Narciso e Eco |
Esta entrevista foi publicada na revista Encontro, da cidade de Pernambuco, onde quis Deus criar um grupo de Filosofia em língua portuguesa que prolonga além-mar o espírito de Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes. Damos apenas dois nomes: o grande poeta Ângelo Monteiro e o grande filósofo Olavo de Carvalho.
ENCONTRO - Gostaria de uma interpretação mais detalhada, para os leitores brasileiros, de sua distinção entre filosofia especulativa, quando se trata da filosofia mesma, e filosofia operativa, ao referir-se à Arte e, nela, à poesia.
ANTÓNIO TELMO – À data em que pus no meu primeiro livro esta distinção, parecia-me estéril o pensamento que se julgasse garantido pela sua própria actividade raciocinativa, separadamente de uma experiência fundada no conhecimento esotérico de nós próprios e, por conseguinte, do mundo e de Deus. Erradamente, adjectivei tal pensamento de especulativo, como se o conhecimento que de si próprio teve Narciso pudesse ter dispensado o espelho. Por operativo significava eu eficaz, capaz de nos curar da dor e de nos libertar do mal por uma espécie de encantamento, o qual diria transfigurante, depois de o ter ouvido a si em Évora. O encantamento é o que é próprio da poesia, que para tanto dispõe do ritmo e da imagem. O ritmo embala e adormece a alma. Ai daquele que no ritmo incorpora imagens contrárias aos impulsos do ser que se rendeu ao encanto por aspirar ao Bem e à Verdade.
Não quero eu dizer, nem queria dizer então, que se substitua a filosofia pela poesia. O que eu propus e proponho ainda é uma filosofia que seja essencialmente uma arte poética, criadora de força, de sabedoria e de beleza pela virtude dos conceitos.
ENCONTRO – Em que momento irrompeu o conto em sua obra literária, na feição original que encontramos, principalmente, em Le Bateleur?
ANTÓNIO TELMO – De tudo quanto publiquei nos meus livros a coisa mais antiga é o conto A Dama de Ouros, que fui encontrar perdido entre os meus papéis dos anos moços quando, sete lustros mais tarde, reuni em Filosofia e Kabbalah outros escritos dispersos. Esse conto tem por núcleo irradiante o mistério da imaginação e a experiência pessoal desse mistério. As palavras com que escrevi ensinaram-me a conhecer melhor esse mesmo mistério e o que é dado na sua experiência.
ENCONTRO – Em que medida o vitalismo de Bergson coincidiu, no seu ensaio Arte Poética, com sua visão iniciática da Vida e da História?
ANTÓNIO TELMO – A minha visão iniciática da Vida e da História não vem de Bergson, mas sim de Álvaro Ribeiro e de Eudoro de Sousa que foram quem me mandou ler o filósofo francês. Servi-me dele para dizer a minha Arte Poética.
Henrique Bergson |
ENCONTRO – Poderia explicar-nos de modo mais exotérico a obra de transmutação do mental em espiritual?
É algo muito complicado porque a mente é o lugar onde se urdem as mentiras e o espírito é o sopro criador da verdade. Não podemos, porém, eliminar a mentira, dado que possuímos mente e por ela nos caracterizamos como homens (inglês: men). Não podemos nem devemos, como certas correntes místicas neo-orientalistas, condenar o pensamento em nome do inefável. «A razão é o espírito do homem», ensinava Álvaro Ribeiro para nos defender a nós, discípulos, dos animais e dos anjos. Por um motivo análogo, São Paulo ordenou às mulheres que cobrissem a cabeça dentro do Templo. Há aqui um grande mistério porque, já antes dele, os judeus ordenavam o mesmo, mas para os homens.
O supremo paradoxo artístico é, pois, este: dizer a verdade com a mentira. É o que acontece, no melhor exemplo, com os contos tradicionais. E o que é perturbante é que não há nenhum outro modo de dizer a verdade. Eis, com o supremo paradoxo, o supremo privilégio da arte.
ENCONTRO – Até que ponto a simbólica descida aos infernos teria a propriedade de distinguir a grande obra poética daquela que não conheceu a mesma experiência?
ANTÓNIO TELMO – Um poeta pode ter tido a experiência da descida aos infernos, mas, por este ou aquele motivo, não a tornar explícita nos seus versos. Convém por isso determinar o que seja essa experiência que simbolicamente aparece como uma descida aos infernos.
Sabe? Não aceito hoje, como nos meus trinta anos, a doutrina de Jung que compara a descida aos infernos à descoberta do subconsciente própria da psicanálise. Estava eu então «no meio do caminho da nossa vida» e tinha o espírito confuso como uma espessa floresta. A minha Arte Poética vale pelo último capítulo que foi escrito para a sua segunda edição há recentes anos. Não aceito aquela doutrina porque Eneias, que desce aos infernos para consultar o Pai sobre o futuro de Roma, Ulisses que ali vai interrogar Tirésias, o adivinho, e fala com a própria Mãe, Fausto que desce até onde estão as terríveis Mães para de lá trazer Helena, Jesus que dos infernos retirou os Patriarcas, Orfeu, Dante, Pascoaes não podem nem devem ser confundidos com o pobre indivíduo neurótico que se deixa conduzir por um sujeito mais ou menos louco, não por um homem com «um saber de experiências feito», mas por um experimentalista. Quem faz «a peregrina viagem», peregrina na expressão de Camões significativa da descida aos infernos que são Os Lusíadas, é sempre, nos relatos poéticos ou sagrados, um herói ou um deus, plenamente consciente e seguro de si enquanto se deixa guiar pelo Mestre interior, representado ou não na figura do homem. Compreende-se que Jesus Cristo a tenha feito sozinho. Também é verdade que mais vale só do que mal acompanhado.
Nos exemplos que dei de descidas aos infernos, há uma constante que devemos, sobretudo, ter em conta se quisermos saber o que, de facto, elas simbolizam. As palavras significativas dessa constante são PAI, MÃE, MÃES, PATRIARCAS. É, pois, uma descida até onde estão os progenitores. Não é este o momento próprio para discorrer sobre a memória do sangue, do nosso sangue onde residem os nossos antepassados. A verdade é que, se me salvo, salvo todos eles comigo. Eis que uma luz desponta para podermos vislumbrar o que seja a redenção por Jesus Cristo. Parece-me, porém, que não devemos conspurcar a sublime ideia que fazemos da relação com as matrizes do nosso ser imaginando essa relação como complexo de Édipo ou de Jocasta.
Com isto tudo, dirá que não respondi à sua pergunta. Mas alguma vez eu disse que não se pudesse ser grande poeta sem a experiência da descida aos infernos? Valha-nos Deus! As migalhas que caiem da mesa dos deuses também fazem parte do pão substancial.
ENCONTRO – Qual é a seu ver, a verdadeira missão da língua portuguesa no mundo?
ANTÓNIO TELMO - A meu ver, a língua portuguesa não provém, no essencial, do latim, porque é a expressão, para não dizer a criação, de um génio diferente. O latim deu a matéria, a base; a forma e o ácido vêm de outro lado. A resultante é a nossa língua, com a sua peculiar estrutura fonológica que, em tempos, estudei num livro à luz da Cabala. O pensamento deve ser possível, como em telepatia, independentemente das palavras, se é verdade o que ensinaram Plotino ou São Tomás de Aquino sobre a comunicação dos anjos; mas para o homem, que tem por espírito a razão poética, precisa da língua para pensar, pensa com palavras, isto é, desenvolve em imagens e conceitos as ideias que o intelecto superior lhe comunica. Se todos os homens pensassem do mesmo modo, isto é, se não houvesse como há formas de pensar heterogéneas em correspondência com as diferentes línguas, os anjos não teriam qualquer interesse em ensinar-nos ou em aprender connosco.
Dizendo de outro modo o mesmo: é no mundo intermediário, intermediário do mundo para Deus e de Deus para o mundo, que tudo se decide. Não é na terra; aqui todos são jogados. A filosofia portuguesa é uma criação da língua, é o que resulta da língua se pensar no espírito dos humanos. As suas teses, sobretudo os seus teoremas actuam no mundo intermediário, são tidas em consideração ali, pois, como ensinou Leibniz, «os anjos também investigam». Porque eu creio, com Fernando Pessoa e outros, meu caro Ângelo Monteiro, que, se explodir a Tarde do Mundo, essa tarde que V. tão bem definiu num dos seus poemas, «postiça tarde, sem o ocaso do Sonho ou o ocaso da morte», eu creio que uma Nova Terra nascerá tendo por matriz a matéria do mundo intermediário ou imaginal, «essa matéria de que os sonhos são feitos». E convém observar aqui que essa matéria é a luz que nos faz ver até quando dormimos.
ENCONTRO – Que lição, sobretudo para os europeus, mas também para os brasileiros, pode ser essencialmente extraída da filosofia portuguesa?
ANTÓNIO TELMO – Faça o favor de tirar os brasileiros cuja língua é a mesma que a dos portugueses. Quanto a europeus, aos europeus de fora, creio que já estão aprendendo alguma coisa com o Fernando Pessoa e que, por fim, cansados de tecnologia e de progresso, venham pedir socorro a este povo subdesenvolvido e nos ajudem a expulsar os europeus de dentro tão desgraçadamente servis perante os estrangeiros, como muito bem sabe quem escreveu A Lavação da Burra.
ENCONTRO – Existe uma diferença fundamental entre a filosofia portuguesa e a filosofia europeia dominante?
ANTÓNIO TELMO – Dada a variedade das correntes filosóficas europeias, não sei qual seja a filosofia dominante. O que aparece como dominante na Europa, na esfera do pensamento é a Ciência, isto é, o sistema das autoproclamadas ciências exactas. Mais do que filosofia europeia é filosofia mundial, a mãe da tecnologia e da telestesia, a filha da matemática experimentalista e laboratorial. Todos se curvam diante do seu poder e sabedoria. Para que pensar, se temos quem pense por nós e tudo resolva? Hoje estão os burgueses para a Ciência como outrora estavam para a religião. Hoje, a religião uniu-se à Ciência para não perder os burgueses. Por burgueses entendo todos, excepto o povo que já quase não existe.
Aqui, em Portugal, só têm direito de cidade para os nossos intelectuais os estudos que tragam anexada a palavra científicos. Quanto mais estúpido um trabalho, por exemplo, de análise literária mais científico, quanto mais científico mais credível. A isto e outras coisas a filosofia portuguesa bate o pé. Disse só isto: é necessário pensar em língua portuguesa. E disse isto: a língua portuguesa é superior à alemã. E ficou condenada porque a Alemanha dominou a Europa com a Ciência e estendeu-se para a América e daí desceu ao Brasil e está estragando a sua língua. Mas estamos preservados, porque o nosso mito essencial é o do Rei Encoberto.
ENCONTRO – Qual deva ser o papel da ocultação tanto na literatura como na filosofia?
ANTÓNIO TELMO – Permita que lhe leia um trecho que escrevi em Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões a propósito da ocultação n’Os Lusíadas.
«O leitor comum nunca aceitará a existência de uma pluralidade de sentidos incluídos uns nos outros – profundidade da profundidade -, pela razão simples de que esse leitor é ainda para si mesmo alguém que tem em si um conhecimento à superfície, alguém que consiste por ora em alguma coisa que ainda se não reconheceu como mistério. Significa isto que há correspondência entre o grau do leitor na escala espiritual e o estrato profundo ou superficial que n’Os Lusíadas toca. Sendo assim, parece inútil e ilícito um estudo, como este nosso, de sondagem do que o poeta ocultou. Inútil, na medida em que também não será compreendido; ilícito, porque pretende mostrar aquilo que, por amor, o poeta ocultou, condição inevitável de quem pretende mostrar».
Eis aqui todo o sentido das palavras velar e revelar. Isto é tão verdade em poesia como em filosofia, é o que é próprio do que veridicamente se diz em literatura.
ENCONTRO – Como se situa o António Telmo ante a literatura portuguesa contemporânea? E também no quadro da literatura mundial?
ANTÓNIO TELMO – Tenho setenta e dois anos de literatura portuguesa contemporânea. Quando nasci, ainda viviam Pessoa, Régio e Pascoaes. Dos escritores vivos, os melhores não são por vezes os mais famosos, porque não dispõem de propaganda. Muitos só são escritores por imitarem escrever em português. Escrevem em português, mas pensam em alemão ou russo. Deviam ler A Lavação da Burra. Como fui criado dentro do grupo da filosofia portuguesa, é natural que toda a minha simpatia vá para aqueles plumitivos que vêem em Portugal, com o Agostinho da Silva, um dos nomes de Deus. Não é que eu não saiba que há uma filosofia perene anterior às línguas e às nações. René Guénon é muito lido entre nós. Há sempre um francês no coração de cada escritor português. Junqueiro e Pascoaes tinham Victor Hugo, Leonardo Coimbra ensinava entusiasmado Bergson. Descartes e Comte explicam quase tudo quanto aconteceu em Portugal antes da invasão germano-russa. Só Fernando Pessoa foi uma excepção. Tinha literariamente duas nacionalidades, a portuguesa e a inglesa. Pergunta-me como é que eu me situo no meio disto tudo. Sei lá! Prefiro a todos os livros que nos chegam do estrangeiro os de Gustavo Meyrink, um romancista quase desconhecido que Jorge Luís Borges traduziu para a Argentina e que constitui a melhor versão actual de Henrique Corneille-Agrippa, autor de um famoso tratado de Filosofia Oculta escrito no século XVI (in Viagem a Granada, Fundação Lusíada, 2005, pp. 77-83).
Victor Hugo
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