quarta-feira, 13 de abril de 2016

Inquisição e Cristãos-Novos (ii)

Escrito por António José Saraiva





Alexandre Herculano




«Os estudos de Herculano sobre o crédito e a lei eleitoral, assim como os artigos publicados em O Português sobre descentralização, revelam, além da sua desconfiança em face das abstracções sem alcance para resolver os problemas do país, o sentido das suas próprias propostas. As anteriores doutrinas políticas por generalidades (ordenadas à volta da Constituição de 1822 e da Carta Constitucional de 1826), acabando por confluir em muitos pontos na Regeneração de 1851, obrigavam a novas propostas doutrinais e à definição de soluções de governo que lhes correspondessem. Agora os problemas nacionais eram outros ou eram postos de forma diversa. Do mesmo modo que a Carta Constitucional representava o modo prático de exercer as liberdades políticas e as leis de Mouzinho da Silveira constituíam o esquema administrativo, impunham-se, agora, novas tarefas ao liberalismo consolidado no Poder. Para as executar, Herculano só considerava "liberais" os que defendiam a criação de orgãos do exercício regional do poder público, assim como a aplicação local da poupança. No plano espiritual, garantida a liberdade das opiniões, a religião devia ter os seus institutos, adequados, sobretudo, à intimidade soberana das convicções. O exercício das liberdades, em todos os domínios, tinha de ser garantido, em concreto, de uma forma tão incorruptível como os valores que defendia. O programa liberal seria a expressão do modo de realizar estas aspirações. Quais os obstáculos que poderá encontrar? É para esclarecer este ponto que se insere, nos planos de Herculano, o estudo do Tribunal do Santo Ofício.

Expunha com mais ênfase do que antes a ideia de que o liberalismo só funciona como tal se todos os seus orgãos mantiverem processos liberais antimultitudinários e anticentralistas. A amarga experiência, aquando do primeiro Governo de Saldanha e dos acontecimentos subsequentes, tornaram-no seguro de que assim era, embora se não tivesse apercebido logo das dificuldades dessa condição, de aparência tão simples. A exigência acabará por dominá-lo por completo, transformando-o numa espécie de Catão vigilante do liberalismo e está na raiz de múltiplas polémicas em que intervém. As consequências da defesa desse objectivo na sociedade portuguesa, cujo desenvolvimento tantos apresentavam como dependente, sobretudo, do crédito externo, deve ter contribuído, em não pequena escala, para a evolução psicológica e moral que o levou a Vale de Lobos. Pontos que interessam à determinação do contexto em que se desenvolveu a exigência da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal.

As ideias de Herculano sobre crédito, impostos, descentralização e Parlamento bem eleito (cuja exposição não importa aqui) envolvem uma hierarquia própria e naturais correlações com uma atitude partidária. Desde 1851 que o alvo das suas preocupações se dirige aos perigos da centralização. No seu entender, esta, transferindo-se do absolutismo para o parlamentarismo de direcção central, tornara-se o principal obstáculo para a classe média, cujo fortalecimento só podia ser local. Resulta daí que combater o centralismo em todas as formas passou a ser o seu principal objectivo.

Semelhante ao centralismo absolutista, no seu foro correspondente, a Igreja de concepção papal é adversária das liberdades religiosas e da crença individual, sobrepondo a organização e as exigências da instituição à intimidade religiosa. O seu poder tornara-se ainda maior do que o absolutismo político, pela coacção psíquica que exercia. O Santo Ofício constituía, no entender de Herculano, o exemplo de como essa coacção religiosa, em dada altura, se uniu ao absolutismo real e de como tal resultou a dominação do país.






E se o centralismo parlamentar (e as forças que o apoiam) se unirem de novo ao perene centralismo papal?

Centralismo parlamentarista e Igreja papal exprimem pólos de uma mesma ameaça às liberdades fundamentais, sempre em perigo de desaparecerem pelo amolecimento das resistências morais trazido pela centralização. Na década de 50, para Herculano, concretizava-se a renovação do perigo dessa unidade entre o centralismo parlamentar e o clerical, assim como o século XVI tinha visto o entendimento entre o centralismo absolutista e o papal. Importava esclarecer, ou seja, defender, a classe média, impedindo que ela fosse sugestionada pelas eficiências ordeiras do centralismo, apoiado em forças religiosas e militares ou pelas ideias socialistas, expressão estas de um centralismo social. O ponto de vista de que a classe média se torna invencível quando dispuser de uma forma de governo que apele para formas maleáveis e livres de organização local é a base do ideário fundamental de Herculano, constantemente defendido a partir de 1851.

Coloca-se dentro deste contexto o Prólogo da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal e a própria obra.

(...) A posição de Herculano assenta na convicção quanto à superioridade do liberalismo como organização política; da propriedade, como defesa do interesse económico, e da liberdade de consciência, como forma do ser moral. As vias que tomou têm o maior interesse para o conhecimento da mentalidade política portuguesa, no seu desvio para as ideologias sem função dinâmica, e para se compreender o papel desempenhado pelo anticlericalismo, que tanto impressionou e dividiu o português comum.

Muitos foram os aspectos em que a actividade de Herculano na vida política teve influência reduzida, exprimindo-se mesmo fora das forças reais do país; cite-se, por exemplo, a sua atitude a respeito do exército, que não encontrou qualquer eco e que nem ele próprio conseguiu formular com rigor. No entanto, essa atitude negativa, relativamente à organização militar (por chocar com a descentralização), é a única forma de entender a amplitude que tentou dar ao conflito entre o poder central e a Câmara de Belém, ocorrido nos princípios de 1854, quando era presidente desta última. Outros casos houve em que a posição do historiador veio entroncar numa forte tradição política que chegou até nós, com amplos reflexos nas aspirações políticas de diversas correntes nacionais, mas, de facto, sem chegar a influir na orientação da governança. Citemos a descentralização, tantas vezes afirmada, acabando por se sujeitar a fortes limitações práticas. O próprio republicanismo só a aceitou nos objectivos teóricos; embora tivesse sido uma importante fonte de sugestões no pensamento político português, nunca teve (nem podia ter) uma aplicação sistemática, saturada, como está, de utopismo.

Houve, porém, um aspecto do pensamento de Herculano que, esse sim, exerceu influência profunda e perdurável: a sua atitude anticlerical e antipapal. Ponto significativo (mas não único) para esta influência foi a Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Nesta obra culmina a sua antiga preocupação de conciliar a vocação íntima e livre do cristianismo com o liberalismo. Considerava-os da mesma natureza intrínseca por pressuporem uma mesma definição da personalidade do homem, como livre e agente. Para Herculano, a Igreja só é indispensável, como forma de organização, assembleia e continuidade, para assentimento e coesão dos fiéis. Considerava ainda que dentro dela se desenvolvem forças que procuram dar mais importância à orgânica institucional e seus interesses do que ao espírito religioso, superiormente expresso no livre arbítrio. Para ele, as forças institucionais eram perniciosas ao cristianismo e constituíam o maior obstáculo à sua conciliação com o liberalismo: de modo tal que, em seu entender, numa Igreja centralista e papal, a sua conciliação com o liberalismo é impossível. Mas quando ligado à crença religiosa íntima, expressão superior da liberdade humana e seu garante, não há qualquer incompatibilidade intrínseca entre cristianismo e liberalismo. Para Herculano, a Igreja centralizada, que dizia provida de organismos com recursos externos de pressão sobre a intimidade religiosa, explorando-a, é a adversária do liberalismo. É esta a Igreja da sua História da Inquisição: representa o modo como o papado aproveita, em seu benefício, o fanatismo religioso - a quem alimenta pelo que lhe traz de bens materiais e influência. Por isso, seguindo sempre os pressupostos de Herculano, se o fanatismo religioso for substituído por uma fé íntima, servida, no necessário, por um clero desinteressado e humano, o cristianismo tornar-se-á o defensor inultrapassável contra a ausência de espírito religioso, o socialismo e todas as doutrinas democráticas da pressão do número.

Palácio dos Papas em Avinhão


Em contrapartida, um cristianismo fanático, receoso da concorrência das outras religiões, é um defensor do absolutismo ou de qualquer sistema visando a centralização. Foi desse modo que o papa e o rei - este sim "fanático" - se uniram para alcançar, cada um, as suas vantagens particulares. Os delegados papais teriam aproveitado o interesse real numa Inquisição ao serviço de um cristianismo sem liberdade, receoso das outras religiões. O rei aproveitou-a para reforçar o Poder, pela criação de um tribunal que vigiasse e amedrontasse os súbditos. Daí, duas conclusões: o cristianismo fanático perde as virtudes do verdadeiro cristianismo e torna-o pasto da "reacção", quando devia ser liberal; importa transformar o cristianismo no mais seguro suporte do liberalismo, o que só se conseguirá opondo-o ao centralismo papal. Quando o fanatismo, o centralismo papal e o centralismo político do Estado se encontram, ou se entendem, a consequência é a criação de orgãos restritivos da autonomia da crença, lado a lado com a restrição da liberdade, em todos os campos. A prova histórica tira-se da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Foi para demonstrar todos estes pontos de vista que Alexandre Herculano a publicou: serviria, no seu entender, para revelar os inconvenientes do cristianismo centralista, assim como para apontar o uso que, nestas condições, dele fazia o centralismo político.

A primeira vez que aproveita a história da Inquisição para apoio deste raciocínio surge, em Agosto de 1851, num artigo publicado n'O País. Dirigindo-se ao jornal absolutista A Nação, e a propósito das tradições que este reivindicava para os seus conceitos políticos, Herculano, com mais ênfase que verdade, no meio das suas considerações panfletárias, declara que "o primeiro resultado prático das vossas adoradas doutrinas é a Inquisição. [...] A Inquisição foi um cálculo frio e feroz do absolutismo de D. João III (este é vosso: guardai-o), que estava pobre pela sua falta de juízo pelas vaidades paternas. Quis queimar judeus para os roubar e pediu lume a Roma, que lho recusou largo tempo, porque não ignorava para que ele o queria". E acrescentava, lembrando acusações recentes: "Quando quiserdes a prova disso, falai: já se sabe, entrelinhadas, suprimidas, respançadas, viciadas segundo o velho costume de que nos acusais com as provas na mão, como bons e verdadeiros jesuítas". Anos mais tarde, executa a promessa com Da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal - Tentativa Histórica.

A obra constitui, portanto, uma hipótese acerca do estabelecimento da Inquisição em Portugal, partindo de uma determinada interpretação da Igreja e do papado, assim como da história de Portugal: salienta o papel que D. João III desempenhou na instituição deste tribunal e dá como interesseira a resistência do papado a essas pretensões.

Delineado dentro destes conceitos prévios e gerais, o primeiro volume considerava que, nos doze primeiros séculos do cristianismo, seria intolerável um sistema de vigilância da fé "que não fosse do pastor da diocese". A situação teria começado a modificar-se com o Concílio de Latrão (1179) e a Constituição de 1184, acto do poder papal que alguns consideram "como a origem e gérmen da Inquisição". Herculano vai, porém, pôr o seu início em 1229, muito embora ela fosse diferente da que imperou no século XVI, pois "respeitava a autoridade episcopal" Outro conceito prévio implícito no livro é a distinção feita pelo autor entre "intolerância legítima", no mundo das ideias ("seria absurdo exigir do catolicismo que tolerasse o erro, que admitisse a possibilidade teórica de qualquer ponto de doutrina contrária à sua"), e "intolerância ilegítima", no domínio dos factos, quando se opunha à prática dos cultos diferentes. Noutro aspecto, tinha a ideia de que a causa da multiplicação das heresias e seu fortalecimento era a "corrupção e os abusos dos ministros da Igreja": o "excesso de indignação, transpondo os limites do justo", levava a "gerar o erro"; interpretação que actualmente (até já na época) não podemos deixar de tomar como elementaríssima, ao procurarmos compreender um fenómeno tão complexo e absorvente como é uma atitude herética. Neste caso, o termo "erro" não tem um sentido histórico, e a corrupção ou imoralidade se existem e em dado momento se agravam é porque dependem, não da doutrina ou dos sacerdotes, mas de condições que ultrapassam todos. O que uma heresia contesta é a explicação proposta por uma dada opinião religiosa que passa a ser tomada como insatisfatória, qualquer que seja a "virtude" dos seus sacerdotes. Há ainda a considerar que uma coisa é um conjunto elaborado de conceitos, envolvendo uma interpretação do sobrenatural, forjada em determinado meio, outra a sua difusão, assente na receptividade pública, cuja complexidade, em qualquer caso, é diversa da que levou à conceptualização teológica. A ideia de que uma heresia tem o motor na corrupção do "outro" clero revela-se inaceitável, face aos dados da história social e religiosa de que dispomos. Na hipótese mais favorável, a corrupção do clero - a provar-se que existiu - exige a prova de que provocou, nas gentes da época, a mesma indignação que suscitará no nosso tempo; terá, assim, de provar-se a aplicabilidade histórica do conceito de corrupção e que, para a combater, se torna necessário substituir os padrões religiosos. Pode ser que assim tivesse sucedido na sociedade do tempo de Herculano, mas o que interessava era provar que também se tinha verificado no século XIII. Por isso, Herculano, convicto da permanência intemporal destes juízos morais, usa-os sem qualquer suspeita de que - pelo contrário - constituem os problemas decisivos duma verdadeira história das religiões e da cultura.



Pendão Heráldico dos Reis Católicos



(...) Segue-se o relato acerca do tribunal em França e Aragão, quando a sua influência em Portugal, no século XVI, era nula e uma "ridicularia fradesca", no século XV. No entanto, neste século aparece, em força, no reino de Aragão, cujo rei, Fernando V, teve "a triste glória de ser o fundador da moderna Inquisição espanhola". Toma, assim, forma a mesma concepção pessoalista que há-de presidir à análise dos acontecimentos em Portugal e que, de certo modo, também orienta parte da sua interpretação sobre a origem de Portugal. Começa a análise do Santo Ofício no nosso país, quando salienta uma característica da Inquisição espanhola: enquanto esta, até uma dada altura, se dirigia, em especial, contra os hereges que tinham pertencido ao grémio cristão e nunca para os que sempre estiveram fora dele (mouros ou judeus), a partir da conversão forçada destes últimos, levantava-se todo o problema social da vigilância dos novos cristãos e que começou os seus passos em Aragão.

Feita a introdução histórica, que ocupa sensivelmente a terça parte do primeiro volume Da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Herculano descreve a situação dos judeus em Portugal, no século XV, sobretudo depois de os Reis Católicos os terem expulso de Espanha. E na primeira ordem destes elementos prévios, concluía pela afirmação da qualidade judaica: "Superiores em indústria e actividade e dominados pela sede do lucro, apesar do desprezo ou da malevolência de que eram alvo, eles tinham desde os primeiros séculos da monarquia adquirido a preponderância que é o resultado inevitável da inteligência, do trabalho e da economia", acrescentando-se ainda a circunstância de que "talvez em parte nenhuma da Europa, durante a Idade Média, o poder político, manifestado quer nas leis, quer nos actos administrativos, favoreceu tanto a raça hebreia como em Portugal". Nestas condições, tinha-se tornado "como uma nação de certo modo à parte", havendo um indiscutível rancor ou "má vontade do povo contra eles", que crescia "de ano para ano", e essa malevolência, "que resfolgava tremenda", aumentava "pelo acréscimo repentino da população hebraica". Opinião apoiada nas actas dos "diversos parlamentos convocados durante a segunda metade do século XV", onde se clamava contra a desenvoltura dos judeus. E Herculano chegava à conclusão de que "sem que admitamos a conveniência ou a necessidade de converter em questão religiosa uma questão puramente social; condenando com todas as veras da alma uma instituição antievangélica, desonra do cristianismo, e que manchou as vestes puras do sacerdócio com largas e indeléveis nódoas de sangue; rejeitando, enfim, o pensamento atroz que presidiu ao estabelecimento da Inquisição, justamente porque nos parece que assim se teria evitado esta grande infâmia do século XVI, tão contrária à tolerância da Idade Média portuguesa, entendemos, todavia, que, chegadas as cousas aos termos em que se achavam no reinado de D. João III, cumpria reprimir severamente os judeus, impedir o abuso do dinheiro e, sobretudo, adoptar outro sistema de percepção de impostos; defender, em suma, os fracos contra os fortes, o trabalho contra o capital". Importaria saber, afinal, como procedia a época, quando se verificava esta situação.

Apesar destas peremptórias afirmações e de outras próximas, dispostas ao longo do livro, não há elementos para garantir que correspondam a factos proporcionais. Nunca se comparou a força económica dos judeus, antes da sua expulsão (nem dos cristãos-novos), com a de outros grupos sociais, quaisquer que fossem e fosse em que período fosse. Extrapolações de Herculano (úteis para a sua tese actualista, referida no Prólogo) que se tornariam menos interessantes ou até prejudiciais, se tivessem sido utilizadas na reconstituição dos acontecimentos de que o livro é objecto. Assentam elas na despromoção da importância económica das cidades como Lisboa, Évora, Porto, Braga, Viseu, etc. (Complexos agrários, artesanais e mercantis com valor regional, nacional e, por vezes, internacional), cujos cidadãos constituíam grupos sui generis, podendo, sem dificuldade, compreender gente de nobreza. Neste contexto, a capacidade numérica ou económica, tanto de judeus, como, depois, de cristãos-novos, era minoritária, quer na cidade de Lisboa, quer em qualquer outro centro português. Os grupos sociais não se uniformizavam ou definiam, como tais, no século XVI como no século XIX. A declaração de Herculano (assim como dos que depois a têm repetido, corroborado, desenvolvido ou glosado) não dá relevo, ainda e também, ao facto de grande número de judeus (e depois cristãos-novos) serem artífices, longe desse "à vontade" referido quanto a capitais disponíveis: eram trabalho.

Caberia no livro de Herculano a análise do conjunto social do país e dos interesses internacionais? Na lógica das considerações feitas pelo autor, certamente que sim, mas o que de forma alguma se concebe é que essa informação social se baseie exclusivamente nos "artigos" das Cortes de 1525 e de 1535, fontes interessadas na hipertrofia dos dados apresentados, uma vez que visavam propiciar decisões reais. Do mesmo modo, a informação não poderia assentar em generalidades ou afirmações abstractas fora dos circuitos económicos convenientes; assim como não tem sentido fazer comparações, nesse domínio, esquecendo outros grupos, nomeadamente os estrangeiros. Com efeito, em caso algum podemos supor que, em Portugal, a única, ou mesmo a principal, base dos confrontos sociais e económicos dinâmicos estivesse na luta bipolar entre portugueses, sejam cristãos-novos ou cristãos-velhos, nobres, fidalgos ou não. Podemos até perguntar se esse confronto tem algum significado, esquecendo o papel desempenhado por italianos, alemães, flamengos, espanhóis, etc. Com quem se aliavam? Com os cristãos-velhos? Com os cristãos-novos? Em que circuitos económicos eram concorrentes? Que vantagens davam os cristãos-novos a quem se aliasse com eles? E com os cristãos-velhos, também capitalistas, nobres mercadores ou entidades como mosteiros, confrarias, irmandades, etc.? Problemas que vão muito além de uma dinâmica social escorada em miunças de inveja, pobreza, fanatismo ou na preocupação colectiva com o assassínio acintoso de doentes disponíveis, motivos muito referidos por Herculano para salientar o comum rancor português ao cristão-novo. Assim como luta de interesses não significa sempre luta de classes».

Jorge Borges de Macedo (Introdução a Alexandre Herculano, «História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal», Tomo I, Livraria Bertrand, 1975).





«A constituição promulgada por Lúcio III em 1184 é considerada por alguns escritores como a origem e gérmen da Inquisição. Aquele acto do poder papal, expedido de acordo com os príncipes seculares, ordena aos bispos que, por si, pelos arcediagos, ou por comissários de sua nomeação, visitem uma ou duas vezes por ano as respectivas dioceses, a fim de descobrir os delitos de heresia, ou por fama pública ou por denúncias particulares. Nessa constituição aparecem já as designações de suspeitos, convencidos, penitentes e relapsos, com que se indicavam diversos graus de culpabilidade religiosa, com diversas sanções penais. Todavia, conserva-se aí a distinção dos dois poderes, limitando-se a Igreja aos castigos espirituais e deixando ao poder secular a aplicação de outras penas. Não parece ter-se aí por objecto senão combater a frouxidão dos prelados e compeli-los a desempenharem o seu dever. As comissões extraordinárias a que nela se alude não são na essência cousa diversa dos antigos sínodos, exercendo pura e exclusivamente uma delegação dos bispos. O que naquela constituição há mais notável é o fixarem-se, até certo ponto, as fórmulas do processo eclesiástico em relação aos dissidentes; mas essas fórmulas não ofendiam a razão, porque não desarmavam os acusados das necessárias garantias. Mal se pode, portanto, ver no acto de Lúcio III a origem de um tribunal cuja índole era exactamente contrária ao espírito das provisões que aí lemos, e que apenas tem comum com elas a ideia de um sistema especial de processo para esta ordem de réus.

Foi, verdadeiramente, no século XIII que começou a aparecer a Inquisição, como entidade, até certo ponto, independente; como instituição alheia ao episcopado. Altivo, persuadido, já antes de subir ao sólio, dos imensos deveres e, por consequência, dos imensos direitos do pontificado, resolvido a reconquistar para a Igreja a preponderância que lhe dera Gregório VII e a restaurar a severidade da disciplina, meio indispensável para obter aquele fim, Inocêncio III não se mostrou, nem devia mostrar menos activo na matéria das dissidências religiosas do que nas questões disciplinares. Não se contentou com excitar o zelo dos bispos. No Sul da França e, ainda, nas províncias setentrionais da Espanha, apesar das providências tomadas anteriormente, a heresia lavrava cada vez mais possante, favorecida por diversas causas. Em 1204 Inocêncio enviou a Tolosa três monges de Cister, com plenos poderes para procederem imediatamente contra os hereges. Levavam comissão do pontífice para, nas províncias de Aix, Arles e Narbona e nas dioceses vizinhas, até aonde vissem que cumpria, destruírem, dispersarem e arrancarem as sementes da má doutrina. Estas faculdades extraordinárias deram, a princípio, resultados contrários ao intento. Os prelados, ofendidos por semelhante intervenção em actos de jurisdição própria, não só deixavam de favorecer os delegados pontifícios, mas também lhes suscitavam sérios obstáculos, e, por muito tempo, os esforços deles foram, em parte, inutilizados pela má vontade dos bispos e, ainda, dos magistrados seculares. Apesar da autoridade ilimitada de que se achavam revestidos, os três monges teriam voltado para Roma desanimados, como mais de uma vez o pretenderam fazer, se não lhes houvesse ocorrido inesperado auxílio. Foi este o de dois espanhóis, o bispo de Osma e um cónego da sua sé, Domingos de Gusmão, que o papa lhes enviou por colegas em 1206. Ambos eles mostraram maior perseverança e energia do que os três anteriores legados. Mas o homem próprio, pelo seu zelo e actividade, para desempenhar dignamente aquela espinhosa missão era Domingos. Sobre ele, quase unicamente, ficou pesando o encargo de combater a heresia, desde que o bispo de Osma, passados dois anos, se recolheu à sua diocese. Foi então que o inquieto cónego espanhol buscou associar à empresa vários sacerdotes, que, por fim, estabeleceram uma espécie de congregação em Tolosa, com a qual, sendo os seus estatutos aprovados em 1216 por Honório II, se constituiu a Ordem dos Frades Pregadores ou Dominicanos.

O nome de inquisidores da fé tinha sido dado a esses diversos legados do papa; mas nem tal designação importava o mesmo que depois veio a significar, nem eles constituíam um verdadeiro tribunal, com fórmulas especiais de processo. O seu ministério consistia em descobrir hereges, e, nessa parte, o trabalho não era grande, em combatê-los pela palavra, em excitar o zelo dos príncipes e magistrados e em inflamar o povo contra eles. Na verdade, estes incitamentos produziam cenas atrozes, quais se deviam esperar em época de tanta barbaria, excitando-se a crença até o grau do fanatismo; mas a acção dos inquisidores vinha, assim, a ser unicamente moral, e indirectos os resultados materiais dela. Todavia, a independência de que gozavam e as faculdades que lhes haviam sido atribuídas, com quebra da autoridade episcopal, eram um grande passo para a criação desse poder novo que ia surgir no meio da hierarquia eclesiástica.

Apesar, porém, dos esforços empregados pelos inquisidores da fé, o incêndio continuava a lavrar no Meio-Dia da França, e os albigenses (nome com que se designavam, sem suficiente distinção, todas as seitas que naquelas províncias se afastavam mais ou menos da doutrina católica) nem davam ouvidos às prédicas dos dominicanos e de outros controversistas, nem cediam à violência, onde e quando achavam em si recursos e força para a repelirem. A história da guerra dos albigenses não é senão um tecido de atrocidades praticadas pelos católicos contra os hereges e por estes contra aqueles. No meio das mútuas vinganças, Pedro de Castelnau, um dos próprios legados do papa a quem o bispo de Osma e Domingos de Gusmão tinham vindo ajudar, foi assassinado (1208) pelos dissidentes. O espírito de intolerância e os ódios religiosos produziam os frutos ordinários destas péssimas paixões. Todavia, no meio de tantos horrores apareciam inteligências sumas que sabiam manter as antigas tradições cristãs, conservando puras de sangue as vestes sacerdotais. Tal foi S. Guilherme, arcebispo de Bruges, que recusou constantemente associar-se ao sistema da compulsão violenta contra os hereges. Deixando aos legados de Roma e aos prelados das outras dioceses confiarem a defensa do catolicismo ao ferro dos combatentes e aos suplícios dos algozes, limitava-se a exortar os endurecidos no erro, a convencê-los com razões e a implorar a graça divina para que os alumiasse. Quando muito, recorria, às vezes, à ameaça da imposição de multas, mas nem essa mesma franquíssima ameaça se realizava. À morte do santo prelado (1209) seguiu-se em breve a sua canonização. Tanto é certo que, ainda no meio do delírio das paixões e da perversão das ideias, nunca se obscurece de todo o respeito à sã razão e à verdadeira virtude.

Os cátaros expulsos de Carcassonne



Cidade de Carcassonne



Castelo de Montségur



Monumento à memória dos 200 cátaros queimados aquando do cerco de Montségur (16 de Março de 1244).



Castelo de Quéribus


(...) O ano de 1229 é a verdadeira data do estabelecimento da Inquisição. Os albigenses tinham sido esmagados, e a luta fora assaz longa e violenta para deverem contar com o extermínio. O legado do Papa Gregório IX, Romano de S. Ângelo, ajuntou nesse ano um concílio provincial em Tolosa. Promulgaram-se aí quarenta e cinco resoluções conciliares, dezoito das quais eram especialmente relativas aos hereges ou suspeitos de heresia. Estatuiu-se que os arcebispos e bispos nomeassem em cada paróquia um clérigo, com dois, três ou mais assessores seculares, todos ajuramentados para inquirirem da existência de quaisquer heresiarcas ou de alguém que os seguisse ou protegesse e para os delatarem aos respectivos bispos ou magistrados seculares, tomando as necessárias cautelas para que não pudessem fugir. Estas comissões eram permanentes. Os barões ou senhores ficavam, além disso, obrigados a procurá-los nos distritos ou territórios de sua dependência, nos povoados e nas selvas, nas habitações humanas e nos esconderijos ou cavernas. Quem consentisse em terra própria um desses desgraçados seria condenado a perdê-la e a ser punido corporalmente, A casa onde se encontrasse um herege devia ser arrasada. As demais disposições, em analogia com estas, completavam um sistema de perseguição digno dos pagãos, quando tentavam afogar no berço o cristianismo nascente. Ao mesmo tempo, Luís IX promulgava um decreto, não só acorde na substância com as provisões do concílio tolosano, mas em que, também, se ordenava o suplício imediato dos hereges condenados, e se cominavam as penas de confisco e infâmia contra os seus fautores e protectores. Assim, o espírito da legislação de Frederico II, que dominava já na Alemanha e numa parte da Itália, estendia-se agora a França e tornava muito mais tremendas as providências tomadas na assembleia de Tolosa.

Fosse, porém, qual fosse o carácter de cruel intolerância que predominava naquele conjunto de leis civis e canónicas, havia, ainda, uma diferença profunda entre essas inquisições, digamos assim, rudimentares e a instituição colossal a que, posteriormente, se deu o mesmo nome, no século XVI e seguintes. A autoridade episcopal era respeitada. Tudo quanto se referia à qualificação e condenação dos hereges dependia dos prelados diocesanos, guardando-se nesta parte a antiga disciplina. Depois, embora nas assembleias eclesiásticas se impusessem penas temporais aos dissidentes, esta invasão nos domínios da autoridade secular tinha, até certo ponto, desculpa, porque os príncipes decretavam ao mesmo tempo iguais ou mais severos castigos, legitimando-se, assim, mutuamente os actos dos dois poderes. Além disso, posto que, em relação ao extermínio dos hereges, as duas autoridades se invadissem mutuamente na prática, a Igreja não se esquecia de reconhecer oficialmente que a sua opção própria se restringia aos domínios da espiritualidade. Sobre isso são expressos e terminantes alguns cânones do Quarto Concílio Geral de Latrão (1216) e outros monumentos eclesiásticos daquela época. Não tardou, porém, que esses princípios começassem a ser pospostos, ganhando com isso vigor a nova instituição, já permanente, mas débil».

Alexandre Herculano («História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal», Tomo I).


«A questão dos judeus na Península é a mais evidente prova do carácter católico da sua civilização, embora o observador reconheça ao lado das causas religiosas as causas sociais da expulsão. Todos os documentos e histórias, qualquer que seja o propósito com que fossem redigidos, nos dá a impressão de que os monarcas só deixavam de ser intérpretes da vontade popular quando, por um espírito de tolerância ou de boa administração, favoreciam os judeus. É isso o que em Portugal a política do rei D. Manuel, provocando gerais tumultos pelo Reino, nos demonstra. Esse ódio do povo pelos judeus era na Idade Média geral a toda a Europa: o povo não podia deixar de ver neles os crucificadores do Cristo, e a esta circunstância juntava-se a de sentir a tirania dos que o oprimiam surdamente como onzeneiros. A tudo isto acrescia ainda a natural inveja das riquezas, e a revolta que provocava nos ânimos o espectáculo desses preceitos acarinhados pela fortuna, protegidos pelos reis, frequentemente vistos nas cortes dos monarcas, bem olhados até pelo próprio Papa. Na rudeza da sua instintiva lógica, o povo não podia compreender, e menos aplaudir, estas contradições, porque as dores das extorsões, a casa arruinada, a loja posta em almoeda, as economias do trabalho devoradas num ano de fome pelo judeu agiota, vinham apoiar com factos e sofrimentos as conclusões do pensamento.





Esta situação em parte nenhuma era mais grave do que na Península, onde à sombra da ocupação árabe, os judeus se tinham acolhido em maior número.

E posto que todos sejam gabados, dizia Barros, possuem a grossura da terra, onde vivem mais folgadamente que os naturais; porque não lavram, nem plantam, nem edificam, nem pelejam, nem aceitam ofício sem engano. E com esta ociosidade corporal, neles se acha mando, honra, favor e dinheiro; sem perigo das vidas, sem quebra de suas honras, sem trabalhos de membros, somente com seu andar miúdo e apressado, que ganha os frutos de todos os trabalhos alheios.

Estas palavras resumem a situação dos judeus, e são o eco das fundadas queixas do povo. Era um problema de ordem económico-social, ou fiscal apenas (problema de hoje também, apesar do extermínio dos judeus) que o Governo não sabia resolver. Daí nascem os variados aspectos dessa história que não sai do terreno de uma perseguição religiosa, senão para cair no de uma protecção anti-social. O lado religioso da questão primava já sobre o lado económico; e, dada a expansão do espírito católico, os monarcas haviam de religiosamente resolvê-la para interpretar com verdade o querer do povo, ainda que não seguissem, e muitas vezes não seguiam, os ditames do próprio espírito.

Esta questão dos judeus levantava-se agora pela segunda vez na Espanha. Da primeira, a monarquia visigótica, destruída pela invasão árabe, não pudera consumar o facto da exterminação. Assim, através de oito séculos de guerras, reatava-se a cadeia da história; voltando-se à tradição dos godos, agora que, depois da conquista de Granada, os últimos restos do baluarte muçulmano estavam caídos por terra. Como outrora, o grande Inquisidor; e o decurso desta história mostrará quanto é iníquo lançar aos ombros do Papado a responsabilidade de tais actos. Roma era então demasiado devassa para ter entusiasmos crentes, e demasiado avara para ser intolerante. Entusiasmo e intolerância só queimavam os peitos dos espanhóis; e a acção do Papado nessa história consiste em mitigar a fúria dos apóstolos, ou em virtude do dinheiro que recebe dos judeus, ou em virtude da defesa da própria autoridade usurpada, ou em virtude de uma humanidade natural em filhos dessa Itália doirada da Renascença.

A ânsia dos reis católicos por concluir a obra da unidade religiosa da Espanha é tal, que já em 1478 Torquemada, prior dos domínicos de Segóvia, fora nomeado inquisidor geral, anos antes da data da bula de Sisto IV. Afinal o monarca impera sobre toda a Espanha, afinal vai reduzir à fé todos os seus súbditos, e, presidindo às assembleias gerais da Inquisição, vai ser como os antigos reis godos à frente dos Concílios. Em Sevilha tem lugar essa primeira reunião, onde, como nas antigas assembleias do clero, os nobres tomam assento. Decide-se aí consumar o facto da unificação da fé. Em 94, saem em massa de Espanha oitocentos mil judeus que preferem exilar-se, chorando, a renegar:


Ah! minha amada España
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Pierdimos la madre Sion!
Pierdimos tambiem España?
El nido de consolacion.


Como os antigos Concílios do tempo dos godos, a Inquisição é também uma arma que serve nas mãos do monarca para acabar de submeter essa nobreza semi-feudal criada pela reconquista, porque perante a fé não há privilegiados e ninguém está ao abrigo das iras do terrível tribunal. A sua intervenção é tão absoluta e a sua dedicação tão excessiva que, tornando-se mais católica do que o Papa, lhe usurpa a autoridade, reage contra a ordens pontifícias, chegando a dar à Igreja peninsular o carácter de nacional, com o rei à frente, como pontífice, e ao lado o inquisidor como primeiro prelado.




Os judeus estavam expulsos, mas a depuração não era ainda total: restavam os mouros, espalhados pelo centro da Espanha, ou foragidos nas serranias da Bética austral para onde as correrias e perseguições do cardeal Jimenez os tinham arrojado. Cativos da reconquista, os mouros viviam na Espanha à mercê das oscilações da tolerância, das acções e reacções da política e da religião. Os historiadores fazem variar o número deles entre trezentos e novecentos mil. Habitando isolados da população cristã nas suas aljamas ou mourarias - como os judeus nos ghettos - constituíam uma família à parte. Laboriosos e humildes, porém, não excitavam no povo ódios nem invejas; pelo contrário, os seus ofícios punham-nos em contacto com o comum da gente, e de um modo que não ofendia nem molestava os brios, nem os interesses dos cristãos. Eram hortelões no campo, lojistas nas cidades; exerciam os mesteres humildes; eram caldeireiros, ferreiros, sapateiros, saboeiros, arrieiros. Como toda a colónia, isolada pelas leis do resto de uma população com a qual lhe não é dado confundir-se, o sentimento de solidariedade vinculava os estreitos laços da origem e destino comuns. Nenhum mendigava, porque, se caía em miséria, socorriam-no. Calados, sofredores, mas vingativos por necessidade, a ofensa que um recebia era tomada como colectiva. Quando um deles cometia um crime, em vão as justiças buscavam o culpado. Eram um por todos, e todos por um. Daqui provinham, necessariamente, conflitos e rixas como as que em 1467 ensanguentaram Toledo, e Valhadolid em 1470. Individualmente inofensivos, estimados até muitas vezes eram, porém, uma causa de permanentes sustos. A proximidade das populações granadinas, e das de Marrocos, para além do Estreito, fazia recear ainda aos novos godos uma segunda invasão, na qual às colónias de mouros coubesse o papel que oito séculos antes coubera aos judeus. Aos de Castela e Leão não era lícito ir a Granada, e só com fiança podiam ausentar-se para o Aragão, para Valência ou para Portugal. Em 1592, pedem as Cortes de Madrid que os repartam por todas as províncias de Espanha, que se lhes não consinta o afastarem-se mais de cinco léguas à roda da aljama, e que na guerra se lhes dêem os lugares mais perigosos, para assim ir acabando em breve essa anomalia.

Filipe III adoptou, em 1609, um meio mais expedito: expulsou-os em massa. Esta medida, radical como fora a dos judeus, satisfazia a um tempo as exigências sociais e as consciências. Como o escrupuloso que, à força de ver em tudo casos de consciência e origens de pecado, vai gradualmente destruindo uma a uma todas as origens de vida moral até se encontrar sossegado e em paz no seio da vacuidade idiota do seu cérebro: assim a Espanha, cheia de escrúpulos, ia gradualmente expelindo de dentro de si todas as causas de pecado, até se achar num estado de pureza que correspondia à despovoação, à ruína, à espécie de paz que homens e nações gozam na quieta mansão dos túmulos».

Oliveira Martins («História da Civilização Ibérica»).


«AFONSO: As declarações de Révah sobre o livro de Saraiva abrem de maneira estranha: "A minha reacção /.../ foi uma reacção de indignação". Assim o público fica logo informado de que está perante um homem indignado. Isto parece prejudicar, de entrada, os seus argumentos. Ou será uma táctica polémica?

DAVID: Não é táctica, é mesmo emoção. Révah reagiu passionalmente. Só que não encontrou a palavra própria para a sua "reacção". Não é só ou propriamente de "indignação" que se trata, mas de raiva, de rancor, de ressentimento, e sei lá que mais. Isto prejudica, evidentemente, o seu xadrez polémico, e até o simples bom senso.

AFONSO: Deve haver razões muito fortes para esse estado de espírito...

DAVID: Sem dúvida. Mas não vêm para aqui. O mais urgente é pôr um pouco de ordem no novelo emaranhado dos seus argumentos para tentar uma resposta.

AFONSO: Essa é a principal dificuldade: responder com ordem a uma coisa desordenada. Mas tentemo-lo. Podemos talvez distinguir uma música de fundo com um leitmotiv. Depois será preciso enumerar os temas principais, e finalmente precisar os casos de pormenor.

DAVID: Aceitemos esse método. Qual é a música de fundo?


Actual 'edifício' da Torre do Tombo (Lisboa).


AFONSO: Pode resumir-se nisto: ele, Révah, é que conhece os arquivos inquisitoriais; estudou mil processos; Saraiva não frequenta a Torre do Tombo, portanto fala do que não sabe. É um argumento impressionante, no caso de ser verdadeiro.

DAVID: O facto é verdadeiro, mas não serve como argumento.

AFONSO: Consideremos os dois aspectos da questão: 1.º, o facto de ter lido processos confere alguma autoridade a Révah? 2.º o facto de não ter frequentado a Torre do Tombo impede Saraiva de propor uma teoria da Inquisição?

DAVID: Quanto à primeira pergunta, direi que a utilidade dos mil processos depende da maneira como o investigador souber usá-los. Até hoje Révah não extraiu deles uma única ideia que não tivesse já sido apresentada por outros. Tudo quanto Révah disse encontra-se nas obras de Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses (1922), de Lucien Wolf, Les Marranes du Portugal (1926) e de Cecil Roth, A History of the Marranos (1932), não falando no livro básico de Graetz. Quem leu estes livros fica ao corrente de todas as ideias que Révah pretendeu demonstrar.

AFONSO: Tantos anos de sacrifício na poeira dos arquivos não lhe serviram para nada?

DAVID: Serviram-lhe para confirmar com um quilo de documentos aquilo que outros tinham já enunciado utilizando apenas um grama.

AFONSO: Quer isso dizer que Révah não criticou as ideias já estabelecidas sobre a Inquisição e o Judaísmo em Portugal?

DAVID: Nada. Só confirmou os pontos de vista que eram já os dos Inquisidores, e deles passaram a Lúcio de Azevedo e à historiografia judaica. Se Lúcio de Azevedo ressuscitasse e fizesse uma nova edição do seu livro, apenas teria que aumentar o número de citações, sem desmanchar o texto.

AFONSO: No entanto, nos 30 ou 40 mil processos inquisitoriais da Torre do Tombo não pode deixar de haver um material riquíssimo.

DAVID: Sem dúvida que há e está à espera de quem saiba utilizá-lo. A primeira coisa a fazer é organizar o sumário dos arquivos inquisitoriais que responda a certos quesitos, como: classe social dos presos e condenados; sua genealogia; actividade e relações económicas dos mesmos; sua distribuição geográfica; culpas e respectivas penas; métodos usados na investigação das culpas, e algum outro. A partir daí já seria possível ensaiar hipóteses, estabelecer correlações, traçar curvas diacrónicas, ou escolher conjuntos segundo critérios variados. Até lá os processos pescados à linha só podem servir como exemplos, e isso, evidentemente, na medida da perspicácia do investigador.



Documento pertencente ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, registando a confissão da meia cristão-nova Catarina Fróes ao Tribunal da Inquisição, em 1591.



AFONSO: No entanto sempre se pode dizer que mil processos já constituem uma amostragem.

DAVID: No caso de Révah nem isso. Uma amostragem deve obedecer a certas regras. Com uma mão-cheia de areia eu posso ter uma amostragem da areia de toda a praia; mas se eu escolher só os grãozinhos brancos posso juntar toneladas de areia para demonstrar uma ideia infinitamente mais falsa que a que resultaria de um punhado dela.

AFONSO: Quer isso dizer que Révah tem seleccionado os seus argumentos?

DAVID: Claro que tem. Segundo julgo, o seu tema de investigação, que deve ter sido sugerido pela leitura do opúsculo de L. Wolf, é o estudo de um certo número de famílias marranas dentro e fora de Portugal, de modo a estabelecer para elas uma continuidade genealógica e de prática religiosa. O arquivo da Inquisição é para ele uma espécie de chancelaria ou emissora de documentos relativos a esse tema. Por isso não lhe interessa muito desvalorizar os mesmos documentos. Nem de resto o tema da Inquisição em si mesma e do seu significado histórico está no centro dos seus interesses.

AFONSO: Vejo que haveria muito que dizer a esse respeito. Vamos à segunda pergunta: é legítimo que Saraiva apresente uma teoria da Inquisição sem ter estudado os processos da Torre do Tombo?

DAVID: O problema que se pôs a Saraiva, em certo momento da elaboração da História da Cultura em Portugal, foi o seguinte: porquê e para quê apareceu a Inquisição em Portugal? Procurou a resposta nos dois principais livros sobre esse assunto; a História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, de Herculano, e a História dos Cristãos Novos Portugueses, de Lúcio d'Azevedo. São dois monumentos de erudição e de crítica histórica ainda não substituídos. Mas a resposta que dão à pergunta de Saraiva não satisfaz. Herculano viu na criação da Inquisição o produto da aliança de dois poderes nefastos: a centralização monárquica e o poder clerical, "o despotismo e a intolerância". Isso estava na sua linha de combate na época. Quanto a Lúcio de Azevedo, apesar da sua inteligência e enorme saber, deixou-se dominar, como o seu mestre Werner Sombart, pelo preconceito antisemita, e por isso procurou reabilitar a Inquisição como instrumento de unificação nacional contra o "elemento corrupto e corruptor" (p. 200 da 1.ª ed. do seu livro) que seriam os descendentes de judeus. A simples leitura destes livros deu a Saraiva elementos com que seria possível propor uma explicação mais racional. Para ele o importante era relacionar os documentos publicados relativos à Inquisição com o que se conhece acerca do contexto económico, social e cultural em que ela nasceu e se desenvolveu.

AFONSO: E os documentos publicados são suficientes para fundamentar uma teoria?

DAVID: Os documentos processuais publicados por Herculano, Azevedo, A. Baião. A. J. Teixeira, Ramos Coelho, António Henriques, Téofilo Braga, mais recentemente por J. Caro Baroja, Révah e outros são numerosos. Há, por outro lado, o que podemos chamar os textos institucionais a que Saraiva atribui grande importância, como os Regimentos do Santo Ofício, os Regimentos das Confiscações, os Editais da Inquisição, os Privilégios dos Oficiais do Santo Ofício, os Aforismos dos Inquisidores de Fr. António de Sousa. Alguns destes nunca tinham sido aproveitados convenientemente antes de Saraiva. Basta dizer que o Regimento de 1640, texto básico e indispensável sobre o processo e organização da Inquisição, nem sequer figura na bibliografia extremamente minuciosa e acurada do enorme livro sobre os criptojudeus espanhóis de T. Caro Baroja, três volumes de leitura amena, mas de análise apressada e superficial. Finalmente, há os textos da polémica à volta do Santo Ofício, como as Notícias Recônditas, o opúsculo de Ribeiro Sanches sobre a origem da designação de cristão-novo, as notícias e comentários de Vieira, de D. Luís da Cunha, do Cavaleiro de Oliveira, as queixas dos Cristãos-Novos publicados no Corpo Diplomático Português; e, em sentido contrário, as representações dos inquisidores publicadas por L. de Azevedo e no Corpo Diplomático, etc. Com este material é possível criticar as teses de Herculano e de Lúcio de Azevedo e propor uma nova interpretação dos factos.






AFONSO: Mas essa interpretação não ganharia em ser documentada com uma investigação de arquivo?

DAVID: Sem dúvida, e sob vários aspectos. No livro de Saraiva há temas de estudo para vários especialistas, e não apenas para os do processo inquisitorial. Por exemplo, sob o ponto de vista económico haveria que saber se os dados qualitativos e descritivos alegados por Saraiva são ou não confirmados por elementos quantitativos relativos à moeda, aos preços, à distribuição da terra e do capital monetário, etc. O livro está aberto à crítica.

AFONSO: Révah pretende que ele é dogmático.

DAVID: Porque esqueceu voluntariamente o que está escrito no prólogo: "Pôr a pergunta e propor uma resposta - tal é a nossa intenção. E que o leitor se não deixe impressionar se o tom das páginas que vai ler lhe parecer demasiado afirmativo ou entusiasticamente polémico. É uma questão de estilo" (p. 18).

AFONSO: No entanto, insisto, Révah diz que Saraiva pretende com as suas teses dar a entender que a imensa documentação inquisitorial era, pela sua inautenticidade original e radical, "desprovida do menor valor para o historiador", e que fez isso para "erigir a incompetência profissional em método historiográfico".

DAVID: Essa acusação é muito mais reveladora a respeito de Révah que de Saraiva. Poderíamos responder que ele "erige" em método científico a compilação e resumo de documentos arbitrariamente escolhidos porque não é capaz de fazer mais nada. Mas não rastejemos nessa baixeza. Saraiva nunca disse nem pensou que a documentação inquisitorial era desprovida de valor para o historiador. Pelo contrário, há ali material para uma história prodigiosamente rica da sociedade portuguesa durante dois séculos e meio. O que ele diz é que no que respeita à acusação de heresia os processos inquisitoriais são altamente suspeitos, como o são aliás todos os processos ideológicos. É muito diferente...».

António José Saraiva (DIÁLOGO SOBRE A ENTREVISTA SILVA-RÉVAH, in «Diário de Lisboa», 27-5-1971).


«O sr. A. J. Saraiva chamou a si e confiou aos seus entes quiméricos uma tarefa que parece inexequível: convencer os leitores do Diário de Lisboa de que teve razão em não compulsar pessoalmente um único documento inquisitorial português ou espanhol antes de escrever A Inquisição Portuguesa (1956) e Inquisição e Cristãos-Novos (1969). Lá está, na carta ao director do Diário de Lisboa, a extraordinária profissão de fé: "O meu critério é outro. Não faço investigação arquivística porque não é essa a minha especialidade". É preciso ver isto preto no branco para acreditar na possibilidade de tal profissão de fé. Desisto de confrontar esta declaração com a biografia e a bibliografia do sr. A. J. Saraiva.

Este pseudo-historiador fez mais do que ignorar voluntariamente a imensa documentação inquisitorial ibérica (peninsular e extrapeninsular): tentou provar a inautenticidade original e radical desta documentação, e conseguiu iludir o grande público e muitos críticos que tinham a obrigação de examinar mais conscienciosamente o valor das teses do sr. A. J. Saraiva. Com a cínica má-fé que lhe conferiu o seu procriador, o fantástico David tem a audácia de afirmar: "Saraiva nunca disse nem pensou que a documentação inquisitorial era desprovida de valor para a historiador. Pelo contrário, há ali material para uma história prodigiosamente rica da sociedade portuguesa durante dois séculos e meio". Como a aldrabice, passe a palavra, de David não tem limites, já tinha fixado anteriormente o programa de trabalho que terão de seguir os "futuros" investigadores da documentação inquisitorial: o mesmo, evidentemente, que seguem há vários decénios os poucos historiadores sérios que se têm ocupado da Inquisição e dos Cristãos-Novos. "A primeira coisa a fazer é organizar o sumário dos arquivos inquisitoriais..." O sr. A. J. Saraiva ignora, é claro, que está à disposição dos investigadores, há bastantes anos, um sumário de valor desigual, mas, às vezes, muito útil, de todos os processos de um dos três tribunais portugueses. O segundo "quesito" do sonhado "sumário dos arquivos inquisitoriais" refere-se à genealogia dos presos.






Para mostrar a má-fé destas afirmações e programas, basta lembrar o prefácio de "Inquisição e Cristãos-Novos", onde o autor explica que a documentação inquisitorial "foi elaborada com vista a justificar a existência do Tribunal do Santo Ofício"; "estava no seu papel convencer o público de que a heresia judaica ameaçava subverter a sociedade cristã"; "Como veremos, não só a forma como cada processo era conduzido, mas as próprias normas processuais, o sistema de delação, o modo como se efectuavam as averiguações genealógicas, tudo convergia para o mesmo efeito" (p. 17; o itálico é nosso).

Os infelizes leitores do libelo não sabem, evidentemente, que, na imensa maioria dos casos, não se efectuavam averiguações genealógicas: os notários registavam as genealogias dadas pelos réus. Só havia averiguações quando um acusado de judaísmo afirmava que era cristão-velho, ou quando um cristão-velho proclamava a sua fé judaica. O sr. Saraiva dá um único exemplo do que considera como falsificação genealógica inquisitorial: o caso de Fr. Diogo da Assunção, queimado em 1603. O pseudo-historiador tem a certeza de que o autor do panfleto anti-inquisitorial de 1673-1674, Notícias Recônditas, "conheceu pessoalmente" (p. 105, n.º 80) o processo de Fr. Diogo, e critica J. L. de Azevedo por não ter utilizado a informação dada pelas Notícias. O Sr Saraiva tem tanta aversão aos arquivos que não lhe passou pela cabeça que, em vez de consultar as Notícias ou o resumo insuficiente do inquérito genealógico dado por A. J. Teixeira, seria mais profícuo ler o processo do frade, que está na Torre do Tombo. A leitura do processo prova: 1.º - que o autor das Notícias Recônditas, não o "conhecia pessoalmente" e fez numerosas afirmações inexactas ou falsas a seu respeito; 2.º - que o inquérito genealógico sobre Fr. Diogo merece toda a confiança; das sete pessoas interrogadas em Aveiro, duas disseram que o frade "tinha raça"; um fidalgo, interrogado em Coimbra, disse que o avô paterno do monge "era cristão-velho" e "homem honrado", mas que a avó paterna era filha de um judeu baptizado de Lorvão; seis testemunhas, interrogadas em Lorvão, disseram que este bisavô do frade era Judeu baptizado. É verdade que os inquisidores precisavam de poder afirmar que o monge não era inteiramente "limpo", mas é provável que, se tivessem induzido testemunhas a jurar falso (acusação levantada dubitativamente pelo demagogo sr. Saraiva), teriam arranjado uma genealogia mais "suja" e teriam encontrado mais de um bisavô judeu. Com este único exemplo, entre trinta mil possíveis, e um exemplo tendenciosamente utilizado, o sr. Saraiva, autor de "Inquisição e Cristãos-Novos", anula totalmente o valor das genealogias registadas pelo Santo Ofício: "É mais um exemplo [sic] a mostrar o valor real das notícias genealógicas de origem inquisitorial" (p. 132, nota 83). Mas David, filho espiritual do sr. Saraiva, aconselha os "futuros sumariadores dos arquivos inquisitoriais a não se esquecerem de apontar a genealogia dos presos".

Nas 319 páginas de "Inquisição e Cristãos-Novos", não há uma única indicação sobre o valor positivo, sobre a possível autenticidade, pelo menos parcial, da documentação inquisitorial, mas há muitas acusações contra a inautenticidade destes documentos. No entanto, o cínico David declara que "Saraiva nunca disse nem pensou que a documentação inquisitorial era desprovida de valor para o historiador... O que ele diz é que no que respeita à acusação de heresia os processos inquisitoriais são altamente suspeitos, como o são, aliás, todos os processos ideológicos. É muito diferente". O libelo do sr. Saraiva é dedicado "A Marcel Bataillon", autor de um livro sobre Erasme et l'Espagne, no qual foram aplicadamente utilizados uma dúzia de processos inquisitoriais contra pessoas acusadas de heresia, quer dizer, processos "altamente suspeitos, como o são, aliás, todos os processos de heresia". Já confessei publicamente que foi a leitura, feita aos vinte anos, do livro do prof. M. Bataillon, que me convenceu inteiramente da extraordinária importância dos arquivos inquisitoriais ibéricos para a história das culturas peninsulares. Terá adivinhado o prof. M. Bataillon, antes de 1937, o perigo a que se expunha, e os meios de o conjurar, perigo e meios descobertos pela argúcia do sr. Saraiva, em "Paris, Junho de 1968": "... o historiador escrupuloso que toma à letra os documentos emanados da Inquisição se arrisca a transviar-se num sábio labirinto. Só escapará a isso se tiver sempre presente a intencionalidade que presidiu à formação dos arquivos inquisitoriais, e esta só se lhe tornará clara se conseguir encarar a Inquisição não como uma fonte de documentos formalmente autênticos, mas como um factor dentro de uma situação histórica" (I. e C. N., p. 17; os itálicos são nossos).






O ódio manifestado pelo sr. Saraiva aos arquivos engendrou a ideia mais estrambólica que aparece em "Inquisição e Cristãos-Novos": a documentação inquisitorial foi elaborada com vista a justificar a existência do Tribunal do Santo Ofício; esta colaboração foi tão perfeita que conseguiu enganar os eruditos contemporâneos, "o que certamente não estava nas previsões dos inquisidores, mas não deixa de ser para eles um êxito impressionante" (I. e C. N., p. 75). Já que tudo quanto eu mesmo disse até hoje se encontra, segundo o arguto David, nas obras de J. L. de Azevedo, L. Wolf e C. Roth, "não falando no livro básico de Graetz", vale a pena confessar que roubei a António Baião a conclusão desta parte da Tréplica. Ao falar dos cartórios do Santo Ofício, A. Baião escreveu:

"Referindo-se a eles escreve com razão Cunha Rivara: 'Pelo que respeita à Inquisição, mal se poderá formar juízo seguro e imparcial, enquanto se não for a essa Torre do Tombo resolver os processos da Inquisição'. E de facto não pode haver guia mais seguro para o estudioso, pois que os cartórios do Santo Ofício, que felizmente escaparam do terramoto de 1755, eram secretos, e, por isso, o que nos seus documentos se escreveu, era a expressão da verdade e nunca destinado a iludir quem quer que fosse".

A documentação inquisitorial revela mesmo os casos em que os juízes da fé infringiram o direito que vigorava na sua instituição:

1.º - Manuel Fernandes Vilareal foi executado, essencialmente, porque tinha descoberto o segredo dos "cárceres de vigia"; oito juízes do tribunal de Lisboa assinaram uma ordem de "assassínio", que não era "legal" (como afirma o sr. Saraiva), mas completamente "ilegal" (nada, no Regimento, autorizava esta condenação). Mas não pretenderam iludir quem quer que lesse o processo, porque escreveram, tintim por tintim, que condenavam o preso por "ser tão manhoso que atinou com os buracos das vigias dos cárceres... e, portanto, causaria notável prejuízo ao ministério do Santo Ofício, publicando e descobrindo o segredo das vigias, que é de tanta importância, podendo-se temer com toda a certeza que seria o réu (escapando) de grandíssimo dano ao tribunal da Inquisição e seu justo procedimento, o que muito se devia e deve atender, ainda no caso que este réu pudesse chegar a estado de escapar com vida" (assento de 21 de Novembro de 1652).

2.º - António José da Silva, "o Judeu", foi "ilegalmente" preso em 1737, porque não havia culpa formal que justificasse a prisão, mas unicamente uma suspeita muito forte; "foi a prisão decretada por ordem verbal, dada na mesa dos Inquisidores pelo cardeal Nuno da Cunha", inquisidor-mor, mas "deste procedimento especial se fez menção nos autos, para descargo dos Inquisidores da Mesa" (J. L. de Azevedo, Novas Epanáforas, pp. 199 e 200). A escrava Leonor, que também não tinha culpas, foi presa e trazida à cadeia da Penitenciária (não aos cárceres secretos), porque se esperava que denunciaria os membros da família do "Judeu"; não é caso único na história da Inquisição, mas a "ilegalidade" ficou registada nos autos».

I. S. Révah («OS CRISTÃOS-NOVOS PORTUGUESES E A INQUISIÇÃO», Tréplica ao sr. António José Saraiva, in «Diário de Lisboa», 5-8-71).





COMO E PORQUÊ FOI INTRODUZIDA A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL


O desaparecimento do Judeu como personalidade jurídica, étnica ou religiosa não implicava automaticamente o desaparecimento do anti-semitismo. Basta pensar que o Judeu não é a causa do anti-semitismo, mas o seu pretexto, a sua motivação ilusória. Ou melhor: as comunidades hebraicas dentro das sociedades cristãs eram a ocasião e o ponto de aplicação de um conjunto de tendências e sentimentos colectivos que tomaram a forma do anti-semitismo. O hábito generalizado de odiar e humilhar o Judeu faz parte de um sistema social de tensões afectivas que o simples facto da conversão em massa dos Hebreus portugueses não podia por si só abolir.

Para a gente miúda e oprimida, o Judeu era o ponto de fixação de descontentamentos e frustrações de vária origem. Constituía um grupo à parte, fora da solidariedade que unia a grei cristã, inteiramente desprotegido contra o ódio, a humilhação, os impulsos que pedem vítimas e culpados. Era, por outro lado, um grupo de párias, em relação ao qual qualquer cristão, por mais miserável, podia sentir-se privilegiado. O facto de o Judeu ser frequentemente rico em nada alterava esta situação. Pelo contrário, conferia ao membro da comunidade cristã, senhor presumido na sua terra, o sentimento de uma nobreza, de uma legitimidade que não dependia da fortuna, que era de algum modo intrínseca, inalienável e hereditária. Era privilégio nato e gratuito de todo o Cristão poder vilipendiar o Judeu, e este privilégio ganhava tanto mais valor para o usuário quanto mais baixo se encontrava na hierarquia social. O Judeu era de algum modo o pedestal em que assentava a pirâmide feudal dos privilégios.


Representação medieval antisemita


Não obstante a assimilação em curso, a função desempenhada pelos antigos Judeus subsiste, bem como o sistema de tensões em que eles eram indispensáveis. Só que o Cristão-Novo toma o lugar do Judeu. Nos memoriais que escrevem ao Papa e ao Rei de Portugal no decorrer das negociações que levará à criação da Inquisição, os Cristãos-Novos queixam-se repetidamente dos ódios e violências de que são vítimas. Segundo eles, era sobretudo a «gente baixa» que já antes de 1546 rejubilava e se alvoraçava quando os via queimar. Exceptuando os senhores fidalgos, dizem eles também, todo o povo («mundo») os perseguia e especialmente um género de gente ciosa que eram os escudeiros (22). Gil Vicente deixou-nos o retrato inesquecível destes pícaros esfomeados que afectavam maneira de corte e blasonavam de fidalgos.

Não faltou quem se encarregasse de estimular e organizar esta transferência de ódio ao Judeu para o Cristão-Novo. Acima de todos, os pequenos clérigos em que se distinguiam os frades dominicanos. Eles desempenhavam em Portugal como em Espanha um papel decisivo no desencadeamento dos pogroms. Tal como em 1449, são eles que estão à frente da matança iniciada em 19 de Abril de 1506 em Lisboa. No decorrer de uma cerimónia religiosa na Igreja de S. Domingos, um homem que participava de um resplendor que saía de um crucifixo, teve a ideia inoportuna de argumentar que se tratava apenas do reflexo de uma vela. Foi logo taxado de Cristão-Novo, morto e queimado in loco. Dois frades dominicanos brandindo crucifixos excitaram os fiéis aos gritos de «heresia, heresia!». Durante três dias a cidade esteve nas mãos dos amotinados, que pilhavam as casas, atiravam mulheres e crianças da janela à rua e acendiam por toda a parte fogueiras onde ardiam vivos e mortos. Bandos embarcadiços nórdicos de passagem em Lisboa participaram na pilhagem e no massacre.

Houve perto de dois mil mortos na cidade, segundo Damião de Góis, entre eles João Rodrigues Mascarenhas, cobrador de impostos reais, um dos homens mais ricos de Lisboa. O Rei, ausente no Alentejo, reagiu com energia: pena de morte e confiscação dos bens para os malfeitores; castigos para os cúmplices passivos; punição colectiva da cidade com a abolição de alguns dos seus privilégios. Mandou queimar os dois frades provocadores, depois de lhes fazer tirar as ordens. É isto pelo menos o que diz o cronista Damião de Góis, mas parece que afinal os dois frades escaparam na confusão, porque trinta e seis anos depois estavam vivos e participavam activamente em Roma no negócio da Inquisição, ao serviço de D. João III (23).

Todas as ocasiões ou pretextos serviam à demagogia clerical. Em 1531 por ocasião de um terramoto, os frades de Santarém lançaram o pânico no povo pregando-lhe que se tratava de um castigo de Deus por os Portugueses consentirem os Judeus no seu seio. É provável que esta pregação não fosse alheia à campanha para a introdução da Inquisição em Portugal, pois ocorre no mesmo ano em que D. João III encetava as suas diligências secretas nesse sentido. O poeta Gil Vicente, que então se encontrava em Santarém, levantou-se contra os frades, e fazendo-os reunir no claustro do convento de S. Francisco pregou-lhes, ele, outro sermão, explicando que um terramoto é um fenómeno da Natureza e que os hereges devem ser convertidos pela persuasão. As suas razões vêm resumidas numa carta que a este propósito escreveu a D. João III. Este curioso episódio mostra que na época em que se tramava a sua introdução em Portugal, o Santo Ofício tinha partidários e adversários e era possível ainda defender na corte a política tolerante de D. Manuel (24).



Retrato de D. João III








Mapa do Império Português no reinado de D. João III



A conversão forçada só podia ter exacerbado o anti-semitismo tradicional dos pequenos clérigos na Península Ibérica, espécie de plebe eclesiástica que, ao contrário do alto clero, vivia do seu trabalho sacerdotal, missas, confissões, procissões, pregações, etc. O combate ao pecado e à heresia era uma das suas razões de viver, uma forma de ganha-pão. A pregação contra os Cristãos-Novos, esses antigos Judeus que agora caíam sob a alçada da Igreja, era para eles uma empreitada considerável, uma ocasião magnífica para fazerem valer o seu ofício, na medida, evidentemente, em que se pudesse dizer que os Cristãos-Novos continuavam a judaizar. Mas, além disto, a integração da antiga comunidade hebraica constituía para eles uma ameaça surda. Os pequenos clérigos orientavam e doutrinavam a massa dos crentes, com que estavam em contacto directo; faziam e dirigiam a opinião como intermediários entre a aristocracia e o povo, que não conhecia praticamente outros letrados. Ora a conversão de 1497 introduzia no seio da Cristandade um grupo numeroso de letrados não-clericais, médicos, farmacêuticos, escribas de vária sorte, negociantes alfabetizados, de quem se podia temer que fizessem concorrência aos clérigos naquela função. Somando-se aos quadros médios intelectuais não-clericais já existentes, constituíam um conjunto que ameaçava o monopólio clerical da opinião. A conversão rompia a barreira que os tornava inofensivos.

Este sector intelectual leigo estava, pela sua própria origem, facilmente exposto à acusação de heterodoxia. Além de que a tradição cultural hebraica, independentemente da prática religiosa, continuava viva para os sobreviventes das Judiarias e seus imediatos descendentes, a própria mudança forçada de religião os preparava para uma atitude tendente ao cepticismo ou à inquietação religiosa. Esboçava-se deste modo uma rivalidade entre o sector intelectual burguês, tendencialmente laico, rivalidade que perdurará até à época contemporânea. É curioso que o Cristão-Novo que deu pretexto ao pogrom de 1506 em Lisboa escandalizou o povo dizendo que uma imagem de pau não podia fazer milagres; e o episódio do tremor de terra de Santarém, castigo de Deus, segundo os frades, fenómeno da Natureza, segundo Gil Vicente, mostra como duas concepções do mundo se podiam então afrontar a propósito de Cristãos-Novos.

Assim, os pequenos clérigos tinham, além dos sentimentos colectivos em que todos participavam, os seus móbiles próprios e imediatos quando acusavam, identificavam e apontavam ao povo os Cristãos-Novos como Judeus disfarçados, fazendo os possíveis para que eles não se despersonalizassem na massa do povo cristão.

No que respeita aos grupos dirigentes, isto é, à nobreza e ao alto clero, a perspectiva é diferente, mas complementar da que ficou apontada para as classes populares. O anti-semitismo tinha provavelmente menos força emocional nas pessoas pertencentes a este grupo. Sabemos que os nobres privavam com os Judeus ricos, e depois da conversão (...), muitos casaram com mulheres de origem hebraica portadoras de ricos dotes. Os próprios Cristãos-Novos pretendem, como vimos, que só os nobres os não perseguem. O fidalgo, que tinha abaixo de si várias classes de vilãos, não precisava do judeu-pária para se sentir privilegiado. Mas é óbvio que a Nobreza, como grupo, estava vitalmente interessada no equilíbrio social existente e no sistema de tensões indispensáveis à hierarquia em que ela ocupava a posição mais privilegiada. Ora a hierarquia estava ameaçada e a integração dos antigos Judeus era um perigo para a sociedade tradicional sobretudo na conjuntura económica em que ocorria.

A empresa ultramarina teve dois efeitos contraditórios. Por um lado, fortalecia o poder da Coroa, e por consequência o do corpo da nobreza, de que aquela era, nesta época, a expressão. Por outro lado, abria, a longo prazo, horizontes ilimitados de expansão à burguesia mercantil portuguesa.

Quanto ao primeiro efeito, é verdade que a Coroa Portuguesa assumiu a direcção de uma enorme empresa mercantil, intitulando-se o Rei «senhor do comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia». O paço real instalou-se junto do cais, num edifício cuja parte baixa era ocupada pelos armazéns e escritórios da «Casa da Índia», que recebia, controlava e reexpedia as mercadorias do Oriente e as com que estas se pagavam. Na Europa o Rei de Portugal era alcunhado de «rei da pimenta». O grosso deste negócio constituía monopólio da Coroa, e os seus lucros eram distribuídos entre os funcionários civis e militares nomeados pelo Rei, quer sob a forma de ordenados e prémios, quer sob a forma de direitos, quer ainda sob a de oportunidade de rapina guerreira. Os beneficiários principais eram recrutados na nobreza tradicional, que desta forma enriqueceu, não por meio de uma actividade comercial, mas no exercício de cargos militares e administrativos ou no gozo de sinecuras. Poderia talvez, sem grande erro, comparar-se a Coroa Portuguesa a uma grande organização monopolista, cujos benefícios são atribuídos entre funcionários e accionistas, sob a forma de ordenados e dividendos, sendo que esses funcionários e accionistas não exercem pessoalmente uma actividade industrial ou comercial. Assim se explica que a nobreza portuguesa, embora beneficiando dos proventos do comércio da Coroa, não se tenha forjado uma mentalidade burguesa.




Paço da Ribeira



Desta forma, se o Estado português no século XVI oferece exteriormente uma aparência «moderna», na medida em que é uma grande empresa económica, por outro lado, ele assegura, no interior do País, a persistência de uma sociedade arcaica, na medida em que garante o domínio de uma classe tradicionalmente dominante, cujo espírito está nos antípodas do burguês. Um aspecto deste arcaísmo (que também é visível em Espanha) aparece justamente no enorme acréscimo dos bens da Igreja, que, na prática, eram património colectivo e sorteado dos filhos segundos da nobreza.

Mas contra este fortalecimento do poder real em benefício da nobreza, o processo absoluto da burguesia era inevitável numa sociedade onde se multiplicavam as possibilidades de negócio em escala mundial. Nem tudo era monopólio real. Para dar exemplos, ficavam à margem dele, mais ou menos, o comércio do açúcar, as operações bancárias e de câmbios, sem falar em toda a sorte de contrabando. Sem falar de que os monopólios podiam ser explorados sob a forma de arrendamentos entregues a homens de negócio: foi o caso dos escravos, e inclusivamente, por vezes, o da pimenta. Para usar uma expressão talvez incorrecta, à falta de outra, estas actividades marginais constituem um sector privado em face do sector público representado pelo monopólio régio, sendo que, grosso modo, o sector público tende a identificar-se com a nobreza tradicional, de mentalidade arcaizante, e o sector privado com a burguesia empreendedora.

O monopólio real dá sinais de dificuldades crescentes a partir da terceira década do século XVI. Em 1534 o Estado português é obrigado a faltar aos seus compromissos para com os credores estrangeiros. Em 1542 começa a evacuação das praças de África por falta de recursos financeiros. Nesse mesmo ano, o redactor das instruções ao núncio Lippomano escreve que «Portugal está reduzido a termos que tem pouquíssimas forças» e que o Rei «é pobríssimo com grandíssimas dívidas dentro e fora do reino, oneradas com pesadíssimos juros». Em 1560 suspende-se o pagamento dos juros da Casa da Índia. A guerra em África que terminará pelo desastre de Alcácer-Quibir (1578) aparece inicialmente como uma esperança de refazer as finanças públicas e as fortunas privadas da nobreza. Mas o fim desastroso da campanha colocou os nobres à mercê das dívidas de Filipe II. Todavia, paralelamente a esta ruína do Estado e do seu monopólio, assistimos a uma prosperidade crescente da burguesia mercantil portuguesa, isto é, do referido «sector privado», tanto no Oriente e no Brasil como no porto e praça de Lisboa, que se torna no final do século um grande centro europeu de operações comerciais e financeiras.

Dentro de tal conjuntura quais eram as incidências da assimilação dos antigos Judeus?

Como vimos, existia antes da conversão forçada uma burguesia mercantil judaica separada da burguesia correspondente cristã. Mas esta burguesia discriminada era ao mesmo tempo uma população de párias, e por isso em situação de inferioridade perante todos os outros grupos do País. A abolição da discriminação significava para ela o acesso a uma posição jurídica incomparavelmente mais forte e a libertação de servidões que até aí a tolhiam. Por outro lado, como adiante veremos, deu lugar à fusão populacional das duas burguesias, o que se tornou por sua vez um factor poderoso da expansão da burguesia mercantil portuguesa no seu conjunto. Ao longo do séc. XVII vemos afirmar-se cada vez mais o poder económico e finalmente político dos «homens de negócio» ou «gente da nação» ( = Cristãos-Novos), expressões que se tornaram sinónimas, inclusivamente em documentos oficiais, como também veremos a seu tempo.

De facto, a assimilação dos antigos Judeus insere-se num processo de transformação estrutural da sociedade portuguesa a expensas do grupo que beneficiava da estrutura tradicional. A abolição da casta dos párias ameaçava a sociedade hierárquica no seu conjunto, quer sob o aspecto material, quer sob o dos valores ideológicos. Economicamente, libertava uma grande parte da burguesia mercantil portuguesa de uma pesada hipoteca. Ideologicamente, destruía um dos pilares da hierarquia dos privilégios. Os dois aspectos constituem, no caso que estamos considerando, as duas faces da mesma moeda.




Há ainda a considerar, nesta situação, os problemas e os motivos particulares da Coroa.

Segundo as instruções ao núncio Luís Lippomano em 1542, o Rei de Portugal deixava-se governar por frades e monges, os quais «neste reino são poderosíssimos», e, insinuava o documento, perigosos. Mas seria erro pensar que esta influência dos clérigos na Corte resultava unicamente das propensões devotas do Rei. Não só sob o ponto de vista espiritual, como sob o ponto de vista material, os negócios eclesiásticos tinham nesta época em Portugal uma importância que é difícil exagerar.

A Igreja possuía a maior parte da terra e dos rendimentos feudais distribuídos entre os filhos segundos da nobreza, os quais, à falta de outro modo de vida, se empregavam em cargos eclesiásticos, enquanto as mulheres celibatárias se colocavam nos conventos. Os membros da família real não escapavam a esta situação e os lugares mais rendosos da Igreja portuguesa, como os arcebispados de Lisboa, Évora e Braga, a abadia de Alcobaça, o priorado de Santa Cruz, não falando já dos mestrados das ordens militares, foram durante anos apanágio dos irmãos ou sobrinhos do Rei D. João III. Dava-se a curiosa situação de a família real se encontrar no topo da hierarquia eclesiástica, e foi por uma acumulação de probabilidades que a Coroa de Portugal veio, em 1578, a assentar na cabeça de um cardeal, irmão do Rei, que fora arcebispo de Braga e de Évora, prior de Santa Cruz, abade de Alcobaça, e Inquisidor-Geral. Relativamente aos altos cargos eclesiásticos, o problema consistia em que as rendas não chegavam para os candidatos, apesar de durante este reinado terem sido criadas novas dioceses, resultantes do desmembramento das antigas, bem como numerosos outros postos e dignidades eclesiásticas, com dotações régias e particulares. Mas o baixo clero também se multiplicava, e vertiginosamente, dando lugar a problemas de subsistência. Em 1620, segundo Nicolau Rodrigues de Oliveira no Livro das Grandezas de Lisboa, havia nesta cidade, que contava 165 000 habitantes, 3189 frades e freiras, ao lado de 121 médicos, boticários, cirurgiãos, mestres de ler e tabeliães. Já um século antes Gil Vicente resumia a situação fazendo dizer a uma das suas personagens «somos mais frades que terra». Esta multidão de gente dependia, em teoria, do Papa, que, de resto, tinha os seus pretendentes às rendas da Igreja Portuguesa; mas é óbvio que o Rei de Portugal não podia deixar por mãos alheias gente e negócios de tanta importância. Todo o reinado de D. João III é sob o ponto de vista diplomático uma luta pertinaz com o Vaticano em que o que está em causa é a distribuição das rendas da Igreja e a supremacia nos negócios eclesiásticos do Reino.

A situação de D. João III é análoga à de outros príncipes da Cristandade da mesma época, que entraram em conflito aberto com o Papa, ou que favoreceram a dissidência religiosa para poderem dispor livremente de bens eclesiásticos. Neste conflito o Rei de Portugal apoiava-se nos clérigos e frades, que lhe povoavam a corte e constituíam provavelmente a maioria do seu estado-maior. Representante ao mesmo tempo do poder secular como chefe da nação, frente às pretensões da Cúria romana, e do poder eclesiástico, na medida em que era o defensor e protector do clero nacional, D. João III oferece neste particular uma fisionomia ambígua em que o poder religioso, expressão de uma ordem teocrática, ora parece servir, ora parece dominar o poder secular.

Em tal situação, a Inquisição castelhana oferecia do ponto de vista da Coroa um modelo de solução naturalmente indicado. Os inquisidores eram designados pelo Rei e tinham poderes de delegados pontifícios. Constituíam por isso uma muralha contra a intromissões da Santa Sé e um poder superior aos dos bispos. Em princípio, a Inquisição castelhana fortalecia o «braço espiritual» do Rei. Por outro lado representava a criação de novos empregos para candidatos à profissão eclesiástica e de uma nova fonte de recursos a acrescentar aos tradicionais rendimentos feudais. Essa fonte eram os bens dos Cristãos-Novos, que, por via das confiscações ou outras, iam alimentar o pessoal inquisitorial. Trata-se na realidade de uma curiosa forma de imposto não periódico sobre uma massa enorme e crescente de bens que estavam então fora do circuito da apropriação feudal. Por outro lado ainda, restabelecendo a discriminação, a Inquisição e as leis de limpeza de sangue permitiam riscar uma parte dos candidatos aos bens da Igreja, justamente os oriundos de uma gente nova e até então excluída desses bens.

Pintura de 1683 de Francisco Rizi retratando um auto-de-fé na Plaza Mayor, em Madrid, 1680.


É dentro deste conjunto que nos parece que deve explicar-se a iniciativa de D. João III para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, trinta e cinco anos depois da conversão forçada. A Inquisição representa, ao que supomos, o lugar geométrico de várias linhas de força, a chave para a solução, segundo o ponto de vista do grupo que então funcionava como sujeito histórico, de toda uma constelação de situações e de tendências. Tudo se reduzia a que a Inquisição permitia restabelecer sob a nova forma a discriminação que D. Manuel abolira. Dessa maneira, seria restaurada a casta não-privilegiada, base dos privilégios; seria mantido aquilo que atrás ficou designado como sistema social de tensões afectivas, necessário ao equilíbrio tradicional da sociedade, e tanto mais quanto esse equilíbrio estava ameaçado; seria restabelecida a hipoteca, não já sobre uma parte da burguesia mercantil portuguesa mas (...) sobre o conjunto dela. Além disto, seria contido o ascenso da intelectualidade laica, em proveito da clerical, e a Coroa veria, aparentemente, resolvidos alguns dos seus problemas particulares mais urgentes.

O ponto essencial deste conjunto de situações e tendências é que a sociedade tradicional iniciava uma luta duradoura contra o processo que ia destruí-la; e já na nova burguesia mercantil unificada pela assimilação forçada dos antigos judeus se desenhavam os contornos da futura classe dirigente. A mercadoria, num movimento uniformizante que tende à linha horizontal, extravasa dos limites que lhe são impostos pela pirâmide hierárquica.

Naturalmente, não houve uma equipa tecnocrática que estudasse e determinasse as soluções mais convenientes para os problemas que então se punham aos detentores do Poder. Mas não é só nos nossos dias que a vontade dos dirigentes intervém no processo social. Ainda em 1524 D. João III confirmara as leis de D. Manuel contra a discriminação; e nenhuma urgência inelutável parecia obrigá-lo a estabelecer o Tribunal do Santo Ofício, trinta e cinco anos passados sobre o baptismo forçado. A Inquisição espanhola fora instituída no mais aceso da luta entre os Judeus praticantes, que conservavam as sinagogas, e os Cristãos. A Inquisição portuguesa é pedida sem que acontecimentos imediatos e suficientemente volumosos o façam prever, e quando já o momento crítico da assimilação estava longe no tempo. Não era o passado que pressionava o Rei, mas a presciência do futuro. É difícil não ver no acto de D. João III uma determinação arbitrária, uma decisão, uma escolha política, muito mais do que uma fatalidade.

A história das longas negociações entre o Rei e o Papa para o estabelecimento da Inquisição é significativa. Nos termos das instruções ao enviado Brás Neto, no começo de 1531, o Inquisidor-mor seria escolhido pelo Rei, assim como os outros inquisidores, podendo estes últimos ser não apenas clérigos mas também juristas leigos, que passariam para o efeito a ter o mesmo poder e jurisdição que os eclesiásticos. Outro ponto bem claro nestas instruções é a primazia dos inquisidores sobre os prelados das dioceses e ordens religiosas: teriam poderes para processar e condenar eclesiásticos sem consultar os respectivos prelados, ficando os bispos impedidos de intervir em qualquer causa que os inquisidores chamassem a si. Na qualidade de delegados do Papa, os inquisidores poderiam impor excomunhões reservadas à Santa Sé e levantar as que eram impostas pelos prelados da diocese. Quanto ao processo e às penas, eram os da Inquisição de Castela, e no decorrer da discussão com o Papa revelar-se-á que o Rei de Portugal não dispensa, quanto ao processo, as testemunhas secretas e, quanto às penas, o confisco (25).

Dificilmente poderia o Pontífice romano aceitar estas pretensões e é compreensível que durante 27 anos resistisse à teimosia incansável de D. João III. Essa longa intriga, que ilustra admiravelmente os costumes diplomáticos do século XVI, é um folhetim de agentes secretos, de conspirações subterrâneas, de subornos, de facadas, de surpresas; mas os episódios romanescos não escondem o essencial que são as posições relativas de Portugal e da Santa Sé. A fama da ferocidade bárbara da Inquisição castelhana não favorecia as pretensões de D. João III numa corte de príncipes da Igreja dados à literatura e às belas-artes, muitos deles penetrados de espírito humanista, alguns profundamente cristãos, outros tolerantes até ao cepticismo. Em Roma o fanatismo ibérico era sinal de incivilização. Mas, para lá desta incompatibilidade espiritual, o que opõe o Papa e o Rei de Portugal é um litígio sobre os poderes de cada qual.



Papa Clemente VII






Brasão pontifical de Clemente VII





Não obstante a opinião corrente em Roma de que o propósito de D. João III era apoderar-se dos bens dos Cristãos-Novos, o Papa Clemente VII concedeu, quase um ano depois da primeira diligência daquele, uma Inquisição para Portugal, mas em condições que o Rei não podia aceitar. Em vez de dar ao Rei poderes para nomear inquisidores, o Papa nomeou directamente um Comissário da Sé apostólica e Inquisidor no reino de Portugal e seus domínios. Esse Comissário da Santa Sé poderia nomear outros inquisidores, mas a sua autoridade não estava acima da dos bispos, que poderiam também por seu lado investigar as heresias. O Comissário e Inquisidor-mor nomeado era confessor de D. João III, Fr. Diogo da Silva (Bula de 17-12-1531).

Os termos desta bula nunca foram aplicados em Portugal. O Inquisidor nomeado não aceitou o cargo, verosimilmente por pressão do Rei. Apesar disto, no meio da grande excitação popular, começaram a funcionar tribunais inquisitoriais em algumas dioceses, anarquicamente. A bula de 17 de Dezembro servirá apenas como sinal ao desencadeamento de violências. Aqui, o Papa voltou atrás, suspendeu, primeiro, a Inquisição, e em seguida, alegando que o Rei de Portugal o enganara, escondendo-lhe a conversão forçada dos Judeus no reinado de D. Manuel, ordenou o perdão geral das culpas de Judaísmo, a libertação dos presos, a restituição dos bens confiscados e a libertação dos condenados (Bula de 7 de Abril de 1535).

O relatório em que se baseiam estas decisões de Clemente VII é de grande interesse. Lembrava-se aí da verdadeira doutrina sobre a conversão dos Infiéis, que deve fazer-se pela persuasão e pela doçura, com a mansidão de que Cristo deu o exemplo e respeitando o livre-arbítrio humano. Exprobrava-se a conversão violenta dos Judeus no reinado de D. Manuel. Insistia-se em que os novos convertidos deviam ser amparados e instruídos caridosamente, e lembrava-se que os Apóstolos e os seus imediatos sucessores sacrificavam até a disciplina cristã a hábitos arreigados dos novos convertidos, quando esses hábitos não ofendiam a pureza do Cristianismo. Notemos que há neste ponto uma alusão clara aos usos judaicos que, depois da conversão, persistiam sem prejuízo da prática dos ritos cristãos, usos a que os Cristãos-Novos, como veremos, contestavam qualquer significado religioso intencional. Quanto à Inquisição, o relatório reproduzia uma informação sobre o funcionamento dos tribunais inquisitoriais. «Se é delatado, às vezes por testemunhas falsas, qualquer desses mal-aventurados por cuja redenção Cristo morreu, os inquisidores arrastam-no a calabouço onde lhe não é lícito ver céu nem terra, nem sequer falar com os seus para que o socorram. Acusam-no testemunhas ocultas, e não lhe revelam nem o lugar nem o tempo em que praticou isso de que o acusam. O que pode é adivinhar, e se atina com o nome, tem a vantagem de não servir contra ele o depoimento daquilo de que é culpado... Escolhem-lhe depois um advogado que frequentemente, em vez de o defender, ajuda a levá-lo ao patíbulo. Se confessa ser cristão verdadeiro e nega com constância os cargos que dele dão, condenam-no às chamas e os seus bens são confiscados. Se confessa tais ou tais actos, mas dizendo que os praticou sem má tenção, tratam-no do mesmo modo sob o pretexto de que nega as intenções. (...) O que chega a provar irrecusavelmente a sua inocência é, em todo o caso, multado em certa soma, para que não diga que o tiveram retido sem motivo. Já se não fala em que os presos são constrangidos com todo o género de tormentos a confessar quaisquer delitos que lhes atribuam. Morrem muitos nos cárceres, e ainda os que saem soltos ficam desonrados, eles e os seus, com o ferrete da perpétua infâmia. Em suma, os abusos dos inquisidores são tais que facilmente poderá entender quem quer que tenha a menor ideia da índole do Cristianismo que eles são ministros de Satanás e não de Cristo». Certificado destes factos, vendo que os inquisidores tratavam os conversos, não como pastores, mas como ladrões e mercenários (sic), o Santo Padre não só suspendera a Inquisição, mas também, para reparar a falta que cometera com as vítimas e seguindo o exemplo de Cristo, de quem é próprio compadecer-se e perdoar, quisera dar-lhes uma reparação por meio do perdão. Fazendo-o, de resto, notava o documento, o Pontífice não fazia mais que prolongar os privilégios e isenções concedidos por D. Manuel.

Este documento, que contém já a súmula das acusações que posteriormente hão-de ser lançadas sobre a Inquisição portuguesa, mostra que a motivação religiosa alegada por D. João III não era tomada a sério por alguns contemporâneos. A posição oficial da Santa Sé era que o verdadeiro e bem entendido Cristianismo a obrigava a defender e proteger os Cristãos-Novos, vítimas desamparadas de um poder bárbaro e tirânico.



Papa Clemente VII coroa Carlos V. Obra de Baccio Bandinelli e Giovanni Battista Caccini.



Carlos V



A morte do Papa Clemente impediu a aplicação da bula de perdão. O seu sucessor, Paulo III, após várias oscilações, mandou pô-la em vigor (Bula de 17 de Março de 1935), suspendendo os processos em curso e libertando numerosos presos. Só depois de muito insistir e negociar, metendo de permeio a intercessão de Carlos V, seu cunhado, alcançou D. João III o restabelecimento da Inquisição. Desta vez, pela Bula de 23 de Maio de 1536, o Papa nomeava três inquisidores e autorizava o Rei a nomear um outro. Além disso, determinava que durante três anos os nomes das testemunhas de acusação não fossem secretos, e que durante dez anos os bens dos condenados não fossem confiscados. Os bispos teriam os mesmos poderes que os inquisidores no conhecimento das heresias. Por intermédio do seu núncio em Lisboa, o Papa reservava-se o direito de fiscalizar o cumprimento da bula, de conhecer os processos quando o entendesse e de decidir em última instância.

É a partir desta bula que pode considerar-se definitivamente estabelecida a Inquisição em Portugal, embora houvesse posteriormente alterações ao estatuto inquisitorial. A bula foi publicada solenemente em Évora, então residência real. Mas já antes (16 de Agosto) estava publicado o monitório convidando os fiéis a denunciarem os actos que vinham expostos numa longa lista.

Esta não era ainda a Inquisição que o Rei queria, e da qual não desistia. Antes de mais tratou de subtrair a Inquisição à vigilância do Papa, e para isso multiplicou os incidentes até obrigar a sair o núncio Capodiferro, que tinha poderes para suspender o tribunal, caso não fossem respeitadas as cláusulas de protecção aos Cristãos-Novos. Além disto, nomeou inquisidor o Infante D. Henrique, seu irmão, então arcebispo de Braga, moço de 27 anos, que não tinha idade legal para essas funções; enfim, aproveitava ou provocava todos os pretextos para fazer crer na maldade dos conversos. Assim, apareceu um papel nas portas da catedral e outras igrejas de Lisboa, anunciando a chegada próxima do Messias; fez-se à volta disso grande escândalo, e um homem morreu queimado – culpado ou não. Um alfaiate de Setúbal anunciou-se como Messias, e apesar de se tratar de um acto sem repercussão nem consequências, o Rei fez com ele um grande fogo para convencer Roma dos perigos do Judaísmo em Portugal. A importância dada a tais «provas» faz supor que faltavam outras menos fúteis.

Os Cristãos-Novos tinham em Roma os seus agentes, declarados ou secretos, dispondo de grandes somas para contaminar as diligências do Rei de Portugal. A sua posição consistiu em negar que houvesse razões que justificassem o estabelecimento da Inquisição, e, no caso de esta ser estabelecida, em pedir que se regesse pelas normas dos tribunais comuns.

Mestre Jorge Lião, escrevendo em nome de «este povo» ao procurador dos Cristãos-Novos em Roma, em Dezembro de 1542 (26), diz que quando veio o perdão geral de 1535 «não sabiam os modos da Inquisição porque ainda não era posta, nem sabiam quantas cousas se hoje hão por crimes e por delitos de heresia. Que, antes que viesse a Inquisição, cuidavam que não erravam em as fazer, ainda que as não faziam para judaizar, senão por costume. E portanto dizem que, se hoje tivessem um perdão geral como o passado, que se causaria não haver aí Inquisição porque estariam advertidos de todas estas cousas que agora lhes põem em monitórios e pregações para os culpar». Com efeito, os actos puníveis pela Inquisição foram pela primeira vez enunciados no monitório de 16 de Agosto de 1536, muito embora antes disso já funcionassem alguns tribunais, como vimos.

Mestre Lião dá-nos um exemplo dessas culpas de que as vítimas não tinham consciência: «Se lá forem as sentenças que cá se deram, acharão em uma delas de um homem de Cascais em que houveram por delito lavar mortos e vestir camisa lavada e mortalha de pano novo, e ataúde novo. Parece forte cousa haver estas cousas por delitos, pois os Cristãos-Velhos o fazem geralmente, e o Direito o não defende». Quanto aos novos Messias, Jorge Lião reduz provavelmente os factos às suas verdadeiras proporções. Falava-se nos papéis enviados a Roma pelo Rei de Portugal de quarenta novos circuncidados que se teriam descoberto. Na realidade, «não é achado nenhum até agora de verdade, senão aquele Francisco Mendes que confessou circuncidar um filho que dias há que é finado (porque Nosso Senhor não havia de querer que pessoa em quem se fazia tamanho delito vivesse). E este Francisco Mendes foi um dos quatro que creram no sapateiro Messias. E não se devem condenar (ou ao menos não tolher o medo de proceder de justiça) a sessenta mil almas por haver quatro sandeus que mereceram mais ser como tais castigados que como homens de siso heréticos, porque não podia caber tal opinião senão em homens desassisados». Quanto à crença que professava pessoalmente mestre Jorge Lião, parece-me significativo, dado que se trata de uma carta de um cristão-novo a outro cristão-novo, enviada certamente com todo o resguardo e segurança, o passo seguinte: «Vemos, senhor, o que dizeis dos Antónios e dos Vazes, e assim do que prometem fazer contra este povo [...] Nós temos nossa esperança em Nosso Senhor Jesus Cristo, em quem vós também dizeis que a tendes, para não temer seus ameaços».


Mas no caso, a que se resignavam, de a Inquisição ficar instituída, os Cristãos-Novos pediam as garantias do processo comum, tais como: que os nomes das testemunhas de acusação não sejam secretos; que não se aceitem testemunhos de pessoas presas por Judaísmo («porque culpam os nossos por medo»), nem de escravos e pessoas vis; que os presos possam comunicar; que se ponham prazos para a conclusão do processo; que os réus possam escolher os seus próprios advogados, etc. Isto propõem quatro cristãos-novos consultados confidencialmente por D. João III sobre a maneira de evitar a saída dos Cristãos-Novos do reino, que continuava apesar da proibição legal. Os mesmos consultados pedem também a abolição das confiscações e de toda a discriminação: «que não se faça lei nem permita estatuto nem costume por que esta gente esteja separada dos Cristãos-Velhos». Se assim se fizer, asseguram os quatro conselheiros, evitar-se-á a fuga dos Cristãos-Novos; e os que estão em Castela e Galiza assim como em Flandres, França e Itália, regressarão em grande parte (27).

Tudo se reduz, afinal, a aplicar as regras correntes no processo comum. Era esse também um dos propósitos dos esforços do Papa, sendo o outro o de conservar na sua dependência o Tribunal do Santo Ofício em Portugal. As constantes intervenções do núncio nos negócios inquisitoriais provocaram o furor da Corte portuguesa, que conseguiu após várias provocações obrigá-lo a sair de Portugal. Para compensar os Cristãos-Novos da perda deste protector, o Santo Padre emitiu a bula de 12 de Outubro de 1539, que como regra geral proibia as testemunhas secretas e dava outras garantias aos acusados, das quais a mais importante, tanto para os Cristãos-Novos como para a Santa Sé, era o direito de apelação para o Papa. Determinava também que os ordenados e emolumentos dos inquisidores não fossem pagos pelos bens dos presos.

Como todas as que favoreciam os Cristãos-Novos, esta bula nunca pôde ser publicada em Portugal; e a única mudança, após a partida do núncio, foi ficarem os inquisidores com as mãos livres. Em 20 de Setembro de 1540 realizava-se o primeiro auto-de-fé em Lisboa, e outras fogueiras ardiam entretanto em Coimbra, no Porto, em Lamego, Tomar e Évora. Perante esta impossibilidade de intervir, o Papa recorreu à solução radical, suspendendo a Inquisição, pelo breve de 22 de Setembro de 1544; mas tomou a precaução de fazer publicar de surpresa em Lisboa o dito breve, trazido secretamente por um novo núncio. Aí o Rei de Portugal jogou a sua carta máxima. Requereu ao Papa que revogasse a suspensão e restabelecesse a Inquisição sem quaisquer limitações, e concluía ameaçando: «Se Vossa Santidade não prover nisso, como é obrigado e dele se espera, não poderei deixar de remediá-lo confiando em que não somente do que suceder Vossa Santidade me haverá por sem culpa, mas também os príncipes e os fiéis cristãos que o souberem conhecerão que disso não sou causa nem ocasião». É uma ameaça inusitada, mas clara, de desobediência formal ao Papa e de cisão na Igreja. D. João III seguia, a uma distância de nove anos, o conselho que lhe fora dado por carta pelos seus dois enviados à Santa Sé em 1535: que negasse obediência ao Papa imitando o exemplo do rei de Inglaterra Henrique VIII. Entre a obediência ao Papa, como fiel católico, e a rebeldia declarada que lhe permitisse instituir um tribunal que era no fundo um instrumento régio, o Rei de Portugal estava disposto a seguir a segunda via.

Mas a autoridade do Papa neste negócio da Inquisição ficara fortemente prejudicada desde que em 1542 ele próprio estabeleceu a Inquisição em Roma. O partido intransigente expulsava da corte pontifícia o espírito humanístico que inspirou o documento em que se fundamentava a bula de perdão de Clemente VII. A Companhia de Jesus ganhava influência no Vaticano e no concílio, e Inácio de Loyola interveio pessoalmente a favor das pretensões do Rei de Portugal. A pressão de Carlos V mantinha-se e Paulo III não podia permitir-se ignorá-la no difícil jogo diplomático à volta do concílio que justamente por esta época começou a reunir-se. Recuando em batalha de retirada, o Papa acabou por aceitar o essencial das pretensões do Rei na bula de 16 de Julho de 1547, que nomeia Inquisidor-Geral o Cardeal D. Henrique, que manda aplicar o processo inquisitorial em lugar do processo comum e que retira a autoridade até então confiada aos núncios em Lisboa para intervirem em negócios da alçada dos inquisidores. Ao mesmo tempo, porém, o Papa promulgava uma bula de perdão com numerosas restrições, aliás, mais um breve suspendendo o confisco por dez anos, e um outro suspendendo por um ano a entrega de condenados ao braço secular (ou seja a aplicação da pena de morte). Num outro breve ainda, o Papa fazia certas recomendações tendentes a moderar os previsíveis excessos do tribunal e a permitir a saída para o estrangeiro dos Cristãos-Novos.





Brasão de Armas Reais e Cardinalícias de D. Henrique de Portugal.




Não cessou com isso o movimento pendular da Santa Sé relativamente a este negócio. Pouco antes de morrer, Paulo III promulgou ainda um breve (8 de Janeiro de 1549) que abolia o segredo das testemunhas. Nunca foi provavelmente aplicado em Portugal, mas obrigou o Rei a novas diligências em Roma. Só em 1560 foi aquele breve anulado sendo embaixador Lourenço Pires de Távora.

E é interessante notar que este diplomata, prevalecendo-se da autoridade que lhe vinha de ter sido o ministro por cuja diligência se acabou de efectuar este negócio, fez acompanhar este documento de uma carta sua ao Cardeal D. Henrique então Regente e Inquisidor-Geral, pondo-o de sobreaviso contra os perigos das testemunhas secretas:

«Creio que toda a moderação que a Justiça sofrer nas culpas dos Cristãos-Novos aprazerá a Deus e ao mundo. Pouca indústria e trabalho é necessário para os queimar a todos quem não tiver muita vigilância e os esperar e defender de falsidade. E esta parte toca a Vossa Alteza, porque sendo eles tão odiados e havendo tantas pessoas no mundo mal inclinadas, não se dando os nomes das testemunhas e não podendo os culpados dar facilmente contraditas ao que não sabem e a inimizades e respeitos ocultos, pode correr muito risco a verdadeira justiça. Pela qual cumpre a Vossa Alteza estar sempre com grande advertência» (28). Noutra carta sobre o mesmo negócio o mesmo embaixador acrescenta: «que se devia proceder nos defeitos dos Cristãos-Novos com justiça e misericórdia juntamente [...] havendo respeito a sua natureza e a como sua errada porfia não se pode estender a mais que aos da nação, que é já pouca, e o tempo e esquecimento da doutrina, com o medo do castigo, os irão fazendo bons». Não é aqui que está o perigo, nota o embaixador, mas na seita luterana: com essa sim, é preciso «proceder com todo o rigor e sem nenhuma piedade» (29). Estas palavras do embaixador português em Roma mostram que no século XVI havia gente bem informada que não considerava infalível a justiça dos inquisidores. Mas para que os conselhos de Távora tivessem cabimento, era preciso que a função dos inquisidores e da Inquisição fosse exterminar o Judaísmo que, como nota o mesmo Távora, estava em vias de extinção (ob. cit., pp. 39-55).


Notas:

(22) Corpo Diplom. vol. IX, carta de 12-2-1561. (P. 150).

(23) Damião de Góis, Crónica de D. Manuel, e Mestre Jorge Lião na carta abaixo indicada.

(24) Carta de Gil Vicente publicada na Copilaçam de todas as obras de Gil Vicente (1562) e em todas as edições das obras completas.

(25) Este documento, de 1531, encontra-se no Corpo Diplom. II, p. 319 e seguintes; sobre a introdução da Inquisição seguimos a narrativa minuciosa de Herculano na obra citada.

(26) A carta de Mestre Jorge Lião está no Corpo Diplom. V. Dezembro de 1542, pp. 158-167.

(27) Corpo Diplomático, V, ano de 1546, pp. 105 e segs.

(28) Carta de 12-5-1560, ibid., vol. VIII, pp. 476-477.

(29) Carta de 18-1-1560, ibid., vol. VIII, p. 310.

Continua


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