Escrito por Cunha Seixas
«O
clima ideológico em que Seixas pensou e filosofou era por demais compósito. Um
conservadorismo escolástico circulante nas escolas religiosas, um esquema de
idealismo germânico e de racionalismo francês, dados através de um ecletismo,
mais variante do que constante, entre os vários professores e autores, o
krausismo e o kantismo, o socialismo francês de Fourier e Proudhon, o
evolucionismo e o positivismo.
A
necessidade de actualização doutrinal, em face da carência de uma apurada
elaboração filosófica autónoma e colegial, levava os mestres universitários e
os escritores a veicularem os modismos culturais e, na mesma geração, na mesma
escola, era possível encontrar uma atmosfera de controvérsia entre o krausismo,
postulado por Ferrer e o kantismo, professado por Joaquim Rodrigues de Brito e
José Dias Ferreira, e em cujo âmbito, mediante uma crítica fundamental do
positivismo, parece gerar-se o essencial do pensamento de Cunha Seixas. Embora
o seu anti-positivismo seja anterior, é de admitir que se tivesse
emocionalmente aprofundado, em virtude de, em 1878, no concurso para professor
do Curso Superior de Letras, ter sido preterido por Consiglieri Pedroso, um
aluno, melhor, discípulo, de Teófilo Braga e confesso positivista.
Há
autores que se salientam pelo continuado poder de oposição, não sendo capazes
de superar o anti- com um para além de-. Este defeito não é
predicável a Seixas. De facto, o seu constante e meditante anti-positivismo foi
gradualmente superado por uma atitude original e por um projecto criativo –
intuitivo e racional – que nos parece ter deixado francamente elaborado e
solidamente construído, quer nos vários degraus da sua bibliografia, quer,
sobretudo, na obra póstuma, Princípios
Gerais de Filosofia (1897), em que ao rigor da análise e à visão da
síntese, se acasala um enciclopédico teor de conhecimentos, constituído como
global universidade das ciências, segundo a superior unidade da filosofia, ao
longo de 1072 compactas páginas.
(...)
O pantiteísmo é um espiritualismo. Significa “Deus em tudo”, princípio que
difere já do panteísta “tudo é Deus”, já do panenteísta “tudo está em Deus”.
O
panteísmo é um materialismo espiritualizado, mas identifica Deus e matéria; no
panenteísmo, Deus é um recipiente universal, o contentor da matéria e
apassiva-se na abertura a uma variante de materialismo.
O
pantiteísmo, na tradição de Aristóteles a Leibniz, pensa Deus como motor
imóvel, princípio e fim. Em tudo o que existe, Deus está nele, mas não se
identifica com ele. A existência é distinta da essência, como o
criador é distinto da criatura, como natureza é distinta do espírito; Deus é
diferente da matéria. Está nela, mas não é a matéria, e, esta, por sua vez, não
está em Deus, contrariamente ao proposto pelo panenteísmo.
O
sistema pantiteísta reflecte as preocupações do autor quanto às ciências e
constitui um projecto metodológico e epistemológico, sem minorar a crença e a
revelação como vias ontognosiológicas.
No
aparato sistemático e nas virtualidades de controversão, o sistema reformula o
enciclopedismo, entendendo-se a filosofia como geradora das ciências que, uma
vez autonomizadas, isolam a filosofia na situação de “ciência da unidade
geral”. Filosofia não é mais o saber unificado, mas a unidade geradora das
ciências no que se aproxima do positivismo e do evolucionismo, aos quais
suplanta com a afirmação de uma teodiceia que, em muitos passos, chega a
suportar uma teologia.
A
importância do sensualismo, reconhecida mesmo por Silvestre Pinheiro Ferreira,
é posta em causa pelo intelectualismo pantiteísta, que afirma a prioridade do
intelecto, a principialidade da ideia, ainda que estas se tripartam por
experimentais, reflexivas e racionais, sendo, as primeiras, aferidas aos
sentidos, as segundas, à reflexão e, as terceiras, ao espírito universal,
necessário e invariável, pelo que toda a substância se manifesta em ordem à
eternidade, à infinitude, à imensidade, absolutos do tempo e do espaço,
atributos divinos, que estão em tudo segundo as partes, sem com as partes se
identificarem – como um espírito que sopra por onde passa, mas não se mistura
com isso, por onde passa.
A
multiplicidade releva da unidade, o tempo da eternidade, o espaço da
imensidade, numa hierarquia em que a fenoménica do ser se harmoniza na escala
das classes e respectivos segmentos existenciais.
Tanto demonstra o que Álvaro Ribeiro escreveu acerca de Seixas: “nunca esqueceu, porém, que a filosofia tem de estar de algum modo relacionada com a teologia, e tanto basta para que o seu nome seja digno de figurar na história da filosofia portuguesa”, porque o pantiteísmo de si mesmo avança a imensa realeza do Inefável, que está em tudo e em tudo cumpre invocar.»
Pinharanda Gomes (Introdução, in «Cunha Seixas»).
«Como
ocorrera com Silvestre Pinheiro Ferreira e com os nossos românticos, e se
verifica com outros pensadores portugueses depois dele, Cunha Seixas desatendeu
o sentido da negatividade, escapando assim num dos aspectos mais significativos
a profunda e decisiva crítica de Kant, o Romantismo essencial e a moderna
filosofia alemã. Com o real e inequívoco sentido da
harmonia imperecível e imarcescível que reside ao fundo de tudo quanto existe,
se foi agudamente sensível ao que dela nos separa, não acompanhou pelo
pensamento as sinuosas e sombrias espirais da separativa negatividade. Isso
explica o que há de fruste no seu optimismo e também tornará possível
compreender que, ao pretender garantir a exemplo de Schelling a “fé
filosófica”, tenha recusado o cristianismo em alguns seus radicais aspectos. O
contraste com Antero de Quental, seu contemporâneo em Coimbra, e o pouco apreço
que por ele Sampaio Bruno mostra a seguir, tornam-se-nos também mais
compreensíveis se atendermos a tão sincera e veemente atitude espiritual de
Cunha Seixas.
(...)
A sistemática de Cunha Seixas – capital reconhecê-lo – aparecia no seu tempo, é
ainda hoje, em verdade, inaceitável. Como para todo o pensamento europeu desta
nossa era, resultava imperioso para a filosofia portuguesa levar ao limite o
sentido da negatividade. Tal foi a façanha decisiva de Sampaio Bruno. O
confronto com Amorim Viana impõe-se, impõe-se tanto mais se lembrarmos que A Ideia de Deus é construída em oposição
nítida e irrefragável à filosofia do antecessor.
Recebendo profunda influência de Platão e Leibniz, mas seriamente atento a Espinosa e, no possível, a Hegel, Amorim Viana mantém recessivamente a sua filosofia no âmbito de um dualismo, já cartesiano, já kantiano. E, com o recurso, análogo ao do primeiro, à veracidade divina, mais se acentua ainda no sentido discricionário da pura razão; consequentemente, como em Kant, é nos limites da mesma razão que a crença vai procurar seu autêntico conteúdo e sentido, é aí que o pensador, excluindo a encarnação, o milagre, a transubstanciação e a profecia como fantásticas ou supersticiosas, procura determinar o puro imarcescível vínculo com o transcendente. Restabelecer com firmeza a relação real e actual, não apenas ideal, que une estreitamente Deus, Universo e homem, revalorizando a angelogia, o milagre, a oração, a profecia, o conteúdo já patente ou ainda secreto da Revelação, todos os mais subtis e obscuros modos do incessante, do revelado e oculto vínculo entre Deus e tudo quanto existe, tal vai ser a inesperada e surpreendente ideia de Sampaio Bruno. Ao empreendê-la, porém, o autor de A Ideia de Deus situa-se por sua vez, na gritante aparência, a mil léguas da tradição visível e mais explícita do cristianismo como da ontologia tradicional e da metafísica clássica.»
José Marinho («Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo»).
«Segundo
Seixas, a história da filosofia cataloga-se em quatro sistemas: panteísmo,
sensualismo, conceptualismo, espiritualismo.
O
primeiro é criticado por confundir finito e infinito, embora admita a
necessidade do infinito e do absoluto; o segundo é criticável por se basear na
finitude, que é um vício, manifestando-se como sistema irrevogável de
pluralidades inunificáveis pelo infinito; o terceiro, emergente na confluência
dos anteriores, não só incorre em suas falácias, como as não ultrapassa; o
quarto, surge-lhe qual sistema sintético, postulante do absoluto e de quanto
para ele tende, aceitando a realidade do mundo material, sem renunciar – antes
invocando – o mundo do espírito e, por sobre ambos, a verdade divina.
Que
é, nas palavras do autor, o pantiteísmo? – “cientificamente é o sistema de
todas as ciências e exibindo as determinações destas na permanência de seus
princípios e na evolução infinita que lhes compete, exige uma síntese harmónica
de leis universais sob a unidade do absoluto”.
O
infinito está em tudo. Parecem “realidades emprestadas ou menos legítimas todas
as causas móveis e transitórias dos mundos”. De onde a metafísica consistir nas
“realidades universais e necessárias, que são as condições da existência de
todos os seres”. O infinito corre no finito, a terra é uma coisa medida de uma
ideia imensa, “universo significa unidade na variedade”. Unidade é o princípio
e o fim, variedade é o meio em que, – como ponte – o princípio e o fim se
ligam. No universo não há oposição, mas harmonia. Universo é harmonia.
Há
uma razão monadológica no pantiteísmo, a que se salienta da teodiceia
pantiteísta, à qual parece ser desnecessário pedir provas acerca da existência
de Deus, uma vez que Deus se revela a todo o instante, sendo essa a prova
inequívoca da existência divina. Deus não é uma criação do espírito, mas é um
real e necessário absoluto, cuja essência não podemos adivinhar senão pelos
dados da existência, embora seja possível conjecturar os divinos atributos, a
absoluteidade, a omnipotência, a perfeição e a imutabilidade. Neste sentido, e
apesar da história das religiões, Seixas considera que a razão é mais veicular
para a ideia de Deus do que a crença, uma vez que a razão é indutiva e dedutiva
e a crença não segue tal processo. Do absoluto em Deus, a razão deduz a
omnipotência e a necessidade, a imutabilidade e a unidade e o atributo de
supremo; enquanto, do infinito, deduz a eternidade, a imensidade, a
omnipresença, a ubiquidade, a omnisciência e a liberdade.
Ainda que Deus esteja em todas as coisas, a dualidade de identidades permanece e, o homem, participa tanto da unidade e imaterialidade, como da multiplicidade e divisibilidade. Pelos primeiros, participa da divindade, pelos segundos, da materialidade. Essente e existente, em sincronismo paralelo e irredutível. A salvação humana consiste em contribuir para o desenvolvimento pantiteísta de quanto existe na multiplicidade. Transcendental por unitária e imaterial, imanente por múltipla e divisível, a situação do homem no pantiteísmo infere de facto para o imanentismo, uma vez que, só nos ciclos da história, o homem se realiza como homem, alargando as esferas da vida e da civilização, mirando o infinito, caminhando no finito, mas disponível para “ir em infindo”, como diria o autor medieval da nossa “Corte Imperial”».
Pinharanda Gomes (Introdução, in «Cunha Seixas»).
«(...)
Ao leitor a quem até agora não se entreabriu nenhuma evidência do significado e
valor da filosofia portuguesa contemporânea aqui se oferece algo considerável.
Não se trata, cabe adverti-lo, de problema local e cultural restrito. É todo o
problema da filosofia, todo o problema do saber e do conhecimento que neste
ponto se joga. Se Amorim Viana vê certo, se é indisputavelmente seguro o que
nos diz, a razão terá de reconhecer um incompreensível, mas não um irracional.
Se, pelo contrário, há perante a razão e na sua própria origem ou princípio
algo que à razão escapa, a urgência de reconhecer um irracional é inevitável.
Dificuldade
suma aqui se depara, não apenas do pensamento português mas de todo o pensamento
desde a Grécia dos sofistas e de Sócrates, retomada com maior gravidade na
crítica de Kant e depois dela. Instância adequada a mostrar que muitas
dificuldades e perplexidades na moderna filosofia portuguesa, quase unanimemente
atribuídas aos limites locais do nosso pensamento pela crítica obsessivamente
judiciosa, traduzem pelo contrário formas de sucessiva e diversa mas seríssima
atenção reflexiva ao que há mais sério e mais grave na filosofia, repercutindo,
como mostraremos no último capítulo deste nosso estudo, nas formas responsáveis
do pensar em nossos dias e no que o homem pode autenticamente saber de si, da
sua condição e seu destino.
Toda
a filosofia portuguesa consequente vai situar-se de modo problemático, reticente
ou negativo neste ponto. Um momento crucial da crítica ocorre em Sampaio Bruno.
Antes dele no entanto, Antero de Quental e Cunha Seixas tentariam, com maior ou menor demora reflexiva estes caminhos de raros viandantes. De raros viandantes, pois os homens receiam na relação ou no mais profundo vínculo ao irracional perder a razão e todo o senso. A simples psicologia e a história de muitos pensantes ou pensativos mostra, todavia, ao perto e ao longe, que é frequentemente por a razão se manter rígida perante as solicitações do irracional, que a loucura ou a demência ou a obsessiva e desesperante melancolia em várias formas e em diversos exemplos visita os homens.»
José Marinho («Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo»).
«O
pantiteísmo reduz, sem prejuízo das categorias, as ideias universais às do ser
e suas formas, elevando as que se referem ao absoluto; afirma a realidade das
leis lógicas e ontológicas; começa na ideia mais geral de Ser e engloba todas
as demais ideias até à ordem, que é mais compreensiva; sistematiza as leis
universais; provê o conhecimento de uma causalidade e de uma finalidade. A causa
do conhecimento é o pensamento que se move, inquiridor, entre os finitos, os
infinitos relativos e o absoluto. A filosofia consiste na explicação do saber e
do ser, na antevisão do “ser infinitamente perfeito”, que serve de pilar a uma
teodiceia, por si mesma garante de uma antropologia que entende o homem como
criatura que “não nasceu para a terra” e que “anseia outros mundos em que se
complete” (Seixas, A Fénix, pág. 84).
Com suas potências actualizáveis, o pantiteísmo reúne uma energia originante que poderia ter gerado algo de novo na filosofia portuguesa no fim do século XIX, caso o autor houvesse disposto de acesso ao ensino. Na verdade, em concurso para uma cátedra no Curso Superior de Letras, Consiglieri Pedroso, discípulo de Teófilo Braga, foi aprovado, enquanto Seixas, opositor de Teófilo Braga, foi reprovado. O sistema estava em elaboração. Talvez o achemos um tanto espartilhado num rigidismo formalista que depende da educação jurídica do autor, e cremos que a ampla informação que Seixas detinha na área das ciências (como prova na Galeria das Ciências Contemporâneas, 1879) não era compensada por uma experiência própria na área das ciências naturais. Todavia, e considerando que o sistema estava em elaboração, podemos aceitar, sem pré-juízo, a avaliação de que o pantiteísmo é “uma nova forma de espiritualismo”, reorganizado e compreensivo das conquistas e descobertas do século nas diversas ciências.»
Pinharanda Gomes («Pantiteísmo», in Dicionário de
Filosofia Portuguesa).
«A
luta contra o positivismo não terminará pela refutação doutrinal que consagre o
restabelecimento da metafísica no ensino das Faculdades de Ciências e na
preocupação dos pensadores portugueses. A metafísica é, como a matemática,
apenas uma porta do conhecimento que tanto pode estar aberta como fechada. Três
séculos de racionalismo – os séculos XVI, XVII e XVIII – demonstram bem quão
erróneo é procurar resolver os problemas humanos por doutrinas que não postulam
o enunciado da verdadeira relação entre a filosofia e a teologia.
A Ideia de Deus é o livro que aponta a
razão por que os portugueses se desinteressaram de todas as formas de metafísica
e, consequentemente, se alhearam da filosofia moderna. A preocupação teológica
está, por isso, actual e presente nos estudos dos discípulos de Sampaio Bruno e
de Leonardo Coimbra. O mais eloquente testemunho desta característica de uma
nova geração de pensadores encontra-se no admirável estudo que o Padre António
de Magalhães dedicou ao nosso primeiro filósofo cristão.
“A
mensagem de Leonardo Coimbra – escreve o Padre António de Magalhães – é, de
todas, a que possui maior sentido de perenidade, pois foi ele quem viveu o
pensamento na maior altura, mais universalmente e mais consciente dos problemas
que a vida de hoje põe ao Homem de sempre.
“Leonardo Coimbra atingiu a profundidade do Homem de Sempre, porque atingiu Cristo pela
angústia da metafísica do homem contemporâneo. E à luz de Cristo, viu renovada
a face da Terra: o sentido da história, do progresso e da civilização, o
problema do amor, da dor e da alegria, da razão e da imortalidade, da ciência e
da beleza. E tudo isto nos foi dado, no drama da sua obra e da sua vida e em
muita beleza de arte.
“Só quando em Portugal houver um escol de pensadores vivendo os problemas na profundidade e altura de Leonardo Coimbra, haverá também a certeza de que Portugal se reintegrou no sentido da sua missão histórica”».
Álvaro Ribeiro («Os Positivistas»).
SINOPSE DO PANTITEÍSMO
§ 331. Pantiteísmo etimologicamente significa Deus em tudo. Cientificamente é o sistema que, formando a conjunção de todas as ciências e exibindo as determinações destas na permanência de seus princípios e na evolução infinda que lhes compete, exibe uma síntese harmónica de leis universais sob a unidade do absoluto.
Desta
definição se deduz:
1.º
Que este sistema abrange a parte elementar e fundamental de todas as ciências
(conjunção);
2.º
Que toma cada uma delas em si e do todo delas a permanência de princípios e a
evolução infinda que deles dimana;
3.º
Que apregoa como lei última a harmonia sob o princípio do absoluto.
As
suas teorias do conhecimento e das leis lógicas da razão e das leis universais
das coisas são as do espiritualismo, já expostas e que por isso não
repetiremos; mas o pantiteísmo completa esses elementos espiritualistas com
outras teorias já metafísicas, já colhidas nas leis do mundo físico, como se
tem mostrado nos capítulos antecedentes e como se verá nos que se seguem.
§
1332. Vejamos algumas dessas bases:
O
espiritualismo tem como doutrina a
existência das leis ontológicas; mas tem pecado em elevar a ideias universais algumas, que são meramente
gerais. O pantiteísmo reduz as ideias universais às do ser e suas formas,
substância, causa, relação, tempo, espaço, grandeza, finalidade e ordem. Acima
destas eleva todas as que se referem ao Absoluto, uma por uma, de modo a
patentear-se imediatamente, a correspondência.
O
espiritualismo faz ver, que essas
ideias não só existem latente e virtualmente em nós, mas são além disto leis
lógicas e leis ontológicas ou universais e cada uma delas uma síntese, que faz
surgir as mais. O pantiteísmo,
perfilhando tais doutrinas, chama ideias-elementos essas formas e assim fica
expressada não só a idealidade mas a realidade de tais elementos, considerados
como leis das coisas e formas ou modelos de todo o criado.
O
espiritualismo actual nunca exibe a
série das ideias-elementos, pela sua compreensão
crescente. O pantiteísmo começa na ideia de ser como a mais geral, a mais
extensa e a menos compreensiva e vai tomando cada vez mais característicos para
se ir ocupar das outras ideias até a de ordem, que é de todas a mais
compreensiva.
O
espiritualismo estanceia
demasiadamente no psicológico. O
pantiteísmo, exibindo a região média das ideias ontológicas, exibe igualmente a
ordem reflexa correspondente, isto é, a série de ideias gerais, criadas pela abstracção e generalização, e que se originam
no experimental.
§
333. O espiritualismo não classifica
bem em tempo algum as ideias universais de modo a formarem as leis mais vastas
do universo. O pantiteísmo exibe
uma classificação completa e que fica sendo a raiz das leis do universo.
As
classificações ontológicas são muitas, sendo principais a de Aristóteles, a de Kant e as de Krause. Nenhuma destas nos serviu de guia. O pantiteísmo exibe uma classificação ontológica, sua, conquanto
achasse elementos para ela no pensamento da humanidade e nos trabalhos de
filosofia.
A
filosofia de Sankaya do antigo oriente tinha a matéria primeira como o ser
indeterminado, substância sem atributos, anterior às formas achando depois em
evolução a posse e a inteligência (a determinação), atingindo depois a
consciência (determinação da própria inteligência).
O
pensamento da filosofia grega a tal respeito já nós passámos em revista ao
tratarmos da teoria do conhecimento.
§
334. Segundo a filosofia cristã tudo tem peso, número e medida. A medida é a
substância; o número é a figura; o peso é o círculo, que une a medida ou a
substância ao número ou à figura.
Cada
ser é um e três: é um na substância
ou no seu todo: variado na forma e submetido
à hierarquia pela ordem: toda a cousa tem portanto unidade, forma e ordem.
A
filosofia alemã de Kant e seus sucessores, considera, que há três leis lógicas:
tese, antítese e síntese. A
tese é um princípio; a antítese é a sua negação ou a sua oposição; a síntese é
o complexo de ambos. Destas três leis fez Krause as suas leis da unidade, variedade e harmonia.
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Manuel Kant |
Tanto
da filosofia cristã como das doutrinas alemãs o nosso sistema apresenta largo
aproveitamento, afastando-se, porém, de toda a ideia do panteísmo e dos erros
ou antes das lacunas da filosofia alemã.
Esta
última é um vasto templo de sabedoria, a mais profunda. Além da religiosidade,
que dela resulta, embora o panteísmo a assombre toda, é certo, que de Kant se
data uma nova direcção ao espírito humano, aliás, elevada, principalmente na
parte moral, seguindo-se em Fichte um grande edifício elevado à dignidade
humana e à moral, em Herbart e Krause um preito ao princípio da harmonia, em
Schelling e Hegel grandiosos quadros, em Schopenhauer e Hartmann novas
explorações da força, em toda ela os princípios lógicos da tese, antítese e síntese
e acima de tudo e sempre o absoluto. Só com a leitura da filosofia alemã é que
se adquire o hábito da grandeza do pensamento e do agigantado das ideias.
A
filosofia alemã é, pois, apesar da sua aridez, a melhor ginástica do pensamento
e sem o seu estudo ser-nos-ia impossível o fazermos a construção, que temos
exibido.
§ 1338. Comte achou, que na história e nas
coisas havia duas leis: os elementos estáticos e os elementos dinâmicos. Nós
aceitamos este pensamento mas por outra forma. Os nossos elementos estáticos são
os que figuram em conjunção embrionária na
primeira lei; depois segue-se o movimento, o dinamismo e acção antinómica pelos
elementos de permanência e evolução da segunda lei e não estanceamos nesta,
como se sabe.
Comte pregoou a necessidade de entrarmos no
real. Nós mostramos que o real está tanto nas coisas múltiplas como na unidade,
de que elas procedem, ainda que essa unidade não seja palpável.
Comte
quer pelo menos, que a ciência tome os elementos abstractos e gerais. Nós, além dos elementos ontológicos ou
universais, não desprezamos os gerais, e fazemos deles a ordem reflexiva.
Comte
quer que se siga o método experimental. Nós partilhamos este método em tudo o
que lhe diz respeito e em que ele é legítimo; mas cremos que esse método é erróneo,
ilegítimo e incompetente em tudo o mais.
Comte
extasia-se com o palpável, com o que chama verificável.
Nós entendemos, que podemos partir dos factos do eu, que são experimentais.
Comte
deseja que as ciências marchem pelo experimental. Nós, como se verá, festejamos
todas as descobertas das ciências, e nesse ponto somos mais comtistas que o
próprio Comte.
Comte
deseja que não passemos da experiência. O pantiteísmo exige leis universais;
mas elas, ao mesmo tempo que são ontológicas, são experimentais. A primeira lei
exposta é o embrião das coisas, nos
seus elementos estáticos: a segunda o
desenvolvimento das coisas, que é um facto experimental: a terceira expressa o
estado íntegro das coisas, o seu período de perfeição
relativa, a madureza das coisas, a que se há-de seguir a dissolução.
Todas
estas leis são experimentais e são as mesmas, que apresenta a biologia. As
mesmas leis podem figurar na filosofia da natureza com os nomes de estática, dinâmica em função e ordem, ou ligação das leis entre si.
Estas
mesmas leis recebem na psicologia os nomes de noção, análise e síntese, e na
lógica os de unidade, variedade e harmonia. As nossas leis ontológicas têm,
pois, uma feição, por um lado metafísica
e por outro lado experimental.
Comte
fez uma classificação das ciências, segundo diversas bases. Nós aceitamos parte
de tal classificação; mas lançamos mão de outros princípios, sendo a nossa
classificação mais completa e sendo os nossos fundamentos muito diversos dos de
Comte, sendo porém idênticos alguns dos resultados.
Tais
são, em geral, as semelhanças e diferenças entre o nosso sistema e o de Comte.
A nossa formal e intransigente oposição a esta filosofia consiste:
1.º
Em rejeitarmos totalmente a chamada lei dos três estados;
2.º
Em admitirmos a metafísica;
3.º
Em rejeitarmos o seu dogmatismo arbitrário e as ilusões de ciência, com que tal
filosofia pretende impor-se, e que não acusam senão falta de análise e o
prematuro das conclusões.
Quanto
as estes pontos, a nossa posição fica separada de Comte por um profundo abismo.
§
339. Herbert Spencer advoga a causa da permanência
das forças e advoga a causa da evolução.
Nós
fazemos das forças a manifestação de um uno,
que Spencer não atingiu, e advogamos a lei da permanência dos elementos, e também advogamos a existência da lei
da evolução.
A
uma e outra lei damos carácter diverso do que lhe dá Spencer. Este pensador
crê, que o tempo e o espaço não só são formas do pensamento, mas formas
universais e reais das cousas. Nós não só cremos nessas duas formas lógicas e
formas universais e reais das cousas mas até acrescentamos o quadro ontológico,
estendendo-o às noções e formas do ser, substâncias e outras.
Spencer
crê, que estas formas as sabemos pelos princípios da hereditariedade e da
evolução.
Nós
cremos, que as formas da inteligência são ínsitas em nós, com disposições ou
virtualidades, e que em nós surgem como ideias a propósito de factos
contingentes.
Se
as ideias do espaço e tempo são formas universais das coisas e do espírito,
como é que a evolução as cria? Se são criadas pela evolução e transmitidas por
hereditariedade, como é que a evolução criou essas formas? Existiam antes ou
depois de tal evolução? Se existiram antes, não vieram da evolução; se
existiram depois, como é que o espírito podia existir sem as formas, que o
constituem?
Estas
e outras dificuldades não existem no nosso sistema, que subordina a evolução a
outras leis, ligando-a com a permanência de elementos, que são fixos e que não
podem portanto levar-nos ao fieri sem
elementos anteriores de Hegel, para quem tudo ficava mudável, sem um ponto
fixo, sendo nesse sistema tudo tão transitório como figurava na filosofia de
Heraclito, a quem Hegel seguiu.
§ 340. Quanto aos sistemas racionalista e panteísta, as nossas teorias são as do
espiritualismo em geral, salvas diversas especialidades, das quais não temos a
ocupar-nos, por serem alheias à feição deste livro.
As
aplicações do nosso sistema à literatura, à moral, à história, à sociologia, à
crítica dos sistemas e a outros pontos, acham-se nas nossas obras, e não pertence
a este livro a sua reprodução.
O
pantiteísmo é, pois, uma nova forma de espiritualismo, exibindo-se este
reorganizado e compreendendo além disto, todas as conquistas e descobertas do
século nas diversas ciências.
Tal é o seu carácter especial.
(In Cunha Seixas, Princípios Gerais de Filosofia, Cap. X, Secção 2.ª).
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