sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Conquista de Lisboa

Escrito por Raul Correia




E tu, famoso Moniz, que a porta abriste

Ao forte povo, entrando por ti dentro,

E a vida, que perdeste, lhe ofereceste,

Para que a pátria livre fosse centro.


Luís de Camões (Os Lusíadas).


CONQUISTA DE LISBOA


Depois da conquista da cidade de Santarém, a determinação dominadora dos mouros pareceu esmorecer, enquanto nas hostes cristãs crescia o impulso para novos cometimentos.

D. Afonso Henriques tinha ao seu alcance toda a região ao longo do Tejo, apenas defendida pelos castelos de Lisboa e de Sintra, visto que os outros pontos fortificados, distantes uns dos outros, pouca resistência poderiam oferecer aos portugueses.

Por essa altura iria passar diante de Lisboa a segunda cruzada a caminho do Oriente, que seria comandada pelo rei Luís VII de França e pelo imperador Conrado III da Alemanha. Alguns desses cruzados, bastante numerosos, tinham embarcado no porto inglês de Dathmouth, sob as ordens de Arnulfo de Aresnot e Cristiano de Gestell. Mas a armada, que deveria costear a Península para entrar no Mediterrâneo, havia sido surpreendida por um violento temporal, que a obrigara a procurar refúgio nas águas mais tranquilas do Douro.

Sabendo da presença da frota dos cristãos, apressou-se D. Afonso Henriques a convidá-los para o ajudarem na tomada de Lisboa, o que os cruzados aceitaram na condição de poderem arrecadar o produto das pilhagens que fizessem e o valor do resgate dos vencidos... que antecipadamente se contava serem mouros.

Estabeleceu-se o plano de um ataque simultâneo por terra e por mar, e logo a armada dos cruzados, amainado o temporal, se fez de vela para o sul, enquanto as hostes dos portugueses seguiam por terra na mesma direcção.

O castelo de Lisboa era quase inacessível, mas grande parte da população, calculada num total de cento e cinquenta mil habitantes, vivia nas encostas, especialmente no lugar que constitui ainda hoje o Bairro de Alfama.

Foram os cruzados os primeiros a chegar, tendo a frota ancorado no Tejo. A guarnição mourisca do castelo de Lisboa, alertada pelo desusado movimento de embarcações no rio, viu desembarcar um troço de estrangeiros que se dirigiam para os muros da cidade, e saiu ao seu encontro com tal ímpeto que os forçou a bater em retirada. Esta escaramuça levou os comandantes dos cruzados a assentarem planos para outra forma de luta, mais demorada, estabelecendo-se em terra, num morro fronteiro ao castelo.

Tendo-se gorado igualmente uma tentativa para obter a rendição pacífica da cidade, decorreram quinze dias sem que se travasse qualquer recontro digno de nota. Convencidos de que a empresa se apresentava mais difícil do que haviam suposto, os cruzados aproveitaram essas relativas tréguas para construírem engenhos de guerra, aríetes, balistas e catapultas... mas os primeiros engenhos a serem utilizados foram incendiados pelos mouros, que sobre eles dispararam virotões munidos de estopa a arder. De igual modo falharam as diligências para arrimar uma torre de madeira às muralhas, bem como as que se fizeram para estabelecer pontes que permitissem o ataque pelo lado do rio.

Entretanto, os portugueses e os seus aliados começaram a sentir a escassez das provisões de boca, e isso teria dado a vitória aos mouros se os cruzados não tivessem recebido, quando mais necessária lhes era, uma importante ajuda em mantimentos.

Por seu lado, os sitiados sentiam agudamente os efeitos da fome. O chefe mouro enviou sucessivas mensagens aos vális (governadores árabes) de além Tejo, pedindo socorros, mas alguns dos mensageiros foram aprisionados pelos cristãos, que, ao tomarem conhecimento da precária situação dos defensores do castelo, renovaram os assaltos, sem todavia conseguirem abrir caminho.

Na manhã de 19 de Outubro de 1147, o arcebispo de Braga celebrou uma solene missa campal, abençoando os combatentes cristãos e dirigindo-lhes palavras de incitamento.

Logo depois as trombetas de guerra deram sinal, e tudo se aprestou para o combate. Após renhida luta, em que os mouros infligiram numerosas perdas aos assaltantes, estes conseguiram encostar à muralha uma torre de madeira, protegida com couros de boi para não poder ser incendiada. Ao mesmo tempo uma brecha era aberta por meio de uma nova mina (outras, anteriores, haviam sido destruídas pelos mouros), e por ambos os lados se lançou a avalancha dos assaltantes. Ante o impetuoso ataque, os defensores desanimaram. Na verdade, o seu heroísmo não podia prolongar-se. Enfraquecidos pela fome, exaustos pelos sucessivos combates, atacados a ferro e fogo, pediram finalmente tréguas para serem combinadas as condições da rendição.

Foram duras essas condições, pois os mouros tinham de entregar aos vencedores todas as riquezas da cidade, incluindo os bens pessoais das famílias. Essa entrega seria feita no castelo, imediatamente ocupado por cerca de trezentos cavaleiros.

Entretanto, as ambições dos cruzados e a sua ganância estiveram prestes a causar um conflito entre eles e os cavaleiros portugueses. Só evitou esse conflito a firmeza de D. Afonso Henriques, o qual declarou que não consentiria no saque e na pilhagem, fosse quais fossem as consequências da sua decisão.

No sábado seguinte – 25 de Outubro de 1147 – D. Afonso Henriques fez a sua entrada triunfal na cidade de Lisboa (a antiga Achbuna mourisca). No alcáçar foi celebrado um solene Te Deum em acção de graças, mas a unção religiosa dos cruzados nãos os impediu de cometerem, mau grado todas as proibições, vários actos de violência impiedosa sobre os vencidos.

Entre as admiráveis manifestações de heroísmo que se verificaram, tanto por parte dos vencedores como por parte dos vencidos (esse heroísmo bélico que lamentamos mas que não deixa de ser admirável), saliente-se a proeza espantosa de Martim Moniz, cavaleiro fidalgo, dedicado companheiro de D. Afonso Henriques, que não hesitou em morrer, retalhado de golpes e esmagado pela pesada porta de uma das entradas do castelo, para impedir que os mouros a fechassem e impedissem o acesso dos cristãos atacantes.

Martim Moniz já antes se distinguira pela sua extraordinária coragem na batalha de Ourique.

Segundo a tradição – talvez ligeiramente alindada por uns salpicos de lenda, que é a poesia da História –, no instante em que os mouros se precipitavam para fechar uma das portas do castelo – desde então conhecida pelo nome de «a Porta de Martim Moniz» - o intrépido guerreiro atravessou-se nela e, enquanto não se aproximavam os seus companheiros, defendeu-a a golpes de montante, para manter a distância os sarracenos.

Ferido por sua vez, e gravemente, Martim Moniz manteve-se de pé, sem renunciar à luta, até que a perda de sangue o fez cair sem forças... mas assim mesmo tombou atravessado no limiar, continuando assim a impedir que a enorme porta fosse fechada. Os mouros cortaram-lhe a cabeça, mas o corpo do herói, ainda que meio esmagado, permitiu a entrada dos atacantes.

Ao que parece, não existe qualquer documento da época em que o caso esteja registado. Mas a proeza ficou para sempre gravada na memória do povo...

(In Raul Correia, Quadros da História de Portugal, Amigos do Livro, Lisboa, 1985, pp. 57-60).



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