Não sei há quanto tempo corremos. Mas, de repente, encontramo-nos bruscamente em frente do talude de terra que circunda T'ien-tsin. Tem quatro a cinco metros de altura e possui casamatas com canhões apontados para os locais estratégicos.
Arrastados pela própria velocidade, galgamos os degraus escavados na terra... e eis-nos no cimo da muralha que apresenta uma ligeira encosta para o exterior. Três metros mais abaixo, mesmo a nossos pés, há um empolamento de terreno.
- Vamos?
- Vamos lá, senhor!
Salto. Os meus calcanhares tocam o talude no local previsto; no momento em que vou perder o equilíbrio, salto de novo... O solo não é muito duro e a recepção efectua-se melhor do que pensara.
É agora a vez de Liu. É ainda mais ágil do que eu, tudo correrá bem. Infelizmente, no momento que começamos a correr através da montanha, os chineses aparecem no cimo do muro.
Param e gritam de decepção, hesitando em seguir-nos. Mas alguns soldados da guarnição tinham-se juntado a eles e estão armados. Atiram.
Corremos em ziguezague como os coelhos bravos da minha terra. Infelizmente, os arredores de T'ien-tsin quase não têm árvores nem arbustos! Acabamos por alcançar algumas palhotas e desaparecemos numa dobra de terreno atrás delas. Apercebemo-nos, então, que a minha coxa direita está a sangrar. Devo ter sido atingido por uma bala.
- Por aqui - diz Liu.
Continuamos a correr, mas eu tenho de abrandar o andamento. A perna começa a doer-me e coxeio. Tenho a impressão de que, se parar, não conseguirei prosseguir.
- Ajuda-me.
Penduro-me no pescoço de Liu, apoiando-me a ele, mas os meus pés prendem-se aos arbustos espinhosos...
Parece que os chineses renunciaram à perseguição, mas só parámos uma hora mais tarde.
Eu já não posso mais. Sinto as fontes a latejar e uma intolerável dor que atravessa-me a perna.
Deixo-me cair em terra, completamente esgotado.
- Estamos na margem do Pei-ho - diz Liu.
É verdade. A nossa chegada faz fugir uma magnífica garça-real e um bando de patos.
Liu arranca o tecido das calças, à volta da minha coxa, descobrindo uma ferida que já não sangra. Por sorte, parece que a bala não ficou. O criado de Sílvia mergulha na água do rio a fralda da sua camisa e aplica-a sobre a ferida... Nessa altura quase desmaio.
Liu acode-me, faz-me vir a mim, aspergindo-me com água. Não me posso mexer. Que faremos? Que nos irá acontecer? E a Sílvia em T'ien-tsin!...
- Temos de esperar, senhor - diz laconicamente, Liu.
E o dia passa assim... Nã tenho fome mas bebo muito. Liu traz-me água num pedaço de tecido encharcado que torce em frente da minha boca. À noite mal consigo dormir por causa da febre que me provoca pesadelos terríveis...
De manhã estou um pouco melhor.
- Vou regressar a T'ien-tsin, senhor - diz Liu. - Saberei notícias e trago qualquer coisa para comer. Eu não arrisco nada.
- De acordo.
Ele afasta-se... e eu penso se voltará. Afinal de contas é um chinês. Talvez vá prevenir os Boxers! Essa gente tortura antes de matar, ao que parece. Agarro no revólver que levara na véspera de manhã. Tem seis balas. Cinco para eles e a última para mim...
Espero. A perna continua a doer-me e não consigo levantar-me.
No entanto, a febre descera...
As horas escorrem lentamente. O rio está tranquilo. Os patos, as garças e as cegonhas parecem ter-se habituado à minha presença e aproximam-se.
Liu voltará ou não?
Não o senti aproximar-se... e Liu está à minha frente com um embrulho na mão.
- Trago arroz cozido, senhor, e frutos.
Sinto crescer água na boca... Mas, primeiro, as notícias:
- Então que se passa em T'ien-tsin?
Gordon Hall é uma vasta construção no meio de um jardim, e onde se encontram os escritórios ingleses, a biblioteca, o salão de festas, o arsenal. A toda a volta há bancos e feitorias.
- Estão a ser atacados?
- Não, senhor, apenas sitiados. Mas o caminho de ferro foi destruído e os postes telegráficos abatidos...
Respiro fundo. Esta situação não pode prolongar-se. Há barcos de guerra na enseada de Ta-Ku, a quarenta quilómetros de T'ien-tsin. São alemães, franceses, japoneses e ingleses. Se não podem subir o rio, as canhoeiras podem fazê-lo, carregadas de tropas.
- Basta esperar, Liu, pois não vai demorar. Esses malditos Boxers vão fugir a toda a pressa...
Fito-o. Tem o rosto fechado.
- Parece que te não te agrada o que digo!
- Sou chinês, senhor.
- Mesmo assim, não estás com os Boxers, suponho?
Liu não responde e, depois, pergunta-me bruscamente:
- O senhor sabe como os alemães entraram em Kiao-Tchéon?
- Não muito bem...
- No fim de 1897, chegaram quatro navios de guerra em frente do porto. O contra-almirante Van Diedriks, que os comandava, lançou um ultimato à guarnição chinesa: "Têm três horas para partir. Depois começamos o bombardeamento". E foi assim que os alemães se instalaram na nossa terra, apenas pela lei do mais forte... Os alemães construíram o caminho de ferro, começaram a explorar as minas de carvão, sem pedir autorização a ninguém...
Não respondo, pois já ouvira falar dessa história.
- Todos os outros países - continua Liu - agem da mesma maneira, tanto a Inglaterra, como a França, o Japão, a Itália ou a Rússia... Chamam a isto "penetração, criação de zonas de influência"... E quem somos nós para nos deixar achincalhar assim? A China pertence aos chineses e a mais ninguém!
Olho-o, surpreendido. Que criado tão estranho...
- E porque voltaste para T'ien-tsin?
- A polícia perseguia-me por eu ser um cortador de tranças...
Apesar das dores, não consigo evitar uma gargalhada... Há alguns meses houve, com efeito, uma espécie de epidemia nas principais cidades chinesas: estudantes e membros de sociedades secretas começaram a cortar as tranças das pessoas, nas ruas. É preciso dizer que o uso das tranças fora trazido pelos invasores manchus... e que os patriotas ainda hoje não suportam... Era uma maneira de manifestar oposição!
- Mas - disse, retomando a seriedade - esses Boxers matam missionários, pessoas indefesas...
- Isso é verdade, senhor. Os Boxers são, na sua maioria, camponeses e, nos campos, as missões são o símbolo da penetração estrangeira... os Boxers querem que os estrangeiros se vão embora... assim como os manchus.
- A imperatriz é manchu e, no entanto, apoia os Boxers.
- A imperatriz é uma grande finória, senhor, Serve-se dos Boxers, mas tem medo deles. Fugiu de Pequim nos últimos dias, segundo me informaram. Não, senhor, não há nada de comum entre os manchus e os Boxers. Estes querem, como todos nós, imperadores chineses e menos miséria... Aliás, a sociedade secreta chamava-se originariamente os Punhos da Harmonia e da Justiça!
Não faço comentários. Os argumentos de Liu deixam-me pouco à vontade. É verdade que há diversas maneiras de encarar as coisas. Tudo depende do ângulo por onde se vêem...
Liu fica silencioso, como se tivesse falado demasiado. Contenta-se a preparar-me o arroz cozido que trouxera. Devoro-o. Se ao menos pudesse andar...
Começa a segunda noite. Que estará a acontecer em T'ien-tsin?
- Liu, porque continuas comigo?
- Porque está ferido, senhor?
Ficámos quietos, pois não há mais nada a fazer. É apenas no dia seguinte, a meio da manhã, quando vou ceder ao desencorajamento, que oiço no Pei-ho um burburinho significativo. E a alegria invade-me, de repente. Apesar da fraqueza e da dor que esta maldita coxa me provoca, ergo-me auxiliado por Liu, que também compreendera.
São realmente canhoeiras que aparecem no rio, com bandeiras francesas, inglesas e japonesas. Trazem os canhões apontados paras as margens e os convés cobertos de soldados armados.
Apercebem-se imediatamente e vem um barco em meu socorro. São zuanos que me agarram e transportam. Volto-me: Liu segue-nos e sobe a bordo connosco.
Um médico militar, barbudo e exuberante, trata da minha ferida:
- Não há gangrena, mas foi mesmo a tempo.
Anuncia que me vai enviar para Ta-ku onde está a flotilha das potências europeias: muitos navios, mais de cinquenta...
- Tomámos os fortes chineses, a aldeia dos pescadores está em ruínas, mas fica bem no Redoutable, o nosso navio almirante...
Recuso categoricamente ser repatriado. Quero acompanhar as tropas que vão entrar em T'ien-tsin, libertar os sitiados das concessões... e Sílvia. Contanto que se chegue a tempo!
Uma hora mais tarde, começa a batalha... Não participo dos combates, como é lógico, mas assisto das primeiras filas. Liu também, de cabeça baixa, imóvel e mudo. A tropa desembarca e sobe ao assalto das fortificações defendidas pelo exército regular chinês. Os canhões têm dificuldade em abrir brechas na famosa muralha de terra e são quarenta voluntários japoneses que se oferecem para utilizar dinamite...
A canhoeira onde me encontro sobe até às concessões, abrindo passagem a tiros nas barricadas instaladas pelos revoltosos... juncos, sampanas, barcaças...
Felicidade! Aí estão os sitiados. Talvez nem todos, infelizmente! Mas entre os que correm para nós,
de armas nas mãos e lágrimas nos olhos, aparece Sílvia. Grito o nome dela, que o ouve, e precipita-se para a passadeira, com ar radioso.
De repente, ouve-se um grito:
- Atenção! Os Boxers!
Num instante, estão todos abrigados atrás dos caixotes do cais ou da amurada da nossa canhoeira. Um dos seus canhões é imediatamente apontado para o grupo que acaba de surgir, descendo de Victoria Street, a rua principal da concessão.
São cem, talvez duzentos, armados de varapaus, lanças, sabres. E Liu ergue-se, pronto a saltar para terra. Nesse momento estava precisamente a fixá-lo... Instintivamente grito-lhe o nome:
- Liu!
- Estou com eles!
- Agarrem-no! - berra um oficial.
Num abrir e fechar de olhos, Liu derrubou dois marinheiros que tentaram agarrá-lo à passagem, com dois magistrais pontapés, tal como eu vira praticar na outra manhã na praça. Salta para o cais e lança-se em direcção dos Boxers que se aproximam a correr.
- Apontar!
Fora o comandante quem lançara a ordem. As armas são levadas à cara. Alguém troça junto de mim:
- Agora é que se vai ver se eles são invulneráveis...
Canhões e espingardas atiraram ao mesmo tempo. Quando se dissipa o fumo, Victoria Street está coberta de cadáveres.
A minha ferida cicatrizou e Pequim foi tomada de assalto por vinte mil soldados. Enviei ao meu jornal um relato dos acontecimentos que nunca será publicado pela simpatia que demonstro pelos Boxers. Outro correspondente chega a Pequim para me substituir. Eu fui chamado a França.
Evidentemente que Sílvia me acompanhará porque já nos casámos. Será a nossa viagem de núpcias... (in ob. cit., pp. 181-188).
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