quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Agostinho da Silva e a Reforma Agrária

Escrito por José Luís Conceição Silva



«Se a convicção progressista é antiquíssima, o seu predomínio é um fenómeno recente. Ao longo dos séculos da nossa civilização, sempre os homens deram a preferência ao ser, não ao devir, que perdura em tudo o que foi, em tudo o que é e em tudo o que será. O tempo, substância do progresso, sempre se afigurou uma fonte de ilusão quanto ao que está por vir e um factor de envelhecimento e morte quanto ao que está sendo. Olhando a vida sem as ébrias paixões de cada momento, paixões transitórias, a civilização ergueu-se na sabedoria de que o que está no fim é o que está no começo ou, numa frase em tempos muito citada, de que o "o futuro do futuro é o passado do passado."»

Orlando Vitorino («O Progressismo», in revista Escola Formal, quinto número, Dez. 1977 / Fev. 1978).


«As instituições republicanas oferecem características especiais que nem sempre são respeitadas ou compreendidas pelos doutrinadores. Acontece, por isso, que os legisladores adulteram consciente ou inconscientemente os acidentes que envolvem mas definem a noção de República. Não haverá República onde a constituição designe, como orgão de soberania, um Presidente Militar, uma Junta Militar, um Conselho Militar.

A República emerge da vontade dos cidadãos, ou dos civis, que desejam conhecer, através dos orçamentos discutíveis, a aplicação dos impostos, das contribuições ou dos descontos que incidem sobre o rendimento do trabalho. Ela é, etimologicamente, o Bem Público, e por isso a sua administração, ou o seu negócio, foi legitimamente da confiança dos reis, ou dos seus secretários, como aconteceu durante séculos na história de Portugal. A mentalidade dos militares, que sempre gozaram de privilégios em relação aos civis, privilégios aliás justificados para útil, eficiente e glorioso exercício das armas, ou Exército, não se compadece facilmente com as honras e as dignidades atribuídas aos governantes civis, nem com o sentimento igualitário e anónimo do povo.

O socialismo pode, e deve, ser interpretado como a aplicação das categorias do pensamento militar à organização económica da sociedade. Tal se prova nos raciocínios comparativos de destruição com a construção, a qual obedecerá muito mais aos artifícios da indústria e do tráfego do que ao naturalismo da agricultura e do comércio. Os impostos e as imposições, as expropriações e as nacionalizações, o planeamento e a estratégia de uma economia sem lucro nem liberdade, incluem imagens próprias da violência totalitária e da utopia indiscutível.»

Álvaro Ribeiro («Pela República, contra o Socialismo»).


«Há partidos e doutrinas que pretendem constituir formas diversas do socialismo: social-democracia, trabalhismo, socialismo moderado, comunismo, etc. Trata-se de uma distinção que só existe no processo preconizado de transição gradual ou imediata, para o socialismo, o qual, uma vez realizado, terá inevitavelmente, aquelas características [ a) Controlo da produção pelo Estado; b) Planeamento da economia pelo Estado; c) Abolição da propriedade (de direito e de facto)]. Quando a transição é mais gradual, o processo começa pelo planeamento da economia, que logo implica o controlo de certos sectores da produção e acabará, necessariamente, por controlar toda a produção; ao atingir este controlo integral, a propriedade ficará abolida. Quando a transição é imediata, como preconizam os comunistas, a ordem do processo de transição inverte-se: começa pela abolição da propriedade, que imediatamente implica a administração de todos os recursos económicos pelo Estado, no planeamento, e portanto o controlo de toda a produção.»

Orlando Vitorino («Os três sistemas possíveis de organização dos povos [socialismo, capitalismo e liberalismo]», in revista Escola Formal, terceiro número, Agosto / Setembro 1977).


«A derrocada não se fez esperar. Os acontecimentos do "28 de Setembro" representaram o primeiro passo para a negação da Democracia e da Liberdade.

As perseguições e as prisões arbitrárias sucederam-se, a loucura revolucionária não conheceu limites, oscilando entre comportamentos denunciadores de graves desequilíbrios mentais e o ridículo dos medíocres repentinamente guindados a postos de mando.

Iniciava-se, de facto, a era da "terra queimada", a que tantas vezes me referira.

O General Costa Gomes põe em prática o esquema de "democratização" das Forças Armadas que eu me negara a aceitar. A hierarquia e a disciplina são identificadas com o "fascismo"; surgem os primeiros "sovietes" nas unidades militares; os soldados aviltam-se e a grande maioria dos oficiais do Quadro Permanente ou são afastados por saneamento político ou adaptam-se à nova ordem revolucionária como única alternativa de sobrevivência.







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As escolas anarquizam-se; põe-se de parte o ensino da nossa História e lançam-se "campanhas de dinamização cultural" conduzidas por falsos ideólogos que amesquinham a Pátria e vilipendiam os seus Maiores num soez insulto ao Povo Português, enquanto este, atacado no seu cerne e nas suas origens, os passa a olhar como paranóicos ou traidores ao serviço de estranhos. Ao mesmo tempo, consagra-se o "terrorismo internacional" em congressos e colóquios, onde a loucura política e o banditismo profissional se confundem, permitindo aos seus participantes a livre entrada no País com dispensa total de identificação, e autoriza-se que falem em público, cobertos das vistas da assistência.

O aparelho de Estado apresenta sinais evidentes de rotura nos sectores mais diversos, com especial relevo para os das Finanças, da Economia, da Educação, da Saúde e até da Justiça. Com a Informação controlada pelo "esquerdismo ortodoxo ou anárquico" e os Serviços Públicos destroçados, o Partido Comunista comanda o desenvolvimento do processo através do sector organizado da "esquerda militar" e perante a completa demissão das restantes forças políticas, que, dominadas pelo complexo de esquerda, lutavam pela sobrevivência. Tudo se encaminhava para o golpe final.

As intenções são claras. Rosa Coutinho, por exemplo, apresentado, até então, como paladino dos ideais democráticos, não hesita, logo após a minha renúncia, em estabelecer a censura em Angola, revelando de forma objectiva os desígnios totalitaristas do seu grupo.

Com as Câmaras Municipais, os Governos Civis e outros organismos do Estado a nível regional largamente dominados por grupos de pressão constituídos para o efeito, apenas faltava completar a destruição do aparelho económico, nomeadamente das forças de produção.

É neste clima que, no quadro de uma maquiavélica manobra de envolvimento, surge o "11 de Março", a servir de excelente pretexto para a prossecução desses objectivos.

As nacionalizações selvagens são movidas exclusivamente por ódios ou perseguições pessoais e sem obedecerem a qualquer planeamento: a anarquização do mundo laboral é intensificada e associada a processos de controlo operário e de autogestão desde logo votados ao insucesso por falta de preparação dos trabalhadores. O País caminhava para o caos.

No Ultramar entra-se na fase de descalabro. Em Angola, Rosa Coutinho e Pezarat Correia põem em prática, sem quaisquer peias, o seu projecto de entrega daquele território ao MPLA. As estruturas civis e militares são postas ao serviço deste Movimento, passando-se a exercer toda a ordem de represálias sobre as pessoas que não aderissem ao mencionado projecto, represálias que logo se traduziram em actos de violência que marcaram o início do genocídio que se seguiu. Em Moçambique, com a complacência do Alto-Comissário Vítor Crespo, desenvolve-se uma campanha de intimidação imediatamente seguida por uma onda de perseguições, de que resultaram a chacina e a fuga desordenada de milhares de portugueses. Nos outros territórios, onde não existiam movimentos separatistas nem se podia invocar o argumento da guerra e as populações revelavam a sua firme vontade de continuarem ligadas a Portugal, forçava-se a implementação de movimentos emancipalistas sem adesão local e exerciam-se as mais diversas formas de coacção, no sentido de levar as populações a optar pela separação imediata de Portugal; campanha grave em Cabo Verde, mas que atingiu em Timor o mais alto grau de ignomínia e de traição a um Povo que havia confiado cegamente nas Forças Armadas Portuguesas, que ali acabaram por escrever com sangue timorense as páginas mais hediondas e cobardes da História da Pátria.»

António de Spínola («País sem Rumo. Contributo para a História de uma Revolução»).


«Minoritário e sem expressão nem dimensão nacional, o Partido Comunista e seus aliados activos ou passivos, pretendia a todo o custo reeditar neste extremo ocidental da Europa formas de efectivação do domínio comunista já experimentadas, com sucesso, no centro e no leste do Continente. As Forças Armadas portuguesas, na altura expurgadas dos seus quadros mais válidos e conscientes, deixaram-se tornar presa fácil dos oficiais "progressistas" que, corrompendo as estruturas da hierarquia e da autoridade, agiam em obediência a Álvaro Cunhal e seus assessores, nacionais e estrangeiros.»

João M. da Costa Figueira («25 de Abril: A Revolução da Vergonha»).


















«Entretanto estabelecem-se relações diplomáticas com os países do Leste, entre as quais se deve salientar a União Soviética que em 11 de Junho abriu uma embaixada com mais de trezentos, digo trezentos, funcionários, tendo à frente o senhor A. Kallinin que, curiosamente, tinha estado anteriormente no Chile a "instalar" Allende e em Cuba a orientar Fidel Castro. Corria que se tinham apresentado com um verdadeiro exército do KGB, todos falando correctamente o português!»

General Silva Cardoso («ANGOLA. Anatomia de uma Tragédia»).


«Para disfarçar, para chamar as atenções para outro ponto, descobriu-se um remédio seguro: cortar relações com o Chile. Pois não é verdade que todas as nossas desventuras se devem às ligações diplomáticas com o Chile?

Pois não é verdade que houve um 25 de Novembro (mas houve?) por causa do Chile?

Ora cortando com o Chile, vamos ser um povo feliz, desafogado e sem complexos!

O pior é que todos os génios têm os seus detractores. Assim, logo que Mário Soares "aviou".

Mário, ao que chegaste!

a receita chilena, não faltou logo quem aparecesse, mal intencionadamente, claro, perguntando por que razão não se fazia o mesmo com as ditaduras homicidas da URSS, de Cuba, e da maioria dos países de Leste?

Bem pelo contrário, até se festeja a Revolução Russa!

Perguntando se no Chile haveria mais presos políticos do que nos Gulags de Leste? Se no Chile se havia assassinado mais gente que nos países comunistas? Se na URSS e seus satélites é possível visitar os presos políticos como aconteceu, ainda há pouco, no Chile - presos que foram visitados, por exemplo, pelo líder do PSOE Filipe Gonzalez? Se no Chile há portugueses presos como em Angola? Se no Chile há chacinas de portugueses como ainda recentemente houve em Moçambique? Se os chilenos invadiram algum outro país como aconteceu com os cubanos e russos, em Angola, Checoslováquia, Hungria, etc.? Se o Chile tem em Portugal algum partido a fazer a política do seu governo como é o caso do PC, partido estrangeiro ao serviço do Kremlin? Se nas fronteiras do Chile os cidadãos são mortos à bala?

Fico por aqui.

Na verdade, a culpa é do Chile…»

Vera Lagoa («A Cambada»).


«No seu triunfalismo, o PCP mede o País pelo proletariado do Sul. Em vez de ganhar os camponeses para a democracia, empurra-os para fora dela. Não tem um programa para os pequenos proprietários. Bem podem os seus quadros invocar Marx, sem lhes cair um dente, porque mais arreigam a Senhora de Fátima no coração dos camponeses.

Os camponeses olham para as suas mãos: estão mais vazias que antes do 25 de Abril. O pequeno lavrador não tem qualquer espécie de apoio técnico ou financeiro. Os seus produtos, parcos, não são escoados. Os intermediários responsabilizam o Governo de Lisboa.

Para o lavrador nortenho, a Reforma Agrária apoiada pelas baionetas, a reclamação pelo operariado industrial do poder novo, o festim lisboeta da retórica, ressoam como o apocalipse. É como Lisboa a rir-se da miséria.

Junta-se o desespero dos retornados, na sua raiva transbordante e clamando por vinganças.

A ocupação da Rádio Renascença, pelos esquerdistas, foi a gota que fez transbordar o cálice. Era tirar a voz a uma Igreja que no antigo regime fora rainha da província. Tudo isto temperado por quem não se coibia de clamar: "O Norte é reaccionário, a Revolução faz-se no Sul!"

Da mesma maneira que em 1926, com o mesmo ódio ao Estado central e aos seus rotativos caciques, os camponeses querem vir à capital varrer os políticos "à mocada". Na mais suave das hipóteses, cortar o abastecimento das batatas e da carne que Lisboa come e fazê-la "render pela fome".

É assim na noite de 24 de Novembro, em que os agricultores da CAP lideram as populações no corte das estradas. Erguem barricadas, ameaçam cortar a luz e a água a Lisboa, vedam o trânsito.

Rio Maior é a fronteira.»

José Freire Antunes («O Segredo do 25 de Novembro»).




Boris Ponomarev




«À distância do tempo, pode hoje avaliar-se, em toda a sua extensão, até que ponto o Partido Comunista Português seguiu caninamente a orientação estabelecida por Ponomarev. Com efeito, quer no problema dos meios de comunicação social (Imprensa, Rádio, Televisão); quer no controle dos sindicatos (problema da unicidade sindical e da Intersindical); quer na destruição apressada do aparelho económico pelas nacionalizações selvagens e pela arbitrária fixação de um salário mínimo nacional, incomportável para a grande maioria das empresas, desarticulando assim todo o sector da produção do país; quer pelo assalto aos centros administrativos periféricos (autarquias locais: câmaras municipais e juntas de freguesia); atribuição de intenções "golpistas" às forças mais conservadoras: o caso Palma Carlos, o da "maioria silenciosa" e do 28 de Setembro; a montagem maquiavélica do 11 de Março; o confisco das maiores empresas nacionais e da propriedade fundiária do Alentejo; as prisões arbitrárias de milhares de pessoas; a paralisação do ensino; a degradação dos critérios morais, pelo livro e pelo filme; os sequestros ao Governo na pessoa do Primeiro-Ministro e dos deputados não-comunistas da Assembleia Constituinte; a técnica "repetitiva" no emprego de "slogans" mentirosos, torpes e demagógicos; a manipulação dos elementos mais vulneráveis das Forças Armadas, tornados joguetes inconscientes ao serviço do comunismo internacional, e a destruição sistemática do aparelho económico e financeiro do Estado - culminaria na situação de desespero paranóico e suicida do 25 de Novembro, que pôs o País à beira da guerra civil.

Filme macabro e trágico, de como se destrói uma Pátria, que nos leva a reflectir nos perigos que os portugueses correram de não estarem a viver hoje, em pesadelo, a execrável experiência comunista, a níveis de opressão e miséria!»

João M. da Costa Figueira («25 de Abril: a Revolução da Vergonha»).


«Que foi afinal, o gonçalvismo? Quem esteve por detrás das prisões sem culpa formada, das sevícias monstruosas, da conspiração do 25 de Novembro, dos assassinatos a frio, das liquidações morais e físicas de tantos e tantos portugueses? Quem incitou à destruição violenta dos bens nacionais e estrangeiros que hoje o Povo tem que pagar? Quem foram esses "fascistas"?

Quem, sob a sigla de um partido político, continuou a praticar assaltos e roubos, a assassinar agentes da ordem, a fazer declarações odientas, dizendo que o 25 de Abril tinha feito poucas mortes em Portugal?»

Vera Lagoa («A Cambada»).


«Por iniciativa selvagem, de um revolucionarismo primário e lorpa, dos empregados bancários (desde logo organizados num Sindicato de obediência comunista), foram "congeladas" dezenas e dezenas de contas de depósito, impedindo-se desse modo que os seus respectivos titulares movimentassem os seus dinheiros. Esta medida discricionária e irresponsável, começou por impedir que os titulares nessas condições, exercendo actividades comerciais ou industriais, pudessem proceder, a tempo e horas, ao pagamento de salários e ordenados aos trabalhadores das empresas ou firmas a que se achavam ligados.

Fazendo por ignorar as situações de facto consumado, assim criadas, a máquina de propaganda movida dinamicamente pelo Partido Comunista, pelo CDE, que voltara de novo ao primeiro plano no enquadramento governativo, no pós-28 de Setembro, e ao serviço de uma parte do Governo e do MFA, passou a acusar sistematicamente de "sabotadores económicos" aqueles mesmos reaccionários que praticamente colocara na situação de insolventes e de falidos - e isto relativamente aos sectores industrial e comercial assim como ao agrícola. Efectivamente, e sobretudo nas regiões rurais do Baixo e Alto Alentejo, como em parte do Ribatejo, as células locais do PC, depois da imposição da prática de salários que exorbitavam da realidade da própria exploração da terra, obrigaram, sem possibilidades de recurso, aos agrários, mesmo pequenos e médios agricultores, grande parte dos quais rendeiros e seareiros, a admitir ao seu serviço um número excessivo e desnecessário de trabalhadores rurais, com o claro objectivo de os exaurir financeiramente. Com idêntico objectivo, promoveram (em fins de Janeiro de 1975, e nos dois meses seguintes), a ocupação arbitrária das chamadas grandes propriedades agrícolas, especialmente aquelas que pelo apuro e esmero da sua exploração foram as primeiras a ser cobiçadas... Num grande comício em Beja, em Fevereiro de 1975, o Secretário de Estado da Agricultura, Dr. Esteves Belo, anunciara a "expropriação de terras e seu arrendamento compulsivo", medidas essas que então classificou como "um grande passo no caminho da reforma agrária", que viriam afinal a encontrar a sua consagração, num clima de violência e de atropelo a que o Decreto-Lei 406-A/75, pouco depois publicado, daria cobertura legal. Não era decididamente a "Reforma Agrária" mas um processo monstruoso de latrocínios e de confisco da propriedade fundiária alentejana.

Em documento distribuído à imprensa, em 9 de Janeiro de 1976, o Engenheiro Lopes Cardoso, Ministro da Agricultura e Pescas, dizia que "o processo da reforma agrária se desenvolvera até esta data praticamente sem controle, nem enquadramento por parte dos organismos estatais a quem cabia justamente a sua condução". Mais: "O Decreto-Lei 406/75, impropriamente designado por lei da reforma agrária, longe de ter servido para disciplinar e orientar as expropriações que deviam constituir o ponto de partida para a reforma agrária, tem servido apenas para a legalização de situações de facto. É assim que enquanto se estima em cerca de um milhão de hectares a área actualmente ocupada, a área que foi objecto de expropriações nos termos da lei não excede os 300 mil hectares"...




Sabe-se quanto a economia da terra condiciona todas as outras actividades, por ser a base fundamental da vida de nações como a nossa, que não dispõem de grandes parques industriais. O Partido Comunista não resistiu neste ponto a aplicar no Alentejo uma política de terra queimada, explorando a situação de atraso das suas populações rurais, acenando-lhe com um falso "eldorado" e uma falsa ideia da entrega das terras a quem a trabalha. A trágica experiência da colectivização da terra, que só na Rússia sacrificou mais de seis milhões de camponeses à fúria bolchevique, pouco importava aos burocratas comunistas. O que interessava era a subversão pela opressão e miséria das classes trabalhadoras, como forma de atingir o tão cobiçado totalitarismo de Estado.

A luta anti-capitalista, contra todas as formas de monopólio, incluindo o ataque frontal a algumas empresas multinacionais a operar com os seus capitais e com a sua tecnologia no arranque do desenvolvimento económico, em franco processamento a partir dos anos 70, - luta essa acelerada desde os primeiros dias de Outubro, a seguir à renúncia do presidente Spínola - deveria vir a incrementar-se, brutalmente, a partir da madrugada de 13 de Dezembro de 1974, com a prisão, sancionada pelo Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves, de numerosos banqueiros e de outras conhecidas figuras do nosso meio social, de algum modo ligadas aos meios financeiros e industriais. Essas detenções, do desconhecimento da quase totalidade dos membros do Governo, iniciaram-se a partir das 2 horas da madrugada, sendo a lista completa das pessoas a aprisionar apenas do conhecimento do PC e do CDE, lista essa confidenciada, particularmente, a alguns orgãos de Informação, pouco depois da 5 e 30. Alertados entretanto alguns membros do Governo, cerca das 7 horas, muitos dos mandados de captura, grande parte dos quais assinados em branco pelo COPCON, não chegariam a ser executados. E, muito embora a relação oficial das prisões feitas só tivesse sido divulgada pelo gabinete do Primeiro-Ministro às 12,30 horas desse mesmo dia, acontecera que, 3 horas antes (portanto pelas 9), já era profusamente distribuído nas ruas em Lisboa um comunicado do CDE dando conta da ofensiva revolucionariamente empreendida contra os "sabotadores económicos capitalistas". Em simultaneidade de acção, líderes desse mesmo agrupamento, correia de transmissão do PC, realizavam comícios de esclarecimento em diversos pontos da capital, aliás conforme viria a ser largamente noticiado na Imprensa. Singular ou sintomaticamente, a execução dessa acção - que ficará como uma das mais vergonhosas da Revolução Traída - coincidiria com o início do Congresso do Partido Socialista, há muito aprazado para os dias 13, 14 e 15 de Dezembro. Essa onda de violência, desencadeada com objectivos puramente demagógicos, e de intimidação, contava igualmente com o apoio declarado da Intersindical, de influência comunista, à qual competiria a iniciativa da campanha contra os "sabotadores económicos", realizando, com o aparato adequado, manifestações de trabalhadores, quer nas ruas quer no seio das empresas.

O projecto da ofensiva anti-capitalista, que contou com a benevolência e indiferença do Chefe do Estado, general Costa Gomes, não foi, no entanto, executado em toda a sua extensão, sendo de presumir que a onda de reacções despertada a nível interno e externo tivesse obrigado a suspendê-lo. Certo é que as tensões aumentaram ao nível dos orgãos do poder, especialmente no seio do Governo, acentuando-se a partir daí as divergências já patentes entre o Primeiro-Ministro e os ministros sem pasta do ramo das Forças Armadas, a um dos quais cabia a coordenação do sector da Economia e estava confiada a elaboração de um "plano económico de emergência" (plano Melo Antunes), que se sabia estar a ser orientado para objectivos moderados e realistas, embora apontando uma "via socializante" em oposição a soluções radicais propugnadas pelo Partido Comunista e por muitos tecnocratas e intelectuais de formação marxista, alinhados em agrupamentos do Governo, como era o caso da CDE e do Movimento de Esquerda Socialista - MES.»

João M. da Costa Figueira («25 de Abril: A Revolução da Vergonha»).


«Todos sabemos que "um certo Partido" - como timorata e eufemisticamente se passou a designar o Partido Comunista de Álvaro Cunhal - foi a alma danada que esteve por detrás de tudo. Esteve e está. Todos sabemos que os seus comparsas militares agiram (e agem) em consonância táctica, integrados na mesma estratégia de entrega do País às forças político-ideológicas a que foram violentamente, crapulosamente, entregues Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e os seus povos.

Todos sabemos isso. E quem detém os verdadeiros relatórios e inquéritos saberá ainda mais do que nós. Saberá que os principais responsáveis não foram punidos por isso. Pelo contrário. Tem-se permitido que o Partido Comunista, apesar das flagrantes responsabilidades no 25 de Novembro e do repúdio que ostensivamente lhe manifestou o Povo nas eleições presidenciais, se volte a reestruturar ameaçadoramente. Mais: tem-se louvado, como ainda, há bem pouco tempo, o fez o "todo-poderoso" (?) Conselho da Revolução, quando da monumental farsa que foi o Congresso do PCP.»

Vera Lagoa («A Cambada»).






«Como diz Melo Antunes, toda a prudência de Álvaro Cunhal, o tacto frio de animal político, não o impediram de, por instantes, ter perdido a noção da realidade portuguesa e acreditado numa ruptura violenta que reeditasse Outubro de 1917.

A União Soviética, porém, nunca acreditou. Não queria também: ao repartirem o globo como uma melancia, nas novas Tordesilhas de Vladivostoque, o Kremlin e a Casa Branca acordaram na permanência de Lisboa na esfera ocidental.

Os Soviéticos esperaram para ver. E deram a cumprir ao Partido Comunista uma tarefa estrategicamente mais importante do que um duvidoso Belém vermelho: Angola.

A partir da batalha de Luanda, o PCP e os militares afectos boicotaram os acordos de Alvor. E a investida cubana e soviética em Angola, essa fulminante quão inovadora forma de exportar o socialismo, beneficiou da desastrosa actuação de Henry Kissinger.»

José Freire Antunes («O Segredo do 25 de Novembro»).


«(…) também nos contemplaram com uma bomba, na Avenida da Liberdade, durante a manifestação que efectuámos no 1.º de Dezembro. Quem pôs a bomba que matou um pobre homem (estávamos a 200 metros, conforme assegura o neste caso honestíssimo "Diário de Lisboa") calculava que íamos morrer, os da primeira fila. O que tem graça (!) é que todos estávamos preparados para isso. O que não tem graça nenhuma é que o assassino viu a vítima sentada no local onde tinha posto a bomba. Basta ver as sequências fotográficas do "Extra". Sabia e não o mandou levantar. Seria um a mais a ir pelo ar. Os assassinos viam a cena de camarote. Precisamente, da sede do Partido Comunista na Avenida da Liberdade.»

Vera Lagoa («A Cambada»).


«A abolição da propriedade é o que sempre definiu o antiquíssimo comunismo. Poderão os comunistas falar de meios de produção, de lutas de classes, de proletariado escravizado, de burgueses e de mais-valia. Poderão até recorrer a metáforas de origem homossexual como a da "exploração do homem pelo homem". Do que exclusivamente se trata é de abolir a propriedade. Abolida a propriedade, o comunismo atinge a única finalidade que lhe é própria, e que é também, simultaneamente, o seu ponto de partida. Ponto de partida para quê, para onde, ninguém sabe. O seu patrono moderno, Karl Marx, encolerizava-se quando lhe perguntavam o que se iria fazer depois de abolida a propriedade. Não sabia. Encolerizava-se e respondia: "Eu não faço receitas de cozinha".

(…) Comprazem-se os comunistas em pensar, por ingenuidade, por ignorância e por progressismo, que o comunismo é a mais moderna das doutrinas, a última, se não a derradeira, expressão daquele "progresso" de que julgam ser feita a história. Por muito que nos custe decepcioná-los, a verdade é que o comunismo é, pelo contrário, uma constante da história, a mais antiga e a mais inalterada das doutrinas, aquela que imediatamente surge, logo que um povo se organiza em Estado, nas camadas da população que, na linguagem de hoje, se designam por "as classes mais desfavorecidas".

Em sua antiquíssima tradição, o comunismo tem-se apresentado nas mais diferentes versões: foi uma teoria do Estado com Licurgo, foi uma doutrina moral com os anabaptistas; foi uma teoria da tirania com os de Münster, foi uma doutrina religiosa com os Jesuítas… Na sua versão marxista contemporânea, é um sistema económico.

Em qualquer destas versões, o comunismo manteve-se inalteravelmente o mesmo. Consistiu sempre na negação, condenação e abolição da propriedade.»

Orlando Vitorino («Manual de Teoria Política Aplicada»).


«O comunismo é aberrante e antinatural. Portanto, antipopular. Falo do Povo, não das massas alienadas por slogans e lavagens ao cérebro. Falo do Povo, não de populações controladas, vigiadas, sem alma e sem carácter próprios. Falo do Povo, portanto de Autenticidade e de Verdade, nas suas glórias e misérias. Falo do Povo, daquele Povo que revela na sua espontaneidade natural a sabedoria de séculos, que é a expressão de uma vontade projectada para o futuro. Falo do Povo e não de uma sociedade mecanizada pela ditadura burocrática. Falo do Povo e não de massas embalsamadas, museu de cera de personagens míticas ou artificiais que nos contam uma História que não foi nem será nunca. Falo do Povo - alma e essência - e não de quantidades-número apenas expressas e contabilizadas em função limitada da matéria, somatório do consumo e da produção.»

Vera Lagoa («A Cambada»).











«Aquele tipo [Mário Soares] é escritor, escreve muito bem, articula a língua e pensa coisas.»

Agostinho da Silva


«Reduzido à dimensão vexatória das "fronteiras medievais" - mas sem possibilidade do Sonho das Descobertas e das Conquistas - perdida a independência económica e política, falido e à beira da fome, é Portugal - e não Mário Soares e o seu grupo - que necessita urgentemente, armar-se dos "mecanismos de autodefesa" que o primeiro-ministro reclama para o "Estado" que ele próprio julga ou pretende encarnar. Que ridículo Luís XIV! Coitado!»

Vera Lagoa («A Cambada»).


«Mário Soares sabe aquilo que vai aprendendo por esse mundo fora entre dois aviões. Não tem uma ideia consistente.»

Vitorino Magalhães Godinho


«És um assassino

Vera Lagoa («A Cambada»).




Agostinho da Silva e a Reforma Agrária


Aviso à navegação do leitor: no escrito que ora se segue, o autor põe e dispõe da grafia luso-brasileira.


O meu contato direto com Agostinho da Silva deu-se apenas no período que vai de 1967 a 1969 em que a sua principal atividade dizia respeito à coordenação do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses (CBEP), órgão complementar da Universidade de Brasília. O CBEP fora fundado em Abril de 1962 logo no início da criação da UnB por Darcy Ribeiro no período final do governo do Presidente Goulard que substituíra Jânio Quadros depois de sua renúncia à Presidência da República em 1960.

Agostinho tinha já 61 anos de idade quando, em Abril de 1967, entramos em contato. A sua vida passada tinha atravessado diversos períodos distintos marcado cada um por características muito particulares da personalidade de Agostinho com aspectos de feição cultural, religiosa e até política difíceis de definir com precisão. Ninguém conseguiu, até hoje, classificar com exatidão qual a posição de Agostinho no panorama político tão complicado e variado no período de suas atividades intelectuais que exerceu entre 1926 (início da Ditadura Militar, fascistizante em Portugal) e 1964 (início da Ditadura no Brasil). Anti-salazarista, sem dúvida, mas de que corrente política de oposição? Em questões religiosas certamente um convicto crente no Jesus Cristo do Sermão da Montanha, mas também um admirador do budismo, que considerava muito próximo de um ateísmo esclarecido e um posicionamento de dúvida que ia da crítica ao catolicismo de Roma à aceitação parcial da contestação de Spinosa às crenças em deuses antropomórficos considerados superstições, fruto da ignorância.

(…)

(…) nos dois anos que se passaram de 1967 a 1969, [Agostinho da Silva] reduziu a sua participação nas atividades brasileiras, perdeu aparentemente o interesse manifestado até então pelos problemas do Brasil e, talvez desgostoso e desiludido com a permanência dos militares no poder e, sobretudo, pelo desinteresse verificado entre os brasileiros por Portugal e suas relações históricas com o Brasil, ele resolveu abandonar tudo e regressar a Portugal (Agosto de 1969).

Quais as razões ou interesses da minha vinda para o Brasil?

Vejamos o que realmente se passou.

Em Fevereiro de 1966, eu estava em Évora por conta do Centro de Estudos de Economia Agrária da Fundação Gulbenkian desde 1964. Naquele ano eu tinha sido demitido, por ordem da PIDE, do cargo de professor da Escola Comercial e Industrial de Évora. Ali, como sucedera desde 1955, em Beja, eu mantinha contato com o professor Antônio Telmo Carvalho Vitorino, companheiro de atividades culturais e muitas e variadas conversas resultantes da presença do amigo comum, Vasco da Gama Rodrigues, poeta madeirense interessado na interpretação astrológica de Portugal, o que motivou o nosso interesse crescente por assuntos como, por exemplo, o significado, talvez profético, da cena representada nos célebres Painéis quatrocentistas atribuídos ao pintor Nuno Gonçalves e as teses defendidas pelo grupo conhecido como da "Filosofia Portuguesa" (Álvaro Ribeiro, José Marinho, Sant'Anna Dionísio, Antônio Quadros, entre outros).

António Quadros e António Telmo

Em meados de 1965, havíamos recebido, em Évora, a visita do escritor Antônio Quadros, que regressara pouco antes do Brasil, onde tivera contato com Agostinho da Silva, em visita ao CBEP (Centro Brasileiro de Estudos Portugueses). Antônio Quadros fizera entusiasmado o elogio de Agostinho da Silva e revelara o maior interesse pelo trabalho realizado por ele na UnB (Universidade de Brasília). Esse interesse de Quadros levou Antônio Telmo a pensar na possibilidade de vir para o Brasil e dedicar-se a colaborar nas atividades de Agostinho da Silva e planos de atuação do CBEP na intensificação das relações culturais Brasil-Portugal, tão abandonadas desde tempos passados por ambos os interessados.

Por intermédio de Quadros, Antônio Telmo entrou em contato com Agostinho da Silva e conseguiu concretizar o seu desejo, vindo para o Brasil em Fevereiro de 1966 a convite da UnB como professor. Devo esclarecer que Antônio Telmo não conseguiu ser contratado para o CBEP, mas foi colocado no Centro de Estudos Clássicos da UnB, coordenado pelo professor Eudoro de Sousa, também português, grande amigo do professor Agostinho e seu colaborador no desenvolver dos trabalhos junto à UnB. Telmo foi lecionar latim como atividade de recurso, mas, de qualquer modo, as suas relações mais intensas e ativas foram com Agostinho da Silva. Com ele manteve uma verdadeira relação de amizade e desenvolveu, em insistentes contatos e inúmeras conversas, o conhecimento das ideias originais que proliferavam no pensamento prodigioso e incontestável do mestre da cultura portuguesa.

Ora sucedeu que, quando Antônio Telmo partiu para o Brasil em Fevereiro de 66, ao despedir-me dele eu, motivado talvez pela situação precária em que me encontrava devido às dificuldades de toda a ordem que surgiam em consequência da minha atividade política anti-salazarista, disse-lhe sem grande convicção: Telmo, se uma vez em Brasília você verificar que pode haver hipótese de eu também ir até lá, comunique-me, pois talvez eu me interesse e acabe indo.

Telmo partiu e passaram-se vários meses sem eu ter qualquer notícia a seu respeito.

Em Outubro chegou uma carta que muito me surpreendeu. Telmo simplesmente dizia-me que escrevera em Março, comunicando-me que o professor Agostinho concordara com a minha ida para Brasília, trabalhar no CBEP, e ficara esperando a minha resposta. A carta de Outubro confirmava o convite. A verdade é que eu jamais recebera a outra carta. Entretanto, a insistência no convite, com mais de seis meses de intervalo, convenceu-me de sua seriedade e interesse, agradou-me imensamente e, é claro, aceitei-o sem hesitar. Nem mesmo me interessou saber, em pormenor, as condições do meu contrato com a UnB.

(…)

Antes de eu ter partido, a 16 de Maio de 67, chegou inesperadamente a Lisboa o professor Agostinho da Silva, em meados de Abril. Conhecemo-nos no aeroporto de Lisboa onde fui esperá-lo. (…) Cumprimentamo-nos e combinamos um encontro num "café" perto de minha antiga casa na rua da Escola Politécnica em Lisboa, (…) encontro que se repetiu várias vezes até minha partida a 16 de Maio. Agostinho ficou em Portugal.

Nesses encontros recebi do professor Agostinho uma série de lições sobre "brasileirismo" e, sobretudo, função do CBEP. Fiquei sabendo que o convite que me fora feito tinha como finalidade a de eu assumir o cargo de Diretor Executivo e Coordenador Substituto do Centro, confessando-me Agostinho que era sua intenção diminuir, a partir da minha posse naquele cargo, as suas atividades junto da UnB e mesmo no Brasil, pois pensava em viajar e dispor de tempo para se dedicar a trabalhos que, de certo modo, considerava interrompidos contra o seu desejo. Devemos lembrar que, durante a sua estadia no Brasil, Agostinho realizara diversas viagens pelo que ele considerava o "mundo português". (…) Era um plano vastíssimo de contatos que pretendia realizar e que, de certo modo, seria incompatível com uma permanência constante no Brasil.

(…)


António Telmo e Agostinho da Silva à esquerda.



Falou-me quase exclusivamente sobre o Brasil de então e a necessidade de intensificar as relações culturais com Portugal, cumprindo a missão que, para tanto atribuía ao trabalho no CBEP. Sobre o ambiente da vida comum no Brasil, seus defeitos e suas qualidades, seu potencial nos diversos setores de atividade, do cultural ao econômico, as enormes dúvidas a respeito e o que se poderia esperar de certo e errado, desenvolveu a descrição de um panorama capaz de entusiasmar qualquer um no sentido de desejar conhecer diretamente e participar decididamente naquele caminhar para um futuro em que tudo de bom seria possível para quem conseguisse superar a pressão dos males sempre presentes. Agostinho resumiu tudo quando afirmou enfaticamente. "Enfim! O Brasil é o país onde você poderá realizar tudo o que sonhou e ainda aquilo com que nunca sonhou! E não esqueça, quem não viveu no Brasil pelo menos 20 anos e viajou por todo o interior conta[c]tando com o Povo, sobretudo o do Nordeste, não conhece o Brasil. Quem mora no Rio de Janeiro, viaja algumas vezes a São Paulo e visita à pressa Belo Horizonte, desconhece totalmente o verdadeiro Brasil. E lembre-se, os portugueses que vão para o Brasil, dividem-se em dois tipos diferentes: aqueles que ao fim de um ou dois anos se sentem esmagados pela grandeza de tudo o que os rodeia e voltam correndo para Portugal, e os que se apaixonam sentindo-se atraídos pela infinidade de possibilidades de trabalho, realização de objetivos e satisfação de desejos, e acabam ficando por toda a vida sem qualquer vontade de voltar à origem".

Quando parti de Portugal, em 16 de Maio de 1967, Agostinho ficou em Portugal, só regressando ao Brasil em Novembro daquele ano. Estive, portanto, de Junho a Novembro sem ele na Direção do CBEP, quer dizer, desenvolvendo um esforço enorme para me adaptar ao novo meio de atividade e à vida brasileira tão diferente afinal da portuguesa. Para vencer as dificuldades foi-me extremamente útil a colaboração de Antônio Telmo e, é claro, o que aprendera de Agostinho da Silva no nosso contato em Lisboa.

Quando Agostinho voltou verifiquei que ele não estava muito interessado em assumir integralmente a coordenação do Centro. Delegava a mim, constantemente, o cumprimento das tarefas habituais e, em especial, os contatos oficiais necessários nas relações com a Reitoria da UnB.

Mas a grande surpresa no meio de tanta novidade dentro do complicado quadro de cumprimento da missão do CBEP, foi a orientação dada ao que eu esperava da colaboração com o trabalho de Agostinho, depois de tudo o que havíamos conversado e projetado, pelo menos em hipótese, seis meses antes. O grande problema que discuti e analisei com Agostinho desde o seu regresso a Brasília, foi o da Reforma Agrária no Brasil. Posso afirmar que, fora deste tema, pouco ou nada foi tratado entre nós com a preocupação de colaborar no cumprimento da tal possível "missão" a que se destinaria, em tese, o funcionamento do CBEP.

Nunca tocamos no problema de interpretação do significado dos Painéis. Agostinho jamais se referiu, pedindo ou não o meu parecer, à famosa questão da mensagem político-religiosa que se julga contida no simbolismo da representação exposta nas conhecidas festas do Divino Espírito Santo, tema tão relevante no pensamento de Agostinho da Silva, constantemente referido em palestras e por escrito. A nossa grande atividade, quer em análises teóricas desenvolvidas em conversas sérias, quer em tentativas de trabalho prático realizado ou tentado no meio rural, foi sempre concluído que o primeiro passo seria iniciar o que se pode chamar de "verdadeira Reforma Agrária".

(…)

Nas conversas com Agostinho abordamos várias vezes o tema da necessidade de, na agricultura em geral, ser importante, para além da resolução dos problemas tecnológicos, prestar maior atenção aos aspectos da organização do trabalho de campo. Voltávamos constantemente ao problema da chamada Reforma Agrária. Problema evidentemente de natureza social e econômica, mas considerado, acima de tudo, político. Problema difícil de abordar quer em Portugal quer no Brasil, em virtude do perigo, temido pelos governantes, de se cair em análises de soluções relacionadas com a execrada doutrina marxista ou simplesmente socialista.






Foi nesta fase de nossas conversas, estudos e sonhos de realização experimental no campo, que Agostinho, com grande surpresa minha me ofereceu, solenemente e sem comentários, o livro de Álvaro Cunhal sobre a Questão Agrária em Portugal, editado no Brasil por volta de 1968 e desconhecido dos portugueses. Li-o com maior interesse e ainda hoje o considero como uma das melhores obras, publicadas em qualquer parte do mundo, sobre os verdadeiros problemas da população rural, vivendo no sistema capitalista, no Setor Primário da economia, seja qual for o regime político vigente, do Liberal-democrático (mercantilista) ao comunista-socialista (capitalismo de Estado, planejado).

Nunca troquei impressões a este respeito com Agostinho até por falta de tempo. No segundo semestre de 68 ele estivera ausente lecionado numa Universidade dos Estados Unidos. Em 69 deu o seu último curso sobre literatura portuguesa (o Iluminismo) na UnB, e no dia oito de Agosto desse ano chamou-me para um encontro em casa da psicóloga D. Mariana Alvim, onde morava depois de ter abandonado o seu alojamento na Trapa (ocupação dos estudantes baianos), e ali me comunicou a sua decisão de abandonar o Brasil e voltar para Portugal. As razões dessa decisão eram simples e, para mim, profundamente tristes, pois refletiam uma reviravolta da opinião pública rumo à compreensão da importância de ser do Povo Brasileiro um produto de raiz e formação étnica e histórica do Povo Português e seu herdeiro no sentido de possuir o espírito missionário destinado a, em tempo talvez próximo, salvar a humanidade da crise moral, política e social em desenvolvimento no mundo todo.

Queixou-se do estado lastimável do nível cultural a que estava chegando a classe média no Brasil, evidenciado pelo desinteresse manifestado pelos estudantes universitários em geral, por tudo o que dissesse respeito a movimentos culturais progressistas e verdadeiramente revolucionários no sentido positivo do termo, como pode encontrar-se no Sermão da Montanha, na Ética de Spinosa ou no Zen Budista.

Partiu Agostinho para Portugal desiludido com os brasileiros, mas não, em absoluto, com o Brasil, o dos nordestinos, das Festas do Divino, do Antônio Conselheiro e talvez mesmo do Cangaço, sem falar dos Bandeirantes com os seus mamelucos destruindo as missões jesuítas.

(…)

Quanto à minha pessoa, ao despedir-se, Agostinho foi muito claro e positivo.

Eu estava fadado a permanecer no Brasil e continuar, de qualquer maneira cumprindo um destino que poderia e deveria ter importância quanto ao estudo e tentativa de resolução dos problemas sociais do povo brasileiro, indubitavelmente relacionados com a reforma do Setor Primário da Economia a qual deveria começar por uma verdadeira Reforma Agrária. No nosso contato tínhamos avançado o suficiente no estudo da questão em causa, que agora pouco mais haveria a fazer do que levar à prática tanto quanto possível, experiência e demonstrações da viabilidade e garantia de acesso do sistema proposto. Como norma básica apenas deveríamos lembrar o seguinte:

Com trabalho assalariado, na exploração dos recursos naturais de produção, não há condições de êxito real, portanto: organizar os trabalhadores e criar as condições de se poder trabalhar em regime coletivo-comunitário por conta e risco próprios sem patrões nem assalariados, isto, sem preocupações de caráter político-partidário.

Foi com a incumbência de trabalhar no sentido de conseguir demonstrar a viabilidade e garantia de sucesso deste sistema que fiquei no Brasil. E aqui estou há 33 anos depois da partida de Agostinho.

(…)

Antes de concluir quero aqui registrar, por julgar importante algumas atividades, acontecimentos e trabalhos de Agostinho da Silva no Brasil, verificados de 1947 a 1962 (fundação do CBEP), pouco ou nada referidos em Portugal pelos atuais estudiosos de sua vida e obra:

- Contato com Jaime Cortesão. Conversas sobre as Festas do Divino, criadas em Portugal pela Rainha Santa Isabel com a concordância de D. Diniz e vindas para o Brasil, através dos Açores, depois de proibidas em Portugal pela Santa Sé.

- Casamento com Judith Cortesão. Nasceram 6 filhos.

















- Encontro com Jean Paul Sartre que chegara de Cuba, onde estivera, depois de cortar relações com a França de De Gaulle. Conversa sobre a Revolução Cubana e Fidel Castro.

(…)

Em Brasília, durante a coordenação do CBEP:

(…)

- Ofereceu-me, sem comentários, uma fotografia do interior da Sinagoga de Amsterdam freqüentada por Spinosa antes de sua expulsão e excomunhão pela Igreja Judaica.

Depois da partida de Agostinho para Portugal, mantive com ele uma correspondência regular, informando-o de tudo o que de importante aqui se passava relacionado com o nosso plano de ação e ele me respondia comentando os acontecimentos notáveis observados em Portugal, naquele período de transição, que terminou com a Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1974. Agostinho certamente acreditou que com aquela mudança política, que punha termo aos 48 anos de ditadura, mais ou menos de extrema-direita, o momento seria propício para Portugal entrar num novo caminho de transformações, rumo ao que se almejava desde séculos passados e, segundo ele, deveria ser a organização de uma sociedade baseada na primitiva ideologia cristã, a do Sermão da Montanha, simbolizada nas Festas dos Divino Espírito Santo. O Espírito Santo da Terceira Era predita por Joaquim de Flora.

Foi de acordo a esta previsão que Agostinho da Silva resolveu redigir e divulgar, entre os Amigos, a célebre proposição:

Diga-se, em abono da verdade, que este documento, exprimindo de forma clara e bem compreensível, o pensamento de Agostinho relativo às normas e condições que devem caraterizar uma Sociedade Humana interessada em garantir a paz e a felicidade para todos os seus componentes sem exclusão, seja de quem for, não mereceu qualquer comentário, contra ou a favor, por parte dos novos responsáveis pela organização político-social da Nação Portuguesa e seu povo, agora supostamente no poder. Que se saiba apenas uma pessoa falou com Agostinho a respeito da Proposição e demonstrou concordância com o essencial da doutrina nele defendida: Álvaro Cunhal, Secretário-Geral do Partido Comunista Português.

No início do Governo instalado depois do 25 de Abril, algumas medidas e propostas de transformações se verificaram afetando a vida do povo que poderiam ser relacionadas ou estar de acordo com as ideias de Agostinho expostas na Proposição, como por exemplo, a Reforma Agrária no Alentejo, levada a efeito espontaneamente pelos trabalhadores rurais, antecipando o previsto na nova Constituição, que ocuparam praticamente todas as fazendas (latifúndios) da área e iniciaram um trabalho de exploração agrícola e pecuária em conjunto, praticado em regime coletivo-comunitário. No entanto, a partir de 1978, o Governo Socialista presidido por Mário Soares, traindo todo o espírito revolucionário que defendera no passado, muito preocupado em evitar que "Portugal se transformasse numa Cuba da Europa" (!!), iniciou a destruição da Reforma Agrária e de tudo o mais que lembrasse um avanço na organização do povo rumo ao socialismo democrático.

Agostinho referiu-se a tudo isto em cartas que recebi, rematando os comentários aos acontecimentos com a conclusão de ter finalmente compreendido a colocação do ano de 1978 no horóscopo de Portugal, levantado por Fernando Pessoa, como data fatídica semelhante ou correspondente ao 1578 da Batalha de Alcácer Quibir.

(Excerto da comunicação apresentada no Seminário Agostinho da Silva, promovido pelo Instituto de Letras e pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, nos dias 19 e 20 de Agosto de 2002, no Campus da Universidade de Brasília, sob a organização da professora Maria Luíza Angelim e do professor Henryk Siewierski. Cf. In Memoriam de Agostinho da Silva. 100 anos, 150 nomes, Zéfiro, 2006, pp. 266-273).






















Ver 1, 2, 3 e 4



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