sábado, 3 de fevereiro de 2018

A Epopeia de Mucaba

Escrito por Carlos Alves (Cave)









«A meio dos anos 50, a partir de alguns pequenos grupos com objectivos incompatíveis, Barros Nekaka formou a UPA, cuja liderança assentava nas populações rurais do Bakongo, região etnolinguística de Angola.  Este povo vivia na fronteira entre o Congo Belga e Angola e estendia-se para Cabinda e o Congo francês, os limites do antigo reino do Congo. Roberto era inequivocamente de opinião de que não só o reino dos Bakongo ou qualquer outra entidade tinham de ser libertados, mas também todo o território de Angola devia ser libertado. Anticolonialista fogoso, Roberto nascera em Angola, mas vivera a sua vida adulta no Congo Belga. Fora educado pelos missionários da Igreja Baptista e trabalhara como contabilista na administração colonial belga entre 1941 e 1949. O Norte de Angola era uma região que, durante os anos 50, se tornara politicamente mais consciente, devido à instalação dos brancos, à influência dos missionários baptistas e a um acesso facilitado às actividades políticas que se desenvolviam no Congo Belga. Roberto sentia, pois, uma grande afinidade com os povos que viviam imediatamente do outro lado da fronteira. A UPA estava apta a desenvolver aí um grupo de seguidores, devido à fronteira relativamente aberta, e esta estrutura leal veio a ser a base para a revolta de Março de 1961. A presença portuguesa nesta região resumia-se a chefes de posto e a administradores, sem qualquer semelhança com a PIDE, além de que eram tão escassos que era fisicamente impossível manter fosse o que fosse, a não ser um controlo absolutamente casual nos seus distritos [Douglas L. Wheeler e René Pélissier, Angola (Londres: Pall Mall Press, 1971), 167. Os autores citam como exemplo o distrito do Congo em 1960. Nos seus 60 000 quilómetros quadrados possuía catorze concelhos (unidades administrativas urbanas ou semi-urbanas) ou circunscrições (divisões administrativas basicamente rurais) e trinta e sete postos, o que dava uma média de 1 200 quilómetros quadrados por divisão administrativa. Esta presença dificilmente seria eficaz no controlo de fronteiras, pois os postos estariam afastados uns dos outros dezenas de quilómetros. Grande número de pessoas podia atravessar, e fazia-o sem ser detectado].

Se bem que Roberto fosse relativamente instruído, era também membro do grupo etnolinguístico Bakongo, não era mestiço e, consequentemente, não partilhava da perspectiva cultural mais europeia. Tinha também uma orientação tribal, em contraste com as declarações não tribais do MPLA. Portanto, a personalidade e a filosofia da liderança da UPA contrastavam claramente com o MPLA e com a sua sofisticada liderança mestiça, pertencente à ala-esquerda, intelectual e aculturadamente portuguesa. Os fundos e os apoios também contrastavam manifestamente, estando o MPLA ligado de facto ao Bloco de Leste. A UPA recebia apoio financeiro do comité americano em África e de vários governos africanos, preponderantemente do de Léopoldville [Hélio Felgas, "Angola e a Evolução Política dos Territórios Vizinhos", Revista Militar (Dezembro de 1965), 706]. Deste modo, nunca conseguiram resolver as suas diferenças e juntar as suas forças com eficácia.

Quando o Congo Belga se tornou independente, em Junho de 1960, o seu governo começou a dar assistência prática a Roberto, incluindo a autorização para estabelecer uma estação de rádio e um campo de treino dentro das suas fronteiras. Este refúgio foi um aspecto importante nas operações da UPA durante os seus primeiros anos. Roberto testemunhou a longa série de crises congolesas que teve início com os violentos distúrbios políticos de 4 de Janeiro de 1959 e que levou a Bélgica a acelerar na direcção da autodeterminação do Congo e da subsequente independência, oito meses mais tarde. Em Dezembro de 1960, Roberto acreditava que tal como os belgas se tinham cansado rapidamente dos conflitos armados, assim aconteceria com os portugueses quando estes se iniciassem. Assim, utilizou o seu refúgio do Congo e a fronteira comum e porosa para instalar o palco onde se desenrolaria o final da relativa tranquilidade colonial de Portugal.

A UPA formou a sua ala militar, o ELNA (Exército de Libertação Nacional de Angola), em Junho de 1961, depois de os ataques não terem conseguido a retirada dos portugueses. Roberto era o comandante supremo e os outros dois líderes, desertores do exército português, eram Marcos Xavier Kassanga, chefe do estado-maior em Léopoldville, e João Batista, comandante operacional em Angola, com quartel-geral perto de Bembe. Esta liderança era ineficaz. Roberto era tão autocrático que aceitaria pouco mais do que armas e dinheiro. Sem treino, o ELNA "estabeleceu um exemplo desmoralizador de indisciplina e incompetência político-militar" [Van der Waals, 96]. O vice-cônsul em Luanda das forças de defesa sul-africanas fez notar que o ELNA "se envolveu em actividades militares no sentido mais restrito... mas evitava o mais possível contactos com a segurança portuguesa" [o autor argumenta que a propaganda portuguesa e o trabalho social entre os refugiados em Angola persuadiam muitas destas pessoas desalojadas a mudarem-se para povoamentos controlados. Este desenrolar da situação privou o ELNA do apoio popular. Concentrou-se, assim, em acções militares num deserto humano e em evitar a infiltração do MPLA. Negligenciou doutrinar, organizar e conseguir recrutas entre os refugiados que voltavam para Angola e perdeu assim uma oportunidade de minar a autoridade portuguesa. Como resultado, não foi estabelecida em Angola nenhuma infraestrutura política interna. Portugal obteve vantagem e manteve a superioridade até 1974]. O treino era tão fraco que, apesar da expansão do ELNA para cerca de 6.200 homens, o seu comportamento em alguns campos, como o Kinkuzu, no Congo, chegou a causar alarme. Andreas Shipango, o representante em Léopoldville da Organização dos Povos do Sudeste Africano, fez uma apreciação durante uma visita em 1963: "Com alguns representantes de outros movimentos de libertação, visitei os campos de treino de Holden Roberto perto da fronteira angolana, tendo em vista enviar para aí alguns jovens. Mas o ambiente nos campos de Roberto era tão mau que não pude recomendar tal procedimento".

Esta falta de orientação causou grandes brechas na liderança da UPA. Apesar da reorganização da UPA em Março de 1962 para incluir mais alguns grupos, da alteração do nome para FNLA, e do estabelecimento de um governo no exílio chamado GRAE (Governo da República de Angola no Exílio), pouca solidez se conseguiu».

John P. Cann («Contra-Insurreição em África. O Modo Português de Fazer a Guerra - 1961-1974»).


«Encerram-se em Nova Iorque os debates, e de Angola chegam a Lisboa notícias trágicas. Justamente de 14 para 15 de Março de 1961, vagas de terroristas invadem o Norte de Angola. Aboletados e municiados na República do Congo, atravessam em toda a extensão a linha de fronteira e, providos de catanas e armas de fogo rudimentares, assaltam povoações e fazendas. São atacadas Sto. António do Zaire, S. Salvador do Congo, Maquela do Zombo, que se podem considerar quase raianas; mas são igualmente acometidas Ambrizete, Negaje, Mucaba, Sanza-Pombo; toda a baixa do Cassange está em alvoroço; e os terroristas estão às portas de Carmona. São claros para as autoridades os propósitos de implantar o terror. São óbvios os desígnios de se dirigirem a Luanda. Nos círculos do governo central, na alta administração, toma-se então consciência de que em Angola há uma situação de guerra, e de que no território se move guerra contra Portugal».

Franco Nogueira («Salazar», V, A Resistência - 1958-1964).







Largo Lopes Sequeira (Luanda, 1890). Ver aqui


Largo Lopes Sequeira (Luanda, 1969).


Largo Infante D. Henrique (Luanda, 1900).


Largo Infante D. Henrique (Luanda, 1969).


Hospital D. Maria I (Luanda, 1900).


Hospital D. Maria I (Luanda, 1969).


Marginal (Luanda, 1900).


Marginal (Luanda, 1928).


Marginal (Luanda, 1969).


Marginal (Luanda, 1969).


Palácio do Governo (Luanda, 1900).


Palácio do Governo (Luanda, 1969).


Câmara Municipal (Luanda, 1920).



Câmara Municipal (Luanda, 1969).


Bairro das Imgombotas (Luanda, 1925).


Bairro das Imgombotas (Luanda, 1969).


Largo da Mutamba (Luanda, 1930).


Largo da Mutamba (Luanda, 1969).


Largo da Mutamba (Luanda, 1969).


Largo D. Fernando (Luanda, 1930).


Largo D. Fernando (Luanda, 1969).


Rua Salvador Correia (Luanda, 1930).



Rua Salvador Correia (Luanda, 1969).



Rua General Carmona (Luanda, 1934).



Rua General Carmona (Luanda, 1969).


Rua Ferreira Gil (Luanda, 1935).


Rua Ferreira Gil, (Luanda, 1969).




«Estávamos a 30 de Março de 1961. Na véspera tinha chegado a Luanda com o destacamento dos P2V-5 que, segundo o definido pela NATO, estariam interditos a actuar a sul do trópico de Câncer. Só a crítica e difícil situação em Angola obrigava a operar estes meios a sul daquele paralelo, onde o conflito ainda não tinha sido oficialmente reconhecido, mas de que ninguém tinha dúvidas. A guerra fizera a sua aparição. Durante o dia tive a oportunidade de tomar contacto com a sua realidade numa vastíssima extensão de terreno densamente povoado de florestas mas onde não se divisava o mais leve indício de ser humano. À noite, durante o café e após o jantar, o tema único de todas as conversas foi a guerra. A guerra sem regras, sem lei, sem compaixão. Vi algumas das fotografias que entretanto já circulavam em Luanda com o espelho horroroso, macabro, dantesco, de tudo o que se passara e continuava a passar naquele Norte de Angola. Se algumas dúvidas ainda restassem, quanto à justeza da nossa acção, aquele panorama pavoroso era mais que suficiente para apagar todo e qualquer preconceito ou hesitação que pudesse afectar a nossa motivação no cumprimento da missão a que a condição de militar obriga.

Tinha acordado com o comandante de grupo um voo no dia seguinte para uma outra área, um pouco mais a nordeste, donde havia notícias de que a situação se estaria a degradar. A actividade infernal que se desenrolava naquela Base, vivia do improviso, do velho desenrascanço, com uma entrega total de todos, tanto no que se refere aos meios humanos como aos materiais. Era uma actividade frenética que levava, com frequência, não só a ultrapassar os limites da capacidade dos operadores, como igualmente das próprias aeronaves, pondo em causa todos os princípios de segurança de voo que regem a actividade aérea. Os aviões de transporte Noratlas andavam num vaivém permanente entre o Norte afectado pela sublevação e Luanda, na evacuação das populações da área. Recordo perfeitamente de ser mencionado que num avião previsto para transportar uma média de cinquenta passageiros, chegou a trazer perto de cento e cinquenta do Negage para Luanda com a agravante da pista de descolagem não passar duma língua de terra batida sem quaisquer condições para a operação de aviões.

A Força Aérea, mercê duma previsão realista e atempada, dispunha já dos meios que lhe permitiam fazer face a grande parte das solicitações neste início de guerra. Em situação muito diferente se encontrava o Exército que, apesar dos planos elaborados para reformulação do seu dispositivo em Angola, ainda não tinha procedido às alterações adequadas ao prevísivel evoluir da situação e dispunha nos seus efectivos, em todo o território, de apenas cerca de 1500 europeus e 6000 angolanos. Haverá que esclarecer que destes 1500 europeus, perto de dois terços estavam em funções de comando, administrativas, logísticas, etc. No terreno dispunha apenas de quatro companhias operacionais que se desdobravam para acorrer aos pontos mais críticos em estreita cooperação com as tropas indígenas, mais concentradas nas zonas onde não se tinha verificado quaisquer incidentes e cuja preparação estava longe de preencher os requisitos para fazer face a um conflito deste tipo. Em qualquer caso, a sua acção foi importante, não só no início da luta, como igualmente ao longo de todos os anos em que ela se desenrolou, tornando-se por vezes particularmente importante e até decisiva em campos específicos. Combatiam assim os portugueses europeus lado a lado com os angolanos.

(...) É claro, é evidente que o que ocorria em Angola pouco tinha a ver com os portugueses e a sua colonização e, muito menos, com os angolanos. Nesta fase inicial do conflito não podiam restar muitas dúvidas sobre as intenções da política do Presidente Kennedy: conquistar apoios e simpatias entre os países afro-asiáticos, intransigentes defensores da independência dos povos ainda colonizados, como expressaram na conferência de Bandung em 1955, e neutralizar, à partida, qualquer tentativa de penetração comunista em Angola. Toda a pressão que exerceram sobre o Governo português, visando a aceitação do princípio da autodeterminação das Províncias Ultramarinas, tinha um objectivo muito mais radical e que culminava com a independência dos territórios como tinha acontecido no Congo. Nestas condições, o bastião anticomunista que acabaram por criar no ex-Congo Belga, seria substancialmente reforçado com a sua influência em Angola para onde acabariam por arranjar outro Mobutu, garantindo assim o controlo de toda a África Austral e o acesso às matérias-primas e materiais estratégicos de enorme valor, essenciais à manutenção e incrementação do seu potencial económico, militar e político. Esta estratégia garantir-lhes-ia o poder para mais facilmente desempenharem o papel de árbitros no cenário mundial.

(...) Todos os sectores da vida nacional se pronunciavam pela necessidade de, rapidamente, repor a ordem naquele território. Nem a oposição de esquerda, mais propriamente comunista ou filocomunista, se pronunciava contra o nosso envolvimento na neutralização do surto de terrorismo desencadeado no Norte de Angola. A oposição era totalmente pela nossa intervenção no sentido de travar a onda de assassínios que grassava naquela parcela do território, embora sem deixar de frisar a necessidade de se resolverem problemas de injustiça social e uma maior descentralização de poderes.

Não restam quaisquer dúvidas de que Portugal, os portugueses da então metrópole, estavam mobilizados, sentiam que era imperioso defender os angolanos, pretos, brancos e mestiços, das atrocidades de que estavam a ser vítimas. "Para Angola rapidamente e em força", foi o pronunciamento do Presidente do Conselho e ninguém contestou ou parecia duvidar de que assim teria de ser.

Afinal quem era o inimigo, quem matava indiscriminadamente, semeando o ódio, o terror, o sangue por aquela terra até então de paz? A UPNA (União dos Povos do Norte de Angola), o movimento que, posteriormente se viria a transformar na FNLA, era o resultado dum evento, aparentemente, sem grande significado para Angola mas que foi o embrião, que, explorado pelos norte-americanos, viria a desencadear todo um processo de luta de libertação.

Recorde-se que nenhum dos protagonistas vivia em Angola não se encontrando, tão pouco, exilados. Faziam a sua vida no Congo Belga como tantos outros angolanos da mesma etnia dos bakongos e que, na sequência das desinteligências com a autoridade administrativa portuguesa da área e com as igrejas católica e metodista à mistura, foram aproveitados pelos norte-americanos, com os quais matinham contactos frequentes, para desencadearem um movimento que se opusesse à expansão do comunismo naquela região de África. Por altura do 15 de Março, Holden Roberto encontrava-se nos EUA, onde passara vários meses, não se conhecendo qual o papel dos restantes elementos que estiveram na base da criação da FNLA nesta primeira acção. Também não está claro por que razão aparece Holden Roberto à frente deste movimento e não um dos chefes dos grupos de Matadi e Léopoldville, respectivamente, Eduardo Pinock e Miguel Necaca.








Ao centro: Holden Roberto







Poucas semanas antes da eclosão dos acontecimentos que tiveram lugar no Norte de Angola, Holden encontra-se com Frantz Fanon em Tunes e, segundo testemunho da esposa de Fanon, teria dito: "Esteja atento no dia 15 de Março, o dia em que vai ser debatida na ONU a moção apresentada pela Libéria; algumas coisas muito importantes irão acontecer em Angola". Toda a operação tinha sido planeada com tempo e as diversas acções convenientemente programadas.

Apesar das opiniões, algumas contraditórias, que apareceram na imprensa de todo o mundo sobre as origens, evolução e consequências dos acontecimentos que então tiveram lugar, a realidade era só uma e duma crueldade inconcebível, podendo ser sintetizada nos seguintes pontos:

- Em poucos dias, com início em 15 de Março, milhares de pessoas são exterminadas, entre brancos e pretos, sem que se vislumbre uma conexão clara entre causas e efeito.

- A retaliação das populações, em especial dos colonos brancos, não se fez esperar, matando indiscriminadamente, num desespero total ou simples acto de vingança.

- O racismo surge na sua componente mais dramática, a do sangue, a da morte: és preto, és culpado dos assassínios; és branco, vais matar-me e eu tenho de defender-me!!

Era difícil descrever o clima de medo, verdadeiro pavor, autêntico inferno, que se vivia em Angola, desde Luanda, onde afluíam os colonos que tinham escapado ao genocídio, até à fronteira norte com o Congo, abrangendo uma área superior à de Portugal continental. As forças da ordem eram por demais insuficientes para devolver àquela gente, claramente aterrorizada, um mínimo de tranquilidade que lhes permitisse agir duma forma racional, impedindo o agravamento da situação. Reinava o pânico, o ódio, a sede de vingança.

O pronunciamento de Salazar estava correcto. "Para Angola rapidamente e em força". Não tínhamos alternativa se pretendíamos restabelecer a ordem naquele território. Mas estariam os executores das vítimas do Norte, dispostos a acatar essa ordem? Estariam dispostos a libertar as populações, deixando-as em paz? Estariam os colonos brancos dispostos a aceitar essa paz, depois dos dramas que tinham vivido ou a que tinham assistido? Eis as muitas dúvidas ou interrogações que se poderiam pôr. Não era fácil a solução, até porque um ataque planeado e executado com o enorme e trágico sucesso que se verificou, com aquela dimensão, não seria para parar. Haveria com certeza uma retaguarda que estaria disposta e pronta a alimentar a frente de batalha e muito mais vidas iriam ser sacrificadas. Se o objectivo deste primeiro e brutal ataque era correr com os brancos de Angola, como aconteceu, em larga medida, com os belgas do Congo esse objectivo estava longe de ser alcançado. Mas não iriam parar com a chacina indiscriminada até serem confrontados com uma força que se opusesse com firmeza à sua onda destruidora, neutralizando-a e, se necessário, eliminando-a. Era a guerra!

Independentemente das razões que terão conduzido aquela agressão contra os angolanos, a autoridade legítima, responsável pela manutenção da ordem, teria de agir, agir para o pleno restabelecimento dessa ordem. Uma das vias seria através do diálogo mas, neste caso específico, dialogar com quem? Com os chefes ou comandantes operacionais dos guerrilheiros? Com os dirigentes da organização na qual estavam integrados? Com a entidade que teria levado à criação e orientação da acção do movimento, neste caso os norte-americanos? Tudo hipóteses a colocar mas cuja eficácia não podia deixar de ser posta em causa. Entretanto, iríamos permitir que mais vítimas inocentes, de interesses alheios aos seus próprios interesses, continuassem a cair? Que saída nos restava se não combatermos pela força os protagonistas da agressão no mesmo terreno onde faziam sentir a sua acção, prevenindo mais mortes e punindo os agressores. Poderá pôr-se em causa a justeza desta atitude? Com quais alternativas, pelo menos no curto prazo?

O Governo português, considerando Angola como parte integrante do território nacional, iria enviar os seus militares para punir os responsáveis pela agressão do Norte de Angola. Naturalmente que nenhum chefe político manda os seus soldados para uma batalha, pedindo-lhes para arriscar as suas vidas e aniquilar os outros, sem lhes assegurar que a sua causa é justa e, logicamente, a dos inimigos que irão enfrentar, injusta. Pelo que eu próprio sentia, pelo que ouvia, pela geral reacção das pessoas, não tinha dúvidas de que, naquele momento crítico da vida nacional, nenhum militar digno e consciente da responsabilidade que lhe está associada, poria em causa a justeza da missão que lhe era cometida ao ser enviado para Angola, onde uma agressão brutal tinha tido lugar. A prova mais cabal desta consciencialização foi materializada na entrega de que todos, sem excepção, deram provas no período infernal de quarenta dias que já lá tinha passado. A nossa gente, sem um mínimo de condições de trabalho, mostrou raça, espírito de sacrifício, sentido de responsabilidade e grande profissionalismo. Nunca ouvi um protesto, um lamento, uma discordância, indisponibilidade para a missão, muitas vezes ultrapassando-se tudo o que poderia ser exigível! Foi com muito orgulho que me integrei nesse grupo de pioneiros, homens dispostos a tudo dar para salvar o seu semelhante que, traiçoeiramente, era assassinado.

Muito se tem escrito sobre a legitimidade da guerra ou da sua justeza tanto sob o ponto de vista jurídico como ético. Mas ali o que importava era enfrentar a dura realidade e lutar com todos os meios disponíveis».

General Silva Cardoso («Angola, Anatomia de uma Tragédia»).



Chegada dos primeiros soldados portugueses a Luanda (1961).


















Ver aqui



«(...) Têm imediata repercussão na opinião pública metropolitana os "acontecimentos" de Angola. Há desde logo um aspecto sentimental: Angola é território querido dos portugueses: e há terror da sua perda, ou risco. Mesmo nos mais desprevenidos, e nos mais alheios aos jogos da política, forma-se a convicção clara de que, algures e por alguém, está traçado e em execução um plano de guerra contra Portugal em África.

(...) Está a findar o mês de Março de 1961, e Salazar recebe os telegramas e relatos que Lopes Alves começa a enviar de Angola. Homem de viva inteligência, o ministro observou e compreendeu; e são de funda preocupação, e de quase alarme, as informações que remete. Salazar está sobretudo apreensivo com o futuro das relações com os Estados Unidos.

(...) Regressa entretanto Lopes Alves da sua viagem a Angola. Ouviu, leu, observou, concluiu: diz a Salazar que confirma os seus telegramas e relatórios e que a situação lhe parece grave; não se lhe afigura de fácil ou pronto remédio; e pensa que o governo se deve preparar para uma guerrilha clássica, com todo o desgaste material e político que essa luta comporta. Com as suas bases logísticas na vizinha República do Congo, os terroristas atravessam a fronteira nos recantos mais escusos, infiltram-se, confundem-se com as populações locais, dedicam-se a tarefas pacíficas durante o dia, e à noite atacam. Qualquer negro pode ser um terrorista, ainda que de dia mostre a maior cordialidade; quando em fuga, acolhe-se na vasta área, densa e difícil, que corresponde à zona dos Dembos; e é esse o seu reduto. E trata-se sem dúvida de um movimento inspirado além fronteiras, que encontra na zona um apoio que basta à sobrevivência. Para além, e junto de outras etnias ou tribos, não conquistou adeptos, pelo menos em número para qualquer acção. Situação invencível? Não, decerto; muito longe disso; mas de solução prolongada, e corrosiva».

Franco Nogueira («Salazar», V, A Resistência - 1958-1964).


«No dia 28 de Abril de 1961 completava-se exactamente um mês que chegara a Luanda. Não tinha qualquer voo programado, prevendo passar um dia descansado, quando surgiu um pedido inopinado de apoio para Cabinda. Até a esta altura, não se tinha verificado qualquer alteração de ordem no enclave. Como todos os PV-2, dados como prontos para voo, já tinham missões programadas, decidi utilizar o P2V-5 embora não dispusesse de qualquer tipo de armamento. Para o que desse e viesse, mandei pôr na cauda do avião uma caixa com granadas defensivas.

De acordo com as informações recebidas, os incidentes teriam tido lugar junto à fronteira com o Congo e eram da responsabilidade da UPA. Na área não se dispunha de quaisquer forças militares ou de segurança pelo que não teríamos de nos preocupar com eventuais interferências à sua acção. Chegados a Cabinda, sobrevoámos toda a fronteira com o Congo, ao longo do rio Luango, sem nada ter sido detectado de anormal. Aliás, a grande densidade da majestosa floresta do Maiombe não nos dava muitas hipóteses de observar o terreno. Após uma hora de voo, foi decidido regressar quando, mesmo junto à fronteira e num troço visível duma picada, foram avistados alguns homens, dois dos quais estavam ocupados em cortar uma árvore de grande porte e os restantes que me pareceram armados deviam fazer a segurança. Tentando não perder o local de vista, subimos um pouco e, sempre em volta, confirmámos a nossa primeira visão. Toda e qualquer manobra a muito baixa altitude, com um avião do tipo do P2V-5 é sempre difícil e não isenta de riscos. Em qualquer caso decidimos largar por ali umas granadas através do alçapão existente na cauda. Mandei preparar o material e escolhendo a posição inicial mais conveniente, ensaei um passe baixo e em voo lento. À aproximação do local, dei ordens para lançar algumas granadas que não passariam dum mero aviso, pois seria extraordinariamente difícil causar maiores danos nos homens lá em baixo. Absorvido com a manobra e para não perder o local, aconteceu que a velocidade caiu para além dos limites admissíveis de tal forma que, só por milagre, não se entrou em perda e, àquela altitude, tudo estaria irremediavelmente perdido. Quando senti os primeiros estremeções do avião, evidentes indicadores de que começava a entrar em perda, num gesto rápido e instintivo, levei à frente as manettes da pressão de admissão. Por momentos aquela enorme máquina pareceu ter ficado dependurada dos motores mas, dando ligeiramente a mão, comecei a ganhar velocidade e tudo ficou controlado. Não ganhei para o susto. As mãos e as pernas tremiam como se tivessem sido objecto de algum choque eléctrico e o suor escorria-me pela face. Olhei o 2.º piloto que esboçava um sorriso amarelo de grande alívio. Disse-lhe:

- Vamos subir e sair daqui; isto não é um avião para andar a lançar granadas de mão a 50/100 pés acima do solo.

Após a aterragem, sem mais incidentes, mas sem poder esquecer o momento altamente crítico por que havíamos passado, o Manuel Janeiro Gonçalves, sargento mecânico do avião, que lá na cauda tinha dado pela quase entrada em perda do avião, comentou:

- Esteve por pouco, mas o meu Major ainda não sabe do resto!!

O Manel, o mesmo que na noite de 18 de Novembro, aquando da tormentosa saída dos PV-2 do Montijo com destino a Angola, agarrado ao meu braço, procurou dar-me um pouco de alento com o tal: "Vai correr tudo bem", informou-me de que, na mesma altura, isto é, nos segundos que precederam os estremeções do avião, tinha retirado a cavilha de uma das granadas e ao tentar lançá-la pelo alçapão da cauda, errou o buraco e a dita caiu dentro do avião!! Instintivamente tinha mergulhado sobre o engenho explosivo que conseguiu agarrar e atirar para o exterior antes do rebentamento que aconteceu quase de imediato mas sem causar estragos.

Não há dúvida de que todos na vida têm momentos de sorte em que, por exemplo, o destino de meia dúzia de pessoas se decide em escassos segundos. Nós, os tripulantes do P2V-5, naquele fim de manhã, tínhamos sido bafejados por essa sorte. Um Anjo da Guarda esteve connosco.

Foi a primeira e a última vez que um P2V-5 sobrevoou uma área afectada pela subversão. Posteriormente tivemos conhecimento da investida da UPA naquela região mas sem que tivesse provocado vitimas. Apenas algumas destruições e abatises nas picadas, como tínhamos observado.

Lockheed P2V-5 Neptune



No dia seguinte, ainda não completamente refeito do susto da véspera, afinal a morte tinha estado mesmo ali na nossa frente, fui fazer um voo programado para Sanza Pombo, Santa Cruz e, muito especialmente, ao longo da margem do rio Cuango que fazia fronteira entre Angola e o Congo. Foi um voo prolongado e cansativo porque foi conduzido sempre a muito baixa altitude, e perscrutando permanentemente o terreno. Aterrei já passava das 1400 com todo o armamento a bordo pois nada tinha detectado que justificasse o seu emprego, embora toda a região mostrasse indícios claros de actividades subversivas.

(...) Pelas 1900 subi [para o quarto], completamente esgotado. A actividade naquele mês tinha sido frenética e quando me preparava para entrar no banheiro, alguém bateu à porta do quarto. À pressa, vesti o velho roupão de banho da Escola Naval e fui ver quem poderia ser. Deparei com o comandante de grupo, Ten. Cor. Diogo Neto, que num estado bastante agitado me disse que estavam a matar toda a gente na Mucaba e que era necessário ir em seu socorro. Olhei-o bem de frente, como que não acreditando no que me dizia e limitei-me a responder:

- Certamente que não estás a querer dizer que alguém terá de ir de avião salvar aquelas pessoas, de noite e sem quaisquer ajudas à navegação aérea naquela região? - perguntei.

- O céu está completamente limpo e estamos quase em lua cheia; eles estão metidos na capela e têm um farolim no telhado, pelo que será fácil localizá-los - retorquiu.

Tentei explicar que tal acção era absolutamente inviável, porquanto a Lua não é o Sol e mesmo que fosse possível localizar a capela, jamais a luminosidade emitida pela Lua seria suficiente para visionar fosse o que fosse no terreno a bordo de um avião a baixa altitude e a uma velocidade mínima da ordem dos 140 nós (250 kms/h). Tinha alguma experiência de voo, mas tal missão era absolutamente proibitiva tanto para mim como para o melhor piloto do mundo. Era uma operação completamente condenada ao insucesso e nem sequer era admissível pensar na utilização de meios aéreos naquelas condições. Ainda acrescentei que me encontrava completamente esgotado pelo que, e antes de mais, eram necessárias algumas horas para recuperar do esforço, já despendido naquele dia.

- Mas não vês que os estão a matar a todos? - insistiu.

Não posso, é impossível, nem posso acreditar que não entendas que o que pretendes de mim é uma autêntica loucura. Afinal tens outros pilotos em melhores condições físicas e psíquicas que eu e que conhecem bem o terreno na área. Mas, no teu lugar, não cedia a qualquer tipo de pressão, viesse de onde viesse!!

Saiu sem fechar a porta. Deixei-me cair sobre a cama, incapaz de raciocinar. Era mesmo a guerra. Dias antes sobrevoara pela primeira vez aquela região. Mucaba ficava situada num enorme planalto que se estendia para norte até à estrada Bungo-31 de Janeiro-Damba e para sul o enorme vale desde o Negage, Carmona, Songo, Nova Caipemba e outras regiões. O desnível entre o vale de Carmona e o planalto da Mucaba devia ser da ordem dos 1000 pés (300 metros).

Não fiquei muito tempo magicando na topografia do terreno, porque o Neto, numa enorme agitação, irrompeu pelo quarto:

- Tens de ir, tens de ir. O comandante da Região Aérea e o governador-geral estão a pedir. Se não vais, aquela gente morre toda.

Sentei-me na beira da cama, apertei com todas as forças a cabeça entre as mãos e deixei-o falar, falar.

Por fim, fez-se silêncio, olhei-o e, sem acreditar nas minhas próprias palavras, disse:

- Vai arranjar o resto dos elementos para a tripulação que eu sigo já para a base.

Enfiei o fato de voo, exactamente aquele que me tinha sido oferecido pelo Comandante Smith em Cherry Point após o voo do PV-2 que tínhamos ido experimentar. Constituía uma espécie de talismã, como ele num gesto de grande reconhecimento afirmara [encontrava-me nos EUA, comandando uma das tripulações que deviam voar para Portugal mais uns velhos PV-2. Num dos voos de experiência, fomos confrontados com uma grave emergência em que o mais provável é a queda incontrolada do avião. Com um grande esforço consegui ultrapassar o terrível problema e aterrar na Base em segurança. O piloto norte-americano que ocupava o lugar do 2.º piloto, altamente reconhecido por ter "safo a pele", ofereceu-me um fato de voo que usara durante a guerra do Pacífico na luta anti-submarina naqueles PV-2. Depois do grande susto afirmou que jamais voltaria a voar uma daquelas máquinas].

Descolámos cerca das 2100, levando como 2.º Piloto o Fur. Jacinto, mais conhecido pelo "mãos-de seda" dadas as suas excelentes qualidades como piloto de aviões. Entreguei-lhe os comandos e subimos para 5000 pés. Estava, de facto, uma noite magnífica. Céu estrelado, o que é raro em África e uma lua cheia lá bem no alto. Em baixo, era visível todo e qualquer ponto luminoso, as manchas mais escuras das florestas, alguns troços de estradas quando não encobertas pela vegetação e pouco mais. Rumámos a Carmona e, daí, tentaríamos alcançar Mucaba. Reduzi ao mínimo as luzes da cabine de pilotagem para evitar o encadeamento e facilitar a visão nocturna. Sentia-me exausto e doía-me o estômago. Afinal não havia jantado, e apenas no voo da manhã ingerira duas sandes e uma peça de fruta. Mais uma asneira e agravante: nunca se deve voar com o estômago vazio.

Lockheed PV-2 Harpoon


Ao fim de vinte minutos de voo, tendo penetrado já na região acidentada dos Dembos, começaram a aparecer umas nuvens altas, que se assemelhavam a um rendilhado muito fino. Eram cirros. Não gostei. A luz do Sol reflectida pela Lua, tendo que atravessar esse rendilhado, tornava-se mais fraca. Prossegui e umas outras formações nebulosas, tipo cúmulos, começaram a surgir na nossa frente, praticamente a todas as altitudes. Mantivemos o rumo e ao fim de cinquenta minutos devíamos estar à vertical de Carmona. A nebulosidade, a cada momento, tornava-se mais densa e, lá em baixo, através dos buracos das nuvens, apenas o negro da escuridão. Tudo parecia simplificar-se pois com estas condições "meteo", na área, só nos restava uma alternativa: regressarmos ao ponto de partida. Ficar-nos-ia a satisfação de tudo se ter tentado. O voo prosseguia e deixei descair a cabeça para o lado esquerdo, encostando-a ao vidro frio da janela lateral. Que iria fazer? Por enquanto nada. Continuávamos a voar dentro e fora de nuvens. Lá em baixo, tudo negro. Decorridos os cinquenta minutos, tanto para cima como para baixo, a visibilidade era nula. Mas, de súbito, através dum buraco nas nuvens, entrevejo as luzes duma povoação. Pela quantidade e dispersão devia ser Carmona. Pego nos comandos, reduzo a velocidade e numa volta bem apertada pela esquerda, início uma espiral de descida, procurando nunca perder de vista as luzes. Ao atingir os 3500 pés, verifico que nos encontrávamos, de facto, por cima da capital do Uíge e por baixo duma espessa camada de nuvens. Circulei sobre a cidade, talvez uns 500 pés acima do terreno. O luar tão brilhante em Luanda, tinha desaparecido. Via-se a estrada que seguia para o Songo e a iluminação da pequena povoação. Mucaba ficava para norte de Carmona, mas entre as duas povoações havia um desnível de terreno da ordem dos mil metros. Decidi seguir até ao Bungo, passando ao lado do aeródromo do Negage que tentámos contactar sem sucesso. Disse ao telegrafista para iniciar a escuta na frequência do emissor-receptor P-19 das pessoas que se encontravam na capela da Mucaba. Passando sobre Carmona e mantendo-me sempre colado à base das nuvens, meti direito ao Bungo, tendo avistado as luzes da pequena povoação quase de imediato. Tive que subir pois o Bungo ficava já no planalto de Mucaba. Por sorte, parecia que a base das nuvens seguia o perfil do terreno. Ao atingir o povoado estava a 4500 pés. Dei umas voltas em torno do aglomerado populacional, metendo depois em direcção ao nosso objectivo que, segundo a carta de que dispunha, se encontrava a cerca de oito minutos de voo no rumo 300º. Pouco depois apercebi-me de que a base das nuvens começava a baixar e, para manter o contacto com o terreno, teria que descer, o que era altamente arriscado. A altitude do avião acima do terreno não devia exceder os 500 pés. Voltei para trás. Entretanto, o telegrafista consegue o contacto com o P-19 de Mucaba que informa estarem quase sem munições, cercados por todos os lados e que iriam ligar o farolim no telhado para nos facultarem a sua localização. A base das nuvens cada vez se aproximava mais do terreno, pelo que decidi fazer 180º e voltar para o Bungo. Iria tentar a sorte a partir do Songo. Ainda, segundo a carta, a distância era cerca de metade (três a quatro minutos de voo), embora tivesse que vencer o desnível do terreno da ordem dos 1000 pés. Voltei a Carmona e daqui ao Songo o qual sobrevoei várias vezes antes de meter ao rumo 60º para Mucaba. A visibilidade para o exterior era nula pelo que puxei o avião, subindo para os 4500 pés. Mesmo dentro de nuvens segui em frente durante quatro minutos na esperança de visionar o farolim. Mas só o negro da noite. Voltando pela direita e mantendo a altitude tentei chegar ao Bungo. Passados cerca de cinco minutos e bastante à direita, lá estava a povoação. Durante uns breves minutos entreguei os comandos ao Jacinto para relaxar um pouco os músculos, dizendo-lhe para não perder a povoação de vista. Quando peguei novamente no avião, decidi tentar mais uma vez Mucaba a partir daquela posição. Meti ao rumo mas depressa verifiquei que, à frente, as nuvens pareciam colar-se ao chão. Forço o avião para baixo mas, de repente, o Jacinto puxa pelos comandos e começamos a subir. Não reajo e inicio uma volta de 180º para o ponto de partida. Entretanto do P-19 informavam de que já tinham um ferido e que, em breve iriam combater com arma branca à porta da capela. Voltei ao Songo e tento mais uma vez em direcção da encosta da serra. Subi aos 1000 pés antes de a atingir e, completamente dentro de nuvens, deixo o avião seguir em frente. Pouco depois o telegrafista informa que lá de baixo, segundos antes, parecem ter gritado: "Passaram mesmo por cima, passaram mesmo por cima". Devia estar louco, andar a rasar o chão de noite e dentro de nuvens!

Durante mais de duas horas dum completo desnorte, foram dezenas de tentativas que se fizeram a partir do Songo e do Bungo para chegar a Mucaba. O Jacinto sempre atento e sem qualquer cerimónia, puxava pelos comandos logo que eu começava a exagerar, levado pelo extremo cansaço, pelos constantes pedidos de socorro, pela sempre viva esperança de acabar por ver o pequeno farolim no telhado da capela. Tantas vezes sobrevoei o Songo que um outro P-19 entrou na rede e informou que andava um avião a sobrevoar a povoação. Entretanto, haviam passado mais de quatro horas desde a descolagem. Num perfeito estado de desespero, desisti! Nada podia fazer para salvar aquela gente que, pelas suas palavras, parecia estar condenada não se sabia a que espécie de fim. Entreguei o avião ao Jacinto, disse ao telegrafista para informar Mucaba que, dadas as condições atmosféricas, tínhamos de regressar à Base. De repente veio-me à mente a afirmação do Casa Pia do draga-minas S. Tomé "Tudo vai correr bem" e deixei que as mágicas palavras se repetissem nas profundezas do meu íntimo. Puxei a cadeira para trás e deixei cair a cabeça sobre o peito. Era o sabor amargo da derrota, impotente, completamente incapaz de qualquer linha de raciocínio com um mínimo de lógica.

Já passava das duas horas da manhã do dia 30 de Abril de 1961, quando entrámos no circuito de aterragem do aeroporto de Luanda. Tomei os comandos e aterrei sem problemas, rolando até à placa de estacionamento. Uma pequena multidão aguardava o avião. Por coincidência tinha levado o 4606, o avião que me estava atribuído na Base do Montijo para efeitos de luta anti-submarina e o avião que o Ten. Queiroz voara na célebre viagem e que uma grave avaria no motor obrigara a ficar em S. Tomé. Saí do avião, completamente vergado pelo cansaço e por nada ter feito para salvar aquela gente. Reconheci o Diogo Neto e o Comandante da Região Aérea, Brig. Pinto Resende. Limitei-me a balbuciar: "Fiz tudo o que humanamente era possível; preparem um avião que esteja lá ao amanhecer pois talvez ainda encontrem alguém com vida". Afastei-me, seguindo para a messe e recolhendo-me no quarto. Estava desfeito, um autêntico farrapo.






Só muito sobre a manhã consegui conciliar o sono. Foi curto e agitado. Tudo me parecia um sonho, um longo e tormentoso pesadelo. Quase não acreditava estar ali são e salvo. Como era possível? Alguém com um conhecimento mínimo do que é pilotar um avião e das normas mais elementares de segurança que regem essa actividade não acreditaria que pudéssemos ter escapado. De noite, numa área acidentada, pilotar um avião em voo rasante, dentro de nevoeiro, nem todos os Santos nos salvariam! Tenho falado muito pouco neste incidente da minha vida profissional, por duas razões:

- primeiro, porque não é credível e os que entendem um pouco, só um pouco, do assunto, poriam em dúvida este louco episódio e concluiriam que não passava duma quimera, dum produto da minha imaginação;

- segundo, só alguém completamente irresponsável, alienado, suicida, se atreveria a tal loucura e nada abonava em favor da minha capacidade profissional.

Os que viveram comigo, dentro do 4606, este insólito acontecimento, sabem que foi assim. Não ficámos lá todos porque Deus e o Jacinto, que Deus já lá tem, deram uma grande ajuda. Depois de o nosso avião ter partido, descolou uma outra tripulação com o Cap. Ervedosa como piloto que, felizmente, levava como 2.º piloto o Comandante Viegas, chefe dos pilotos da DTA e que conhecia os céus de Angola como poucos.

Assim, um segundo avião descolou, pouco depois do 4606, para a mesma área, com a mesma missão e sem que me tivesse sido dado conhecimento. Muito sensatamente, ao chegarem às imediações de Carmona, o Comandante Viegas aconselhou o Ervedosa a regressar à Base pois as condições meteorológicas na área tornavam impraticável e proibitivo qualquer tipo de protecção aos homens da capela de Mucaba.

Nós, loucamente, brincámos com a morte e estivemos muito mais perto dela que qualquer outro ser vivo naquelas redondezas.

Muita coisa ficou por explicar, pois não se encontra explicação possível dentro da racionalidade! Recordo agora outra situação de alto risco em que tinha estado envolvido na passagem da FIT (frente intertropical) quando se encontrava muito activa, durante a noite e num avião praticamente sem instrumentos. Em qualquer delas, a situação vivida não dá, em norma, para ser contada, pois muito poucos conseguem sobreviver. E não está em causa o saber, a capacidade, a perícia ou a destreza dos protagonistas, mas tão-só um outro factor a que muitos chamam sorte, destino, acaso, mas que pessoalmente prefiro chamar Deus ou o bom Anjo da Guarda que esteve comigo e com os meus companheiros. Chamei-lhe milagre, Milagre no Inferno de Mucaba. Foi de facto o inferno, onde o sofrimento ultrapassa os limites da consciência humana, passando a agir-se por instinto, mecanicamente, sem capacidade de raciocinar e, aparentemente, preparado para tudo, até para a morte.

Já perto do meio-dia, sem saber como e para quê, fui até à Base. A missão para a fronteira norte prevista para essa manhã e que me estava destinada, tinha sido cancelada por falta de avião. Vários camaradas se encontravam naquela sala que dava pelo nome de "operações de esquadra" apesar de ser domingo. Falavam de um PV-2 que tinha descolado para Mucaba, levando como piloto o Ten. Cor. Neto, o Cap. Paulino Correia, qualificado no avião, como 2.º piloto e também um jornalista. Parecia saberem que o pessoal de Mucaba se encontrava bem e havia apenas um ferido ligeiro causado por um disparo inadvertido dum dos ocupantes da capela. Não tinha havido ataques durante a noite, pois, segundo afirmavam, os pretos não gostam de atacar durante a noite, preferindo os crepúsculos ou a luz do dia. Também constava que na altura em que sobrevoei a povoação, toda a região estava envolta em denso nevoeiro, um dos maiores inimigos da actividade aérea e os homens deviam ter informado. Entretanto uma coluna tinha saído do Negage, uma tropa indígena destinada à defesa da Mucaba sob a protecção de pára-quedistas, comandados pelo ten. Mansilha. Aos primeiros alvores da manhã, uma parelha de aviões T-6 armados e procedentes do Negage tinha estado na zona, tendo actuando contra grupos que os alvejaram. Seguiram-se outras parelhas de T-6 durante quase toda a manhã e com a mesma finalidade: proteger os homens da Mucaba que durante toda a noite tinham clamado por socorro. Entretanto o Cap. Mascarenhas, com a sua enorme perícia e segurança, tinha aterrado com um DO-27 na rua da Mucaba junto à capela.

Ouvi tudo em silêncio e uma série de questões martelava-me a cabeça, ainda não totalmente refeita, incapaz de encontrar as respostas que pudessem justificar todo um conjunto de atitudes e decisões que nas últimas horas tinham ocorrido e que não dava para entender.

Nada mais queria ouvir e abandonei a tremenda confusão daquela sala, saindo para o exterior. O calor e a humidade tornavam a atmosfera quase irrespirável, mas prossegui, como que passeando pela placa onde se amontoavam aeronaves de todos os tipos. Fui andando, como que movido por uma força interior e, sem dar por isso, estaquei em frente dum PV-2. Era o 4606 que olhei intensamente e com alguma comoção. As bombas estavam suspensas das asas. Tinha sido fiel e sempre o haveria de recordar com um certo sentimento de gratidão. Voltei-lhe as costas quando senti que um outro PV-2 entrava na placa sem as bombas das asas. Instintivamente, ocultei-me passando por detrás do 4606 e prossegui para a viatura que me tinha sido cedida para utilizar nas deslocações de serviço. Entretanto voltei-me para trás e reparei que o outro PV-2 estava parado e os tripulantes saíam do seu interior. Era o Neto que regressava da Mucaba. Estive quase tentado a ir ao seu encontro e perguntar como correra a missão. Mas desisti. Afinal sempre tinham aceite a sugestão que fiz, logo após a aterragem, de prepararem um avião caso ainda encontrassem alguém com vida. Uma maior coordenação com o Aérodromo do Negage que distava da Mucaba uns curtos minutos de voo, teria sido desejável para uma melhor rentabilização dos meios disponíveis.






AB3 Negage


Apesar de toda a vaga de destruição e morte que varria grande parte do Norte de Angola desde o 15 de Março, o planalto da Mucaba até à estrada Carmona - Bungo - 31 de Janeiro - Damba parecia querer resistir ao alastramento da subversão, malgrado toda a sede de vingança pelos familiares, amigos ou simples conhecidos que tinham sido sacrificados naquelas últimas semanas.

Na tarde daquele sábado de 29 de Abril de 1961, os homens que tinham ficado na povoação foram alertados pelos nativos fiéis de que nas proximidades se estava a reunir um grande número de negros, alguns dos quais armados. Decidiram, de imediato, mandar duas viaturas com pessoal para travar o avanço dos "desordeiros" em direcção a Mucaba. Estes, quando as avistaram, logo se lançaram contra a primeira das viaturas, matando cinco dos seus ocupantes (quatro brancos e um negro), enquanto os restantes fugiram para a outra viatura que, não podendo fazer inversão de marcha, recuou até à povoação, deixando os mortos ou feridos para trás.

Dado o alerta, toda a população branca se preparou para a defesa, refugiando-se na capela, iniciando desde logo os seus pedidos de socorro e atirando sobre todos os que tentassem aproximar-se. Assim se deu início ao inferno da Mucaba com as pessoas bastante descontroladas não só pelos acontecimentos que vinham ocorrendo por todo o Norte de Angola mas principalmente pelo desaparecimento dos seus companheiros que tinham sido abatidos naquela tarde. Ali naquele reduto, deve ter reinado tudo menos a calma e o sangue-frio para uma análise realista da situação e a organização duma defesa eficaz. Da sua atitude resultou todo um conjunto de actividades e movimentações para satisfazer os pedidos, aparentemente injustificados, implicando riscos demasiado elevados e que com um pouco mais de calma poderiam ter sido evitados.

Uns dias mais tarde, a onda de revolta chega a outras áreas do planalto, mais concretamente ao Bungo, povoação com uma população branca da ordem das duzentas pessoas das quais apenas restavam trinta, porquanto as restantes tinham sido evacuadas por questões de segurança. Estes homens enquadrados por uma secção de Pára-quedistas, comandada pelo Alf. Mota da Costa, tinham-se organizado em autodefesa à medida que começaram a tomar consciência da deterioração da situação à sua volta com a presença de elementos estranhos à região. Escreve o Cor. Edgar Cardoso no seu livro Presença da Força Aérea em Angola, referindo-se ao estado de espírito dos homens que ficaram no Bungo:

andavam como que alucinados, sem dormir, na hipótese de um alerta constante, comendo de armas apernadas, sem se resignarem com aquela vida inquietante de inacção...

Mas, contrariamente ao que aconteceu em Mucaba, aqui esta gente estava enquadrada por militares à frente dos quais se encontrava um autêntico chefe que, sentindo o desnorte daqueles homens, lhes dirigiu uma mensagem redigida pelo seu próprio punho e que, ainda segundo Edgar Cardoso:

Esse acto do Comandante Militar do Bungo, simples na aparência, veio restabelecer o equilíbrio psíquico e trazer a acalmia àqueles homens que só desejavam combater, na excitação febril e imensa de vingar a herética chacina dos seus parentes e amigos, o que de momento não podiam cristãmente perdoar, porque a dor encrudece o coração.

Foi este Homem que, com a sua clarividência, o seu valor, a sua coragem, a sua grande serenidade, aliadas a uma capacidade de chefia digna dos maiores da história militar, faltou naquela noite em Mucaba para evitar o "Inferno de Mucaba" e o incendiar de mais focos de rebelião.

Mota da Costa viria a morrer no dia seguinte, vítima duma rajada duma arma automática, quando dava protecção a um grupo de homens que reparava uma ponte, a cerca de 1 km da povoação que tinha sido parcialmente destruída. Ao seu lado encontrava-se José Comendas Caras-Lindas, que também caiu. Sobre eles diz Edgar Cardoso:

Morreram ambos de pé, peito feito às balas que silvaram; como homens para quem o sentido do dever, o brio e o amor à Nação, se antepõem ao conceito da existência.

Para que fique registado, como exemplo e guia, para todos os militares que, em qualquer parte do País ou do mundo, tenham de enfrentar situações que a força das armas não resolve, mas sim a capacidade de chefia, os mais nobres sentimentos duma correcta noção do dever e o amor à Pátria, aqui se transcreve a proclamação que o Alf. Mota da Costa, no início da sua carreira militar, dirigiu à população do Bungo em 8 de Maio de 1961, exactamente no dia em que fiz o meu último voo de PV-2 por toda aquela região, antes de regressar à metrópole com os P2V-5.


DEFESA DO TERRITÓRIO NACIONAL PORTUGUÊS À POPULAÇÃO DO BUNGO


Vai-se acentuando, de dia para dia, uma experiência e, ao mesmo tempo, um aumento de nervos e de impaciência que pode levar a certos desmandos e desatinos, o que, aliás, já se tem verificado. Peço, portanto, a todos que se mantenham calmos, que não saiam da área dos seus postos e que, em caso de alarme, os ocupem rapidamente em vez de se juntarem à minha volta. Também se vai criando um movimento de desconfiança que a todos prejudica. O momento actual não é de se porem problemas; proponham-se soluções, mas que não fiquem susceptibilidades. A situação é de guerra e ninguém o ignora. Medo todos nós sentimos, o que precisamos é saber dominá-lo no devido momento. Aqueles que se não sentirem com condições físicas e principalmente morais, que retirem, pois aqui só prejudicam os que sabem o que querem. Aqui não há lugar para cobardes, esses que retirem também, que nós apenas os olhamos com piedade. Se tivermos de cair que caiamos de pé, pois nas nossas veias corre sangue português, o mesmo de há oito séculos.

A bem da defesa do território português, em qualquer parte do mundo.


(Assinado) Manuel Mota da Costa - Alferes Pára-quedista».


General Silva Cardoso («Angola, Anatomia de uma Tragédia»).







«É admissível afirmar-se, sem receio de desmentido sério, que há uma mentalidade da decantada esquerda, presente e actuante em toda a sua vida, caracterizada pelo vicioso gosto da mentira soez, da corrupção sem freio, da subversão, isto é, da revolta, da insubordinação contra a autoridade e o poder vigente, as instituições, as leis, os valores e os princípios estabelecidos - tudo quanto constitui, afinal, a um tempo o esteio e o cerne das sociedades, qualquer que seja o seu grau de cultura e civilização. Além disso, a esquerda cultiva a superstição do voto e da maioria, a conseguir por qualquer preço. Onde quer que logre fixar-se a esquerda se manifesta de imediato a maior desordem mental e moral. A quintessência desta realidade encontra-se na ex-União Soviética, onde, como se sabe, foram cometidas injustiças e crimes que envergonham a Humanidade. Nada de admirar, porém: entre os romanos, a mão esquerda é a sinistra, e o sinistro é o lado esquerdo, a dos maus agouros.

Ocorreram estas considerações, magoadas mas pertinentes, ao ler uma vez mais um autor esquerdista de alto coturno, como tal imbuído da nefasta mentalidade em apreço - que o mesmo é dizer de todo em todo incapaz de fugir à pecaminosa, nojenta e altamente perniciosa mentira, a que se dedica um verdadeiro culto e se utiliza com fins de baixa política, de que a esquerda é mestra exímia.

Sinto-me forçado a confessar a minha incapacidade de fiel e adequadamente traduzir o estado de espírito em que fiquei após a leitura do que se segue, colhido do volume "Opiniões Públicas Durante as Guerras de África", da autoria de Nuno Mira Vaz, editado pelo Instituto de Defesa Nacional - imagine-se, Santo Deus! - e da Colecção Defesa Nacional:

"Apreender o entendimento que os Portugueses - designadamente os que viviam na Metrópole - tinham do Império e, mais tarde, do país multirracial e pluricontinental em que aquele foi transformado por via legal, é essencial para uma correcta percepção da problemática de que se ocupa o trabalho.

O forte pendor nacionalista do Estado Novo estimulou a crença dos portugueses na sua vocação missionária e civilizadora nos cinco continentes e incitou-os a venerar, desde os bancos da escola, os heróis das Campanhas de África e os mártires do Padroado do Oriente. Além disso, as autoridades não permitiam que as opiniões discordantes tivessem expressão pública, reprimindo sem hesitar qualquer tentativa de debate da questão colonial. Em consequência, a opinião pública, nos primeiros anos da década de 60, comungava tão fortemente dos pontos de vista do regime, que qualquer discordância era considerada de imediato como traição. A ideia de que o Alentejo, Angola, Timor ou Goa eram Portugal a igual título, era ministrada como uma verdade axiomática; e não se estranhe que, então, o português médio se ufanasse de ser cidadão de um país onde o "sol jamais se punha".


Assim, percebe-se melhor o frémito de horror que varreu o país após o 15 de Março de 1961 em Angola; a pulsão sentimental que acompanhou a queda de Goa no final desse ano; o lento despertar para a dura realidade do mundo e o fim, destituído de qualquer grandeza, em que se afundou o "país em mil pedaços repartido".


Como se vê, o texto é suficientemente inteligível para ser necessário lê-lo nas entrelinhas. Discorda, ironiza, troça do Império cuja realidade só existia nas leis dum Estado Novo ofuscado pelo "forte nacionalismo"... Texto denso de perversidade repugnante, que um estrangeiro perverso inimigo de Portugal teria dificuldade em escrever. A sua leitura causa perplexidade e deixa sentido qualquer português de lei. O espírito lúcido e o profundo conhecimento da História Pátria autorizam Mira Vaz a asseverar sem rebuço que a parte ultramarina e a Nação multirracial e pluricontinental que fomos não passavam duma ilusória mistificação do Estado Novo - que o mesmo é dizer de Salazar, visto como é o seu mentor por excelência. Não obstante, dilatar a Fé e o Império é a palavra de ordem que conduziu a expansão da Grei. A terminologia acompanhou, de onde a onde, os tempos; o espírito, esse, manteve-se inalterável. Norton de Matos, a República jacobina e desordeira... tiveram, no fundo, o mesmo entendimento do Império e do papel lusíada no mundo. De resto, cronistas, historiadores, toda a plêiade de escritores que fazem da nossa literatura da expansão ultramarina a melhor do mundo não gastaram os seus preciosos tempo e esforço em coisa de "lana caprina"...

Mira Vaz, fazendo jus ao seu indisfarçável desprezo por Portugal, ignora ou, melhor, finge ignorar a nobreza e a riqueza do nacionalismo, misteriosa condição "sine qua non" da grandeza das nações, forjada pela vida em comum durante séculos ou milénios, robustecida pelo sentimento de comum nacionalidade, tendo como escopo sacrossanto a continuidade e a perenidade das pátrias. Por isso, todos os verdadeiros condutores de povos recorrem ao nacionalismo para enfrentar crises e calamidades nacionais.

A existência do Brasil e dos países de língua portuguesa de África, nascidos do terramoto satânico do 25 de Abril, os povos que falam o "papiá cristão" em terras que há muito deixaram de ser nossas, os marcos da nossa presença no Norte de África, que tanto fascínio causaram a Lyautey, atestam inequivocamente a realidade do Império Português, contra o qual lutaram franceses, holandeses e ingleses, nossos tradicionais inimigos em matéria ultramarina. No entanto, a testemunhar uma cegueira ditada por ódio visceral, Mira Vaz nega essa realidade.


Por outra parte, este original intérprete da História de Portugal não crê tenhamos sido uma Nação multirracial e pluricontinental, como se viu. Essa feição da nossa vida secular também foi, segundo a óptica de Mira Vaz, uma originalidade do Estado Novo - ia a dizer de Salazar, cultor e fautor de Portugalidade sem par. Todavia, já no século XVII, tão distante, Pyrard de Laval, ilustre viajante e curioso das coisas lusitanas, francês de nascimento, ficou fascinado por este aspecto da nossa vida, que surpreendeu no Brasil e em S. Tomé e Príncipe. Como soe dizer-se, a mentira tem as pernas curtas: não vai longe no tempo, nem logra sucesso duradoiro. Não há Rosas, Dacostas, Miras e quejandos capazes de desfazer ou diminuir a glória de Portugal como nação civilizadora e pioneira nas relações entre os povos de outras cores e credos.

Bem ao contrário do que pretende Mira Vaz, a política de assimilação ou integração é a nossa coroa de glória em matéria de expansão da Europa pelo mundo. Em boa verdade, iniciou-se nos primórdios da gesta dos Descobrimentos, no século XV, e, sem alteração de intenções e processos, chegou ao século XX - ao fatídico 25 de Abril -, sempre pujante e actuante.

Efectivamente, a política em causa é responsável pela disseminação do catolicismo na América, África e Ásia onde os portugueses estanciaram e pela existência de comunidades luso-ameríndias, euro-africanas e luso-asiáticas - factos que podem negar-se apenas por mera má-fé. Os próprios crioulos que mandam e comandam, gerindo bem ou mal os destinos das nossas ex-Províncias Ultramarinas, vilmente rejeitadas e escorraçadas do seio da Pátria de Camões, pelo 25 de Abril anti-nacional, são filhos da gloriosa orientação em causa, só possível mercê da crença, vivamente apreciada por boa parte da gente lusíada, de que é português quem pense, sinta e actue como português de gema, independentemente da sua cor ou credo, apenas tendo como rivais historicamente conhecidos os movimentos da romanização e o da muçulmanização. O lusotropicalismo não é uma ficção vã de mestre Gilberto Freyre, o melhor sociólogo da língua portuguesa, venenosamente infamado pelo autor das "Opiniões" ao sugerir ter o Estado Novo subsidiado pelo menos parte das suas obras... Mira tem em mira, segundo o invejoso e funesto brilho dos nossos mais encarniçados inimigos, internos e externos, cujas obras são a base da bibliografia das "Opiniões", a "desmontagem da concepção portuguesa do Império". Está enganado. Não desmonta coisa alguma: estupidifica-se.

Com efeito, em Seiscentos alguns homens de cor foram elevados à dignidade de Cavaleiros da Ordem de Cristo, a qual exigia do pretendente quatro avós nobres e a ausência nas suas veias de sangue negro, mouro ou judeu. É o caso de Henrique Dias, de pura cepa mina, herói da Restauração de Pernambuco, e do cabo-verdiano André Álvares de Almada, euro-africano, guerreiro valoroso que se distinguiu na defesa do arquipélago contra os corsários. Luís Lopes de Sequeira, por bons historiadores de Angola considerado o melhor militar português daquele território, igualmente euro-africano, isto é, mestiço, foi Mestre de Campo. No Brasil de Seiscentos foram integrados nos regimentos brancos os soldados euro-africanos, o que denuncia o seu valor demográfico e militar. Neste aspecto, eram perfeitamente equiparados.

E na primeira metade do século XIX uma delegação brasileira enviada a Luanda a fim de convidar Angola ou o Reino de Angola, como então era designado aquele território da Coroa de Portugal, a integrar-se no Brasil recém-independente, regressou de mãos vazias: o senado da Câmara de Luanda, de maioria euro-africana e nativa - preferiu continuar no seio da Nação Portuguesa. Autodeterminação em Oitocentos, vitória da política da assimilação... Em Oitocentos, sem os "ventos da história" dos comunistas, a população crioula de Angola era verdadeiramente portuguesa, como documentos irrefragáveis apontam. Por outro lado, a atitude do senado da Câmara de Luanda referida é um desmentido inequívoco da maldosa acusação de que os territórios do Ultramar só em mãos metropolitanas se encontravam seguras... Coisas, tristes coisas...

Notemos que em fins de Oitocentos depara-se-nos outra genuína autodeterminação, desta feita em Cabinda, quando os cabindas preferiram ser portugueses a serem integrados nos domínios belga e francês. É o que se contém no Tratado de Simulambuco (1881), miseravelmente esquecido pelos homens de Abril, estranhos amigos da liberdade... O Tratado de Simulambuco é ainda hoje respeitado no enclave de Cabinda, onde os "maquis" que lutam contra os angolanos, que ocupam o território mercê da traição dos abrileiros, cantam o hino de Portugal, manifestação comovente de portuguesismo que está muito além da compreensão dos Rosas e Miras deste país...

Arquitectura Manuelina no Mosteiro dos Jerónimos.


Há milhões de assimilados fora do estatuto oficial: os mestiços, em boa verdade naturalmente integrados, os que se sentem portugueses por afeição e escolha, frutos do compadrio; ex-servidores das Forças Armadas, serviçais domésticos - cada lar português é uma escola de usos e costumes e da cozinha metropolitana, etc... Da Missão católica de S. Salvador do Congo, onde missionou o célebre Pe. António Barroso, mais tarde Bispo do Porto, perseguido raivosamente pela República desordeira e jacobina de 1910-1926, amoravelmente idolatrado pelos congoleses - releve-se-me o galicismo -, da Missão de S. Salvador do Congo, dizia, saíram centenas de operários, que a missão possuía uma excelente escola de arte e ofícios, para o então Congo Belga, onde os nativos os tratavam por "chindele", isto é, brancos ou assimilados ou, melhor, aportuguesados. Os célebres "pombeiros" que percorriam os sertões africanos no século XIX constavam de europeus e crioulos, em número desconhecido. Para a fixação lusitana em Angola contribuíram muitos homens de cor - é o que rezam páginas de oiro que resistem à demolidora acção anti-nacional de quantos Miras nasceram nesta terra de Santa Maria...

Não resisto à tentação de referir um facto interessante e altamente elucidativo: foi encontrado pelos nossos soldados - metropolitanos e ultramarinos - material escolar que prova que os terroristas ensinavam a ler e escrever português, tal o seu aportuguesamento e o desejo e a necessidade de continuarem o estilo português de vida. É de salientar esse outro caso dos soldados portugueses de Angola e antigos flechas refugiados na Namíbia continuarem a considerar-se portugueses e a ensinarem, também eles, os seus filhos a falar, ler e escrever português, utilizando saudosamente a cozinha lusa; ao português chamavam - devem chamar ainda, graças a Deus - "língua mãe"!

A sociedade cabo-verdiana é multirracial e ainda ontem participava no Império Português. O crioulo que ali se fala é uma evolução da língua de Camões. Será que também estamos em presença duma mistificação do Estado Novo?

E é bom notar que a miscigenação étnica, igualmente tradicional entre nós, cujas origens se perdem nos primórdios da nacionalidade, explica e justifica a ausência em Portugal e seus ex-prolongamentos transmarinos do racismo anglo-saxónico, deveras anti-cristão, filho de preconceitos que obscurecem profundamente a razão humana. Com efeito, é eugenista a essência do racismo anglo-saxónico, gerador de outras fórmulas de racismo não menos odioso. O racismo gera racismo. Para os ingleses e norte-americanos quem tenha uma gota de sangue africano é negro. 99,9% de sangue europeu não bastam para vencer, digamos assim, a tal gota de sangue africano, misteriosamente. A isto se pode chamar, com propriedade, mentalidade pré-lógica, estudada, ainda que muito mal, por Levy Bruhl, noutro contexto. E é esta barbaridade que compatriotas nossos - e brasileiros, Santo Deus! - imitam sem pestanejar, como se se tratasse de algo edificante e assaz civilizado. Nem sequer se dão conta de que a aceitação de tal estultícia lesiva da verdade científica implicaria uma visão diversa e falsa da nossa maneira de ser, estar e apreciar o mundo... Teríamos de alterar a História, passando a considerar negros retintos varões ilustres como o Pe. António Vieira, o Marquês de Pombal, Gonçalves Crespo, Sousa Martins, Almada Negreiros e tantos outros. A lista é longa e rica!

Está bem de ver que houve convulsões no Império Português, desde as origens. A Espanha, a Inglaterra, a Rússia têm-nas no nosso tempo. Todavia, a ninguém se consente negar a realidade desses países, velhos de séculos, por esse motivo. De outro lado, é certo que havia mais paz e sossego na Luanda de 24 de Abril de 1974, que na Lisboa de hoje... Uma lista, mesmo longa que seja, de rebeliões ocorridas no Império durante séculos não o invalida. Não é este o lugar para aprofundar este tema, rico de consequências, por estreiteza de espaço.

O que fica exarado, porém, conduz-nos a Mucaba - um dos mais brilhantes feitos da nossa História de Além-Mar e um dos mais gloriosos baluartes da nossa resistência à pretensão dos nossos inimigos, internos e externos, de nos expulsar de territórios nossos há séculos, em seu exclusivo benefício. O objectivo fundamental do partido comunista dito português era a expulsão de Portugal dos territórios ultramarinos, designadamente de Angola, sendo os americanos inocentes úteis...

Que deve ter havido um condicionamento e um condicionalismo internos, ténues que fossem, ligados à corrida do café, tornado produto rico no termo da II Guerra Mundial, com os americanos a tornarem-se seus grandes e apreciados consumidores, não há dúvida. Mas, para o rebentamento da onda terrorista de 15 de Março de 1961 no Norte de Angola, o condicionalismo internacional é de longe o mais importante - ia mesmo a dizer o único que merece a maior atenção -, dada a extrema violência e a extensão do movimento. Tudo gira em torno dos famosos "ventos da história" que já sopravam com estrépito e alarido... vindo a calar-se misteriosa e miseravelmente quando a satânica ex-União Soviética finalmente estoirou de modo hilariante.

O 15 de Março, propositadamente esquecido pela esquerda porque é favorável a Portugal, ultrapassou em ferocidade tudo quanto é lícito supor: homens, mulheres, crianças esquartejados, queimados e serrados vivos; filhos mortos perante os pais, mulheres mortas diante dos maridos... crianças mortas, espostejadas nos seus berços, etc, etc... Intuito de tamanha selvajaria, que acompanha a implantação do comunismo - o socialismo científico - em todo o mundo: afastar os portugueses europeus e mestiços, em especial, de Angola, pela violência, pelo medo. Na ONU sabia-se com antecedência do que iria acontecer e esperava-se uma vitória rápida e segura dos amotinados... Vê-se quem tinha a mão por baixo.







Marginal (Luanda)


Desfile de tropas portuguesas em Luanda a 7 de Julho de 1961.




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De outra parte, os terroristas foram armados, municiados, drogados e fanatizados com promessas de todo o género por estrangeiros, como sobejamente se sabe. O facto de a violência indescritível ter caído também sobre os trabalhadores bailundos é denunciador do desejo do bakongo - a tribo revoltada - vir a governar Angola... Não é nada de admirar: em África a solidariedade entre tribos não existe.

Não obstante a resistência inesperada e tenaz dos elementos populacionais alvo do terrorismo teleguiado, uma palavra inequívoca da Metrópole sobre o futuro de Angola era ansiosamente esperada por todos.

É então que Salazar ocupa a pasta da Defesa Nacional e pronuncia o discurso memorável de 13 de Abril - cerca dum mês volvido sobre o 15 de Março, efeméride jamais esquecida pelos portugueses de lei:

- Se é precisa uma explicação para o facto de assumir a pasta da Defesa Nacional mesmo antes da remodelação do Governo que se verificará a seguir, a explicação pode concretizar-se numa palavra e essa é Angola.

Pareceu que a concentração da Presidência do Conselho e da Defesa Nacional bem como a alteração de alguns altos postos noutros sectores das Forças Armadas facilitaria e abreviaria as providências necessárias para a defesa eficaz da Província e a garantia da vida, do trabalho e do sossego das populações.


Andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão.


Como um só dia pode poupar sacrifícios e vidas, é necessário não desperdiçar desse dia uma só hora, para que Portugal faça todo o esforço que lhe é exigido a fim de defender Angola e com ela a integridade da Nação.


Era, já se vê, a voz santa da Nação, gravemente ferida no cerne da sua razão de existir: na sala maior do Império, que era justamente Angola. Esta fala de Salazar, ouvida com emoção e alívio indescritíveis, inicia a glória do autor como o maior e o melhor de todos os resistentes anti-comunistas: ele era desde então verdadeiramente o Ocidente, como um estrangeiro sagaz teve a rara felicidade de o definir.

Mucaba lutou heroicamente e venceu, dando renovado alento às mais povoações cercadas pelos Bakongos tornados agentes inconscientes dos interesses da estranja - invejosa secular do nosso Ultramar. A revolta bakonga é inteiramente tribal - é uma mera manifestação tribalista e não nacionalista como se pretende em meios conhecidos, com fins de baixa e vã política. Assim como um amontoado de pedras não é uma casa, uma amálgama de tribos não é uma nação... Angola, não sendo Portugal, era - e é - um conjunto de tribos que funcionam como nações, coesas, pelo elemento religioso que estreita os seus membros, tribos irreconciliáveis. Estude-se a História de Angola sem preconceitos e ver-se-á um território - as fronteiras foram delimitadas pelos portugueses - em perpétua agitação. O nacionalismo só existe onde houver uma Nação... O resto é tão só tribalismo, seja qual for o entendimento inadequado que se queira dar às palavras. Mas, felizmente, a realidade não se altera com as palavras, nem a lógica.

O que foi a epopeia de Mucaba, digna das tradições nacionais, no-lo diz a pena escorrida de Cave, pseudónimo de Carlos Alves, jornalista e escritor de merecimento, euro-africano, homem do Uíge, onde exerceu actividades económicas, meu querido colega na Assembleia Nacional, em quem surpreendi a todas as horas um devotado, acrisolado amor à mãe Pátria de todos nós - metropolitanos e ultramarinos não estrangeirados, isto é, não vendidos à estranja nem adeptos de ideologias anti-nacionais, inteiramente à margem dos interesses vis dos inimigos, internos e externos, do Império que ía do Minho a Timor...

Heróis de Mucaba são, em sã consciência, todos quantos suportaram os cercos, enfrentaram o inimigo, muito mais numeroso e bem armado, drogado, que não hesitava em empregar qualquer brutalidade, sedento de sangue. No entanto, dentre todos salientou-se o Chefe do Posto, que soube incitar os restantes a lutar até ao limite das suas forças físicas e morais: Hermínio Carvalho de Sena de seu nome, euro-africano de Cabo Verde - símbolo da sociedade multirracial que alguns transviados nascidos no Portugal europeu negam ter existido...

Hermínio Carvalho de Sena, o homem providencial de Mucaba pertencia ao Quadro Administrativo cujos funcionários mantinham a autoridade nos lugares mais isolados e desprovidos de meios culturais e outros, disseminavam os usos e costumes europeus, constituindo um escudo contra a subversão - o que atraiu sobre si as atenções da mesma: combater, minar o Quadro Administrativo era meio e forma de enfraquecer a soberania nacional.

Assiste-me uma particular autoridade para assim me referir a essa autêntica escola de Portugalidade que foi o Quadro Administrativo, tão incompreendido e vilipendiado: participei nele quase rapaz, antes de ser escolar de Coimbra, conheci alguns dos seus melhores servidores, com os quais aprendi a apreender o sentimento profundo das relações entre as classes e etnias da Angola Portuguesa de meados do século XX.

Há quem pretenda que Carvalho de Sena foi um herói à força. Em boa verdade, todos o são. Sem os eventos da Revolução Francesa, Napoleão não seria herói... Só que, como é fácil de compreender, quem não possui qualidades para sê-lo não sai da mediocridade e dele não reza a História.

Silvino Silvério Marques


O valor e o sentido do heróico feito de Mucaba foram apresentados vivamente por toda a Nação. O seu principal personagem viu-se alvo de atenções várias e honrosas, merecendo o encómio de pessoas ilustres do país, como os generais Manuel Diogo Neto e Silvino Silvério Marques, e bem assim do Dr. Álvaro Rodrigues da Silva Tavares, Governador Geral de Angola na altura dos acontecimentos da povoação mártir de Mucaba. Dele diz Diogo Neto que "deu provas de elevado espírito de sacrifício e de desprezo pela própria vida, de coragem e devoção patriótica, e, ainda, de excepcional dinamismo e determinação porque, não tendo qualquer preparação militar, organizou e orientou eficientemente a defesa de Mucaba, inculcando elevado moral aos sitiados que lutavam lado a lado com ele, ao mesmo tempo que, através dum emissor P-19, lançava para o ar os constantes apelos de salvação e pedidos de socorro, e descrevia, no meio de toda aquela aflição, para conhecimento de toda a Angola emocionada, os momentos difíceis por que estavam passando..., com o seu brilhante procedimento, os Homens de Mucaba escreveram uma página gloriosa da História de Portugal e o Chefe de Posto Hermínio Carvalho de Sena tornou-se um símbolo de valentia, apontado para exemplo dos jovens portugueses porque desde a eclosão do flagelo, pela primeira vez os rebeldes saíam derrotados no campo da luta". É de notar que Diogo Neto era Comandante do Grupo Operacional do B.A-9 e pilotou um avião PV2 que saiu de Luanda expressamente para socorrer Mucaba, em transe assaz difícil.

Hermínio de Sena vive nos arredores de Lisboa, aposentado como Intendente do extinto Quadro Comum do Ultramar, inteiramente ignorado dos que mandam e comandam neste triste rectângulo à beira mar plantado - semi-colónia da U.E. sempre de mão estendida aos subsídios de Bruxelas e muito atento às suas directivas... Se fosse terrorista, membro influente do MPLA ou do PAIGC, inimigo de Portugal, teria todas as homenagens desta gente que de portugueses só tem o nome...

Volvidos trinta e sete anos sobre a gesta de Mucaba e o início da nossa heróica resistência contra os comunistas e seus "compagnons de route" - perdoe-se-me o estrangeirismo -, de armas na mão, em terras africanas para onde fomos "motu próprio", terras sempre nossas na mente e no coração, recordamos comovidamente todas as suas vítimas das várias etnias que fizeram Portugal.

Algés, Março de 1998».

José Pinheiro da Silva («À Guisa de Prefácio», in Carlos Alves, «A EPOPEIA DE MUCABA - ANGOLA - 1961», Núcleo de Estudos Oliveira Salazar).





A EPOPEIA DE MUCABA 

(ANGOLA – 1961) 


O caso de Mucaba foi glosado em vários tons, nos jornais da época, sob o impacto duma verificação extraordinária: um punhado de homens, em posições de defesa, na Capela da terra, resistiu a um ataque de milhares de terroristas, armados de espingardas, de canhangulos e de catanas. Como pano de fundo todos realçaram a novidade: pela primeira vez, desde a eclosão do flagelo, os terroristas saíram derrotados no campo de luta!

Predominava então a ardência dos sentidos, o entusiasmo pela causa, a exaltação dos feitos defensivos. A comoção provocada pelos defensores de Mucaba justificava os elogios, os aplausos, os louvores gerais. Mas o caso em foco foi sempre visto de fora para dentro, porque não era fácil ir mais além. Passados vinte e sete anos, e serenados os ânimos, regista-se aqui o acontecimento, com a fidelidade de quem o viveu intensamente como figura preponderante.

A versão que se segue é respigada dum relatório do Chefe do Posto, Hermínio Carvalho de Sena, que teve nas suas mãos a sorte dos habitantes da povoação de Mucaba. A noite de vinte e nove de Abril foi longa e tormentosa. Chefe do Posto e habitantes da povoação tiveram a vida por um fio. Nessa noite amargurada, foi o corolário dum martírio incessante, que se prolongou por muitos meses. Para uma melhor compreensão, registam-se os passos anteriores a ela, e também os que se sucederam.

A excitação nos povos do Norte de Angola começou muito antes de quinze de Março de 1961, data do rebentamento do terrorismo. A independência do antigo Congo Belga, ocorrida em Junho de 1960, acelerou nas populações fronteiriças o desejo de imitação. Por essa altura, quando o Chefe do Posto regressava do Posto de 31 de Janeiro, deparou com um movimento anormal, perto da Regedoria de Tolane, tida como de confiança.

O Regedor, todo ele alterado, mal responde às perguntas que lhe são feitas. Declara de motu próprio que "o Chefe do Posto será morto e ele, Regedor, será o Rei de Mucaba". Depois disto, várias diferenças começam a ser notadas: ordens do Chefe do Posto mal cumpridas, fugas de pessoal das fazendas de café, saídas exageradas de gente para o Congo ex-Belga. As suspeitas acumuladas levam o Chefe do Posto, de parceria com elementos da população, a organizarem um serviço de patrulhamento, desde o apagar das luzes até às cinco da manhã, que começa no dia catorze de Julho de 1960. Nesse dia chega a notícia de o Regedor Tolane ter abandonado a residência para se internar na mata.

O patrulhamento prossegue nos meses de Agosto, Setembro, Outubro, e entra pelo Novembro adentro. A treze deste mês, na deslocação do Chefe do Posto à Regedoria de Tolane, não encontra o Regedor, nem a Bandeira Nacional içada, como era costume aos domingos e dias feriados. No dia vinte e um realiza-se a cerimónia da transferência do Posto Administrativo do Mucaba, do Concelho da Damba para a jurisdição do Concelho do Songo, com a presença dos Administradores daqueles Concelhos, Autoridades tradicionais e elementos da povoação comercial.




Os meses de Dezembro de 1960 e Janeiro de 1961, passam sem manifestações hostis. No dia vinte e nove de Janeiro, o Chefe do Posto conferencia com os Sobas da região, tendo em vista os trabalhos para a construção duma picada destinada a ligar o Posto com o Songo, sede do Concelho. Os Sobas cumprem e a abertura da picada começa sem incidentes. O mês de Fevereiro é todo dedicado a esta tarefa, apesar de chegarem notícias do recrudescimento das fugas de pessoal das fazendas de café.

No domingo, doze de Março, o Chefe do Posto faz nova diligência à Regedoria de Tolane. Regista outra vez a ausência do Regedor, e da Bandeira Nacional no poste da Regedoria. Nas buscas efectuadas nada apura sobre o seu paradeiro. Dois dias depois volta a andar por vários povos, em serviço de fiscalização. Não regista distúrbios. Mas o ambiente observado é opressivo. Na volta à povoação decide activar o patrulhamento.

No dia quinze, o Chefe do Posto organiza uma patrulha, composta de civis, soldados com baixa e cipaios, que marcha sobre os povos de Uando, à procura do Regedor Tolane. Ninguém dá notícias dele. Pela tarde, informado por um comerciante, toma conhecimento das chacinas feitas no Quiteche, Aldeia Viçosa, Vista Alegre e fazendas de café na área do Uige. A fogueira que arde um tanto por todo o território não atinge Mucaba. No dia seguinte promove uma reunião com os comerciantes e pessoal do Posto, na qual dá conta da situação e, em conjunto, traçam uma linha de conduta.

Em consequência, melhoram os processos de fiscalização, ao mesmo tempo que os comerciantes tomam o compromisso de não venderem catanas, nem machados, facas e pregos. Entretanto, os trabalhos da construção da picada continuam em bom ritmo. Mas o Chefe do Posto, insatisfeito com o silêncio dos povos da sua área, no dia dezassete vai observar pessoalmente. Nada acontece de anormal. Todavia, continuam a chegar notícias de alastramento do terrorismo nas terras do Norte.

Como medida de precaução, no dia dezanove são evacuadas para Luanda, via Engage, as senhoras e as crianças, ficando só os homens. O serviço de vigilância é redobrado, com turnos de ronda, permanentes, dia e noite. Os elementos da população concentram-se em duas residências, uma em cada extremo da povoação.

A vinte e três, o chefe do Posto percorre a zona de Uando e não encontra nos povos nenhum Soba presente. Entretanto os trabalhos da picada chegam ao seu termo, e o Chefe do Posto segue por ela ao Songo, e dali a Carmona (Uíge), aonde se inteira da gravidade dos acontecimentos. Em trinta e um de Março a picada é dada por concluída e o pessoal transferido para o Posto, em serviço de limpeza da povoação. Apesar dos acontecimentos o serviço decorre sem incidentes. A onze de Abril, o Chefe do Posto sai com o pessoal à picada Mucaba-Songo, a rectificar um troço de trânsito difícil.

No dia quinze são reforçadas as patrulhas e as rondas. A população dá sinais de cansaço, mas decidida a andar por diante com as tarefas de defesa. Como medida de precaução, o Chefe do Posto manda recolher ao Posto o pessoal em serviço nas fazendas de café, proprietários e empregados. No dia dezanove, utiliza o pessoal regressado da picada para começar a preparar uma pista de emergência para aterragem de aviões.

Ao anoitecer regressam as brigadas de fiscalização que haviam seguido para os lados do Uando, com dois feridos e um morto. Trazem recado dos sublevados que diz: "Esta terra é nossa! Não queremos Chefe do Posto. nem brancos!" No dia seguinte segue nova diligência em busca do Regedor Tolane, em vão. Ninguém dá conta do seu paradeiro. A situação torna-se perigosa. Os amotinados da Serra, do lado do Posto do Bungo, atacam uma carrinha que se deslocava naquela área, em serviço de observação, com oito ocupantes. Resultado: dois feridos, e a viatura crivada de balas.

A situação é tensa, os meios de defesa escassos... O Chefe do Posto manda carta ao Admnistrador do Concelho do Songo a dar parte do acontecido e a pedir, mais uma vez, os reforços que nunca foram enviados, um emissor P-19 e uma avioneta para evacuar os feridos. Pelos elementos capturados, sabe-se que há concentrações para ataque à povoação, à espera do "vento" que há-de vir do Congo ex-Belga para se lançarem ao assalto.


A população passa a concentrar-se toda numa só residência, durante a noite, em estado de alerta. O Chefe do Posto deixa a sua residência e junta-se à população para a luta que se aproxima. São poucas as armas para a defesa: algumas espingardas, de bala, e caçadeiras, umas poucas de pistolas e uma pistola metralhadora. As munições oscilam entre seis e sete mil tiros. A comunicação com o exterior faz-se mal, por se ter avariado o emissor P-19. As pessoas acusam um estado de mal-estar, ressentidas de tantas noites perdidas quase sem repouso.

Numa das constantes rusgas efectuadas nos povos, é capturado o Regedor Tolane que, antes de se entregar, destrói pelo fogo os documentos que tinha em seu poder. Ao interrogatório nada responde. Diz somente que "ele é dono da terra de Mucaba". No dia vinte e quatro de Abril o Chefe do Posto vai a Carmona (Uíge) fazer a sua entrega à Administração daquele Concelho, e de outros sublevados capturados.

Das diligências efectuadas para melhorar o poder de fogo, não consegue senão seis caixas de cem cartuchos para caçadeira. Os dois enviados aos povos que não tinham regressado, aparecem à noite, feridos, um deles em estado grave. Dão a notícia de os terroristas terem matado as crianças mestiças que viviam nos povos. O Chefe do Posto, sem perda de tempo, vai ao povo Lunda e salva uma menina mestiça, de oito anos, que vivia com a mãe naquele povo, perto da povoação comercial.

Em vinte e cinco de Abril fica concluída a pista para aterragem de aviões. A prever a necessidade de utilizar a Capela como reduto de defesa, o pessoal disponível é aplicado na abertura dum fosso em sua volta, como nas fortalezas de outros tempos. Ao entardecer uma coluna mista, composta de militares e civis, proveniente do Engage, chega à povoação, depois de vencer inúmeros obstáculos postos na estrada pelos terroristas.

É portadora de algumas espingardas e munições, ajuda que é recebida com muito agrado. Fica-se a saber por ela que as estradas de ligação com o Posto de Mucaba se encontram todas cortadas. No dia vinte e seis vêem-se sinais luminosos toda a noite. Durante o dia engrossam as concentrações de gente. Agora as patrulhas estão limitadas à povoação, porque a saída para fora é perigosa.

Neste dia a Força Aérea, baseada no Engage, multiplica as suas acções na Serra de Mucaba e nas áreas limítrofes de Damba, 31 de Janeiro e Bungo. Na esperança de serem atendidos por algum dos aviões que sobrevoam a povoação, os defensores de Mucaba, com cal e tiras de pano crú, escrevem no chão a pedir socorro, porque há feridos para evacuar e têm o P-19 avariado. Pela tarde aterra na pista, pela primeira vez, um avião "Dornier", pilotado pelo Tenente-aviador Negrão, que entrega um P-19 e correio, dá notícias. Confirma o facto de as estradas estarem cortadas e as concentrações dos sublevados em volta da povoação.

Em toda a noite ninguém dorme, com a preocupação do ataque que possa ser desencadeado dum momento para outro. Pela manhã apresentam-se três nativos, do povo perto da povoação, serventes dum comerciante, feridos, um deles em estado grave. Dão a notícia de os terroristas terem matado o Soba do povo Lunda, por não querer aderir à rebelião. Notícias captadas do Posto de 31 de Janeiro, dão como certo o ataque ao Posto de Lucunga, e confirmam o desaparecimento do Chefe do Posto, caboverdiano, Manuel Coutinho.

A população exausta, em estado de desespero, decide abandonar a povoação, e começa a atirar para as carrinhas as coisas necessárias à viagem. O chefe do Posto, revestido de paciência, pede-lhes que suspendam o gesto e fala-lhes ao coração: "Sempre que precisastes de mim nunca deixei de estar convosco e de vos ajudar. Houve sempre entre nós um verdadeiro espírito de camaradagem..."

Com este intróito entreolham-se. O Chefe do Posto prossegue: "Na hora presente dá-se precisamente o contrário. Eu é que preciso de vós, do vosso apoio e colaboração, porque sozinho nada poderei fazer aqui senão aguardar que os rebeldes me matem. Eu não abandonarei nem o Posto nem a população que me foram entregues, e o mínimo que me poderá acontecer é ser chacinado como o foi o meu colega do Posto de Lucunga!..."

Os rostos dos comerciantes dão sinal de comoção. O Chefe do Posto continua: "Qualquer saída nesta altura, com as estradas cortadas e inutilizadas, seria um autêntico suicídio!..." Um deles contestou: "Ficar para quê? Para morrermos todos? A nossa resposta é não!" O Chefe do Posto insiste: "Vamos defender-nos dentro da Capela, numa força unida, em verdadeiro espírito de camaradagem, lutarmos até ao fim, em defesa das nossas vidas e desta terra de Mucaba!"

Igreja de Mucaba


Eles hesitam. Por fim decidem ficar. Lançam-se então, todos, na preparação da Capela, a fazer do seu interior uma fortaleza. Carreiam para lá todo o preciso, como alimentos de consumo imediato, pão, conservas, água, vinho, medicamentos, fósforos, velas, colchões, cobertores, e tudo quanto lhes parece indispensável.

Como complemento armam barricadas e andaimes em volta das paredes, e preparam-se para aguentar a borrasca que se aproxima. No dia vinte e oito passam novamente a noite em claro. No arraial terrorista persistem os sinais luminosos, que prenunciam acção iminente. E os reforços, pedidos com insistência, nada de chegarem!...

Vinte e nove de Abril é um dia sem fim para os defensores de Mucaba, enclausurados na Capela da povoação. A excitação começa de manhã, com a movimentação dos sublevados, que avançam em grandes grupos. Acabam-se as dúvidas. O momento do embate aproxima-se. Avistam-se já os primeiros grupos entre cinco e sete quilómetros. O Chefe do Posto, sob pressão, expede uma mensagem ao Governador do Distrito a dizer:

- Tenho honra informar V.Ex.ª durante dia e noite ontem foram avistados sinais terroristas concentrados volta população pelo que população se manteve sempre firme vigilância ponto Qualquer pessoa indígena ou não homem ou mulher sai povoação é logo caçada e espancada ou morta ponto Os trinta defensores povoação estão reunidos edifício Capela não podendo sair qualquer lado virtude todas vias comunicação cortadas ponto Peço licença para lembrar V.Ex.ª que esta população não é digna de ser abandonada à mercê da sorte porquanto ela deu sobejas provas patriotismo e coragem sempre vigilante dia e noite já vai para dois meses ponto Estamos fisicamente baixa forma pouco mais podendo fazer a manter-se esta situação ponto Se reforços muitas vezes pedidos não forem enviados já vírgula amanhã ou depois será tarde ponto. 

Pelas quinze horas aparece um avião no ar, "Dornier" que faz sinais de querer aterrar. As condições atmosféricas são péssimas. Mas o Tenente-aviador Negrão, apesar do perigo, faz-se à pista e pousa sem novidade. A avioneta traz um furriel, com uma pistola metralhadora, e um soldado com uma espingarda. Nada mais!... Pouco depois aparecem mais duas avionetas, que não aterram por causa das más condições do tempo. Estas avionetas transportavam elementos duma secção militar com as respectivas armas e munições... Pouca sorte!...

Cerca das dezassete horas uma avioneta, pilotada pelo engenheiro Pereira Caldas, sobrevoa a povoação e lança garrafa contendo mensagem que diz ter avistado grupos de terroristas armados, cerca de cinco quilómetros a caminho da povoação. Os defensores de Mucaba correm e encerram-se na Capela. Para melhor compreensão do que se passa no exterior, organizam uma patrulha, formada por duas viaturas, levando cada uma oito ocupantes. Numa vai um soldado e na outra um furriel e um soldado.

Sob o comando do furriel Demony Vieira, as viaturas marcham ao encontro do inimigo. Não tarda a dar-se o desastre. A viatura da frente cai numa cilada e sofre um violento ataque, do qual resulta a chacina de cinco ocupantes. A outra escapa por milagre. O condutor revestido de sangue frio, retira de marcha atrás e chega ileso à povoação com os sobreviventes. Agora os campos estão extremados. Nada mais há a fazer senão a defesa das suas vidas. O soldado que havia sido capturado pelos amotinados consegue fugir e apresenta-se na Capela. Entra por uma janela, em escada que lhe é lançada de dentro.

Metidos todos na Capela, estão agora de portas trancadas, posições tomadas e nervos tensos. Pelas dezassete horas e meia os sublevados iniciam o ataque, ao som de cânticos guerreiros e guinchos arrepiantes. Vozes de comando incitam: "Não tenham medo!... As balas dos brancos são como água!... Não matam!..." Trocam-se tiros entre atacantes e defensores. A luta ganha intensidade e entra pela noite adentro. Com o receio de esgotarem as munições os defensores abrandam o ritmo do fogo. De olhar atento, apontam com maior eficácia.

As luzes da rua, acesas, permitem ver os movimentos do inimigo. Na Capela para reduzir a visibilidade, acendem-se apenas duas velas. Os defensores, fora de si dão sinais de ânimos exaltados. No auge do combate há quem reze!... Cada um evoca o Santo da sua devoção!... Pelo emissor P-19 o Chefe do Posto lança para o ar pedidos de socorro: "Não dispomos de recursos para resistir!". Durante muito tempo ninguém dá sinal de entendido. Só a partir das vinte e duas horas chegam algumas respostas: "Aguentem, tenham coragem!..."









A voz da Capela repete os apelos: "As nossas munições estão quase no fim!... Mandem-nos aviões!... Eles são muitos!... Parece nascerem do chão!... As nossas vidas estão em perigo!... Já não aguentamos mais!... Ajudem-nos!..." O ambiente é infernal!... Os aviões roncam no ar mas não conseguem vencer a cortina de nevoeiro. Pela madrugada dá-se uma baixa entre os defensores. Eugénio Veríssimo sucumbe, atingido por carga mortífera. A comoção abate por momentos os ânimos, que depressa se recompõem. O tiroteio prossegue, intenso!... No extremo do desespero, o tempo parece que não anda!...

Para cúmulo, a bateria do P-19, descarregada, não permite a comunicação com o exterior... Só a intervalos regulados dá para emitir mensagens curtas! "Pedimos socorro!... O inimigo está a aproximar-se!... Só lhe falta atingir as portas da Capela!..." Chegam palavras de alento, de todos os lados. Santo António do Zaire anima: " Aguentem até chegar a Força Aérea já em marcha!" Outras vozes acodem com palavras de amizade e de solidariedade. Roncam aviões no ar, que não actuam porque a densidade do nevoeiro não deixa ver nada.

Os defensores estão exaustos. Não comem há muito tempo, não dormem, não têm um momento de pausa!... Pela madrugada põem uma mensagem no ar que julgam ser a última, dirigida a todos quantos os têm acompanhado no transe por que estão passando: "Estamos irremediavelmente perdidos!... Já não temos munições!... O inimigo está próximo das portas da Capela!... Vamos morrer!... Mas combateremos até à última gota de sangue!... Salvem-nos por amor de Deus!..."

De fora não cessam as palavras de estímulo, que nada adiantam. A situação é trágica!... O P-19 entra em descanso para não esgotar a fraca carga da bateria!... A resistência enfraquece!... Não há munições!... O inimigo entusiasma-se com a vitória que tem nas mãos. Destaca elementos que, às corridas, vão buscar bebidas às casas comerciais. Na volta exibem-se com gritarias estrondosas. Agora atacam em força, com armas de bala, canhangulos e até com pedras!...

Os resistentes, pelas seis da manhã, experimentam o P-19. Lançam no ar o derradeiro apelo: "Já não há munições!... Só nos resta combater à baioneta se o inimigo arrombar as portas da Capela!... Morrer ou sobreviver é a sorte que nos espera!..." Tomam entre si uma resolução extrema: para não caírem vivos nas mãos do inimigo, dispõem-se a morrer, sim, mas abatidos pelas armas que reservam para o efeito!...

Pouco depois o avião PV-2, comandado pelo Tenente-Coronel Diogo Neto, Comandante do Grupo Operacional do B.A-9, rompe a cortina de nevoeiro e faz voo rasante em volta da Capela!... Sobre os terroristas lança bombas e metralha, e persegue-os, em fuga, pela estrada além!... Esta acção, providencial, levanta o ânimo dos resistentes!... Os homens de Mucaba estão salvos!... Dos seus corações brotam hinos de alegria!... Nos rostos há sinais de comoção!... E, aliviados e maravilhados, reentram na vida, que já tinham por perdida!...

E para que a Capela não seja bombardeada, na persuasão de que tenha caído em poder dos terroristas, os resistentes destelham um canto da cobertura, e com pano branco, dão sinais de ainda estarem vivos. Por algum tempo conservam-se na Capela, à espera que haja a certeza de não existirem terroristas à espreita. Na rua principal surge a figura do cozinheiro do Posto, Viegas, de braços levantados, em corrida para a Capela. Teve noite tormentosa, com as duas mulheres e filhos, a tremerem de medo.

Entra mais um mestiço, carpinteiro, com menina de três anos ao colo, baleada pelo inimigo, que falece pouco depois. E chegou o momento de saírem!... Os resistentes abrem as portas da Capela!... Comovidos, voltam enfim a pisar terra chã!... Persiste ainda na mente o pesadelo da noite longa!... Sentem ainda no corpo o desgaste da corrosão!...

No seu íntimo conservam o historial de meses consecutivos de sobressaltos, de vigílias, de noites mal dormidas!... A tormenta passou!... Que seja glorificado o Tenente-Coronel Diogo Neto, o salvador, o que se sujeitou a perder a vida para salvar a dos resistentes!... Eles estão salvos, depois duma fogueira de tantas horas, a balancearem entre a vida e a morte!... Agora estão ali, emocionados, a respirar o ar da felicidade!...

Os que tinham ficado de fora, e escaparam, juntam-se a eles. Não aparece o cabo dos cipaios, chacinado, por ter deixado o esconderijo inicial para ficar nas dependências do Posto. Os resistentes correm ao local mas não encontram senão fragmentos: pernas para um lado, braços para outro, corpo espezinhado, cabeça esborrachada!... A marca odiosa do terrorismo....












Pelas treze horas vários aviões sobrevoam a povoação. Algumas avionetas aterram. Desembarcam jornalistas, fotógrafos e visitantes. Querem ver os resistentes. Querem ouvi-los, fotografá-los, abraçá-los... Do Governador-Geral de Angola chega uma mensagem do teor seguinte:

Acabais de praticar um dos mais belos feitos da nossa História ponto Angola inteira recordará os heróis civis e militares de Mucaba e venerará sempre a memória dos que tombaram no campo da honra ponto Viva Portugal ponto.


Governador 


O dia vinte é de encantamento para os resistentes de Mucaba. Atordoados, semi-inconscientes, com o lance dilemático de matar para não morrer, a pesar na mente, passam as primeiras horas fora de si. Deambulam sem itinerário, revêem os lugares por onde andaram, localizam os estragos feitos pelos terroristas, tudo isto sem destino nem objectivo. Parecem uns estranhos em meio estranho!... Pelas dezassete horas chega uma coluna mista de militares e civis, proveniente do Engage, com os socorros!...

Só agora porquê? A coluna teve a sua odisseia!... Os seus componentes devem ser glorificados, como campeões da coragem e da determinação! Os trabalhos por que passaram!... Luta para removerem os obstáculos postos na estrada, luta para se defenderem contra os ataques dos terroristas, luta para trabalharem sem luzes!... Um inferno de dificuldades, de impedimentos, de contrariedades!... Foi precisa muita firmeza e força de vontade para avançarem até ao destino! As baixas sofridas dão uma ideia da violência do fogo: três mortos e dois feridos, evacuados todos de avião para Luanda.

Os reforços militares recebidos aliviam a tensão dos resistentes. As munições de boca despertam o apetite e quebram o jejum que vem do dia anterior. Entretanto chegam mais mensagens, mais visitantes, com palavras de amizade, de admiração, de solidariedade... Os resistentes despertam para a vida, aplaudidos, enaltecidos, acarinhados. Ao entardecer, com a presença do Redactor do Jornal do Congo, Sousa e Costa, levam a enterrar, nas traseiras da Capela, os companheiros de luta: Eugénio da Saudade Veríssimo, António da Costa Fernandes, Luís Ribeiro e Sebastião Malungo, e ainda a menor de três anos.

O mês de Maio prenuncia melhor resposta para os ataques esperados. Os militares presentes, com armas e munições, reforçam o espaço de segurança. Na povoação mantém-se o estado de vigilância e o patrulhamento da área periférica. Descobre-se então uma novidade: a pouca distância da Capela encontram-se recipientes com gasolina e petróleo, que os terroristas destinariam a incendiar a Capela. Estes combustíveis, e mais os que existiam nos armazéns da povoação, são enterrados em valas abertas perto da Capela. Agora é um soldado nativo, recuperado, que chega e dá notícia de os terroristas estarem a preparar um novo ataque, com maiores efectivos. Para os receber condignamente o alferes Sousa e Silva pede da Base o envio duma metralhadora MATSEM e munições. Do exterior continuam a chegar manifestações de simpatia e de apoio. Uma avioneta da Empresa de Cobre de Angola lança em páraquedas, bacalhau, mariscos e bebidas, com uma mensagem a dizer:

Caro Sena dois pontos É o teu patrício Edgar Vahnon que daqui do avião renova os seus votos de muita admiração pela coragem e indómita bravura de que destes mostras. Teu pai - velho Henrique Sena - ficaria bem orgulhoso. Abraço e até breve ponto. 

As iguarias caídas do céu lembram aos resistentes os alimentos que têm na Capela. Como corolário, confeccionam uma refeição de festa. Depois, promovem o enterramento dos inúmeros terroristas mortos na refrega. E a vida retoma o seu curso natural. Seguem-se dias de expectativa, à espera do anunciado ataque. Os resistentes passam o dia na rua. Ao anoitecer recolhem à Capela, onde continuam com o serviço de alerta, agora beneficiado com treze militares armados de pistolas-metralhadoras.

No dia dez de Maio os terroristas desencadeiam o ataque, pelas três e meia da manhã. A neblina que escurece o espaço favorece o seu avanço. Só puderam ser vistos muito próximo da Capela. O fogo nutrido com que são recebidos surpreende-os. Põe-nos em fuga desordenada, sem tempo para levarem os dez mortos que deixam no chão. Na debandada, vingam-se, raivosos, derrubando a antena do emissor P-19, arrombando residências e estabelecimentos comerciais. Se o plano era o de lançar fogo à população, ficou gorado. Não encontraram o combustível com que contavam. A este revés inesperado junta-se outro, o da Força Aérea que intervém, vigorosamente e desenvolve grande actividade em volta da povoação.

No dia treze de Maio, a pedido da população, cansada de tanto sofrimento, o Chefe do Posto expede uma mensagem ao Governador do Distrito, a agradecer todas as providências tomadas para a defesa de Mucaba, e a pedir que lhes sejam facultados meios para defenderem os seus haveres, pedindo também o regresso às suas casas dos habitantes de Mucaba ausentes em Luanda.

Nos rostos dos resistentes há sinais de debilidade. As apreensões sem conta, as pressões da luta, as noites de vigília, a insuficiência alimentar, tudo isto corroe as energias e seca as fontes da vitalidade. Os sublevados, por seu lado, não desistem. Mantêm o cerco à povoação e a ameaça de invasão. A situação de perigo leva o Chefe do Posto a enviar ao Governador do Distrito a mensagem seguinte:

Informo V.Ex.ª população civil exausta precisa repouso pelo que necessário se torna envio urgente mais tropa virtude a existente ser insuficiente defesa povoação ponto Situação agrava-se momento a momento pois terroristas concentrados já muito próximo ponto. 






Apesar dos desaires sofridos o inimigo persiste na sua luta. Não se vislumbra trégua próxima. Pelo contrário, reagrupa-se e prepara novas investidas. Para os resistentes é o estado de tensão que se prolonga. No dia dezasseis enviam nova mensagem ao Governador do Distrito a dizer:

Informa-se ter sido proveitosa a acção aérea aqui desenvolvida ontem pelos bombeiros e avião Aéro-Clube de Carmona ponto Agradecemos providenciar remessa urgente gasóleo pois existência só para seis dias ponto. 

No dia seguinte os resistentes manifestam a sua preocupação pelo estado de depauperamento em que se encontram. O Chefe do Posto em nome deles envia ao Governador do Distrito a mensagem do seguinte teor:

Vencida já mais uma fase difícil da nossa vida na defesa deste rincão bem português e melhorada em parte nossa situação com a presença de militares ouso fazer a Sexa Governador Geral por intermédio Vossa Excelência o pedido seguinte dois pontos De entre os valorosos e destemidos portugueses que me acompanharam corajosa e incansavelmente na defesa de Mucaba contam-se onze casais cujas esposas tal como acontece com a do signatário se encontram ausentes em Luanda desde dezassete de Maio último aflitos com corações amargurados devido não só acontecimentos desenrolados como também e principalmente pelos boatos que circulam Luanda ponto Não deixaria de ser justa recompensa proporcionar a esses heróis que me ajudaram a oportunidade de abraçar as esposas e os filhos para o que o Governo lhes facilitaria uma ida a Luanda por quatro ou cinco dias incluindo um dia para ido outro para regresso garantindo-lhes a viagem também por via aérea ponto No caso de ser possível satisfação pedido poderiam seguir em grupo de três ou quatro de cada vez não sendo de permitir que grupo seguinte saísse sem primeiro regressar o anterior ponto. 

A satisfação dada ao pedido permite a saída dos primeiros resistentes em menos duma semana. Gratos por se sentirem acarinhados pelas Autoridades Superiores, transmitem para Luanda, com pedido para ser radiodifundido pelas emissoras da Província, a mensagem seguinte:

População Mucaba representada pelo Chefe do Posto Hermínio Carvalho de Sena expressa através da rádio o seu eterno e muito sincero reconhecimento a todos os que acompanharam e com ela sofreram e se lhes dirigiram em cartas telegramas e até ofertas nas horas amargas difíceis e inesquecíveis na sua epopeia ponto. 

O dia dezoito é assinalado com uma surpresa agradável para o Chefe do Posto. O avião do Aéro-Clube de Carmona (Uíge) aterra na pista e trás a bordo o Chefe do Posto Menezes para substituição. A sua chamada a Luanda tem por fim a condecoração com a medalha de ouro de Serviços Distintos e Relevantes no Ultramar, e a promoção por distinção à categoria de Administrador de Circunscrição de terceira classe.

A justiça mais que merecida, sensibiliza o Chefe do Posto Sena, que não consegue dominar a comoção que o invade. Ele esperaria, no seu íntimo, alguma coisa no género, em reconhecimento ao esforço dispendido, superior à capacidade humana de resistência, mas sem tempo definido. Chega, afinal no momento exacto em que já sente, também ele, o desgaste inelutável da erosão. Bem-haja a providência oportuna, que proporciona o prémio certo no tempo certo!...

Pela tarde, ele abraça os companheiros da desdita, um a um, e segue a cumprir o seu destino. Em Luanda, em meio de festas, de aplausos, de louvores, de honrarias, não se esquece dos seus companheiros de luta. Conserva-os bem na memória e envia-lhes a mensagem seguinte:

Gloriosa população Mucaba cuidado Chefe do Posto - Nesta hora inesquecível em que sou alvo vibrantes manifestações simpatia ponho em vós o meu pensamento endossando integralmente todas homenagens que são mais vossas que minhas pois sem vós a epopeia de Mucaba não seria um facto ponto Afectuosos abraços ponto. 

Seguido o relatório fielmente, nos passos afectos ao caso de Mucaba, seria um acto de mau gosto acrescentar seja o que for ao texto original. Por fim resta saudar o Homem determinado que fez das fraquezas forças, e puxou dos resistentes até ao ganho da batalha. O Chefe do Posto, medalha de ouro, promovido a Administrador de Circunscrição, Hermínio Carvalho de Sena.






RELAÇÃO DOS DEFENSORES DE MUCABA 


1 - Abel Arlindo Vicente

2 - Abílio Dias

3 - Adelino Afonso

4 - Alexandre Luiz

5 - António Nunes Jerónimo

6 - António Nunes Medeiros

7 - António dos Santos

8 - António Serafim Bráz

9 - Artur Moutinho Sequeira - Ferido no 1º encontro na estrada. 

10 - Cláudio de Almeida - Morto no 1º encontro na estrada. 

11 - Domingos José Bráz

12 - Eduardo Teixeira

13 - Eugénio da Saudade Veríssimo - Morto durante o ataque na Capela. 

14 - Fernando Ribeiro Dias

15 - Francisco Alves de Pinho

16 - Hermínio Carvalho de Sena

17 - João Carvalho

18 - João Medeiros Jerónimo

19 - Joaquim Silvestre

20 - Joaquim Dias

21 - Joaquim da Silva Ramos - Morto no 1º encontro na estrada. 

22 - Jorge de Oliveira

23 - Jorge de Melo Pereira

24 - José Alves Moreira - Morto no 1º encontro na estrada. 

25 - José Dias Duque

26 - José Dias Fernandes

27 - José Baptista - Morto no 1º encontro na estrada. 

28 - José Martins Aguiar

29 - José Nunes Jerónimo

30 - José Melo Morais

31 - Laurindo Teixeira Cunha

32 - Manuel António Farinha

33 - Manuel de Oliveira

34 - Mário Jerónimo

35 - Mário de Oliveira

36 - Mário Teixeira

37 - Ramiro Augusto Moreno

38 - Raúl Dias

39 - Silvino Alves

40 - Sargento Demony Vieira - Ferido no 1º encontro na estrada.

41 - Teófilo de Almeida

42 - Cabo de Cipaios - Morto nas instalações do Posto durante o ataque.

43 - 1º Cabo Africano - Dado como desaparecido no lº encontro na estrada, apresentou-se mais tarde. 

44 - Viegas - Cozinheiro do Posto. 



Do Relatório do Chefe do Posto Sena



Ver aqui e aqui















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