quinta-feira, 7 de abril de 2016

Inquisição e Cristãos-Novos (i)

Escrito por António José Saraiva





Sinagoga de Tomar, onde se encontra o Museu Luso-Hebraico Abraão Zacuto.



«Zacuto prometeu a D. Manuel descobrir a Índia, que Deus tinha guardada para a monarquia portuguesa.O Hibbur Hagadol, escrito em Salamanca (1473-1478) e que permitiria a José Vizinho o cálculo da tábua bissextil, para o ano de 1483-1484, continha o segredo. Origem do Regimento de Munique, e sendo o primeiro trabalho de astronomia publicado no nosso país, quando a empresa dos Descobrimentos já ia alongada, as tábuas do regimento da declinação, baseadas no Almanaque Perpétuo, davam, desde 1475, a posição diária do sol para cada signo do zodíaco e a respectiva declinação.

Joaquim Bansaúde concitou as atenções para a primazia da obra, que situa a cosmologia revolucionária hispânica do século XV, à frente da astrologia europeia medieval. Jaime Cortesão, que dá o seu acordo às teses de Bensaúde, quanto ao saber cabalístico dos Descobrimentos, admite, contudo, que Bensáude teria extravalorado o factor judaico, mas não contesta a tese principal do historiador judeu: a prioridade da navegação astronómica dos portugueses, sem ajuda que proviesse de outra parte, já que todo o saber era de matriz peninsular. Apesar da relevante importância do Almanaque, que determinou muito do saber posterior, ela foi sucessivamente ocultada, mesmo por investigadores modernos, como Duarte Leite. O encobrimento de Zacuto resulta, em parte, da política de sigilo em matéria científica, da proibição de se falar na ciência hebraica, em vigor desde o século XVI e, ainda, ao facto agora e logo patente, de ainda não sabermos na verdade quais as causas secretas dos Descobrimentos.

A estabilização de um depósito cabálico-científico na astronomia peninsular preparou os espíritos para uma recusa formal da propaganda da astrologia, mas isso não evitou que o mesmo Zacuto fosse utilizado para afirmações apocalípticas, senão em Portugal, pelo menos na Itália. Em contrapartida, os nossos judeus foram unânimes na demonstração filosófica da nulidade da astrologia judiciária e na apologia da astronomia científica. A posição judaica é compartilhada por autores como Gil Vicente e Garcia de Resende, e por quantos, em vista dos prognósticos para Fevereiro de 1524, negaram o determinismo planetário e afirmaram as teses do livre arbítrio e da providência divina. É o caso de Frei António de Beja, no Contra os Juízos dos Astrólogos (1523), cuja doutrina, ainda que bebida na cultura italiana, concorda com Abravanel e Zacuto, na distinção das duas astrologias, a da «falsa imaginação dos homens» e a da investigação planetária e estelar, em que a primeira merece anátema, por não ter sido, nem revelada, nem dada por certa, nem permitida por costume canónico.

Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Cristovão Colombo beneficiaram da sabedoria astronómica de Zacuto, e a este benefício se atribui uma quota-parte da questão em torno do enigma de Cristovão Colombo, sobre o qual se têm publicado alguns estudos, na maior parte corroborantes das fundas relações, mais do que científicas, com a genealogia judaica.



Vasco da Gama



A influência de Zacuto consta ainda do Tratado da Esfera, de Pedro Nunes, cujos netos se viram na Inquisição de Lisboa, sem se ter concluído se o avô seria meio cristão-novo ou cristão-novo por inteiro; e da obra dos nossos empiristas em geral, v. g. D. João de Castro, que, atento à história sagrada, no Roteiro de Goa (1541) visou identificar o local da passagem dos israelitas na fuga ao rei egípcio. Enfim, o canto V de Os Lusíadas releva de um evidente conhecimento das teorias de Zacuto.

Discípulo de Aboab e de Isaac Campaton, Zacuto é um rabanita que assimila a experiência cabalística. A Doçura da Alma, em três partes, na 1.ª parte, sobre a Cabala, o Paraíso e o Inferno.; na 2.ª parte, sobre o tempo e os costumes e, na 3.ª, sobre o mistério da ressurreição. Atenta na doutrina dos Cabalistas sobre a alma (analogia, anatomia e cosmogonia) nas ideias do presente, do futuro e da eternidade. Livro de piedade, colector dos artigos dignos de crença na esfera da filosofia, é como que uma conclusão teológica para a obra-prima de Zacuto, o Livro das Genealogias.

Este, divide-se em cinco secções ou maamarim, onde foca três assuntos maiores: a tradição judaica, desde Abraão a Simão, o Justo, último representante da Grande Sinagoga; a biografia dos principais sábios das sete gerações anteriores à destruição do Templo e das quatro gerações de tanaítas até à conclusão da Mishna; e a história dos amoraítas, saboréus e gaões, etc. Obra de certo modo autobiográfica, refere as perseguições que teve de sofrer e as violências praticadas contra israelitas, mas o que ressalta deste conjunto histórico é a teoria providencialista da história: toda a história humana se ordena à glória da Lei revelada a Israel. Por exemplo, a queda de Ceuta na mão dos portugueses, em 1415, é um prémio concedido por Deus a D. João I que, assim, foi distinguido por ter recebido os marranos e judeus que fugiram de Castela, muito embora Portugal se reservasse a ira divina ao expulsar, em 1498, os judeus. Esta causa providencialista raro ou nunca foi tida em conta pelo positivismo histórico, que não atendeu a que os judeus viviam oprimidos em Ceuta pelos Árabes, e que decerto facilitaram o acesso lusitano à cidade, colaborando na estratégia da conquista. Sendo assim, o factor judaico não pode ser omisso nos primeiros acontecimentos da gesta que iniciou o mundo moderno: a conquista de Ceuta, quando a Europa se digladiava numa guerra medievalesca e barbárica dos chamados Cem Anos.

Esta obra de Zacuto exerceu influência na história sagrada posterior, e dela se reivindicam Gedaliah, na Cadeia da Terminação, David Ganz, no Descendência de David e José Escalígero, no De Emendatione Temporum.

Atento à cosmologia, Zacuto concorda com a regra da Cabala. Num inédito revelado por Joaquim de Carvalho, constituído por cinco partes, Zacuto, após um proémio, discorre acerca do valor da astrologia para a medicina, com uma introdução aos juízos, signos, planetas e dignidades das casas estelares.


Adita um regimento dos físicos e um apêndice acerca dos eclipses. Para o autor, a ciência astronómica destina-se a adquirir e a conhecer as mutações do mundo elementar, de que parte decorrem as influências e quais as relações da saúde e da enfermidade. Concepção medianeira, a ciência tem por fim conhecer as nove esferas ou regiões universais, já que a décima, o empíreo, de que fala Ezequiel, "não convém ao astrólogo falar dele, que é da teologia". Com as dignidades da casa, da exaltação, da triplicidade, do termo e da face, os planetas não determinam o futuro, nem limitam a liberdade do homem, nem são orgãos da divina providência; são criaturas, situadas no mesmo mundo de que o homem é o vidente, tendo influência orgânica nas capacidades atractiva, digestiva, expulsiva e retentiva (alma vegetativa) e servem de guias ao trânsito sobre a face da terra (ciência da orientação).

Sem conhecimento da teoria heliocêntrica, Zacuto considera os eclipses como fenómenos do poder divino (mas que não são proféticos), dos quais importa extrair a lição para dar glórias ao Criador. Numa concepção global do universo, a natureza ordena-se aos mistérios enunciados pela teologia. Estudar a relação dos astros é uma forma de religião, e a astronomia científica tem um valor teológico quanto aos fins, quando conhecida em ordem à fé. A ciência da natureza proclama a glória de Deus».

Pinharanda Gomes («A Filosofia Hebraico-Portuguesa»).


«Em 1492, teria vindo para Portugal Abraão Zacuto, matemático, físico e astrónomo. Em Salamanca, onde ensinou na Universidade, escreveu a versão hebraica do Almanaque Perpétuo que viria a ser impresso em Leiria, na versão latina, segundo a tradução de mestre José Vizinho ou da Covilhã. Em 1493, rabi Abraão recebia do soberano o pagamento de uma tença de dez espadins de ouro, pelo seu trabalho como astrónomo do rei, tendo firmado a sua assinatura no recibo.

Zacuto, segundo Gaspar Correia, nas Lendas da Índia, costumava conversar com D. Manuel, duque de Beja, sobre astronomia. Coube-lhe o supervisionamento das naus que levaram Vasco da Gama à Índia. Pertenceu-lhe o regimento das tábuas de declinação solar assim como o aperfeiçoamento do astrolábio. Segundo Gaspar Correia, Zacuto ensinara os pilotos portugueses a trabalhar por "umas cartas grandes com riscos de cores diferentes, que mostravam os nomes dos ventos ao redor da estrela do Norte, a que se pôs o nome de agulha de marear..."





Rabi Abraão abandonaria Portugal com o édito de expulsão, em 1497. Segundo os autores judeus, não chegara a ser baptizado. Para Gaspar Correia, Zacuto recebera o baptismo tendo saído, em 1502, para a Turquia, onde regressou ao judaísmo: "... e porque esta coisa passou neste ano de 1502 o pus aqui por sua memória"».

Maria José Ferro Tavares (« Os Judeus na Época dos Descobrimentos»).


«Não nos propomos estudar aqui ex professo o misticismo espanhol, e por isso nos não demoraremos a demonstrá-lo nem a julgá-lo nas suas definições. Não poderíamos, contudo, deixar de expor os traços principais da sua fisionomia porque sem isso a história continuaria a ser para nós um enigma. É no misticismo que se encontra a origem primordial dessa extraordinária força, dessa omnímoda e universal acção que a Espanha exerceu no Mundo durante o século XVI... Se nos limitássemos a definir o caso como um milagre, iríamos substituir a ciência que observa e descreve, pela eloquência que se extasia - uma vez que a ninguém é lícito já acreditar em milagres para usarmos desta expressão popular. Se, de uma outra forma, deixássemos na sombra o carácter verdadeiramente excepcional da história da Espanha no século XVI, demonstraríamos, ou acanhamento de vistas, ou ignorância do assunto.

Essa história é um milagre, sim, de energia humana. O misticismo é o foco onde essa luz se concentra; é a fonte de onde brotam a acção, a força, a extraordinária fé na invencível vontade humana. Por séculos se foi formando a chama que agora rutila - como o fogo quando obscuramente lavra, até que num instante rebenta em lampejos e deslumbramentos. A lenha com que o incêndio místico se alimentou na Idade Média espanhola, foi a guerra contra os sarracenos, foi a literatura cavalheiresca e sagrada. Por isso o misticismo começa por nos aparecer como uma transformação da cavalaria - cavalleria à lo divino - em Santa Teresa, na biografia de Santo Inácio, e em S. João da Cruz. El caballero celeste, cristiano, de la estrella brilhante, etc., são títulos de obras que, sem mais comentários, demonstram este facto, de resto geralmente sabido.

Fresco retratando Inácio de Loyola recebendo a Bula Regimini militantis Ecclesiae do Papa Paulo III, de Johann Christoph Handke






"Os milagres de Santo Inácio" (1617-1618), de Peter Paul Rubens.



Santa Teresa e seu irmão, duas crianças (ela tinha dez anos) sentem-se heróis: fervem-lhe na cabeça os casos dos romances místicos e cavalheirosos, as aventuras das Mil e uma noites; querem praticar grandes actos, consumar façanhas. Um dia fogem de casa, partem para a aventura: iam morrer mártires dos mouros! Tiveram também o seu Alcácer Quibir a uma légua de casa, quando a família os agarrou e os recolheu... Defender o oprimido, vingar o infeliz é o desvairamento heróico de toda a gente. E Jesus é o divino oprimido, vítima dos judeus que o crucificaram! O ódio aos judeus enroscava-se por tal modo na árvore do misticismo, como a hera no tronco de uma oliveira antiquíssima».

Oliveira Martins («História da Civilização Ibérica»).


«A tentativa de conexão explícita, metódica, entre as várias expressões do meio social numa compreensão da história do Santo Ofício partiu de um historiador da cultura [António José Saraiva], ao levantar a hipótese de que a Inquisição tenha sido um instrumento da luta das classes dirigentes contra a burguesia [Cf. A Inquisição Portuguesa, Lisboa, 1956; Inquisição e Cristãos-Novos, Porto, 1969. Cf. também "A Política da Discriminação Social e a Repressão da Heterodoxia", 3.º vol. da História da Cultura em Portugal, Lisboa, 1958]; anos depois, deu-lhe uma disposição mais incisiva no sentido de lhe atribuir também uma função ideológica».

Jorge Borges de Macedo (Introdução a Alexandre Herculano, «História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal», Tomo I, Livraria Bertrand, 1975).


«O presente livro põe alguns problemas de método histórico...

Aquando do seu aparecimento um erudito francês especialista de questões relacionadas com o Judaísmo impugnou as teses aí defendidas fundando-se no teor dos documentos.

Os documentos alegados por esse erudito são sem dúvida autênticos, mas isso não basta. Os documentos da Inquisição provam que os processos se realizaram formalmente segundo as regras que a Inquisição estabelecia. Mas quem era a Inquisição? Que pretendia ela? Para que servia? Como era o processo inquisitorial? Que garantias dava de objectividade? Etc. Essas são perguntas a que os documentos numerosíssimos dos processos inquisitoriais não respondem, nem podem responder porque estão dentro do sistema que os inquisidores instituíram por motivos que importa esclarecer.

É óbvio que não podemos aceitar como inquestionáveis as declarações dos inquisidores acerca das suas próprias motivações. Essas declarações devem ser consideradas como justificações subjectivas, como peças de um outro processo que não é o processo inquisitorial, mas o processo historial, que não obedece às regras estabelecidas pela Inquisição.

Se numa declaração um réu declarava que tinha praticado durante anos jejuns judaicos isso não prova que ele os tenha praticado, mas só que ele declarou que os tinha praticado. E pode tê-lo declarado por várias razões, como a de dar a impressão de que fazia uma confissão completa, o que lhe podia evitar a condenação à morte como "negativo". Nesse caso temos o exemplo de um documento autêntico que não é verdadeiro.



António José Saraiva



Quanto às razões por que a Inquisição existia elas são evidentemente exteriores à própria Inquisição. Era natural que os seus porta-vozes dissessem que no reino havia muitos judeus ou muitos falsos cristãos judaizantes. Só assim justificariam a sua própria existência. Mas seriam essas declarações verdadeiras?

É extraordinário constatar que só Alexandre Herculano pôs em questão os dizeres dos inquisidores e viu a Inquisição de fora. Todos os outros, desde o honrado Lúcio de Azevedo até ao erudito Révah, tomaram à letra as declarações dos inquisidores sobre eles mesmos e os processos movidos às suas vítimas. Do ponto de vista de alguns historiadores a Inquisição era uma instituição boa porque defendia a homogeneidade do povo e a pureza da raça contra a infiltração de uma "raça espúria" (sic); do ponto de vista de outros, a Inquisição era uma instituição cruel porque perseguia uma minoria racial que não se deixava assimilar. As opiniões divergiam mas os factos com que se abonavam eram de um e outro lado documentados pela Inquisição e considerados verdadeiros.

Os documentos emitidos pelos inquisidores julgavam-se autênticos - e isso não o contestamos; e também verdadeiros - e isso negávamos no nosso livro Inquisição e Cristãos Novos. O que torna difícil sair deste beco é que no que respeita a documentos quase só dispomos dos que a própria Inquisição emitiu para se justificar e para incriminar os seus perseguidos. Quanto aos textos que revelam a realidade da Inquisição, como as Notícias Recônditas, não podem ser considerados formalmente "autênticos" porque são ardentemente polémicos e porque nem sequer se conhece o seu autor. Como sair deste labirinto?

A nosso ver neste caso o problema não está nos documentos em si mesmos, mas na perspectiva em que são colocados; e essa perspectiva exige que o historiador conheça as diversas peças ou componentes de uma sociedade, de maneira a poder resolver com elas um jogo de puzzle, ajustando-as entre si.

(...) O método que seguimos neste estudo é sincrónico; isto é, procuramos ajustar diferentes peças da sociedade dos séculos XVI e XVII para responder à pergunta: que significa o aparecimento da Inquisição portuguesa, qual era o problema que procuraram resolver os seus fundadores?

A resposta a esta pergunta vai-nos permitir uma hipótese sobre a função da Inquisição em Portugal no século XVI e a partir desta hipótese imaginar um sentido para o seu funcionamento, para as regras do processo inquisitorial. Desta forma tentamos sair do domínio da subjectividade dos inquisidores para o da objectividade do observador, e estabelecer um critério para a leitura dos documentos inquisitoriais que não seja o da própria Inquisição.

Nem sempre os leitores desta obra compreenderam o seu método e a sua intenção. Alguns, como o Sr. Pio Caro Baroja, num longo livro narrativo, baseado também na "autenticidade" dos documentos inquisitoriais (autenticidade que não implica como ainda agora dissemos a sua veracidade), nos atribui um ponto de vista economicista unilateral (marxizante) que não era o nosso. As razões económicas são apenas uma das várias peças do puzzle que tratamos de ajustar».

António José Saraiva («Inquisição e Cristãos-Novos»).




«Abílio Diniz da Silva - Qual foi a sua reacção perante o livro Inquisição e Cristãos-Novos, e a que causas atribui o êxito de livraria por ele obtido?

I. S. Révah - A minha reacção perante o livro foi e continua a ser uma reacção de indignação. Trata-se de um libelo demagógico contra a Inquisição. Entre todos os que conhecem as minhas origens e os meus domínios preferidos de investigação, poucos estarão inclinados a atribuir-me uma qualquer simpatia pelo Santo Ofício; no entanto, devo indicar que nas minhas investigações historiográficas procurei sempre aplicar, de maneira mais estrita que o próprio autor, a máxima de Alexandre Herculano: "As instituições mais absurdas, os maiores criminosos têm direito de exigir a imparcialidade da história". O respeito desta máxima é para mim relativamente fácil, porque, no fundo, a única questão que me interessa verdadeiramente é esta: "De que maneira e até que ponto os arquivos da Inquisição podem ser utilizados na reconstituição da história das suas vítimas?".

A radical incompetência na matéria de A. J. Saraiva aparecerá claramente quando dissermos que ele não compulsou um único processo dos arquivos inquisitoriais ibéricos, cuja fabulosa abundância é capaz de fazer desanimar o mais corajoso dos investigadores. O nosso autor preocupa-se mais com o dogmatismo ideológico - o qual aliás varia com o tempo - do que com investigação e interpretação dos documentos históricos. Ora acontece que quando A. J. Saraiva abordou, em 1955-1956, o tema da Inquisição e dos Cristãos-Novos, ele estava então persuadido que tudo, na história da humanidade, se explica pela luta de classes.

- Pensa que uma teoria influenciada pela concepção materialista da história encontra dificuldades ao tentar explicar o fenómeno dos Cristãos-Novos e das várias reacções que ele provocou em Portugal?

- As dificuldades que encontra a aplicação simplista desse esquema ao problema da existência de uma etnia neocristã e de uma religião cripto-judia que agrupou durante séculos pessoas pertencentes a classes muito diferentes da sociedade portuguesa posterior a 1497, constituem realmente um obstáculo de grande peso. Mas este obstáculo não impressionou o A. J. Saraiva de 1955-1956: para o vencer, bastava supor que a etnia neocristã e a religião cripto-judia eram mitos abomináveis inventados pelos inquisidores portugueses (instrumentos da classe dirigente senhorial) e que a denominação de "Cristãos-Novos" era uma designação demagógica inventada pela classe dirigente e pelos seus agentes inquisitoriais para afastar do poder (até aos tardios decretos de Pombal) a burguesia mercantil e os seus aliados. Estas hipóteses tinham ainda uma grande vantagem, para um ensaísta apressado, que não sente atracção especial pela poeira dos arquivos: a incompetência pessoal podia ser erigida em método historiográfico na medida em que estas hipóteses davam claramente a entender que a imensa documentação inquisitorial era, pela sua inautenticidade original e radical, desprovida de menor valor para o historiador.

- Acha que A. J. Saraiva mudou de esquema ideológico ao abordar, no seu livro de 1969, o problema dos Cristãos-Novos e da Inquisição?

- Inquisição e Cristãos Novos, de 1969, não faz senão transformar, graças a um estilo horrivelmente polémico e pretensioso, as hipóteses totalmente falsas de 1955-1956 em teses absurdas e demagógicas. Ora aquelas hipóteses foram objecto de críticas que, em 1969, A. J. Saraiva tenta escamotear ao transformá-las em objecções anónimas. Os leitores de Inquisição e Cristãos-Novos ignoram assim que:

1.º - a brochura de José Alcambar, O Estatismo e a Inquisição (Régua, 1956) citada em nota da p. 152 (sem que o seu conteúdo real seja revelado) tem um subtítulo significativo: Notas críticas ao livro "A Inquisição Portuguesa" de António José Saraiva;






2.º - eu próprio critiquei aquelas hipóteses aliás sem nenhuma acrimónia, numa conferência Qu'est-ce que les Marranes? publicada em Les Cahiers de l'Alliance Israélite Universelle, n.º 120, 1958, e num artigo Les Marranes, publicado na Revue des Études Juives, tomo CXVIII, 1959-60)».

Entrevista com o Prof. I. S. Révah conduzida por Abílio Diniz da Silva (in «Diário de Lisboa», 6-5-1971).





COMO NASCERAM OS CRISTÃOS-NOVOS PORTUGUESES


Diferentemente do que se deu em Espanha, não houve em Portugal grandes perseguições em cadeia, antes da expulsão geral ordenada pelo Rei D. Manuel em 1496. Os Judeus não fizeram ondas. Por isso não houve também conversões em massa, e a comunidade hebraica conservou-se praticamente intacta até àquela data. O problema dos Cristãos-Novos só apareceu depois.

A gente da nação hebraica vivia nas suas comunas privativas, as aljamas ou judiarias, nome português de ghetto, onde tinham as suas sinagogas. A lei não só reconhecia como também garantia aos Judeus o exercício do seu culto. Assim as Ordenações Afonsinas proíbem que um Judeu seja convertido pela força, e determinam que ao Sábado, dia santo da religião mosaica, o judeu não seja obrigado a comparecer em tribunal. As judiarias eram governadas pelos seus magistrados próprios, aos quais residia o Arrabi-mor, que estava directamente subordinado ao Rei, como uma espécie de ministro para os negócios hebraicos. Regulavam-se pelo seu direito nacional. Para dar exemplos: o seu direito de família, que admitia o divórcio, era diferente do dos Cristãos; no comércio do dinheiro não tinham que respeitar a lei cristã que nessa época proibia o juro. Pelos seus privilégios e regalias, de acordo com o sistema feudal, as aljamas pagavam ao Rei ou aos donatários determinados impostos.

Era certamente numerosa a população hebraica portuguesa, embora se ignore o seu montante. D. Manuel indemnizou, após a expulsão, os donatários de impostos pagos pelas aljamas. Segundo a lista respectiva, havia mais de 40 povoações importantes onde eles tinham bairros privativos. Essas povoações espalhavam-se de norte a sul e de leste a oeste do País. Havia aljamas nos portos principais, como Lisboa, Porto, Setúbal; havia-as nas cidades fronteiriças como Elvas ou a Guarda; nas cidades comerciais mais consideráveis como Santarém e Braga; nos centros agrícolas do interior, como Beja e Celorico da Beira; nas povoações do norte, como Guimarães, do sul, como Faro. As aljamas de Lisboa, Santarém, Évora, Porto, Guarda, Faro, Setúbal, Portalegre, contam-se entre as mais importantes pela população ou pela riqueza (1).

O poder económico da «gente da nação» é certamente muito considerável em Portugal. Quando em 1478 o Rei lançou uma contribuição para a defesa do Reino, os Judeus entraram com uma quinta parte do dinheiro que foi recolhido. Este «serviço» tinha por base a propriedade imóvel dos contribuintes, pelo que essa quinta parte está longe de representar a riqueza efectiva da comunidade hebraica portuguesa (2).

E não está só na riqueza desta comunidade, mas também nas funções que os seus membros desempenhavam. Os Judeus tinham praticamente o monopólio das operações financeiras, tais como o comércio do dinheiro, a cobrança das rendas do Estado e das grandes casas senhoriais, a administração das alfândegas. Além de que para essas operações dispunham de grande quantidade de capital móvel, só entre eles era possível recrutar o pessoal competente. Já desde a primeira dinastia eram hebreus os tesoureiros-mores do Rei, bem como os seus banqueiros e arrematantes da cobrança de rendas. Nesta função de técnicos financeiros eram indispensáveis à Coroa.

Museu Judaico de Belmonte. Ver aqui




Localização de Belmonte







No pólo oposto a esta alta burguesia (se assim se pode falar) encontramos uma multidão de artesãos. Alguns historiadores animados de preconceitos racistas e anti-semitas pretendem que os Judeus se limitavam a actividades usurárias e parasitárias (3). A realidade é muito outra. Os Judeus ibéricos não são apenas intermediários mas também produtores. Um edicto do Rei de Castela D. João II enumera alguns dos ofícios característicos dos Judeus espanhóis: tecelões, ourives, marceneiros, barbeiros, sapateiros, alfaiates, caldereiros, correeiros, seleiros, cordoeiros, oleiros, cesteiros, etc. (4). Em Portugal são muito frequentes as alusões aos ferreiros, alfaiates e sapateiros e outros «mesterais» judeus. É judeu, por exemplo, o alfaiate da Infanta D.Beatriz, filha de D. Afonso V. Em 1369, dos três ferreiros que trabalhavam na Arruda dois são Judeus (5). Em 1492, mediante uma redução no imposto de passagem, D. João II tentará atrair os ferreiros, latoeiros, malheiros (provavelmente fabricantes de malha metálica) e armeiros que a expulsão geral obrigava a sair de Espanha, o que mostra, por um lado, que os Judeus ibéricos eram peritos nas técnicas do ferro e, por outro lado, que havia falta, em Portugal, desses «oficiais mecânicos».

Entre estes ocupam lugar à parte os ourives, que são ao mesmo tempo detentores de metais preciosos, o que lhes permite realizar operações financeiras de tipo bancário. Deviam ser muito numerosos os ourives judeus, porque ainda em 1572, numa época de feroz repressão do judaísmo, o Regimento dos Oficiais Mecânicos de Lisboa determina que sejam cristãos-novos metade dos eleitores dos juízes da corporação (6).

Entre os mesteirais, que eram, ao mesmo tempo, vendedores da sua produção, e os financeiros, há toda uma gama de comerciante, a retalho ou por grosso. Os procuradores às Cortes requereram mais de uma vez ao Rei que retirasse aos Judeus o monopólio do comércio por grosso dos cereais que, alegavam, dava lugar a açambarcamentos.

Há, enfim, uma quarta função desempenhada pelos Judeus na vida portuguesa: aquela que em linguagem moderna designaríamos por função intelectual. Eles foram na Península Ibérica os herdeiros da ciência árabe. Cultivando a Astronomia e a Astrologia, tiveram um papel principal nas bases científicas da navegação atlântica portuguesa: Abraão Zacuto, judeu espanhol refugiado em Portugal, elaborou o Almanach Perpetuum por onde se guiaram os navegadores na orientação pelo astrolábio; um dos discípulos de Zacuto, Mestre José Vizinho, hebreu como ele, celebrizou-se por ter determinado a latitude da Guiné. Nesta época a Astrologia era hostilizada pela igreja por razões meramente teológicas (não as havia então científicas para tal condenação). Nem por isso a corte deixava de ter o seu astrólogo Judeu que fixava o horário das solenidades importantes. Ficou-nos o nome de Mestre Guedelha, «físico» (isto é médico) e astrólogo do Rei D. Duarte. Outra actividade em que os Judeus predominavam era a Medicina. Judeus eram os médicos da corte, e provavelmente a maior parte dos médicos do País. A tradição médica hebraica manter-se-á em Portugal muito para além da conversão forçada. Havia desta forma um sector intelectual hebraico caracterizado pelo cultivo das ciências exactas e das ciências da natureza, em face do sector intelectual cristão, constituído pelo Clero, mais identificado com as ciências teológicas e literárias. Não é certamente por acaso que no século XVI os dois maiores nomes da ciência portuguesa são os dois descendentes de Judeus: o Dr. Pedro Nunes, inventor do nónio, e Garcia de Horta, autor dos Diálogos dos Simples e Drogas, obra que correu a Europa em várias traduções (7). Ambos são defensores do chamado «espírito experimental». Nem por isso deixamos de encontrar Judeus em actividades mais tipicamente literárias: no Cancioneiro da Vaticana – colecção de poesia palaciana do séc. XIV – encontramos composições de Vidal «Judeu de Elvas»; Zurara cita como «grande trovador» Judá Negro, servidor da Rainha D. Filipa de Lencastre.







Facto muito significativo não só da importância cultural dos Hebreus em Portugal, mas também da qualidade do seu artesanato: o primeiro livro de que há notícia segura ter sido impresso em Portugal é o Pentateuco, em caracteres hebraicos numa tipografia hebraica de Faro em 1487. Até 1497, data em que Rodrigo Álvares imprime no Porto os Evangelhos e Epístolas, são judeus os únicos tipógrafos de origem portuguesa, pois até essa data, como se sabe, os livros impressos em Portugal são fabricados por alemães. O exercício da tipografia é, nesta época, um índice muito significativo do progresso artesanal de um país.

Estes elementos bastam para nos dar uma noção da importância vital dos Judeus como orgão da sociedade portuguesa medieval, assim como da diversidade de funções que exerciam.

Seria porém exagero afirmar que eles constituíam nesta época a totalidade da burguesia, ou «classe média», portuguesa. Em face deles, em parte concorrente com eles, há um artesanato cristão e uma burguesia mercantil cristã. Sujeita a leis discriminatórias e livre de praticar o seu culto religioso, a população hebraica não se misturava com a cristã e mantinha a sua pureza religiosa e étnica. Entre o artesanato cristão e o artesanato hebraico, entre a burguesia do Talmude e a burguesia do Evangelho, passa uma fronteira. Há vários indícios de rivalidade entre estes dois grupos. Segundo Fernão Lopes, após a morte de D. Fernando, em 1383, os «homens bons» da cidade de Lisboa, isto é, os representantes da aristocracia burguesa, apresentam à Rainha viúva algumas reivindicações que tinham em vista a participação do Terceiro Estado no governo do Reino. Entre outras coisas, exigiam que fossem retirados aos Judeus os «ofícios públicos» que lhes dera D. Fernando, e que eles não fossem mais recebedores de direitos e rendas do Rei, nem funcionários da Corte. A Rainha responde que sempre em vida do marido se opusera à nomeação de «oficiais» judeus e que depois da morte dele demitira o tesoureiro e o almoxarife da Alfândega de Lisboa. Promete dar estes e outros ofícios a Cristãos, mesmo que estes por eles paguem menos que os Judeus (8).

Os mesmos protestos se manifestam um século depois, nas cortes de 1481-1482. Aqui volta a ouvir-se a voz dos «homens bons», representantes dos «povos», exigindo a demissão dos Judeus que cobravam e espoliavam o povo cristão. Mas desta vez o Rei, D. João II, responde que os arrendatários cristãos eram ainda mais gananciosos que os hebraicos. Ouve-se também a queixa do artesanato, pedindo que os alfaiates, sapateiros e outros artífices judeus não possam trabalhar fora das judiarias, porque, diziam os queixosos, em casa dos lavradores cristãos abusavam das suas mulheres e filhas (9).

Perante esta pressão do chamado braço popular – a burguesia e artesanato cristãos, o «povo miúdo» -, a posição da Coroa e dos grupos dirigentes – a alta nobreza e uma parte pelo menos do alto clero - consistiu em defender os Judeus de forma constante e eficaz, dando aos inimigos deles satisfações puramente verbais. Extremamente significativo é o que passa no início da revolução de 1383. Lisboa estava insurreccionada, e o poder de facto era exercido pelo Mestre de Avis (futuro Rei D. João I), apoiado pela massa popular. Um bando de «gente miúda» investe contra a judiaria para a saquear a pretexto de obter dinheiro para a revolução. Aconselhado por dois fidalgos da alta nobreza, o Mestre de Avis (que na véspera tinha deixado assassinar o bispo de Lisboa às mãos da multidão) vai pessoalmente junto dos assaltantes e, pondo em jogo toda a sua popularidade, consegue arrastá-los atrás de si para longe da judiaria (10). Há vários outros exemplos de protecção eficaz dada pelos Reis aos seus súbditos judeus. Em 1449, o corregedor de Lisboa manda açoitar publicamente certos cristãos que tinham insultado judeus da rua. Daqui resultou um motim e um assalto à Judiaria. O Rei, que estava fora da cidade, acorreu com uma tropa armada para estabelecer a ordem, e mandou enforcar numerosos responsáveis destas violências (11).






Tabelas afonsinas, El Libro del Saber de Astronomia


Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio.



Todavia a protecção do Rei, bem como a de alguns nobres, em nada altera o essencial da situação dos Judeus na sociedade cristã. Favorecidos ou não pelos magnates que recorriam aos seus serviços e utilidades, os Judeus constituíam uma classe de párias à margem da sociedade comum. Nas Partidas de D. Afonso X, o Sábio, lê-se que a Igreja e os Príncipes permitiam que os Judeus vivessem entre os Cristãos em cativeiro perpétuo para que se conservasse a lembrança de que eles descendiam da linhagem dos que crucificaram Nosso Senhor Jesus Cristo. É esta uma justificação teológica de uma situação social. Os Judeus não faziam parte do «povo»; não tinham, portanto, nem os direitos nem tão-pouco as obrigações do povo. O poderem praticar a usura, por exemplo, não era um privilégio mas uma exoneração das regras a que está sujeito um membro da comunidade, da mesma forma que o era para as prostitutas poderem convidar um homem na rua, contrariamente ao estatuto normal da mulher. Exerciam uma função social que se considerava inevitável mas degradante no mundo feudal. O favor que pudessem receber dos poderosos não era, portanto, sinal de valia social, mas a expressão do apreço caprichoso e interessado que se pode ter por um animal doméstico, um escravo, uma mulher comprada, um bobo da corte, um jogral, apreço cuja manifestação pode ser justamente uma exibição de poder. O rei protegia contra o cristão o seu judeu. Mas os mesmos príncipes, que protegiam os judeus detentores do dinheiro, encarregavam-nos de funções odiosas, como a de cobrança de impostos e direitos, colocando-os numa posição que tem analogias com a do carrasco.

Naturalmente que haveria que matizar este esquema, atendendo sobretudo a que os Judeus tinham o seu poder próprio, que era o do dinheiro, poder que não tinha lugar reconhecido na ideologia feudal, mas que lhes dava uma certa posição de força. Mas tais nuances não alteram o fundo da questão, sobretudo no aspecto ideológico, que é o que agora consideramos.

Em 1492 os Judeus espanhóis foram expulsos pelos Reis Católicos, nas condições a que já aludimos. Uma parte destas centenas de milhares de emigrantes forçados saiu pelos portos marítimos, outra parte, pela fronteira portuguesa. A atitude do Rei de Portugal nesta emergência mostra uma vez mais a disposição favorável da Coroa relativamente à população judaica: o Rei não fechou a fronteira aos fugitivos. Segundo Damião de Góis (o cronista oficial da Corte, na crónica que publicou 70 anos depois e para a qual utilizou os documentos do arquivo real), exigiu deles um imposto de 8 cruzados por cabeça e deu-lhes um prazo para embarcarem, findo o qual seriam reduzidos à escravidão. Outros autores falam de 1 e 2 cruzados, importância acessível à maior parte das famílias. De qualquer forma, além das famílias que pagaram o imposto, outras transpuseram clandestinamente a extensa fronteira hispano-portuguesa. Para os ferreiros, armeiros, malheiros e latoeiros, como já vimos, este imposto foi reduzido a metade, o que só pode interpretar-se como um convite indirecto a estabelecerem-se no Reino: trata-se de uma categoria de oficiais mecânicos indispensáveis à indústria de armamento de guerra.

Embora não seja possível cifrá-lo, o número de Judeus espanhóis entrados em Portugal é certamente muito elevado. Abraão Zacuto, o matemático do Almanach Perpetuum, ele próprio refugiado em Portugal, fala de 120 000 pessoas; e Damião de Góis, pertencente à geração seguinte à dos protagonistas destes acontecimentos, refere-se a 20 000 famílias. As duas estimativas não se afastam muito. Seja qual for o número exacto, trata-se de uma penetração massiva (12).

Uma parte destes refugiados embarcou para o Norte de África, outra parte ficou. Os que ficaram foram reduzidos à escravidão, vendidos ou doados pelo Rei, passado o prazo concedido para a partida.




Brasão Real dos Reis Católicos




Tomás de Torquemada e os Reis Católicos


Esta situação de escravatura durou poucos meses: em 1495, ao subir ao trono, o novo Rei D. Manuel restituiu-os à liberdade. Mas logo a seguir, para casar com a filha dos Reis Católicos, casamento que lhe dava a posição de herdeiro do trono de Castela e Aragão, comprometeu-se a expulsar os Judeus que viviam no seu Reino. Data de 5 de Dezembro de 1496 a lei que ordena a saída de Mouros e Judeus, que são «filhos de maldição», até ao mês de Outubro, inclusive, do ano seguinte. Poderiam, segundo a lei, levar consigo as fazendas e fazer-se pagar as dívidas de que eram credores. Seriam indemnizadas as pessoas que recebiam direitos e rendas das judiarias (13).

As medidas que acompanharam esta lei e a forma como foi aplicada mostraram à evidência que o Rei de Portugal estava firmemente decidido a evitar que os Judeus abandonassem o País. Notemos que o Rei de Portugal deu um prazo superior a 10 meses para a partida, quando os Reis Católicos, num território muito mais extenso e para uma população maior, apenas concederam 4 meses. Esse tempo, foi aproveitado pelo Rei. Primeiramente, mandou baptizar à força todas as crianças judias menores de 14 anos. Essas crianças foram retiradas às famílias de origem e entregues a famílias cristãs. Perdeu-se o rasto delas. Na terceira década do séc. XVIII, D. Luís da Cunha pretende que foram criadas nos arredores de Lisboa sendo os antepassados dos chamados «saloios». Pela mesma época, António Nunes Ribeiro Sanches, bem informado da história da Inquisição, afirma que foram criadas em Alfama (bairro de Lisboa) e nas Ilhas. Tanto Cunha como Sanches notam que dos descendentes destas crianças criadas em famílias cristãs não saíram judaizantes (14).

Outra medida tomada por D. Manuel, enquanto corria o prazo para a saída dos Judeus, foi isentar de qualquer inquirição religiosa os novos cristãos, durante um prazo de 20 anos (provisão de 30 de Maio de 1497). Isto significava que não seriam admitidas durante esse tempo acusações por Judaísmo. Trata-se evidentemente de uma garantia contra uma eventual inquisição e contra violências semelhantes àquelas de que estavam sendo objecto os Cristãos-Novos espanhóis, garantia que tinha em vista tranquilizar aqueles que o medo, mais que a fé, podia incitar à expatriação (15).

Entretanto, tudo foi feito para dificultar o embarque dos Judeus que insistiam em partir, apesar de o Rei se ter comprometido a fornecer-lhes meios de passagem. Um único porto lhes foi facultado, o de Lisboa. Ali se juntaram, segundo Damião de Góis (16), cerca de vinte mil judeus vindos de vários pontos de Portugal. Mas um bando de frades acompanhados de sicários investiu os locais onde eles estavam concentrados, e, violentando-os lançou sobre eles a água do baptismo. A partir desse momento eles eram considerados cristãos, portanto súbditos da Igreja, e se insistissem na sua religião anterior eram passíveis das penas que recaíam sobre os apóstatas. Alguns Judeus conseguiram embarcar apesar de tudo; mas a quase totalidade deles ficou em Portugal, de boa ou má vontade.

Em relação a estes, D. Manuel praticou uma política coerente de integração pacífica. Toda a sua legislação tende claramente a suprimir a discriminação entre os Cristãos-Velhos e os antigos Judeus, fixando no País o maior número possível destes.

Em 1499 (21 e 22 de Abril) proibia-se a emigração dos novos cristãos, especialmente quando levassem as famílias. É uma medida discriminatória cuja intenção se compreende se soubermos que ao mesmo tempo o Rei de Portugal se recusava atender os pedidos dos Reis Católicos para que lhes fossem entregues os Judeus espanhóis que se refugiavam em Portugal. Dir-se-ia que para D. Manuel quantos mais Judeus melhor. Toda a discriminação foi abolida pela lei de 1 de Março de 1507, na qual, além de se permitir a saída dos Cristãos-Novos para o estrangeiro, se declara: «E nos praz que em tudo sejam havidos, favorecidos e tratados como próprios Cristãos-Velhos sem deles serem distintos e apartados em cousa alguma». Já, de resto, por diploma de 15 de Março de 1502 fora abolida uma lei anterior à conversão forçada, segundo a qual os Judeus ou Mouros que se convertessem recebiam imediatamente os bens paternos que lhes cabiam em herança.

Torquemada atira com um crucifixo contra um judeu, em Expulsão dos Judeus de Espanha, de Emilio Sala.


Assim acabaram em Portugal os Judeus e nasceram os Cristãos-Novos. Como se viu, de forma bem diferente do que ocorreu em Espanha. Neste último país, onde havia uma classe numerosa de convertidos à data da expulsão, milhares de Judeus puderam optar pelo exílio; em Portugal os Judeus não tiveram alternativa. Em Espanha há convertidos de diversas épocas e em diversas situações; em Portugal há uma conversão forçada em bloco de toda a população hebraica. Em Espanha existiam à data da expulsão leis discriminatórias contra os conversos, que estavam sujeitos às perseguições e opressões inquisitoriais; em Portugal não existiam à data da expulsão, e continuaram não existindo durante perto de quarenta anos, nem Inquisição nem limpeza de sangue.

Quase diria, se não fosse a violência exercida contra a consciência religiosa dos novos convertidos, que eles foram enormemente beneficiados com as leis manuelinas. Não só conservaram todos os seus bens, não só ficaram isentos de pesados impostos, como se lhes abriram, por força da lei, todas as posições até então reservadas aos Cristãos. A política inexcedivelmente maquiavélica de D. Manuel, combinando a violência e a sedução no propósito não só de conservar os Judeus portugueses, mas ainda de atrair os castelhanos, é provavelmente inspirada por razões de Estado. Tudo leva a crer que para a economia do Reino, onde praticamente não havia Judeus convertidos, a expulsão poderia redundar num desastre sem recurso.

Em que medida foi alcançado o propósito da legislação manuelina, isto é, a integração da minoria? A este respeito dispomos de poucos elementos relativos à época que medeia entre a expulsão e o estabelecimento da Inquisição. Como diz o Sr. Poliakof, entre os Judeus e a Espanha não está ainda completamente enterrado o machado de guerra; mas relativamente a Portugal o que sucedeu nestes anos «não parece ter deixado traços particulares nas tabuletas da prodigiosa memória histórica dos Judeus» (17). Alguns indícios, no entanto, fazem crer que a política de integração dava os seus frutos.

Quinze anos depois da conversão forçada, em Abril de 1512, D. Manuel acrescentava mais dezasseis anos no período de vinte, concedido em 1497, durante o qual os conversos não eram sujeitos a inquirições religiosas. Sinal de que não havia, pelo menos de forma pública e escandalosa, problema religioso quanto aos antigos hebreus. Mas, violando aparentemente esta promessa, o Rei de Portugal escreveu ao seu embaixador em Roma em 26 de Agosto de 1515, encarregando-o de pedir ao Papa uma inquisição segundo o modelo da castelhana. É curioso notar, todavia, que essa carta se refere quase exclusivamente aos refugiados que «se passarem e cada dia agora se passam, por medo da dita Inquisição [de Castela], a estes nossos reinos», acerca dos quais é informado que não vivem como devem nem dão bom exemplo. «Pelo que, e porque satisfaçamos ante Deus com a obrigação que nisto lhe temos, não somente acerca destes que assim são vindos de Castela a estes novos reinos e senhorios, mas ainda acerca dos Cristãos-Novos naturais deles, que neles se converteram em tempos passados à nossa Fé, nos parece que devemos mandar entender com fiel e justa inquisição para castigar os faltosos» (18). Parece que os Cristãos-Novos naturais do Reino são aqui aludidos por mera cláusula de estilo, e que o problema estava nos que vinham de fora. De toda a maneira esta diligência não foi levada avante e não podemos excluir a hipótese de que ela é meramente um gesto para dar satisfação às pressões do Rei de Espanha, a que já aludimos, no sentido de impedir a entrada em Portugal dos conversos espanhóis que eram nesta época vítimas de uma repressão ferocíssima. Conjectura tanto mais fundada quanto é pouco provável que D. Manuel estivesse na disposição de romper os seus compromissos anteriores para com os seus súbditos hebraicos, compromissos que o próprio D. João III respeitou.

Antecipando-nos ao que teremos para dizer adiante, notemos que em 1542 um Cristão-Novo, Mestre Jorge Lião, falando em nome de «este povo» ao procurador em Roma dos Cristãos-Novos portugueses, calcula o número deles em «60 000 almas» (19). E em 1560 Lourenço Pires de Távora, embaixador de Portugal em Roma, em carta ao Cardeal D. Henrique, punha-o de sobreaviso contra os excessos dos inquisidores, dando a entender que o Judaísmo não merecia um rigor excessivo, porque «não se pode estender a mais que aos da nação (isto é, à gente de origem hebraica), que já é pouca» (20).






Os dois testemunhos são concordes. O número dado por Mestre Jorge Lião é muito inferior àquele que se estima para a população judaica portuguesa mesmo antes da entrada massiva dos emigrados de Castela. Távora considerava que essa população decrescia. E, com efeito, na lista de gente da nação fintada em 1604 para pagar o preço do perdão geral então concedido, figuram já apenas seis mil famílias, que não podiam corresponder a muito mais de trinta mil pessoas, sendo que muitas famílias foram abusivamente postas nessa lista, segundo a opinião de que se faz eco o Cristão-Novo Ribeiro Sanches (21). Supomos que nestes cálculos e avaliações se contam apenas os Cristãos-Novos inteiros.

Ora este decréscimo explica-se por três causas. A primeira é terem sido arrancadas às famílias judaicas em 1496 as crianças menores de 14 anos que parece terem-se confundido na população cristã. A segunda é a expatriação de Cristãos-Novos que nunca deixou de se verificar, sobretudo a partir de 1536. A terceira e mais importante são os casamentos entre Cristãos-Novos e Cristãos-Velhos, que eram muito numerosos, como atestam documentos e testemunhos a que adiante faremos referência. Por si só os casamentos entre famílias cristãs-velhas e cristãs-novas são indício de que estava em curso a assimilação dos antigos Judeus pela população portuguesa, conforme o pretendia a legislação manuelina.

Alguns autores parecem considerar como óbvio que os antigos Hebreus não se assimilaram, e que na sua maioria, senão na totalidade, continuaram praticando o seu antigo culto. A meu ver semelhante asserção precisa de ser comprovada, e não pode sê-lo apenas com alguns processos isolados. Esses só provam que algumas famílias continuavam fiéis à tradição ancestral, e isso sim é óbvio. Mas nada provam quanto ao conjunto da população hebraica que é o que está em discussão. A ideia de que os Hebreus portugueses resistiram à assimilação não passa de uma presunção.

Mas a presunção oposta, a saber que a antiga população hebraica portuguesa entrou, com as leis manuelinas, no caminho da integração, tem a seu favor, além dos indícios referidos, boas razões sociológicas. A religião hebraica era em Portugal um culto público e oficial, com sinagogas, livros sagrados e regras de vida colectiva. Reduzido à clandestinidade, um culto deste género só pode degradar-se e esvanecer-se. Como tendência, só subsistem íntegras na clandestinidade rigorosa as religiões que dentro dela nascem. Os antigos Hebreus tiveram de submeter-se quotidianamente ao culto público cristão, aos ritos e à disciplina da Igreja. Evidentemente que as primeiras vítimas de conversão forçada o não fizeram de coração sincero. Mas um ritual que se pratica ao longo dos anos e das gerações não pode manter-se indefinidamente como uma atitude hipócrita ou forçada. O praticante é condicionado pela prática; o grau desse condicionamento é função do tempo e da pressão exercida pelo meio integrador. Notemos, a propósito, que, pela pressão do poder e não pela adesão espontânea das almas. Cujus regio ejus religio [De tal país, de tal religião].

As condições particulares de Portugal eram, como vimos, muito favoráveis à assimilação. O marranismo espanhol resultou de que durante mais de um século os novos convertidos se sentiam ao mesmo tempo atraídos pela Igreja e pela Sinagoga, que existiam lado a lado. Essa situação nunca se deu em Portugal: aqui nunca houve lugar para arrependimentos, duplicidades, indecisões ou crises de consciência; as pontes de regresso estavam cortadas. Por outro lado, as vantagens resultantes da integração – que do ponto de vista material mantinha todos os benefícios da situação anterior acrescidos de outros, bem consideráveis – não podiam deixar de fazer sentir os seus efeitos calmantes e compensatórios, uma vez passados o traumatismo e a desorientação dos primeiros momentos... (in Inquisição e Cristãos-Novos, Editorial Estampa, 1985, pp. 27-38).







Notas:

(1) Documento publicado por Braamcamp Freire, Archivo Histórico Português, tomo 2, p. 201 e seguintes. Resumido por Lúcio d'Azevedo em História dos Cristão-Novos Portugueses, Lisboa, 1921, p. 44.

(2) Braamcamp Freire, ibid. tomo IV, Azevedo, ibid. p. 35.

(3) Esta crença vulgar foi propagada não somente pelos profissionais do anti-semitismo mas também por eruditos tão responsáveis como Lúcio d'Azevedo e J. C. Baroja.

(4) Texto citado por Newman, The Jews in Spain, 1944, vol. 1, p. 187.

(5) Oliveira Marques, Estratificação económico-social de uma vila portuguesa da Idade Média, Lisboa, 1963. Gil Vicente refere-se aos judeus ferreiros, Farsa de Inês Pereira, versos 684-685.

(6) Livro do Regimento dos Oficiais Mecânicos de Lisboa, edição de Virgílio Correia, p. 1.

(7) Sobre Garcia de Orta, ver I. S. Révah, «A Família de Garcia de Orta», em Revista da Universidade de Coimbra, Vol. 19 (1960). Sobre Pedro Nunes, v. os extractos do processo inquisitorial publicados por António Baião, em Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa, Vol. I, 2.ª edição.

(8) Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando.

(9) Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, 8.ª edição, p. 120.

(10) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, I parte.

(11) Rui de Pina, Crónica de D. Afonso V, cap. CXXX.

(12) Azevedo, ob. cit., pp. 20-21.

(13) Ver o texto da lei nas Ordenações Manuelinas, livro II, t. 41.

(14) D. Luís da Cunha, Instruções Inéditas a Marco António de Azevedo Coutinho, ed. 1930, p. 90. António Ribeiro Sanches, Origem da denominação de Christão-novo e Christão-velho, ed. de Raul Rego, p. 17.

(15) Esta lei encontra-se também nas Ordenações citadas. Nas reclamações dos Cristãos-Novos ao Papa, publicadas no Corpo Diplomático Português, há várias alusões ao compromisso tomado pelo rei D. Manuel de não introduzir a Inquisição em Portugal. V. gr. carta de 12-2-1561, vol. IX desta colecção.

(16) Crónica de D. Manuel.

(17) Léon Poliakof, De Mahomet aux marranes, Paris, 1961, p. 203.

(18) Corpo Diplom. citado, vol. I, na data indicada.

(19) Ibid. vol V, Dezembro de 1542. (Pp. 158-167).

(20) Ibid. vol. III, 18-1-1560. (P. 310).

(21) Ribeiro Sanches, ob. cit., p. 45.







Continua


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