sábado, 28 de dezembro de 2013

Acerca do finito, infinito e indefinido

Escrito por René Descartes







«O progresso da razão conduz o pensador à noção de série infinita. Convém, todavia, observar que a palavra infinito não significa o contrário de finito, conforme a preposição in parece indicar. 

A noção de infinito não significa o que perdura no tempo e resiste no espaço, não significa a negação do que é próprio das coisas, mas vale de afirmação do que é próprio das pessoas.

Era o pensamento grego demasiado esteticista para compreender a noção de infinito e em relação às figuras só admitia os acidentes de plenitude ou de privação, ignorando o excesso espiritual que é aumentativo de ser. O pensamento grego, positivista e negativista, operava dentro de contrastes dialécticos e considerava absurdo o infinito. Só o pensamento oriental - lembremo-nos da significação do Oriente - conseguiu influir na cultura humana a verdadeira noção de infinito.

A resolução deste problema interessa à caracterização da filosofia mediterrânea perante a filosofia ocidental. O exame dos documentos leva a admitir que Aristóteles, em alguns escritos, nos deixou indícios de haver concebido não só logicamente, mas também ontologicamente, o verdadeiro infinito. A doutrina aristotélica não foi, porém, desenvolvida pelos filósofos helénicos e helenísticos em termos compreensíveis pelos pensadores subsequentes.

(...) A noção de infinito, de que só a teologia pode dar alta representação, entrou para o cálculo matemático por motivos que não interessa agora estudar. O cálculo operativo sobre o acidente que é a quantidade transforma-se com Leibnitz no cálculo diferencial e integral, e procura a abstracção da física para a metafísica. Seria, porém, ilusão geradora de enganos inverter a ordem lógica, atribuindo primazia ao pensamento matemático sobre o pensamento filosófico.

Não interessa, também, para este estudo, averiguar em que medida o pensamento de infinidade e de continuidade permite ver e interpretar o mundo em fluxão. As existências que aparentemente perduram no tempo e resistem no espaço deixam de corresponder a essências, pelo que o pensamento tem de interpretar em termos de história e de profecia a aparência que lhe encobre a realidade essencial. A aplicação do infinito ao espaço e ao tempo transforma-os em conceitos, mas desse modo suscita maior número de dificuldades para a filosofia.




A razão, procurando para além do espaço e do tempo, para além do infinito da extensão e da duração, do verdadeiro infinito das inferências de finalidade, de causalidade e da substancialidade, acaba por verificar que estes processos de conveniência, de concorrência e de convergência se encontram num limite que os transcende. Todas as existências e todas as essências respectivamente se situam segundo uma hierarquia infinita que a razão concebe sem poder compreender o seu misterioso princípio. Quando a noção de infinito se encontra implícita ou explícita no silogismo, segundo a doutrina aristotélica, o pensamento conclui pela existência de Deus».

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).


«(...) entre nós, confesso-lhe que estas seis Meditações contêm todos os fundamentos da minha física. Mas agradeço-lhe que não o diga a ninguém; porque aqueles que defendem Aristóteles terão talvez mais dificuldade em aprová-las; e espero que aqueles que as lerem se acostumem insensivelmente aos meus princípios e reconheçam a sua veracidade antes que se apercebam de que destroem os de Aristóteles» (in Lettre à Mersenne, 28 de Janeiro de 1641).

«(...) concepção ou intelecção pura das coisas, quer sejam corporais quer espirituais, efectua-se sem qualquer imagem ou espécie corpórea» (in Méditations).

«Como não podes duvidar da tua dúvida e como é certo que duvidas, tão certo que não podes duvidar, também é certo que tu que duvidas, existes, e isto é de tal modo verdadeiro que nunca mais poderás duvidar desta verdade» (in La Recherche de la Verité).

René Descartes



FINITO, INFINITO E INDEFINIDO


(...) Que depois de haver conhecido que Deus é, para passar ao conhecimento das criaturas, devemos lembrar-nos que o nosso entendimento é finito e o poder de Deus infinito.

Depois de assim haver conhecido que Deus existe, e que é o autor de tudo o que é ou pode ser, seguiremos, sem dúvida, o melhor método de que nos podemos servir para descobrir a verdade se, do conhecimento que possuímos da sua natureza, passarmos à explicação das coisas que ele criou. E se tentarmos de tal maneira deduzi-la das noções que, naturalmente, estão em nossas almas, lograremos uma ciência, isto é, conheceremos os efeitos pelas causas. Para que possamos todavia empreendê-lo com mais segurança, recordaremos, todas as vezes que pretendermos examinar a natureza de alguma coisa, que Deus, seu autor, é infinito e que nós somos inteiramente finitos.



(...) E que é preciso crer em tudo o que Deus revelou embora ela esteja acima do alcance do nosso espírito.

De tal modo que, se a nós ou a alguns de nós fez a graça de revelar coisas que ultrapassam o vulgar alcance do nosso espírito, tal como os mistérios da Encarnação e da Trindade, não oporemos dificuldade em acreditá-los embora não os entendamos talvez muito claramente. Com efeito, não devemos achar estranho que haja na sua natureza, que é imensa, e naquilo que fez, muitas coisas que ultrapassam a capacidade do nosso espírito.

(...) Que não é preciso procurar compreender o infinito, mas somente pensar que tudo aquilo em que não encontramos nenhum limite é indefinido.

Assim pensando, nunca nos embaraçaremos com disputas acerca do infinito, pois seria ridículo que nós, sendo finitos, empreendêssemos determinar-lhe alguma coisa e por esse meio supô-lo finito ao tentar compreendê-lo. É por isso que não nos preocuparemos em responder àqueles que perguntam se a metade de uma linha infinita é infinita e se o número infinito é par ou não par, e outras coisas semelhantes, porque só aqueles que imaginam que o seu espírito é infinito, parecem dever examinar tais dificuldades. Quanto a nós, ao vermos coisas nas quais, segundo alguns sentidos, não notamos limites, não ficamos certos, por essa razão, que sejam infinitas, por isso as consideraremos apenas indefinidas. Assim, por não podermos imaginar uma extensão tão grande que não concebamos, ao mesmo tempo, que pode haver uma ainda maior, diremos que a extensão das coisas possíveis é indefinida. E por se não poder dividir um corpo em partes tão pequenas, que cada uma dessas partes não possa ser dividida em outras mais pequenas ainda, pensamos que a quantidade pode ser dividida em partes cujo número é indefinido. E por não podermos imaginar tantas estrelas que Deus não possa criar outras ainda, suporemos que o seu número é indefinido, e assim de seguida.

(...) Que diferença há entre indefinido e infinito (1)

A tais coisas chamaremos indefinidas em vez de infinitas, a fim de reservar apenas para Deus o nome de infinito; tanto por não reconhecermos limites às suas perfeições, como também por não alimentarmos dúvidas de que não os pode haver. De outras coisas, sabemos que não são assim absolutamente perfeitas, porque embora lhes notemos, algumas vezes, propriedades que se nos afiguram não ter limites, não deixamos de reconhecer que um tal facto procede da imperfeição do nosso entendimento e não da sua natureza.






(...) Que não é preciso examinar para que fim criou Deus cada coisa, mas somente por que meio quis que fosse produzida.

Não nos deteremos também a examinar os fins que Deus se propôs ao criar o mundo, e por isso rejeitaremos completamente da nossa filosofia a investigação das causas finais. Porque não devemos presumir tanto de nós próprios que possamos crer que Deus nos quis fazer participar dos seus intentos. Considerando-o porém como o autor de todas as coisas, esforçar-nos-emos tão-só por encontrar, pela faculdade de raciocinar que ele pôs em nós, como foi que, aquelas que apreendemos por intermédio dos sentidos, puderam ser produzidas. Bem podemos ficar certos, pelos atributos de que quis nos fosse dado algum conhecimento, que aquilo que tivermos apreendido uma vez, clara e distintamente, como pertencente à natureza das coisas, possui a função de ser verdadeiro («Os Princípios da Filosofia», Guimarães Editores, 1998, pp. 69-72).


(1) O nome infinito só se predica de Deus, "... nomen infiniti soli Deo reservemus, quia in eo solo, omni et parte, non modo nullos agnoscimus, sed etiam positivè nullos esse intelligimus".


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