Escrito por Raul Correia
E tu, famoso Moniz, que a porta
abriste
Ao forte povo, entrando por ti
dentro,
E a vida, que perdeste, lhe
ofereceste,
Para que a pátria livre fosse centro.
Luís de Camões (Os Lusíadas).
CONQUISTA DE LISBOA
Depois
da conquista da cidade de Santarém, a determinação dominadora dos mouros
pareceu esmorecer, enquanto nas hostes cristãs crescia o impulso para novos
cometimentos.
D.
Afonso Henriques tinha ao seu alcance toda a região ao longo do Tejo, apenas
defendida pelos castelos de Lisboa e de Sintra, visto que os outros pontos
fortificados, distantes uns dos outros, pouca resistência poderiam oferecer aos
portugueses.
Por
essa altura iria passar diante de Lisboa a segunda cruzada a caminho do
Oriente, que seria comandada pelo rei Luís VII de França e pelo imperador
Conrado III da Alemanha. Alguns desses cruzados, bastante numerosos, tinham
embarcado no porto inglês de Dathmouth, sob as ordens de Arnulfo de Aresnot e
Cristiano de Gestell. Mas a armada, que deveria costear a Península para entrar
no Mediterrâneo, havia sido surpreendida por um violento temporal, que a
obrigara a procurar refúgio nas águas mais tranquilas do Douro.
Sabendo
da presença da frota dos cristãos, apressou-se D. Afonso Henriques a convidá-los
para o ajudarem na tomada de Lisboa, o que os cruzados aceitaram na condição de
poderem arrecadar o produto das pilhagens que fizessem e o valor do resgate dos
vencidos... que antecipadamente se contava serem mouros.
Estabeleceu-se
o plano de um ataque simultâneo por terra e por mar, e logo a armada dos
cruzados, amainado o temporal, se fez de vela para o sul, enquanto as hostes
dos portugueses seguiam por terra na mesma direcção.
O
castelo de Lisboa era quase inacessível, mas grande parte da população,
calculada num total de cento e cinquenta mil habitantes, vivia nas encostas,
especialmente no lugar que constitui ainda hoje o Bairro de Alfama.
Foram
os cruzados os primeiros a chegar, tendo a frota ancorado no Tejo. A guarnição
mourisca do castelo de Lisboa, alertada pelo desusado movimento de embarcações no rio, viu desembarcar um troço
de estrangeiros que se dirigiam para os muros da cidade, e saiu ao seu encontro
com tal ímpeto que os forçou a bater em retirada. Esta escaramuça levou os
comandantes dos cruzados a assentarem planos para outra forma de luta, mais
demorada, estabelecendo-se em terra, num morro fronteiro ao castelo.
Tendo-se
gorado igualmente uma tentativa para obter a rendição pacífica da cidade,
decorreram quinze dias sem que se travasse qualquer recontro digno de nota.
Convencidos de que a empresa se apresentava mais difícil do que haviam suposto,
os cruzados aproveitaram essas relativas tréguas para construírem engenhos de
guerra, aríetes, balistas e catapultas... mas os primeiros engenhos a serem
utilizados foram incendiados pelos mouros, que sobre eles dispararam virotões
munidos de estopa a arder. De igual modo falharam as diligências para arrimar
uma torre de madeira às muralhas, bem como as que se fizeram para estabelecer
pontes que permitissem o ataque pelo lado do rio.
Entretanto,
os portugueses e os seus aliados começaram a sentir a escassez das provisões de
boca, e isso teria dado a vitória aos mouros se os cruzados não tivessem
recebido, quando mais necessária lhes era, uma importante ajuda em mantimentos.
Por
seu lado, os sitiados sentiam agudamente os efeitos da fome. O chefe mouro
enviou sucessivas mensagens aos vális (governadores árabes) de além Tejo,
pedindo socorros, mas alguns dos mensageiros foram aprisionados pelos cristãos,
que, ao tomarem conhecimento da precária situação dos defensores do castelo,
renovaram os assaltos, sem todavia conseguirem abrir caminho.
Na
manhã de 19 de Outubro de 1147, o arcebispo de Braga celebrou uma solene missa
campal, abençoando os combatentes cristãos e dirigindo-lhes palavras de
incitamento.
Logo
depois as trombetas de guerra deram sinal, e tudo se aprestou para o combate.
Após renhida luta, em que os mouros infligiram numerosas perdas aos
assaltantes, estes conseguiram encostar à muralha uma torre de madeira,
protegida com couros de boi para não poder ser incendiada. Ao mesmo tempo uma
brecha era aberta por meio de uma nova mina (outras, anteriores, haviam sido
destruídas pelos mouros), e por ambos os lados se lançou a avalancha dos assaltantes.
Ante o impetuoso ataque, os defensores desanimaram. Na verdade, o seu heroísmo
não podia prolongar-se. Enfraquecidos pela fome, exaustos pelos sucessivos
combates, atacados a ferro e fogo, pediram finalmente tréguas para serem
combinadas as condições da rendição.
Foram
duras essas condições, pois os mouros tinham de entregar aos vencedores todas
as riquezas da cidade, incluindo os bens pessoais das famílias. Essa entrega
seria feita no castelo, imediatamente ocupado por cerca de trezentos cavaleiros.
Entretanto,
as ambições dos cruzados e a sua ganância estiveram prestes a causar um
conflito entre eles e os cavaleiros portugueses. Só evitou esse conflito a
firmeza de D. Afonso Henriques, o qual declarou que não consentiria no saque e
na pilhagem, fosse quais fossem as consequências da sua decisão.
No
sábado seguinte – 25 de Outubro de 1147 – D. Afonso Henriques fez a sua entrada
triunfal na cidade de Lisboa (a antiga Achbuna mourisca). No alcáçar foi
celebrado um solene Te Deum em acção de graças, mas a unção religiosa dos
cruzados nãos os impediu de cometerem, mau grado todas as proibições, vários
actos de violência impiedosa sobre os vencidos.
Entre
as admiráveis manifestações de heroísmo que se verificaram, tanto por parte dos
vencedores como por parte dos vencidos (esse heroísmo bélico que lamentamos mas
que não deixa de ser admirável), saliente-se a proeza espantosa de Martim
Moniz, cavaleiro fidalgo, dedicado companheiro de D. Afonso Henriques, que não
hesitou em morrer, retalhado de golpes e esmagado pela pesada porta de uma das
entradas do castelo, para impedir que os mouros a fechassem e impedissem o
acesso dos cristãos atacantes.
Martim
Moniz já antes se distinguira pela sua extraordinária coragem na batalha de
Ourique.
Segundo
a tradição – talvez ligeiramente alindada por uns salpicos de lenda, que é a
poesia da História –, no instante em que os mouros se precipitavam para fechar
uma das portas do castelo – desde então conhecida pelo nome de «a Porta de Martim Moniz» - o intrépido guerreiro atravessou-se nela e, enquanto não se
aproximavam os seus companheiros, defendeu-a a golpes de montante, para manter
a distância os sarracenos.
Ferido
por sua vez, e gravemente, Martim Moniz manteve-se de pé, sem renunciar à luta,
até que a perda de sangue o fez cair sem forças... mas assim mesmo tombou
atravessado no limiar, continuando assim a impedir que a enorme porta fosse
fechada. Os mouros cortaram-lhe a cabeça, mas o corpo do herói, ainda que meio
esmagado, permitiu a entrada dos atacantes.
Ao que parece, não existe qualquer documento da época em que o caso esteja registado. Mas a proeza ficou para sempre gravada na memória do povo...
(In Raul Correia, Quadros da História de Portugal, Amigos do Livro, Lisboa, 1985, pp. 57-60).




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