segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

No regresso do Congresso Mundial de Filosofia do Direito

Entrevista a Orlando Vitorino




Busto de Jorge Frederico Hegel (Berlim).



À medida que íamos conversando, ambos nós, entrevistado e jornalista, iamo-nos deixando dominar pela gravidade do assunto. A conversa começou pelo Congresso Mundial de Filosofia do Direito, realizado o mês passado em Bruxelas, no qual Orlando Vitorino, nosso entrevistado, participou a convite da organização. Uma vez que escrevemos para um jornal de grande público e dado que, a ser Orlando Vitorino, conhecido como homem do teatro, do cinema e ambientes e pugnas afins, diremos que ele é também autor de uma longa «Introdução Filosófica à Filosofia do Direito de Hegel». É a autoria deste livro, bem como de alguns outros ensaios com alguma difusão no estrangeiro (lemos, na mais recente obra de Alfred Sauvy, a discussão de um desses ensaios) que justifica o convite para participar naquele Congresso.

A conversa travou-se durante uma vagarosa tarde deste prolongado Verão. Se o dizemos e se, além disso, poderíamos falar no sol, no entardecer, na calmaria, é apenas para observarmos que nem sempre esta doçura meridional, que os povos do Norte nos invejam, há-de amolecer, numa exterior amenidade de viver, ou simples preguiça, a consciência dos problemas que a todos nós mais ou menos tarde, mais ou menos brutalmente, acabarão por se nos impor.


O retorno do direito à filosofia 


J. – Porquê um Congresso Mundial de Filosofia do Direito? Porquê filosofia do direito? 

O.V. – Já houve quem, com autoridade, afirmasse que o reaparecimento da filosofia do direito é o grande acontecimento do nosso tempo. Não é difícil compreender: o direito é o que exprime e condiciona a existência civilizada dos homens, e o grau de aperfeiçoamento que o direito atinge exprime o grau de civilização dos povos. Importa, portanto, pensar o direito, e só a filosofia dá verdadeiro sentido, ou universal sentido, ao pensar e, portanto, ao que se pensa. Há evidentemente um saber do direito que se afirma independente da filosofia e que até repudia a filosofia. Foi este tipo de saber que caracterizou a ciência jurídica de diversas épocas, a do século passado por exemplo. Chamou-se, ele, no século passado, positivismo, e era o resultado da tranquila confiança que os juristas puderam depositar no formalismo do direito que, por sua vez, era o resultado da segura organização burguesa das sociedades. Quando esta segurança se viu ameaçada – ameaça que começou a ser efectiva a partir da Primeira Guerra Mundial, – abalou-se a confiança dos juristas, o formalismo do direito entrou em crise e novamente se recorreu à filosofia.

J. – Com a finalidade de pensar o direito? 

O.V. – Em termos muito gerais, sim, com essa finalidade. Mas o que imediatamente se pede à filosofia é a determinação dos conteúdos reais das formas jurídicas. As crises do direito surgem sempre que os homens verificam que as formas jurídicas a que ainda estão ligados perderam o conteúdo, a matéria, a realidade que lhes foi própria. Ficam, então, formas abstractas e vazias. E como pertence à natureza das formas jurídicas o poder de efectividade, como são coercivas e obrigatórias, a abstracção em que caíram cria uma situação caótica e dramática. Por exemplo: quanto maior é a socialização, menos realidade possui o conteúdo burguês da propriedade, a forma jurídica passa a constituir uma abstracção vazia, o seu inevitável poder coercivo passa a ser motivo dos mais absurdos conflitos e a sua perduração acaba por apenas servir ou para encorajar a corrupção ou para manter oligarquias monstruosas (grupos de pressão económica, com se diz na linguagem corrente). O que importa, portanto, é determinar o conteúdo real que corresponde à forma jurídica da propriedade.

J – Trata-se, pois, de um saber que investiga. A filosofia será o instrumento desse saber. Não é assim? Essa situação reflectiu-se no congresso? 

O.V. – Sem dúvida. De modos variados, evidentemente. Desde a preocupação de conceber a lógica adequada ao dinamismo formal do direito – o congresso subordinava-se ao tema geral do «Raciocínio Jurídico» – até à procura de fundamentos filosóficos para as transformações sociais e políticas do mundo de hoje. Este último aspecto era o que pareceu interessar mais aos alemães e aos americanos, sobretudo aos americanos. Compreende-se. São eles os senhores do mundo e o que querem saber refere-se a esse senhorio. Por exemplo: como conceber a realidade, enquanto conteúdo de formas jurídicas, da autonomia política dos povos africanos e como adequar-lhes as formas existentes do direito. Um representante americano foi até ao ponto de discutir o estatuto jurídico dos homossexuais. Aliás, os americanos estão de tal modo interessados na filosofia do direito que propuseram uma próxima reunião nos Estados Unidos com a oferta de pagarem todas as despesas dos congressistas.

J. – A filosofia do direito não é, pois, um saber desinteressado, académico, teórico… 

O.V. – Quer você dizer: trata-se de um saber que importa imediatamente à vida quotidiana de todos os povos e de todos os homens. É isso mesmo.


As instituições portuguesas perante a filosofia do direito 


J. – Esse retorno – que você tão claramente justificou – dos juristas à filosofia do direito também se verifica em Portugal? 

Foi o Vitorino quem nos perguntou: 

O.V. – Que lhe parece?

J. – Há quem diga que Portugal é um país de juristas... 

O.V. – Com maior rigor: Portugal é um país governado, há vários séculos, por juristas. O que também se compreende, pois o Estado sempre tem sido considerado entre nós como uma instituição jurídica. Salazar chegou a dizer que «o Estado é uma pessoa».



J. – Não é isso que você pensa? 

O.V. – Eu antes penso que o Estado é a efectividade do direito. Isto é: quando se diz que não há direito sem efectividade (por exemplo: as leis contêm a obrigatoriedade de serem cumpridas), o Estado garante e representa essa efectividade. Não se trata, pois, de uma instituição e, muito menos, de uma pessoa. Nem sequer de um análogo delas.

J. – Qual, então, a situação da filosofia do direito em Portugal? 

O.V. – Fora das instituições posso dizer que só eu me tenho dedicado ao estudo da filosofia do direito. E não por via do direito, mas por via da filosofia. Foram as leituras de Aristóteles e de Hegel que me levaram a escrever um livro sobre filosofia do direito. Durante as últimas décadas, as nossas duas universidades apenas tiveram um único professor, aliás notável, de filosofia do direito: Cabral de Moncada. A cadeira é, porém, subsidiária do curso de direito, apenas frequentada pelos alunos que «tiram» o 6º ano! Afastado Cabral de Moncada, tem ela sido leccionada, tanto em Coimbra como em Lisboa por «assistentes» no início (o que é também um absurdo) da carreira docente ou por professores «regentes» de outras especialidades: Direito Internacional, por exemplo. Um destes professores, Afonso Queiró, chegou a afirmar notável capacidade especulativa que, porém, parece ter sido desviada para outros interesses.

Aos actuais assistentes, Baptista Machado e Sousa e Brito, será de desejar que se lhes dêem condições e «dignidades» que os não desviem da filosofia. O primeiro já se distinguiu, em dois prefácios que publicou à tradução de livros famosos, por uma rara e actualizada erudição, com larga informação germânica. A descrição que lhe faço ficará completa com a referência a duas personalidades excepcionais que, em face dos obstáculos com que depararam, se desviaram também da filosofia do direito: António José Brandão, que chegou a candidatar-se à regência da cadeira e hoje se dedica a administrar o Banco de Portugal, e António da Silva Leal, que se mantém interessado e informado, mas nada escreve ou, pelo menos, publica.

J – Você é formado em Direito, Orlando Vitorino? 

O.V. – Não. Sou licenciado em Filosofia.

J – A Fundação Gulbenkian promoveu, no mês de Agosto, creio que sob a orientação de um dos seus administradores, também professor de Faculdade de Direito, Ferrer Correia, um curso internacional de Direito Comparado. Realizado assim à margem do ensino universitário, esse curso pode apresentar alguma relação com a filosofia do direito? Você também é funcionário da Fundação Gulbenkian, não é verdade? 

O.V. – Há sectores da ciência do direito que são especialmente propícios para suscitar nos juristas o interesse pela filosofia. Em primeiro lugar, o Direito Penal. Depois, o Direito Internacional em que é especialista e sábio o prof. Ferrer Correia. O Direito Comparado, isto é, a comparação de formas, leis, processos e instituições pode ser visto ou como um saber necessário à resolução de certos problemas, à redução de certos conflitos, ao julgamento de certas questões em que há oposição de determinações jurídicas diferentes, ou como uma dialéctica entre formas, conceitos e até sistemas jurídicos que, embora divergentes, estão igualmente seguros na efectividade do Direito que os diversos estados representam. Só assim, só visto como uma dialéctica, pode o Direito Comparado aproximar da filosofia. Foi nesse sentido, que ao inaugurar o curso, o prof. Ferrer Correia declarou que o Direito Comparado podia representar hoje o que o Direito Natural representou nos fins do século XVIII. Como sabe, o Direito Natural foi a designação que então recebeu a Filosofia do Direito. Todavia...

O Direito Comparado só pode representar o que representou a Filosofia do Direito (ou o Direito Natural), para a substituir. Os estudos comparativos – Direito Comparado, Literatura Comparada, etc – foram valorizados e preconizados, precisamente com essa finalidade, pelo positivismo.


O novo aristotelismo 


J. – A situação que assim nos descreve não está de acordo com a actualidade do direito que V. foi encontrar no Congresso de Bruxelas. Portanto... 

O.V. – O que importa não é a actualização ou desactualização de um ensino, de uma mentalidade, até de uma cultura. O que importa é o acordo com a verdade. A desactualização nada significa quanto à verdade. Também a persistência do aristotelismo em Portugal foi apresentada, durante dois séculos, como um anacronismo condenatório. Houve, todavia, um momento em que o próprio Álvaro Ribeiro explicava a persistência do positivismo como um modo de fazer perdurar o realismo aristotélico. E, entretanto, o aristotelismo reassumiu, em toda a Europa, o magistério da cultura e do saber. O tão difundido estruturalismo é um prolongamento dos métodos de classificação de Aristóteles. Neste mesmo Congresso de Filosofia do Direito, raras foram as comunicações, mais raros foram os intervenientes que não se referissem a Aristóteles. Quem participasse nas discussões da minha secção (a do «lugar do raciocínio jurídico em relação com os outros tipos de raciocínio») diria que Aristóteles voltou a ser o filósofo por excelência.






J. – Perante as posições concretas, reais ou imediatas que, como V. disse há pouco, os congressistas de outros países assumiram no Congresso de Bruxelas, como se situaram os congressistas portugueses? 

O.V. – Não me pergunte isso em relação apenas aos portugueses. Na mesma nossa situação se encontraram os representantes da maior parte dos países, desde a Bulgária à Espanha. Até os russos. Aquelas posições concretas e imediatas foram assumidas sobretudo pelos americanos, pelos alemães e um tanto pelos ingleses e brasileiros. Nós, os outros, situamo-nos mais ou no domínio teórico (a minha comunicação, por exemplo, que era a única portuguesa, tinha por tema «O Raciocínio da Injustiça») ou sobretudo os franceses e os espanhóis, no domínio historicista. Neste domínio, os espanhóis têm hoje muito a dizer, pois o regresso ao magistério aristotélico dará especial interesse e fecundidade à revisão da chamada «escolástica espanhola» que dominou até à época do iluminismo e do direito natural, portanto até ao triunfo da burguesia, as zonas mais seguras da vida espiritual europeia. Os congressistas espanhóis – Delgado Pinto, L. Perena, V. Abril – apresentaram , com efeito, comunicações sobre Suarez e Pedraza na secção de história. Na minha secção, os espanhóis – que eram todos professores universitários – deixaram-se infelizmente vencer pela valorização tipicamente universitária, tanto em Espanha como em Portugal, da ciência germânica, fizeram traduzir as suas comunicações em alemão mas recusaram-se depois a discuti-las, precisamente porque teriam de o fazer em alemão.

J. – O castelhano e o português não eram reconhecidos como línguas oficiais do Congresso?

O.V. – Não. Nem uma nem outra. O que é lamentável e injusto. Apenas se reconhecia, como acontece na generalidade das reuniões internacionais, o inglês, o alemão e o francês.

J. – Lamentável e injusto, diz você… 

O.V. – Decerto. Tanto o castelhano como o português figuram entre as cinco línguas mais faladas no mundo, ao lado do inglês, do chinês e do russo (estas duas divididas em múltiplos dialectos) e muito acima do francês e do alemão. Além disso, ambos representam povos com contribuições decisivas e profundas para a cultura universal e, no caso, para a filosofia do direito. Desde a «escolástica espanhola» – que pertence também aos portugueses, pois Molina e Suarez viveram e ensinaram em Coimbra e Évora – até ao pensamento de Miguel Reale que figura entre os mais significativos filósofos do direito contemporâneo.

J. – Miguel Reale é brasileiro. 

O.V. – Decerto. O que, para o caso, não importa. Além disso, do ponto de vista da cultura ou, se quiser, do meu ponto de vista, a unidade da língua é mais importante do que a separação dos Estados.


Seria libertador, para o direito português, adoptar uma concepção como a de Miguel Reale 


J – Há influência de Miguel Reale na actual filosofia do direito? 

O.V. – Sem dúvida. A sua principal concepção – a da teoria tridimensional do direito – é reconhecida, adoptada e difundida por pensadores tão significativos como o espanhol Luiz Recasens e o italiano Luigi Bagolini. Aliás, seria libertador e fecundo, para o actual direito português e o rígido formalismo em que se encontra, o estudo e a adopção de uma concepção como a de Miguel Reale. Ela nos levaria a considerar o direito na sua plenitude. Miguel Reale mostra como a plenitude do direito é composta pela «vigência», que é o que os nossos juristas só consideram pela «eficácia» e pelo «fundamento». Tem aqui um breve trecho em que o próprio Miguel Reale sumaria a sua concepção. Leia: a validade do direito está simultaneamente «na vigência, ou obrigatoriedade formal dos preceitos jurídicos, na eficácia, ou efectiva correspondência social com o seu conteúdo, e no fundamento, ou valores capazes de o legitimar numa sociedade de homens livres».

A conversa com Orlando Vitorino não terminou aqui. Falámos ainda de política e direito, com a concepção de Orlando Vitorino de que tudo o que há de positivo na política é o direito; falámos da Espanha e do Brasil e no que há de previsível no nosso futuro «caso os portugueses não queiram que o país seja apenas uma empresa industrial, hoteleira e turística»; falámos do entusiasmo com que os brasileiros vivem a sua pátria e de como está já alterada a realidade das autonomias nacionais e se está alterando a respectiva noção; falámos no desdém que os meios portugueses de maior influência social manifestam pela cultura e pelo saber e de como se incentivam e alimentam produtos pseudoculturais para justificar esse desdém. Mas tudo o que dissemos depois do que aqui fica escrito estava já distante da filosofia do direito, tema desta entrevista. (in Diário de Notícias, ano 107, n.º 37946, Lisboa, 28 Out. 1971, pp. 17, 18 e 19).










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