terça-feira, 3 de janeiro de 2017

D. HENRIQUE, o Navegador (i)

Escrito por Elaine Sanceau











«Entre a morte de D. Fernando e a ascensão de D. João I ao trono, esteve em perigo a independência de Portugal, mas o génio militar de Nun'Álvares colmatou facilmente essa brecha na Batalha de Aljubarrota (14 de Agosto de 1385). Um historiador de génio, Fernão Lopes, contará a história deste momento crítico. Desde então Portugal reconquistou a segurança interna, e tornou-se senhor absoluto do seu destino.

Começa agora a preparar-se a Nação para grandiosos empreendimentos fora do território nacional. Não tardará a surgir o "Século dos Descobrimentos". D. João I assume o comando de uma esquadra de duzentos navios, e com ela parte para a conquista de Ceuta, que fica em poder dos Portugueses em 21 de Agosto de 1415: assim se iniciou a expansão ultramarina, cuja repercussão sobre a arte literária começará neste século e se tornará efectiva e preponderante na centúria seguinte.

O século XV, efectivamente, vai tornar-se um dos mais operantes e dinâmicos da história de Portugal. Expulsos os Mouros, já no reinado de D. Afonso III, fixadas definitivamente as fronteiras do País e regularizada a administração interna, os Portugueses não se refugiaram no ócio e na imobilidade, mas trataram de progredir e buscar a sua valorização para além do espaço peninsular em que vivem. O Oceano Atlântico e as extensões terrestres que o marginavam constituíam o grande mistério da época. A Nação, em consequência da sua situação geográfica, estava precisamente debruçada sobre esse Oceano, e irá concentrar-se à volta do enigma atlântico para o decifrar. E desta atitude, não só nacional, mas humana e universal, nasceram então os Descobrimentos e a colaboração de Portugal na história da revelação do mundo ao homem.

O descobrimento de novos mundos permite aos portugueses o prosseguimento da cruzada cristã da Reconquista. O destino impele então a Nação Portuguesa para uma missão cristã, científica e civilizadora, que é das mais belas e gloriosas da história. Na exploração oceânica e terrestre, os portugueses são impelidos pela natural curiosidade de desvendar o desconhecido, o que é um intuito científico; são também impulsionados por interesses materiais, aspirações de riqueza e de valorização económica. Mais ainda: incita-os nobremente o espírito de cruzada e um forte intento ideológico e colonizador, a que se junta o gosto da aventura e a febre dos negócios.

[...] O génio português ascende então a grande altura. Homens de acção, peritos na ciência náutica, afirmam-se marinheiros de génio. E então nasce uma legião de grandes navegadores, onde culminam as figuras de Vasco da Gama, Bartolomeu Dias, Pero de Alenquer, Fernão de Magalhães e Pedro Álvares Cabral, que desvendam segredos marítimos, vencem a resistência dos elementos e revelam mundos e povos ignorados. Uma literatura especial não tardará a fixar o perfil destes varões insignes, que os contemporâneos admiram. Um amigo pessoal de D. João II, o escritor Garcia de Resende, foi um dos primeiros que na época sentiu e mediu a grandeza dessa epopeia marítima.

Espíritos que excedem a craveira humana vulgar aparecem ainda nos domínios da Arte. Os iluminados arquitectos do Mosteiro da Batalha, peregrina catedral de arte gótica, exprimem ali a sublimidade do seu génio artístico. A finura e a elegância do gótico fascinam os construtores de vários templos do País.



Mosteiro da Batalha



A mesma altitude alcança a pintura, como bem o comprovam os famosos Trípticos atribuídos a Nuno Gonçalves, pintor insigne, que nos seus painéis retratou personagens contemporâneos e pertencentes a várias categorias sociais.

Ao mesmo nível espiritual se eleva Fernão Lopes, que é, na ordem cronológica, o primeiro escritor português de génio. Pode comparar-se a Ayala e a Froissart, cronistas medievais de grande renome».

Feliciano Ramos («História da Literatura Portuguesa»).


«Foi por iniciativa dos Infantes D. Henrique e D. Fernando, seus irmãos, tão insistente a deste último que chegou a ameaçar retirar-se para Inglaterra, caso se não realizasse, que o Rei D. Duarte se decidiu a organizar uma expedição para a conquista de Tânger.

Firmado o senhorio de Ceuta, esta praça não podia ficar contudo isolada em território inimigo. Para consolidar o domínio português em Marrocos, plataforma para a expansão, tornava-se urgente alargá-la, pela introdução de uma nova cunha. A campanha foi aprovada pelas Cortes de Évora, de 1435.

Aqueles dois Infantes, respectivamente Mestres das Ordens de Cristo e de Avis, não faziam mais do que cumprir o seu dever enquanto tais: avançar com a estratégia da cruzada, ferir o adversário da fé cristã no seu próprio terreno, dar mais um passo para a dilatação do Império do Espírito Santo e para o cumprimento da Sétima Idade do Mundo, cujo advento Fernão Lopes atribuíra [...] a D. João I e à sua geração e descendência.

Ao construir o seu Paço de Sintra, D. João I, que fora educado por D. Nuno Freire de Andrade, Grão-Mestre da Ordem de Cristo, dedicou [...] a respectiva capela, onde a família real fazia diariamente as suas devoções, à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, ao Divino Paráclito, ao Espírito Santo, representado nas suas paredes por cerca de um milhar de pombas, simbolizando a expansão do seu Império pelas sete partes do mundo. O Culto do Espírito Santo, dominante [...] em Portugal desde Dinis e Isabel, foi característico da espiritualidade e da empresa cavaleiresca de Avis, em conjugação estreita com a Ordem de Cristo, sem prejuízo quanto a nós do Culto central de Jesus Cristo e também de Maria. A Terceira Idade despontava na Segunda, antes a cumprindo do que a ultrapassando, como queriam os discípulos radicais do Abade de Flora.

É característico o testamento do Infante D. Henrique, que ao doar a ermida de Santa Maria de Belém (antecessora dos Jerónimos) à Ordem de Cristo, indicou que ela deveria agasalhar os caminhantes e mareantes que a procurassem, apenas se lhes pedindo que, em reconhecimento, lhes apraza, por minha contemplação, dizer uma vez um Pater Noster e Ave Maria cada um por salvação da minha alma.

Nesta igreja, o capelão deveria também dizer em cada sábado uma missa de Sta. Maria, por sua alma, e a comemoração seja do Espírito Santo com seu responso e a oração "Fidelium Deus".

O Infante D. Fernando feito prisioneiro e arrastado pelo souk de Tânger e humilhado pela população nativa (pintura de Eugène Delacroix, designada os "Fanáticos de Tânger".


Como se sabe, a expedição a Tânger foi um desastre. Realizada a 20 de Setembro de 1437, terminou infaustamente com a captura de muitos portugueses, oferecendo-se o Infante D. Fernando como refém em penhor da entrega de Ceuta. Contudo, as Cortes de Torres Novas, de 1438, recusaram a entrega da praça. É que entregá-la equivaleria a deitar por terra, de uma só vez, o plano da expansão portuguesa, isto é, toda uma política teleológica de criação civilizacional. Assim se pensava ao tempo: o serviço de Deus tinha de passar à frente do serviço do homem, enquanto homem carnal e mundanal. Era o espírito da Cavalaria, o juramento dos freires-iniciados do Templo de Cristo e de Avis. Porque a vida é uma breve passagem, a vocação do homem, cuja materialidade se ordena à espiritualidade de que é portador e garante, é a do eterno, a que vale a pena sacrificar os bens terrenos e a própria existência.

Desta convicção derivou, para os contemporâneos, a santidade do Infante D. Fernando. O seu martírio e a sua morte tiveram um sentido divino, porque Portugal era a pátria eleita, comissionada para realizar o Império de Deus sobre a terra. Há aqui os ingredientes de uma religião que, sendo universal, tem contudo uma face nacional, exprimindo-se entre outras formas pelo culto do Infante Santo, que se terá realizado pelo menos em Lisboa, na Batalha, em Sintra e em Guimarães, pontos culminantes da geografia sagrada lusíada.

Agostinho da Silva, que reflectiu como ninguém acerca de tal comissão do alto, sempre por ele relacionada com a escatologia do Espírito Santo, teve palavras duras, impressionantes e impossíveis de esquecer, acerca do abandono do Infante, que, transferido primeiro para Arzila e depois para Fez, acabou por sucumbir nesta última cidade à doença e aos maus tratos, a 5 de Julho de 1443.

A verdadeira grandeza do Infante D. Henrique, escreveu efectivamente, está no que tem de português, na sua concepção religiosa da vida, na sua paciente persistência, nas suas visões ou sonhos do Espírito Santo. Mas também nele existe o que diminui a expansão portuguesa: a dureza de sacrificar irmãos e três provavelmente, um D. Fernando, um D. Duarte, um D. Pedro também; o gosto do isolamento, separando-se de um povo cujos reis com ele dançavam noites inteiras à luz dos archotes ou com ele discutiam, numa verdadeira democracia, os negócios do Reino; e a terrível tentação de fazer que importe nas empresas o lucro material.

E ainda: Pelo Infante se fez história; mas se diminuiu o Espírito. Mais adiante esta inscrição de fogo, indelevelmente gravada no espírito dos seus leitores, a de que o lado inglês do Infante, para manter o homem, matou o deus. Para Agostinho, franciscano de coração, aqui temos de ver a linha de quebra, o pequeno passo errado que, porque estamos num universo que também é de física, vai em grande parte determinar todo o futuro. Portugal, que principiara a sua vida como missionário da nova fraternidade do mundo, quebrara essa fraternidade e num ponto em que ela mais facilmente poderia ter sido apercebida, na fraternidade simples de irmão para seu irmão.

Em suma, com o sacrifício de D. Fernando, o que se atingia era a própria e mais delicada raiz de Portugal, império fraterno, império humano, império católico: Quinto Império. Matando-o.



O Infante Santo (Padrão dos Descobrimentos).





Brasão do Infante D. Fernando





Com toda a admiração e amizade que temos pelo grande pensador, só em parte lhe podemos dar razão. Julgamos antes de mais que lança excessivas culpas sobre as costas do Infante de Sagres: pertencer-lhe-ão acaso as responsabilidades pelo humor merencórico e hamletiano do seu irmão D. Duarte? pela infidelidade do Infante D. Pedro ao seu sobrinho e soberano, D. Afonso V? pela expedição a Tânger, de que D. Fernando foi o primeiro entusiasta, porventura pela derrota dos portugueses às portas da cidade marroquina, ou talvez pelo gesto do seu irmão ao oferecer-se como refém, ou ainda pelo não pagamento do que cumpriria para a sua libertação, a entrega de Ceuta, negada pelas Cortes, pela estratégia da expansão e pela razão de Estado?

E acaso não sobrecarregará excessivamente o lado inglês do Infante D. Henrique, acusado de apoiar uma razão de Estado, uma razão de Pátria ou uma razão de Ordem (da Ordem de Cristo) contra a fraternidade simples de irmão para irmão?

É que, na economia do mundo, alhures ou aqui, não é verdadeiramente um lado inglês de qualquer príncipe ou povo o autêntico responsável pela prevalência de semelhantes razões, pois tal é a própria condição do acto político, em que o colectivo tem necessariamente de sobrepor-se ao individual. Franciscano e platonizante, Agostinho da Silva visionaria o Império do Espírito Santo como uma utopia ou uma ucronia, nascido à margem das determinações da natureza humana ou mesmo do ser tal qual é e se exprime neste mundo sublunar. Infelizmente, porém, nenhum colectivo se construiu até hoje, cujo idealismo não se tivesse firmado sobre o sacrifício e o sangue de alguns. A nós, mais aristotélicos do que platónicos, parece-nos que temos de atender sobretudo ao grau de anti-humanidade ou anti-fraternidade da razão de Estado, não tendo nós, humanos, capacidade para medir e julgar, porque só no fim dos tempos Deus acertará as contas acerca dos nossos pecados, crimes ou heresias. Nada decorre aqui, entre a falta total e a pureza absoluta, mas entre um mínimo e um máximo, em tensão permanente do espírito. O abandono do desgraçado Infante Santo terá sido pois um mínimo, angustiadamente pesado face ao mal maior do recuo da expansão.

Decerto há uma fenda, na história espiritual portuguesa, através da qual assoma e se alarga a infidelidade que acabará por levar-nos à beira de uma destruição de que Alcácer Quibir é o símbolo mais visível. Mas, se a morte do Infante D. Fernando é um outro símbolo, tais símbolos de negatividade abundam, desde os primeiros tempos da monarquia lusitana, precisamente porque ela foi construída a partir de uma paixão que, sem a força da razão de Estado a apoiá-la, logo pulveriza a mesma ideia de uma pátria portuguesa nesta finisterra ibérica. Mais: de uma pátria portuguesa ecuménica e criadora de nações e de valores. Inspira-nos neste ponto o provérbio português de que "Deus escreve direito por linhas tortas". O que importará é tudo fazer na subordinação possível do egoísta e do material ao axiológico, isto é, aos valores do Espírito - e sob este aspecto seria possível a expansão sem o lucro material das empresas marítimas, usado afinal para aparelhar novas expedições, assegurando a descoberta e a presença portuguesa em novos territórios, e não para enriquecer o Infante e a Ordem de Cristo?

Pensando a fundo o problema, o profetismo platonizante que Agostinho da Silva representa é de certo viável no contexto de uma Ordem mendicante, como é ou foi, admirável, a dos Franciscanos, mas já parece impossível a outros níveis, pois conduziria, no caso a um passivismo nacional, sem determinação, sem estratégia, sem continuidade, destinado a uma dissolução nirvânica, como parece estar hoje a suceder ao nosso país em vertiginosa perda de teleologia própria.



Infante D. Henrique (quadro de Malhoa).




Ponhamos as alternativas. O Infante D. Fernando tinha sido resgatado e Ceuta tinha-se perdido. O Infante D. Henrique, em vez de se isolar em Sagres, tinha preferido os banhos de multidão de el-rei D. Pedro I. As viagens das caravelas tinham sido feitas sem atenção às necessidades de financiamento. Então, não só Portugal, o mundo teria sido outro. E faltando-nos o gesto ousado, perigoso, aventuroso, porventura nalguns pontos duro ou agressivo de presença, não só logo teríamos caído no anonimato histórico, como nunca teríamos colaborado criativamente na gesta do movimento humano, na evolução da humanidade, no misterioso discurso de uma Providência inspirando os homens e impulsionando-os para o eschaton prometido.

É precisamente o sentido dos poemas que, na Mensagem, Fernando Pessoa dedicou à simbólica das quinas de Portugal. As cinco quinas do escudo português representam segundo a tradição as cinco chagas de Cristo. E assim como a missão divina de Jesus para além da sua morte ou abandono corporal se fundou sobre o sangue derramado do Cordeiro, expresso nas cinco chagas, Sangue dado a beber ad aeternum na Eucaristia, também a missão providencial portuguesa se ergueu sobre o sacrifício de alguns dos seus filhos votados ao mesmo destino do Cordeiro.

Os Deuses vendem quando dão. / Compra-se com a desgraça. Assim principia efectivamente o segundo poema de Mensagem, sobre o campo das Quinas. E ainda, na segunda quadra: A vida é breve, a alma é vasta: / Ter é tardar. Pense o leitor no destino do Infante Santo, uma das quinas-chagas sobre cujo sangue se levantou a epopeia, no paradigma de Cristo, pois assim termina o poema, de forma aliás sibilina: Foi com desgraça e com vileza / Que Deus ao Christo definiu: / Assim o oppoz à Natureza / E Filho o ungiu.

No contexto da obra, as cinco quinas-chagas são representadas pelo rei D. Duarte, pelos Infantes D. Fernando, D. Pedro e D. João, e pelo rei D. Sebastião. A nosso ver a atribuição de um tal papel providencial a D. Duarte, D. Pedro e D. João, é um dos poucos aspectos frágeis do livro (sob o ponto de vista em que o próprio poeta se coloca). Se queria simbolizar o sacrifício de toda a geração ínclita, faltam então D. Henrique e D. Isabel, estando D. Sebastião a mais. Se queria simbolizar cinco príncipes de Avis-mártires da Pátria, ainda poderíamos admitir a inclusão do angustiado autor do Leal Conselheiro, mas os Infantes D. Pedro e D. João não cumprem a nosso ver os requisitos, só verdadeiramente preenchidos pelo Infante Santo e pelo Desejado. Era preciso no entanto situar a dinastia de Avis no centro irradiante em volta da qual gira toda a Mensagem, em presença saudosa ou em ausência sebástica...

Quanto ao Infante D. Henrique, ele não é para Pessoa o que se divide entre um lado português e um lado inglês, é essencialmente o ungido do alto, o instrumento da Providência, o realizador da obra querida por Deus através do sonho feito acção. Ou, em palavras suas, lapidares: Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. / Deus quiz que a terra fosse toda uma. / Que o mar unisse, já não separasse. / Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.

É nossa convicção não ter sido Avis que sacrificou D. Fernando, mas Avis que, na pessoa de D. Fernando se sacrificou por uma ideia grandiosa - imparável naquele exacto momento genesíaco. A dor de D. Fernando não foi talvez maior, noutro plano, do que a de D. Duarte ou de D. Henrique. A trinta anos de distância, ainda a mágoa por este sacrifício se reflecte nos Painéis, que a esse nível são verdadeiramente os Painéis da Saudade, na expressão apropriada de Afonso Botelho».

António Quadros («Portugal, Razão e Mistério. O Projecto Áureo ou o Império do Espírito Santo», II).









«Se considerarmos os Painéis como uma obra de inspiração filosófica, na qual, portanto, se encontram expressos certos princípios que os pensadores, como D. Duarte, haviam descoberto, os poetas, como D. Dinis, haviam cantado, e os profetas, como o Infante D. Henrique, haviam sonhado, deveremos reconhecer que temos guardado um extraordinário documento da Saudade dos Portugueses.

[...] O movimento que se exprime visivelmente nos Painéis consolidou-se, como qualidade, na maneira de pensar, ser e existir dos Portugueses, dando às nossas manifestações artísticas um ritmo que é, simultaneamente, antecipação e demora, visão profética ou aperfeiçoamento espiritual. Mas parece-me inegável que tal qualidade, geralmente compreendida como defeito, nasceu de um movimento a que não pode estar alheia uma especial protecção do Espírito Santo e uma decisão superior da geração dos infantes e príncipes que delinearam e começaram as grandes viagens.

Uma outra indicação caracteriza esta demora ou antecipação dos estilos e culturas. O momento criador, tanto na arte como no pensamento, aparece nas nossas obras, para além do acontecido e realizado, liberto das amarras históricas ou dos limites circunstanciais. O nosso drama começa onde o de outros povos acaba. O acontecimento está para trás do princípio de acção, perde-se no passado e não nos atormenta angustiosamente o futuro. Por isso não agimos por casualidade, como alguns povos da Europa, donde, porém, supomos que vem a liberdade.

É certo que de há muito já a cultura portuguesa usa categorias estranhas ao nosso pensar e sentir, que colocam o acontecimento na equivalência das finalidades de educação e da acção. Mas, nas manifestações autênticas de vida e pensamento, como nos livros dos escritores originais, nas obras artísticas que "ouvem" a tradição e na arte do povo que a fala, o acontecimento não passa a símbolo nem a imagem primitiva. Até a tão discutida "canção nacional", que comunica a triste desocupação dos Portugueses, só é autêntica se vem do fado, se começa depois do facto ou do acontecido, assim liberta dele e saudosamente ligada à origem da alegria e da tristeza.

Por estas indicações somos levados a crer que, de entre os infantes e príncipes da Ínclita Geração, o infante D. Fernando se sacrificou ao facto, ao acontecimento, dando a vida pelas prometidas e sonhadas descobertas que o seu povo haveria de realizar.

A pungente saudade vibrou na terra estranha antes de ter começado a sua demanda e deu, necessariamente, às viagens uma secreta intenção que as especifica e caracteriza.

Viajar pelo desconhecido para o tornar conhecido é um verbo que esconde um prévio conhecimento, pela saudade ou pela permanência do ser que amou.

São, portanto, o infante D. Fernando, a sua volta pela Saudade e a sua nova partida para o Reino do Espírito Santo, que estão indicados nos painéis de Nuno Gonçalves.

Painéis de Nuno Gonçalves






Para os positivistas da nossa cultura, que querem vencer argumentos com factos, esta afirmação carece de documentos. Porém, a documentar a saudade que provocou o exílio, paixão e morte do Infante, há factos bastantes, que os especialistas podem colher e interpretar. E a defender o sentido específico das Descobertas estará pelo menos, a incessante ruína das "teses" materialistas, tanto como da falsa apologética "espiritualista".

No entanto, a minha afirmação é dubitativa. Ao contrário do que se tornou comum na ciência universitária, enquanto afirmo argumentos, acredito na existência de realidades ou irrealidades que defendem, mas quando procuro o acordo com os factos, já duvido e confesso dubitativa a opinião que proponho.

Se o último documento aparecido vier esclarecer que o Santo não é o infante D. Fernando, mas S. Vicente ou o cardeal D. Jaime, não me retrato nem me oponho à nova corrente. Reafirmarei, contudo, os argumentos de ordem estética, pois continuarão válidos, mesmo sem existência documental do Infante nos painéis de Nuno Gonçalves...».

Afonso Botelho («Ensaios de Estética Portuguesa. Ecce Homo / Painéis / Tomar»).





D. HENRIQUE, o Navegador

Sagres


D. Henrique passava cada vez mais tempo no seu rochedo. Ali tinha todos os seus interesses. A tragédia de Alfarrobeira quebrara o último elo que o podia prender de novo ao mundo da política. Nunca entrara nele por interesse próprio. Agora que todos os seus irmãos estavam mortos, mantinha-se de lado e observava com perfeita indiferença a subida dos Braganças. Estes não se intrometeram com ele, nem com eles, e o jovem rei em breve recuperara a estima e o afecto doutrora por seu tio. D. Afonso nunca espontaneamente pensara mal de ninguém, e uma vez que D. Pedro estava morto, já a ninguém interessava difamar D. Henrique ao rei. Porque D. Henrique não se atravessava no caminho de outrem; seguia o seu sozinho, por novas rotas, onde só espíritos ousados o acompanhavam.

Aparecia de quando em quando na corte, como lhe pediam os seus deveres para com a família. E sabemos assim que, em 1450, recebeu os embaixadores do imperador Frederico III que vieram pedir a mão de D. Leonor, jovem irmã de D. Afonso. D. Henrique figurou no casamento da sobrinha, efectuado por procuração no ano seguinte, e não há dúvida de que teve o cuidado de ver que a armada que conduziu a noiva para a Itália fosse comandada pelos capitães mais hábeis e acompanhada por "mestres astrólogos bem conhecedores das derrotas pelas estrelas e o pólo" (1).

Realizaram-se os festejos e justas habituais a celebrar o grande acontecimento, e o prémio do torneio foi concedido ao irmão mais novo do rei, afilhado e herdeiro adoptivo de D. Henrique, a quem ele se refere sempre por "meu filho D. Fernando".

Este homem sem descendência parece ter profundo afecto ao rapaz, embora nunca tentasse desempenhar o papel de pai austero. Talvez fosse melhor que o fizesse, porque D. Fernando, aos dezoito anos, segundo consta, era jovem volúvel e estragado. Ele e o irmão D. Afonso eram bons amigos, afinal, mas este facto não impedia cenas de altercações e disputas.

E assim, D. Fernando mostrou-se amuado porque D. Afonso lhe não permitiu acompanhar a irmã à Itália e deram-se rixas porque o mancebo queria coisas que o rei lhe recusava. D. Fernando convenceu-se de que não era devidamente estimado pelos seus. Fugiria - e isso dar-lhes-ia uma lição! Poderia atravessar para Ceuta e fazer qualquer coisa de espavento ou então visitar o rei de Nápoles, seu tio materno, que não deixaria de ficar encantado com um sobrinho tão prometedor. Sem dizer palavra a ninguém da família, D. Fernando desapareceu. Escapuliu-se de Évora e embarcou secretamente numa caravela.

Ponte romana de Tavira








Localização de Tavira



A sensação que esperava causar foi plenamente alcançada. No dia seguinte a corte inteira corria em todos os sentidos, em busca do infante desaparecido. Grupos de exploradores bateram o país em todas as direcções e enviaram-se mensagens para as cidades da fronteira. Quando se descobriu que embarcara, mandaram-se navios atrás dele e enviaram-se ordens ao capitão de Ceuta que detivesse D. Fernando ao passar o estreito. O rei foi ter com D. Henrique ao Algarve e juntos seguiram para Tavira para estarem perto.

Enquanto o irmão e o tio aguardavam ansiosamente notícias, o tunante seguia o seu caminho satisfeito. Entrou triunfalmente no porto de Ceuta, onde o velho conde D. Sancho de Noronha estava prevenido para o receber.

D. Sancho abordou a situação com muito tacto. Deu as boas-vindas ao jovem príncipe com grande cerimonial, oferecendo-lhe solenemente as chaves da cidade. D. Fernando, muito afável, afastou-as com um gesto, e ele e o velho conversaram, como dois homens. O conde, que estava de luto, deixara crescer a barba - D. Fernando lembrou-lhe que a cortasse. D. Sancho prometeu que o faria, se D. Fernando fizesse o mesmo! Muito lisonjeado, como é de supor, que a sua barba incipiente provocasse já comentários. D. Fernando pela primeira vez barbeou a face penugenta. O bom entendimento tornou-se tão completo, que D. Sancho se aproveitou dele para aconselhar o fugitivo a voltar para os seus. Quando lhe pareceu que o seu conselho estava a produzir efeito, o velho uma noite deu uma saltada a Tavira e disse ao rei que apanhara o irmão.

O prófugo nesta altura estava já disposto a perdoar à ingrata família, tanto mais que uma delegação das pessoas mais gradas do reino fez a travessia a solicitar-lhe que voltasse. O rei e todos os cortesãos escreveram-lhe implorando-lhe que reconsiderasse a sua precipitada decisão. D. Fernando, perfeitamente encantado com este rebuliço, cedeu graciosamente. Trouxeram-no por Cádis, onde as autoridades castelhanas o receberam festivamente, e D. Fernando passou alguns dias muito felizes, comprando toda a variedade de coisas e dando e recebendo presentes.

Daí atravessou a fronteira para Castro Marim, onde seu tio D. Henrique aguardava o pródigo para o saudar. A lenda moderna que faz do Infante homem severo e duro não encontra provas contemporâneas que a justifiquem. Zurara queixou-se da sua brandura para com os culpados, e a recepção que fez a esse estouvado sobrinho parece dar-lhe razão. Em vez de ralhar ao brejeiro, que pusera toda a família em alvoroço, D. Henrique pôs-se a festejá-lo.

D. Fernando passou uma semana com este tio indulgente, mandando fazer roupas novas, para si e todos os senhores que o acompanhavam, dos finos panos de seda e lã que comprara em Cádis. Com o guarda-roupa assim abastecido, o jovem peralvilho dirigiu-se para o norte a ter com o rei, que saiu ao seu encontro com "festas e prazeres". Os irmãos ficaram completamente reconciliados, e em sinal do facto o rei prodigalizou três cidades ao depravado mancebo.








Localização de Lagos



Réplica da Caravela Boa Esperança




Monumento a Gil Eanes, por Canto da Maia (1948).








Monumento ao Infante D. Henrique, por Leopoldo de Almeida.




Baía de Lagos


O Promontorium Sacrum da Ponta de Sagres



Fortaleza de Sagres


Se exceptuarmos este afilhado e herdeiro estouvado, D. Henrique pouco se incomodava com as bobices da geração nova. Deixava que a corte seguisse o seu giro habitual - Lisboa, Évora, Sintra, Santarém, com excursões ocasionais ao norte ou mais para o sul. Raras vezes seguia até ao Algarve, onde D. Henrique tinha o seu reino, entre o ventoso cabo de S. Vicente e a encantadora baía de Lagos, no qual aparelhava as suas caravelas. Este reino, com o seu empreendimento, legá-lo-ia um dia ao afilhado. D. Fernando mostrava-se regularmente interessado.

Em Lagos viviam os pilotos de D. Henrique e os seus técnicos; aí tinha os armazéns e os estaleiros; nas águas azuis da baía ancoravam navios de todos os tipos que cruzavam os mares. Aí galés do Levante mergulhavam os remos junto das carracas mais pesadas destinadas aos portos setentrionais da Europa, e aí, como aves marinhas pousadas, flutuavam as aladas caravelas oceânicas. Junto aos cais movimentados podia observar-se constantemente a descarga de carregamentos vindos de regiões que ficavam algures para lá do horizonte azul: açúcar e madeira, e tintas, âmbar e goma, marfim e ouro em pó, e fiadas de homens pretos.

O mar trazia a Lagos vida e cor e aromas acres dos desertos arenosos e das florestas verdes e distantes. Em Lagos, D. Henrique cheirava e tocava a África - em Sagres e no cabo de S. Vicente, esterilizados pelas tempestades do Atlântico, regados pelos borrifos de espuma que os ventos transportavam, ele debruçava-se sobre o ermo ocidente no qual, onda após onda, o oceano bramia até ao infinito ilimitado.

Sagres - Promontório Sacro dos antigos - ponto aonde os corvos tinham dirigido a barca de S. Vicente - era um dos mais desolados da Terra. Hoje a navegação mundial avista-o e passa de largo, mas os mareantes do tempo de D. Henrique conheciam-lhe as áridas arribas à sua custa. Carracas e galés que vinham dos mares fechados do Levante torneavam este cabo e deparavam a rajada forte do Atlântico, que se arrojava do espaço infinito, e tinham de correr e abrigar-se sob a penedia de Sagres. Aí, no ancoradouro rodeado de rochedos. D. Henrique notou que muitas vezes eram detidos por dias sucessivos, tão isolados de tudo como se tivessem sido atirados para uma praia do deserto. Não havia recursos de espécie alguma. D. Henrique afirma que os navios estavam ali "sem acharem nenhuaa consolaçãm de mantimentos e doutras coisas necessárias, nem hisso mesmo daagua quassy nada" (2). O lugar mais próximo ficava a légua e meia de distância, além dum descampado de rochas de vegetação anã. Às vezes - continuamos a citar D. Henrique - os mareantes "ffaleciam da vida presente, e os lançavam por estas barrocas e prayas" (3). Era como se tivessem morrido no mar e lhes lançassem os cadáveres no abismo. O Infante sentiu-se "movido de piedade" pela sua sorte.

Mas que a luminosa cidade de Lagos, mais que a aldeia verde da Raposeira várias léguas para o interior, onde muitas vezes se recolhia a trabalhar e a pensar, o promontório desolado de Sagres estava destinado a ficar para sempre associado ao nome de D. Henrique. Era este o local que para si escolhera. Em 1443, durante a regência do irmão, D. Henrique obteve a concessão de todo o promontório e aí começou a construir uma povoação.

A Vila do Infante, que surgiu sobre o cabo, destinava-se exclusivamente a abastecer a navegação que se abrigasse na baía. O Infante via-a crescer da Raposeira. Ao tempo em que Zurara escreveu a sua crónica, não estava ainda concluída, embora as muralhas fossem já grossas e fortes e algumas casas construídas. As necessidades espirituais dos detidos em Sagres parecem ter sido a maior preocupação de D. Henrique, e por isso mandou ele fazer uma capela na vila, e logo por cima do porto erguia-se a igreja de Canta Catarina com cemitério anexo - não tendo já os marinheiros necessidade de atirarem os seus mortos, como cães, para as húmidas areias movediças. Pelo lado material, a vila conservaria sempre abastecimento de tudo quanto uma embarcação precisasse, e haveria sempre pilotos à ordem de quem os requisitasse para seu serviço.






Edifícios, igrejas, armazéns e estações de pilotos, tudo era excelente, mas não formam uma povoação, a não ser que haja também habitantes. Verifica-se que estes não foram fáceis de encontrar. As penedias de Sagres não eram paraíso aonde os colonos afluíssem de bom grado. Como o problema foi resolvido pode deduzir-se de documentos existentes na chancelaria de D. Afonso, onde se encontram sentenças de desterro e outras penas comutadas em residência na nova Vila do Infante.

O fim de D. Henrique, ao fazer surgir uma tal vila, foi principalmente altruísta, mas o projecto deve ter tido possibilidades comerciais. Diz-nos Zurara que os Genoveses quiseram comprar a colónia por soma avultada "os quaes como sabeis", acrescenta, "são homens que não empregam seus dinheiros sem certa esperança de ganho" (4).

Desnecessário é dizer que nem o Infante nem o rei de Portugal cederiam bases atlânticas às repúblicas marítimas italianas. Para mal já bastavam os castelhanos nas Canárias! D. Henrique nunca deixou de cobiçar aquelas ilhas. O estado de coisas ali dominante estava a pedir intervenção! A autoridade da coroa de Castela era nominal e os diversos capitães do arquipélago pareciam passar o tempo em perseguir-se mutuamente nas ilhas e para fora delas. Messire Maciot, herdeiro do primeiro colonizador, Jehan de Bethencourt, teve a felicidade de escapar-se da sua ilha de Lançarote e de alugá-la ao Infante D. Henrique pela renda anual de vinte mil reais. "Mice Maciote", como os portugueses lhe chamavam, refugiou-se na Madeira. O Infante casou a filha do francês com o filho de João Gonçalves Zarco e comprometeu-se a defender Lançarote contra quem viesse atacá-lo. Consequentemente, o prestável Antão Gonçalves foi enviado com mil homens a ocupar a ilha, e na batalha que se seguiu foram mortos cem castelhanos.

O rei de Castela protestou energicamente. O Infante D. Henrique estava a intrometer-se nos seus negócios, queixava-se ele, e isso era acto hostil. Mais uma vez a propriedade das Canárias se tornou o tema de notas diplomáticas. Como de costume, o resultado não foi conclusivo, mas alguns anos mais tarde, quando um novo rei de Castela casou com a irmã de Afonso V, aquele magnanimamente fez doação de Palma, Tenerife e Grande Canária ao conde de Atouguia, que lhe trouxera a noiva. Como nenhuma das três ilhas foram ainda ocupada ou conquistada, este rasgo de generosidade nada custou ao doador.

As razões que D. Henrique tinha para desejar as Canárias devem ter sido principalmente estratégicas, pois que, como base avançada de explorações, nada podia exceder o Funchal. Os navios, a caminho da Guiné, ali paravam habitualmente a reabastecerem-se de mantimentos e de tudo o mais que lhes fosse necessário. Também lá podiam ser reparados, e ali se construíram caravelas com madeiras das célebres florestas da ilha. Às vezes, partiam expedições da Madeira em exploração do continente africano, mas, em geral, a ilha era mais um porto de escala do que ponto de partida ou término. O poder que enviava os navios pelos mares desconhecidos estava centralizado no Algarve e, enquanto D. Henrique viveu, o porto de origem das caravelas era Lagos, como Lisboa veio a ser em anos posteriores, quando a iniciativa dos descobrimentos passara para a coroa.

Lagos no tempo do Infante não era apenas um porto movimentado e ponto de partida de todas as viagens longas, mas também o centro em volta do qual se reuniam os estudiosos da nova ciência náutica. No observatório de Lagos estudava-se a astronomia, não como mistério supraterreno que influenciava os destinos do homem, exposto por astrólogos medievais e adivinhos, mas como guia seguro da navegação exacta. Da mesma forma a matemática e a geometria, de especulações abstractas dos sábios, transformaram-se em saber prático aplicável à vida quotidiana. E, em Lagos, cartógrafos hábeis traçavam novos mapas - mapas que já não eram compilados de conjecturas e rumores, mas que apresentavam ilhas onde elas existiam realmente e o traçado das costas como estas se tinham efectivamente observado.

A Ilha Dourada ou Ilha de Porto Santo (Região Autónoma da Madeira).











O próprio Infante era profundamente versado em astronomia e nas matemáticas. Já houvera, sem dúvida, príncipes tão ilustrados como ele, aqui e acolá, em vários países e em épocas diferentes, mas D. Henrique tinha o espírito do homem de ciência moderno, que faz as suas observações directamente da Natureza e dá aplicação prática às leis descobertas.

O espírito de D. Henrique ocupava-se cada vez mais destes assuntos e ainda bem que assim era. Homem solitário, passante da meia-idade, que precisava de recuar muitos anos para evocar recordações que não fossem tristes, a vida ter-lhe-ia sido monótona e vazia, se não tivesse esta porta de fuga que dava para um mundo diverso. Na Raposeira, "remota ao tumulto das gentes e propícia à contemplação do estudo" (5), passava longos dias e noites na aquisição do saber - "sabedoria donde todo bem nasce"(6), para citarmos as suas próprias palavras - conceito nada medieval, vibrante já do entusiasmo da Renascença, alvorada futura que havia de conduzir o homem durante curto espaço a coisa parecida com aquela delícia admirativa que Adão talvez tivesse sentido, quando primeiro provou do fruto da árvore proibida.

Recluso chamaram a D. Henrique neste período da sua vida, mas o termo não é bem exacto. Ele escolheu para si locais desolados e solitários duma costa marítima abandonada, mas nesta solidão não vivia sozinho. Jamais príncipe algum reuniu à sua volta corte mais estranha. Homens de todas as partes do mundo conhecido acotovelavam-se neste recanto isolado do Algarve, e muitos provinham de regiões mal conhecidas. Uma tal reunião de "desvairadas nações de gentes tão afastadas do nosso uzo" (7), afirma Zurara que era maravilha ver-se. Há notícia de genoveses, venezianos, catalães, ingleses, franceses, alemães, escandinavos, árabes, judeus e mouros. Poder-se-iam lá encontrar guerreiros das ilhas Canárias, catecúmenos pretos da Guiné, prisioneiros azenegues do Sara e reféns berberes - e havia estrangeiros mais insólitos ainda, cuja presença nunca ninguém explicou cabalmente. Conhecemo-los apenas como nomes em qualquer documento lacónico existente nos arquivos nacionais, ou através de alguma referência casual dum cronista.

Ficamo-nos a conjecturar quem seria o "índio Jacob" que embarcou para a África com Diogo Gomes a servir de intérprete, se se alcançasse a Índia. A maioria dos autores supõe que este Jacob fosse etíope e não índio, mas Zurara faz menção separada de etíopes e índios que visitaram a corte de D. Henrique e dele receberam presentes. Vinham, diz-nos com brevidade tantalizadora, "cubiçosos de ver a fremosura do mundo" (8). Nenhum cronista se deu ao trabalho de se referir, mais pormenorizadamente, a tais turistas orientais, nem explicar como, ou quando, ou porque vieram. Do mesmo modo não se encontra alusão a "Jorge, embaixador do Preste João", a não ser num documento, do qual concluímos que esteve na corte de D. Afonso em 1452, donde foi enviado ao duque de Borgonha. Seria Jorge outro amador da "fremosura do mundo" e membro da delegação do mosteiro abexim de Jerusalém que assistiu ao concílio eclesiástico de Florença? Parece muito provável, mas os índios de Zurara continuam sem explicação.

Os historiadores dissertam, e os sábios argumentam, mas a provas são imprecisas. O Oriente e o Ocidente, o mundo familiar à cristandade do século XV e as terras de maravilha barbáricas fora dele, tocam-se e confundem-se numa fronteira indefinida e nevoenta algures para além de Jerusalém e do Cairo. Surgem vultos da penumbra e somem-se de novo nela; das trevas ouvem-se vozes indistintas. Não sabemos até onde chegaram os contactos de D. Henrique. Sabemos apenas que figuras do Oriente se misturavam com as de África e da Europa ocidental em Sagres, e D. Afonso V, em 1454, investiu a Ordem de Cristo de jurisdição espiritual sobre as terras da Guiné, Núbia e Etiópia. O papa Nicolau, com uma penada, confirmou os direitos do Infante em todas as terras que viessem a descobrir-se desde o cabo Bojador até à Índia. Os seus sucessores ratificaram e ampliaram as pretensões de Portugal, e nenhum rei cristão apresentou qualquer protesto. Não faltaria tempo para ralações por causa da Índia, se alguém conseguisse lá chegar!








A indiferença que eles manifestavam pelos empreendimentos de D. Henrique era igualada pela deste quanto à política daqueles. Nenhum papel desempenhou no palco europeu. É duvidoso que este o tenha interessado. Tinha o rosto voltado para um mundo mais vasto e mais fascinador, donde lhe vinham condutores de camelos, toucados de turbantes a dar-lhe notícias dos mercados comerciais do Sara e do Sudão, ao passo que os viajantes árabes descreviam o curso dos grandes rios africanos e os mercadores de Orão lhe transmitiam as últimas informações relativas aos levantamentos dos reinos negros vizinhos do lago Chade. Negociantes de Timboctu e do mercado do deserto, em Wadan, traziam escravos e ouro em pó à feitoria de D. Henrique em Arguim, recebendo em troca trigo e panos brancos, e albornozes e mercadorias europeias, enviados pelo Infante num navio, diz-nos Diogo Gomes, pertencente a Roberto Kerey. O verdadeiro nome deste homem era provavelmente Carey, e aqui temos um dos estrangeiros protegidos de D. Henrique - um inglês desta vez?

A ilha de Arguim, outrora cena de sangue e de emboscada, era agora uma pacífica estação de comércio.

Não se fizeram mais assaltos às tribos nómadas do continente. Os exploradores que subiam ao rio já não tentavam surpreender e capturar. D. Henrique impusera, enfim, a sua vontade. As caravelas de Portugal, seguindo o seu rumo ao longo da costa africana, já não anunciavam pela violência, mas por ofertas de amizade e trocas justas com os indígenas dessas terras. "Não consente o Senhor Infante", notou o jovem Cadamosto quando entrou ao seu serviço, "que se faça damno a nenhum deles" (9).

Havia gente, sem dúvida, que tinha saudades dos bons tempos de outrora. Zurara, interrompendo a sua crónica no ano de 1448, observa, com ar de tristeza, que "deste ano avante os feitos daquelas partes trataram mais por tratos e avenças de mercadoria que por fortaleza nem trabalho das armas" (10). É muito leal para criticar o que o seu Infante ordenara, mas vê-se que lhe causa pena!

D. Henrique não se importava do que pensassem os ferrabrases. Que fossem para Ceuta combater os mouros! Passar à espada os muçulmanos endurecidos poderia ser obra santa e gloriosa, mas quanto aos povos mais primitivos ao sul do cabo Bojador, esses esperava fazê-los cristãos. Os contemporâneos concordam todos em que este era o seu primeiro cuidado e, embora fosse cruzado por educação e hereditariedade, não julgava realmente que as verdades espirituais se incutissem melhor a ponta de lança. A bondade era muito mais persuasiva e os primeiros contactos amistosos poderiam travar-se a respeito de coisas materiais. O negociante poderia abrir o caminho e o missionário seguiria atrás. Seria coisa muito boa arrebatar cativos às centenas, ou aos milhares até, para serem catequizados e baptizados no reino - mas que acontecia depois? Conquistaram-se alguns milhares de almas e hostilizara-se uma tribo!

A questão tinha também um aspecto prático. A guerra não levava senão à ruína e à bancarrota e as explorações precisavam de pagar-se de qualquer forma. Como ocorrer aos encargos financeiros dos seus empreendimentos foi o problema mais agudo da vida de D. Henrique. O Infante era talvez o homem mais rico de Portugal e as suas necessidades pessoais das mais simples e das mais austeras; todavia nunca lhe chegava o dinheiro.

Como governador da opulenta Ordem de Cristo que herdara as riquezas dos Templários, D. Henrique dispunha de grandes recursos, e como administrador não o podiam acusar de incompetência. Por muito estranho que pareça, este observador das estrelas tinha considerável habilidade para os negócios e aquilo em que se metesse alcançava êxito financeiro. Nunca nenhum governador da Ordem cultivou as suas terras com maior proveito do que ele. Parece que o Infante percebia tanto de agricultura como de ciência, e sob a sua fiscalização, todos os palmos de baldio foram aproveitados para cultura. Obteve privilégios para os trabalhadores das suas herdades. Criava grandes rebanhos de ovelhas nas colinas em volta de Alcobaça. Construiu moinhos de vento para moer trigo, em Santarém, e fez represas para viveiros de peixes no rio Ródão.

Brasão de Armas do Infante D. Henrique


Procurando sempre derivações lucrativas, D. Henrique experimentou a sua habilidade na indústria. Possuía tinturarias e explorava saboarias que fabricavam sabão preto e branco! As pescarias de corais ao largo da costa de Portugal pertenciam-lhe. Obteve o monopólio da pesca do atum em águas algarvias. Ao tributo que ele cobrava ao comércio da Guiné e aos rendimentos provenientes das ilhas, especialmente da indústria do açúcar na Madeira, juntavam-se todas estas fontes de receita.

Com tantos negócios a correr - e todos de rendimento - o Infante devia nadar em riqueza, mas gastava até ao último ceitil.

O mar absorvia a maior parte: a construção naval, a armação de navios, reparações, remunerações aos navegantes, pensões às suas viúvas - elevava-se tudo anualmente a vastas somas, às quais acresciam as despesas da esquadra que D. Henrique mantinha ao largo da costa marroquina para combater os piratas infiéis. É verdade que, depois das primeiras viagens experimentais ao rio do Ouro e à Guiné, mercadores de Lagos e doutras partes colocaram capitais em navios e tentativas comerciais, mas o Infante continuou a mandar expedições suas, e os seus capitães recebiam ordens de procurar informações mais do que lucros.

As viagens de descobrimentos nunca ficaram baratas. É sabido que os três navios de Colombo custaram à coroa de Castela dois milhões de maravedis. As expedições de D. Henrique talvez não custassem tanto; mas a despesa renovava-se constantemente. As explorações da costa africana produziram, sem dúvida, muitas vezes algum lucro, mas outras havia em que não podiam dar ganhos materiais - viagens de investigação e nada mais, que se internavam profundamente nas regiões desconhecidas do mar estéril.

Além de tudo isto, aqueles homens de "desvairadas nações de gentes" que se congregavam em volta do Infante devem ter-lhe custado uma soma bonita. Todos os que lhe prestavam serviço podiam ter a certeza de rica recompensa - e não era sem razão que os melhores cartógrafos, astrónomos e físicos gravitavam na sua órbita. D. Henrique tinha mesa franca para todas as pessoas que lhe interessassem, muçulmanos, judeus ou cristãos, portugueses ou estrangeiros, e nunca ninguém se despediu dele, diz Zurara, sem "proveitosa bemfeitoria". Para os visitantes deve ter sido delicioso, mas ruinoso para o amável anfitrião.

D. Henrique também fazia despesas com edifícios públicos, não só na sua Vila do Infante, mas por todo o reino. Construiu, ou dotou e embelezou igrejas em Portugal e nas suas ilhas da Madeira e dos Açores. Entre elas, pode citar-se uma pequena capela no Restelo - Santa Maria de Belém - a uma légua de Lisboa, perto da foz do rio.

Passada a barra, este santuário seria para o marinheiro de regresso a primeira vista da Pátria. Aqui podia desembarcar e rezar e aqui perto quarenta anos após a morte de D. Henrique, outra geração viu os seus esforços coroados de êxito. Vasco da Gama, voltando da Índia, desembarcou em Belém, e o filho daquele estouvado D. Fernando colheu o que o seu tio-avô semeara. Mais tarde D. Manuel, o Venturoso, perpetuou o triunfo da nação numa floresta de pedra lavrada e, na grande igreja que levantou neste local, a modesta capela de D. Henrique, como os inícios do seu empreendimento, ficou absorvida no esplendor do êxito.



D. Manuel, Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral (gesso, por Canto da Maia, 1940).




Torre de Belém



Mosteiro dos Jerónimos


Todos os traços visíveis da obra de D. Henrique se perderam em Belém, mas podemos encontrar a sua impressão em Tomar. Esta pequena vila, sede dos cavaleiros de Cristo, foi melhorada e embelezada no seu tempo. Ali construiu uma nova casa para a Ordem, partes da qual ainda hoje restam, embora nada exista já do hospital para indigentes, nem do belo albergue destinado aos forasteiros pobres que passassem pela cidade.

Apelo ao interesse de D. Henrique - e à sua bolsa - fazia-o também a Universidade, de que era protector oficial desde a sua juventude. Não era simples título honorário. Crendo como cria que a ciência era a fonte de todo o bem, o Infante encarou as suas funções muito a sério e, sob a sua influência, o sistema de ensino e o plano de estudos foram revistos e actualizados. Foi no seu tempo que as matemáticas e a astronomia foram introduzidas a par da gramática, lógica e retórica, que haviam ocupado o primeiro lugar nos cursos medievais.

A Universidade portuguesa, fundada em Coimbra por D. Dinis, fora subsequentemente transferida para Lisboa, onde permaneceu até ao reinado de João III. D. Henrique encontrou-a a funcionar precariamente em prédios particulares alugados. Remediou este estado de coisas comprando casas apropriadas, com que dotou a Universidade.

Escolheu os edifícios com grande cuidado e mandou-os decorar a seu gosto, e ele mesmo determinou como se haviam de acomodar as diversas aulas. Assim a retórica e as ciências seriam ensinadas no rés do chão, onde as sete artes liberais se achavam representadas em quadros em volta da sala de prelecções. As aulas de medicina também se realizariam em baixo, presididas por um retrato de Galeno. A teologia, a filosofia e o direito canónico foram consequentemente instalados no andar de cima, em aulas decoradas, respectivamente, com quadros da Santíssima Trindade, um papa, um imperador e Aristóteles. Parece que a gramática não tinha qualquer quadro - talvez não precisasse. Deve ter sido, porém, uma aula animada, visto que D. Henrique decretou que fosse ensinada num anexo por "que he de grande arroido".

Além de tudo o que gastava em serviços públicos desta natureza, as esmolas particulares de D. Henrique eram em escala pródiga. Alimentava e vestia mendigos, mandava cuidar dos doentes, enriquecia mosteiros e resgatava inúmeros cativos.

Não havia fortuna que resistisse a tal sangria. A de D. Henrique não resistiu. Apesar das suas vastas rendas, viu-se obrigado a pedir emprestado. O Conde de Arraiolos, que, embora Bragança, sempre fora amigo de D. Pedro e D. Henrique, adiantou-lhe 16 008 coroas de ouro, mas isto não era mais que deitar água num crivo. Em 1449 o conde adiantou mais 19 324 coroas - diz-se que estas quantias correspondem a £ 130 000 de hoje, mas ainda assim não chegavam a nada. D. Henrique pediu emprestado aos monges de Alcobaça também e contraiu grandes dívidas com os prestamistas judeus. A coroa teve de ir em socorro do Infante, concedendo-lhe dezasseis contos do tesouro real. Nem isso lhe equilibrou as finanças. D. Henrique morreu endividado (in D. HENRIQUE, o Navegador, Civilização Editora, 2013, pp. 244-257).


Mosteiro de Alcobaça












Gárgula






Notas:

(1) Caetano de Sousa - História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Provas, I.

(2) Carta de doação do Infante, de 19 de Setembro de 1460.

(3) Ibid.

(4) Zurara - Crónica da Guiné, cap. V.

(5) Navegação Primeira de Luís de Cadamosto, cap. I.

(6) Carta do Infante D. Henrique de 1431.

(7) Zurara - Crónica da Guiné, cap. IV.

(8) Zurara - Crónica da Guiné, cap. II.

(9) Cadamosto - Navegações, cap. X.

(10) Zurara - Crónica da Guiné, cap. XCVI.

Continua


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