quarta-feira, 16 de julho de 2025

Só o indivíduo vive, só o indivíduo pensa e sente

Escrito por Fernando Pessoa

 



A plebe só pode compreender a civilização material. Julgar que ter automóvel é ser feliz é o sinal distintivo do plebeu.

 

1. A única realidade social é o indivíduo, por isso mesmo que ele é a única realidade. O conceito de sociedade é um puro conceito; o de humanidade uma simples ideia. Só o indivíduo vive, só o indivíduo pensa e sente. Só por metáfora ou em linguagem translata se pode aludir ao pensamento ou ao sentimento de uma colectividade. Dizer que Portugal pensa, ou que a humanidade sente é tão razoável como dizer que Portugal se penteia ou que a humanidade se assoa.

2. Sendo o indivíduo a única realidade social, não é todavia o único elemento social. Esse indivíduo vive em dois meios ou ambientes – um o ambiente físico, outro o ambiente social, ou sociedade. É esse o valor do elemento sociedade – é o meio, um dos meios, em que o indivíduo vive. O sábio realismo de Aristóteles viu isto bem; e assim se assentou a tese política grega – que a sociedade existe para o indivíduo, que não o indivíduo para a sociedade.

Sendo o indivíduo a única realidade social, é o egoísmo a única qualidade real, embora, por disfarces vários e artifícios diversos se construíssem, no decurso da evolução social (não digo do progresso, porque não sei – nem ninguém sabe – se existe progresso) sentimentos altruístas, afinamentos dos instintos.

Para que o indivíduo possa ter uma vida social que lhe seja um elemento de desenvolvimento, ou, em outras palavras, para que a sociedade seja um ambiente favorável ao desenvolvimento do indivíduo, é forçoso que se faça assentar essa sociedade num conceito egoísta. Assim se formam naturalmente nações. A nação é o segundo elemento social primário. Os homens não se agrupam fraternitariamente senão por oposição. Sempre nos unimos para nos opormos. Isto é, aliás, um princípio lógico: definir é limitar.

(In António Quadros, Fernando Pessoa – A Obra e o Homem, II Vol., Arcádia, 1.º edição, 1982, pp. 209-210).