim, conta que o padre dissera, a respeito duma das suas alunas: Elle a le don tout particulier de lire en dormant, par cette partie du corps humain que le premier homme et la première femme ont dû, seuls, ne pas apporter au monde. Infelizmente, acrescenta, a prova não era de molde a fazer-se em público.

Mesmer tinha deixado atrás de si a descrença dos fenómenos chamados magnéticos; não admira, por isso, que o padre Faria, logo no início das suas conferências, fosse atacado desta maneira. Havia o propósito de o atingir pelo sarcasmo, destacando, ampliando e comentando as afirmações susceptíveis de o expor à irrisão pública.

A Gazette de France descreve, em seguida, as suas experiências, sobre que faz incidir uma crítica igualmente parcial e exagerada. Interessa-nos pouco essa descrição, visto que podemos colher os factos e a sua interpretação no relato escrito pelo próprio magnetizador. O que hoje conhecemos sobre o hipnotismo deixa-nos absolutamente garantidos da veracidade das práticas de Faria, tal como ele no-las expõe, aparte alguns exageros de interpretação [??!], muitos dos quais foi corrigindo através das suas repetidas e cuidadas observações.

As apreciações dos jornais, que se intensificaram mais tarde, chegando à agressão pessoal, incomodaram o padre pela injustiça que representavam e, sobretudo, pela forma incorrecta e grosseira por que eram dirigidas. No prefácio do seu livro responde-lhes da seguinte forma:

«A publicação duma produção científica» - diz o padre Faria - «supõe sempre no autor a intenção ou de descobrir verdades morais ou de corrigir as que como verdades são consideradas. Se juntamente aspiram a alcançar a glória do autor, lastimo-o sinceramente. A esperança da celebridade neste campo é sempre misturada de amargura.»

Declara que não o animou esta pretensão; mas a fase inicial do seu trabalho está um pouco em contradição com esta pretensa modéstia. A sua obra foi escrita nos últimos anos da sua existência quando, batido pela adversidade, não tendo criado adeptos, exposto ao ridículo nos jornais e no teatro, pobre e abandonado, recolheu a um pensionato de religiosas, onde pôde entrar como capelão para alcançar os meios indispensáveis à sua subsistência.

Nesse canto de Paris, rue des Orties, n.º 4 (2), decidiu-se a escrever uma obra que destinava a ter três ou quatro volumes. Parece que só (3) o primeiro viu a luz da publicidade. A morte surpreendeu-o, durante a impressão, a 20 de Setembro de 1819, aos 63 anos de idade.

Se não fosse este final, ficariam para sempre desconhecidas as suas doutrinas. O seu nome passaria ignorado ou, o que seria pior, a história, tantas vezes injusta nas suas apreciações, registá-lo-ia como o de um charlatão. É ele próprio que o confessa: «Há males que fazem muito bem aos que sabem conhecer-lhes a utilidade.»

E noutra passagem: «Sem este aguilhão, que feriu vivamente a minha honra, condenar-me-ia a ficar calado sobre a causa do sono lúcido, persuadido que nada tinha a ensinar numa cidade em que tudo tenho a aprender.»






Assim, espicaçado pelas agressões recebidas, servido por uma vontade firme, convencido das verdades que apregoava, deitou-se ao trabalho da exposição das suas doutrinas, para o que contribuíram os manuscritos das conferências feitas nas célebres sessões da rue Clichy, e que devem ter sido largamente refundidos e acrescentados.

Pretendia esclarecer várias classes de pessoas: «as que não viram na sua conduta senão temeridade, as que apreciaram o seu prestígio, as que apenas viram futilidade na sua obra e as que o supuseram dado a feitiçarias.»

E acrescentava:

«Os que se qualificam de magnetizadores acreditam que as minhas tentativas são menos úteis que perniciosas. Os jornalistas pronunciam-se categoricamente contra mim, dizendo que tudo o que faço é ilusório e pouco digno de uma atenção séria; outros espíritos, ainda que dotados de conhecimentos profundos, examinam superficialmente o estado do sono lúcido, declarando que é apenas divertimento pueril; membros do clero só o apreciam como o resultado da interferência dos génios malfazejos sempre ocupados em prejudicar a espécie humana.»

O padre Faria mantém-se através da sua vida, inabalável nas crenças católicas. Por isso, ao lado das críticas gerais, ferem-no muito particularmente as desarrazoadas insinuações dos colegas que, ou por convicção ou por maledicência, o supõem em pacto com o diabo. Acusa-os de fazerem coro com o relato dos jornais, deixando-se desnortear pela propaganda dos seus detractores. E observa que melhor seria abandonarem uma timidez injustiçada, indo observar os fenómenos tais como eles são, para verificarem que «aquilo que parece sair da ordem constante da natureza em nada a ultrapassa».

Caminhando nesta ordem de ideias, pretende demonstrar que, ao contrário das acusações que o clero lhe fazia, o sono lúcido vinha, mais uma vez, demonstrar «a existência da primeira causa», lançando por terra «a monstruosa quimera do ateísmo»; punha em evidência a «espiritualidade da alma humana», confundindo assim o «materialismo presunçoso»; explicava dogmas que pareciam inacessíveis à inteligência e lançava uma luz inesperada sobre verdades físicas até então indecifráveis.

Não acompanhamos o padre Faria na sua digressão pelo campo teológico. Teríamos de seguir uma dialéctica a que não sabemos ajustar-nos, acostumados, como estamos, à investigação das verdades palpáveis.

Mas é justo reconhecer que Faria condenava a facilidade com que, ao tempo, se abusava, no grémio da Igreja, de tudo submeter à influência dos espíritos maléficos. São dignas de registo estas suas palavras:

«Ah! Se tudo o que não pode ser explicado pelos efeitos da natureza deve ser sempre relegado a causas sobrenaturais, o que resta ao homem em apanágio dos seus conhecimentos?»

E num momento de maior independência, nota que os magnetizadores, em geral, não acreditam na magia e feitiçaria, ou quando muito, as consideram problemas a discutir. E termina dizendo:

«Os espíritos piedosos e timoratos nada têm a recear da conduta dos que se ocupam do estudo do sono lúcido, porque os génios das trevas de ordinário não se associam a quem os não procura e menos ainda aos que nem sequer acreditam na sua existência.»

O padre Faria não pertence a este número; mas entre os chamados casos de possessos, em que julga certa a sua intervenção, e os de sonambulismo lúcido, sustenta haver diferenças essenciais.

Acreditava-se, nessa época, que, por meio do sonambulismo, podiam desvendar-se os segredos e os mistérios do futuro. Faria, a este propósito, ousa colocar-se ao lado daqueles que nas revelações de Santa Tereza e de Joana d'Arc não vêem senão manifestações do sono lúcido; mas já não dá igual interpretação às profecias, que atribui a inspiração divina, de acordo com os livros da Igreja. Estas são para ele verdades incontestáveis.









Colocando-se sempre adentro do ponto de vista religioso, e desprezando todas as insinuações e ataques, declara que só quer estar a bem com a sua consciência, e só ela lhe dirige a conduta.

Sobre as profecias dos sonâmbulos, declara Faria, peremptoriamente: «Há certas verdades nos seus anúncios; mas verdades que têm necessidade de ser interpretadas com indulgência, submetidas a provas rigorosas, expungidas de erros com habilidade.»

Noutra passagem esclarece, com maior precisão: «As suas previsões são tão vagas que não oferecem mais do que probabilidades dos acontecimentos, sob condições requeridas, e ainda submetidas a erros grosseiros.»

Faria não confiava inteiramente na inspiração dos sonâmbulos; e tanto que, após uma larga experiência de magnetizador, talvez corrigindo ideias iniciais, põe tais restrições, exprime-se de tal maneira que a dúvida quase se transforma em negativa formal. Revela-se, nesta passagem da sua obra, um observador de fino tacto, tanto mais de apreciar porque é certo que as ideias do sobrenatural dominavam os espíritos dessa época, dando fácil explicação a todos os fenómenos. Manifestar-se contra a crença geral da previsão do futuro pelos sonâmbulos, embora um pouco veladamente, é brasão de honra para a sua memória.

Bem razão tinha quando escreveu que a sua «maneira de pensar, que deve parecer paradoxal a muita gente, também o teria parecido, a ele próprio, dez anos antes».

Mas voltemos às sessões da rua de Clichy, que abandonámos para fazer uma digressão através das primeiras críticas contra o padre Faria e que procuravam feri-lo pelo anátema e sobretudo pelo ridículo, arma demolidora, especialmente em França, quando é servida por uma pena experimentada.

Em seguida a uma longa prelecção iniciava as experiências fazendo adormecer as pessoas sobre que já tinha praticado o sonambulismo. Faria foi o primeiro a sustentar que nem todos os indivíduos eram hipnotizáveis. Isso mesmo dizia nas conferências, desafiando todos os magnetizadores a adormecer aqueles que não tenham nem as disposições requeridas nem as causas predisponentes a que ligava importância e que dentro em breve apreciaremos. Era necessário, além disso, que os epoptas ([…] - o mais alto grau de iniciação), assim denominava os sonâmbulos, quisessem deixar-se adormecer. E assim substituiu os nomes de magnetizador e magnetizado pelos de concentrador e concentrado.

O sonambulismo (sono lúcido de Faria) que Puységur tinha individualizado, ligando-o contudo à influência de fluidos, passava a ter uma nova interpretação.

Com uma grande clarividência, o padre Faria foi o primeiro a proclamar a doutrina da sugestão. É esse o grande mérito, a sua glória máxima.

Até ele a grande maioria perdia-se em conjecturas sobre os fluidos dos magnetizadores. Alguns, com Barbarín à frente, davam-lhe uma interpretação mais vaga e imprecisa: o sonambulismo era apenas uma manifestação do poder da alma sobre a matéria (escola espiritualista). Mas ninguém ousara dar aos fenómenos observados a interpretação simples a que Faria chegou, desfazendo erros à custa de um exame meticuloso, de um grande poder de síntese e de uma precisa visão dos factos.

Recordemos as suas palavras: «Eu não posso conceber» - diz ele (4) - «como a espécie humana foi procurar a causa deste fenómeno à tina de Mesmer, a uma vontade externa, a um fluido magnético, ao calor animal ou a mil outras extravagâncias ridículas deste género.»

Faria pisava o bom terreno.



Franz Anton Mesmer



 AS DOUTRINAS DO PADRE FARIA


Consegue Faria desempoeirar-se das doutrinas do seu tempo sobre o magnetismo, afrontar a opinião severa da clerezia, que condenava in limine as suas experiências, foge ao cómodo expediente do sobrenatural, que tudo podia explicar e solucionar, e chega a uma interpretação lógica dos fenómenos observados.

Carecemos de reportar-nos a essa época, aos seus preconceitos religiosos e científicos, uns apodando tais práticas de criminosas, outros negando os factos mais evidentes como sendo obra de charlatães, para bem avaliarmos a acção desse desconhecido português que em terras estrangeiras lutou pela verdade sem se deixar subjugar pelos adversários nem pela indigência, que o levou a pedir asilo a uma casa de religiosas, para não morrer de fome.

Os relatórios de alguns médicos e homens de ciência que se deram ao estudo dos trabalhos de Mesmer fizeram-nos dependentes da imaginação. Faria combate esse modo de ver com palavras que ainda na hora presente têm plena actualidade: «Os médicos deduzem da imaginação todas as doenças que não conhecem, como os naturalistas atribuem a um fluido todo o efeito que não cai sobre as leis ordinárias (5)».

Depois disserta sobre a imaginação, citando a definição imperfeita de Wolf.

Para o padre Faria, «a memória pode existir sem a imaginação, mas nunca a imaginação sem a memória», o que, não entrando em consideração com a interdependência de todo o trabalho psíquico, se não afasta muito da realidade dos factos.

Referindo-se às quimeras e aos fantasmas, considera as primeiras ficções inanimadas e os segundos ficções animadas. Junta-lhes os espectros, que para ele são as ideias das imagens dos mortos. E, em crítica a este propósito, acrescenta: «Os antigos fizeram da quimera um ser natural e feroz combatido pelo Belérofon. O vulgo faz dos fantasmas seres reais, e os físicos do espectro (6) uma imagem corada que projectam sobre uma parede quando cortam os raios solares por meio do prisma.»

Esta passagem é acompanhada de uma enfadonha dissertação, com história de fantasmas à mistura, para combater a doutrina da imaginação. Destacamos as frases que constituem o seu principal argumento: «Guarda-se a memória do que se imagina; mas durante o sono lúcido, especialmente quando ele é profundo, não se guarda memória de tudo o que se passou. Daí se conclui que o sonambulismo provocado não pode ser devido à imaginação.»

Faria afirma que o concentrador ou hipnotizador não tem fluido ou poder algum especial. O concentrado ou o hipnotizado é o único agente activo. «Não se fazem epoptas sempre que se queira, mas somente quando se encontrem epoptas naturais.» Por outras palavras: só se podem hipnotizar as pessoas predispostas a sê-lo.

O concentrador é, para Faria, uma causa meramente ocasional.

Demonstrou nas suas sessões que «crianças podiam adormecer adultos com a simples apresentação da mão».

Colocou um certo número de epoptas debaixo de uma árvore que previamente tinha magnetizado segundo os processos de Mesmer e Puységur. Nada sentiram. Em seguida levou-os junto de outra árvore. Afirmou-lhes que estava magnetizada, sem o estar, e a maior parte dos observados caiu em sonambulismo.

Estas concludentes experiências jugulavam de vez a teoria fluídica.

O padre português viu o problema da hipnose nos seus fundamentos com toda a precisão e clareza. Foi ele quem primeiro lhe marcou os limites naturais. A sua opinião é firme e inabalável: «Nada se desenvolve no sono lúcido que saia fora da esfera natural.»






E, querendo ir mais longe, sentindo-se bem na posse do assunto, afora um ou outro pequeno exagero, escreve: «Faremos ver que nada há neste fenómeno que ultrapasse os limites da razão humana e que tudo é concebível por pouco que o homem queira dar-se, de boa-fé, à investigação da verdade.»

Faria não só observou bem os factos: procurou indagar as causas e perscrutar as razões da diferença de conduta dos indivíduos em face das práticas hipnóticas: uns adormecendo logo, outros sendo completamente refractários.

A obra de Faria não passou além de um volume, tendo prometido mais dois ou três (7). Devia, ao iniciar o seu trabalho, dividir os assuntos pelos diversos tomos. Muito do que escreveu é nebuloso e pouco preciso [??!]. Tinha sempre a preocupação filosófica e prendia-se em conjecturas metafísicas e religiosas sem importância e por vezes quase estranhas ao objectivo em vista [??!]. Mas assim como no primeiro volume publicado há muito de aproveitável, assim nos que se lhe seguissem devia respigar-se a matéria interessante derivada de uma observação persistente e bem orientada. O general Noizet, discípulo de Faria, dirigiu em 1820 à Academia Real de Berlim uma Memória sobre o sonambulismo e magnetismo animal, que foi, mais tarde, publicada, em 1854 (8), e em que as ideias do mestre são claramente expostas.

Do renome do padre português, da glória e triunfos passados, só ficou este trabalho a recordá-lo nos primeiros 50 anos que se seguiram à sua morte. Foi este discípulo o único que, com uma rara honestidade, falou da obra do mestre.

Seguindo-o de perto nas experiências e na exposição das suas doutrinas, escrevendo com uma probidade que o honra, cita sempre Faria a propósito das doutrinas que defendia. De algumas delas só tomamos conhecimento através da sua exposição. A sua Memória é, em parte, como que um resumo, embora muito sucinto, do que Faria pensava explanar nos volumes que não vieram a lume.

Assim teremos de nos socorrer do testemunho insuspeito de Noizet para fazer uma ideia exacta das causas a que Faria atribuía o hipnotismo.

Dividia-as em predisponentes, imediatas e ocasionais.

Entre as primeiras, dá Faria o primeiro lugar à fluidez do sangue (9), mas também considera causa predisponente importante a impressionabilidade psíquica, designação vaga, mas que ainda hoje pode transitar em julgado sem oposição dos que se dedicam a estes assuntos.

Noizet atribui a Faria as seguintes conclusões tiradas da sua experiência:

«Todas as pessoas cujo sono é fácil, que transpiram muito e que são muito impressionáveis, são ordinariamente susceptíveis de sonambulismo.»

Faria apartava, portanto, uma classe de impressionáveis aptos às práticas sonambúlicas.

A fluidez do sangue era, porém, a causa a que ligava maior importância e julgava-a fundamentada em factos:

«A experiência fez-me ver» - diz o padre Faria - «que a extracção duma certa quantidade de sangue tornava epoptas em 24 horas pessoas que não tinham disposição alguma anterior (10).»

Noutra passagem do seu livro afirma que a fluidez do sangue contribui não somente para o sono ser mais profundo, mas ainda para aumentar a receptividade hipnótica.

Embora numa ou noutra passagem da sua obra exprima opiniões vagas, mesmo para essa época, sobre a circulação do sangue, é certo que a sua observação é perfeita. Notara a anemia na maior parte dos seus sonâmbulos; o sangue com menos hemoglobina era, na sua frase, mais fluido do que o sangue rico em glóbulos rubros dos indivíduos robustos, o que levou Gilles de la Tourette a dizer que Faria não andava longe da verdade desde que não se dê à sua frase uma interpretação literal.








Este aspecto organicista do hipnotismo não foi retomado por nenhum dos seus continuadores. E parece-nos bem digno de ser considerado por poder trazer aspectos novos à solução do complicado problema.

Toda esta exposição do padre Faria leva-nos ainda ao convencimento de que ele sangrou alguns dos seus observados. Não foi médico; mas foi, pelo menos, um sangrador.

Pena é que, a propósito da exposição da doutrina da fluidez do sangue, se emaranhe em complexas hipóteses sobre as relações da alma com a diversas partes do organismo e parecidas cogitações.

Outro facto posto em destaque por Faria, e que já devia ser do conhecimento dos primitivos magnetizadores, era a particular tendência das mulheres para a hipnose.

Isso mesmo devia radicar no seu espírito a hipótese da fluidez do sangue por haver entre elas maior número de anémicas.

Também foi Faria quem pôs em evidência o facto da educação dos epoptas. Todos nós sabemos que é, em geral, mais fácil hipnotizar as pessoas já habituadas a essas práticas.

Considera Faria como causa imediata do sono lúcido a concentração dos sentidos, o que ele exprime nestas palavras:

«Não se consegue o sonambulismo quando o espírito está preocupado quer pela agitação do sangue, quer por inquietações ou preocupações.»

Ainda hoje todos os que hipnotizam reconhecem o valor desta indicação.

O abandono de si próprio, no desejo de ser hipnotizado, é condição a exigir àqueles que não caiem imediatamente à intimação clássica: durma!

Como causa ocasional classifica Faria a ordem dada pelos concentradores, pois para ele, sem haver a causa real, a predisposição, o indivíduo não cai em sonambulismo.

O seu livro, tirando a parte filosófica, é ainda hoje um compêndio de preciosas indicações sobre o hipnotismo. E não se critique o padre por tanto divagar [??!] sobre as teorias mais ou menos nebulosas. Era o produto da sua educação teológica. Quando entra nesse campo torna-se excessivamente obscuro [??!]; mas esta falta de clareza é pecha dos filósofos de todas as épocas [??!]; como caducarem rapidamente as suas doutrinas, é sestro de todas as filosofias [??!].

Além disso era padre e, através da sua obra, há, como dissemos, o desejo de se defender do clero intolerante que o acoimava de pactuar com o diabo.

Ao apreciarmos as experiências e os factos por ele descobertos, não devemos esquecer que as correntes dominantes arrastavam os magnetizadores para a concepção das forças-fluídicas, o que lisonjeava a sua vaidade tornando-os seres raros e excepcionais. Por isso o padre Faria teve ainda que contar com a oposição dos colegas. A nova doutrina, francamente demolidora, vinha atingi-los nas suas prosápias e pretendidas virtudes. Ele era categórico e formal: só havia a contar com as qualidades dos epoptas, de nada servindo as pretensas qualidades que atribuíam aos hipnotizadores. Por isso os seus processos de provocar o sono lúcido eram simples. Nem a tina de Mesmer, nem os passes e a acção da vontade externa de Puységur e de Deleuze!

Faria sentava comodamente a pessoa que queria adormecer, pedia-lhe para fechar os olhos e concentrar a atenção, pensando que ia dormir. Quando a julgava bem tranquila, dizia-lhe: durma!, e muitas vezes caía logo em sono lúcido. Se não dava resultado, repetia a operação umas quatro vezes e, no caso de insucesso, declarava-a refractária ou ensaiava outros processos.






Umas vezes, quando não obtinha o resultado desejado, mostrava-lhes a mão aberta à distância, pedindo que a olhassem fixamente; depois aproximava-a lentamente a alguns dedos dos olhos. Por vezes os seus observados entravam em sono lúcido.

Ainda recorria a um outro método: tocava ligeiramente as pessoas nas duas fontes, na raiz do nariz, na região precordial, à altura do diafragma, nos dois joelhos ou nos dois pés.

«A experiência demonstrou-me» - diz o padre Faria - «que uma ligeira pressão destas partes provoca uma concentração suficiente à abstracção dos sentidos.»

Juntava-lhe, num ou noutro caso, pressões com o propósito de lhes prender a atenção ou auxiliar a sonolência. São práticas ainda hoje usadas, com pequenas variantes.

Faria tinha assim descoberto a sugestão hipnótica. Abria novos horizontes. O chamado sono magnético, a que ele deu a designação de sono lúcido, desembaraçava-se de todas as influências a que o julgavam submetido, para ser um fenómeno natural apenas dependente das qualidades do concentrado, cuja classificação havia de vir a ser feita no campo patológico.

É o momento de fazermos justiça à grande maioria dos autores franceses contemporâneos, que dão hoje a Faria o lugar que ele merece como criador da doutrina da sugestão no hipnotismo que todos hoje professamos. Já assim não procedem os autores ingleses e americanos, que atribuem a Braid a descoberta que pertence ao padre português.

Braid publicou em 1843 o seu tratado sobre Neurypnologia: Tratado do sonambulismo nervoso e hipnótico, onde descreve o seu processo de hipnotização por meio de um objecto brilhante colocado de 25 a 45 centímetros dos olhos, numa posição tal, acima da fronte, que a pessoa tenha de fazer o máximo esforço dos músculos dos olhos e das pálpebras para o fixar. Insiste com o observado para que prenda a atenção ao objecto. «Em pouco tempo» - diz Braid - «as pálpebras fecham-se involuntariamente com movimentos vibratórios (11) e cai em sono hipnótico.»

Como se vê, este processo físico, como o designa Pitres, embora o não seja inteiramente, pois Braid impõe ao observado o fixar a sua atenção num objecto, pouco difere do processo da mão, que Faria descrevera e executara trinta anos antes. Mais: Braid adoptou, por fim, o processo da simples sugestão, ao comando, tal como o descreveu Faria.

Inquestionavelmente, deve-se ao padre português a descoberta do processo sugestivo da hipnose. Cabe-lhe ainda a glória de descrever manobras físicas adjuvantes, que depois dele foram empregadas com pequenas alterações.

Para acordar os seus sonâmbulos, servia-se Faria do mesmo processo sugestivo. Outras vezes passava a mão diante dos olhos, com o mesmo fim. Braid dava-lhes uma palmada, o que também não foi desconhecido do padre português.

Pode dizer-se com inteira verdade que a prática hipnótica está hoje onde Faria a deixou.

Faria aproxima, no seu trabalho, o sono hipnótico (sono lúcido) do sono natural. Vai mesmo até à afirmação de que todas as observações depõem em favor de serem «o sono lúcido e o sono natural profundo uma e a mesma coisa».

Não mantém constantemente esta maneira de ver. Noutra passagem da sua obra, escreve: «Ainda que o sono lúcido seja uma doença (como a catalepsia), todavia é uma doença que entra na categoria das que são inseparáveis da condição humana.»

Faria, nestas passagens, deambula entre as duas interpretações que mais tarde foram os estandartes das escolas de Nancy e da Salpêtrière, que se digladiaram numa arrastada controvérsia de que todos ainda se recordam.

A escola de Salpêtrière, com Charcot, liga o hipnotismo sempre à histeria; a de Nancy, com Liébault, Bernheim e outros considera-o um fenómeno fisiológico. Não sabemos se, ainda hoje, a escola de Nancy tem muitos adeptos; a interpretação de Charcot, que julgamos firmada em factos incontroversos, é, por certo, a mais seguida.


Jean-Martin Charcot dando uma aula no Hospital Salpêtrière, em Paris.




Faria relacionava mais particularmente o sono lúcido com o sonambulismo natural. Já em épocas anteriores este tomara um lugar especial na interpretação dos fenómenos psíquicos pelo seu aspecto maravilhoso. Basta recordar a cena de Macbeth, de Shakespeare, em que o sonambulismo natural é relegado para uma esfera superior à ciência da época. Lady Macbeth fala, dormindo. O médico comenta: «Esta doença está acima da minha arte.»

Não admira que Faria aproximasse os dois estados. É mais uma demonstração da sua perspicácia de observador curioso.

Ultimamente, em 1910, Babinski veio lançar o pregão de uma dúvida (12): «se o hipnotismo constitui bem uma realidade.»

Num trabalho (13) que publicámos a esse respeito, enfileirámos ao lado dos que o consideram como uma realidade insofismável.

O argumento de que a hipnose pode ser simulada, nada depõe contra o facto em si. Foi uma dessas mistificações que levou o padre Faria ao tablado do teatro, numa troça escandalosa. As doutrinas de Babinski, que aliás não são inteiramente categóricas, e em que transparece o seu cauteloso espírito analítico, que poucos excederam no campo da patologia médica, não criaram adeptos, Seria mais uma escola, a negativista, a colocar ao lado das orientações da Salpêtrière e de Nancy.

Deixemos as teorias de Faria sobre a natureza íntima da hipnose. Como espiritualista, toda a sua doutrina se apoia nas relações da alma com a matéria. Durante três longos capítulos, disserta sobre este tema nas bases da filosofia escolástica em que se educou em Roma, e que cultivou pela vida fora. O sono lúcido seria «um estado intermediário entre o homem sensitivo e o puro espírito». Este não se separa inteiramente da matéria mas perde alguns contactos. Por isso não tem a intuição completa, porque, para o padre Faria, se tal sucedesse, se a alma se libertasse da matéria, ela «descobriria o presente, o passado e o futuro».

Nota curiosa: generalizando, considera «os homens de génio vivendo em estado comparável ao do sonambulismo».

Assim, os sonâmbulos têm, para Faria, uma intuição mista: as suas previsões podem ser verdadeiras ou falsas. É o que lhe ensina a observação, pondo assim restrições à boa-fé de Puységur, embora lhe desse certo crédito a propósito da cura das doenças. (in O Abade Faria na História do Hipnotismo, Editorial Vega, pp. 53-72).


Notas:

(1) Pseudónimo de Victor-Joseph-Etienne de Jony, D. G. Dalgado - Mémoire sur la vie de l'abbé Faria, Paris, 1906.

(2) Segundo informa Dalgado, essa casa corresponde hoje ao n.º 9 da Avenida da Ópera, onde está instalado o Je sais tout.

(3) Adiante nos ocuparemos mais pormenorizadamente deste assunto.

(4) Obra cit., p. 33.

(5) Abbé Faria. - Obr. cit., 2.ª ed., p. 285.

(6) É curioso este trocadilho de significado a propósito da palavra «espectro».

(7) Dalgado informa que a obra seria dividida em quatro volumes.

(8) Mémoire sur le somnambulisme et le magnétisme animal, adressé en 1820 à l'Académie Royale de Berlim, Paris, 1854.

(9) «La liquidité du sang».

(10) Abbé de Faria - De la cause du sommeil lucide, 2.ª ed. 1919 - Paris, Henri Gouve, éditeur, p. 35.

(11) Já Faria notara esses movimentos vibratórios das pálpebras. Noizet diz, na sua Memória: «Un autre caractère qui semble comum à tous les somnambules, est un battement rapide et continu dans les paupières lorsque les yeux sont legèrement fermés.»

(12) Semaine médicale, 27 juillet 1910.

(13) Egas Moniz - As novas ideias sobre o hipnotismo - Aspectos médico-legais - Lisboa, 1914, p. 16.



Egas Moniz


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