segunda-feira, 6 de maio de 2013

António Sérgio acaba às mãos de António Quadros

Escrito por Orlando Vitorino






«Assistiu António Sérgio ao sucessivo aparecimento de vários escritores marxistas que se dedicaram à chamada tarefa de revisão histórica e à divulgação dos respectivos resultados em termos de ensino liceal. O novo escol doutrinado a contradizer o velho critério do ensaísta, libertar-se-ia de preconceitos nacionalistas, mas seria, afinal, por sua vez guiado por mentores ou monitores ultrapireneicos, tanto aqueles que de longe nos enviam os livros e os ofícios, como aqueles que chegam até nós para exibirem a sua luzida e polida mediocridade. A pedagogia de António Sérgio, pela reforma de mentalidade, não lograva libertar os Portugueses de outra modalidade de demagogia.

Deve-se, portanto, a António Sérgio a tendência para depreciar os valores nacionais, não só os históricos mas também os presentes, analisados à luz de uma crítica fria. Este juízo sobre a existência, facilitou aos discípulos a formação de tropos severos e adversos à Pátria. Assim qualquer plumitivo pôde passar a dizer que os Portugueses eram incapazes de se governar bem, de promover as técnicas industriais e as técnicas educativas, de formar uma cultura própria, incapazes, como eram, de cultivar certos géneros literários como o romance, o teatro e o ensaio, enfim, adversários ou inimigos do Espírito».

Álvaro Ribeiro («A Literatura de José Régio»).


«Ser espectador de teatro é uma arte não sabemos se tão difícil se mais difícil do que a arte de ser actor ou dramaturgo.

(...) O teatro só é aqui. Não nos venham com a balela dos que viram teatro em Londres e Paris e, aí, sim! Aí, eles sentavam-se diante dos gestos de Sir Lawrence Olivier mais provincianos do que os alentejanos sentados diante dos gestos da Florbela ou mais cosmopolitas do que um secretário de embaixada sentado diante de coisa nenhuma como se estivesse sentado diante do mundo. Ora o espectador tem de se sentar na sua cadeira como um rei se senta num trono. Foi Goethe quem o disse, e é mesmo assim.

O teatro também não é, como os opiniosos pensam que devem pensar, uma arte para o povo, uma arte para toda a gente. Muito ao invés, é uma arte para reis, uma arte para minorias extremamente minorias e extremamente aristocratizadas. É muito mais árduo chegar a ser espectador de teatro, chegar a adquirir a aristocracia e a realeza do teatro, do que chegar a ser o actor que vem ao palco fazer as piruetas que nada significam. Foi Shakespeare quem o disse e nós sabemos que é mesmo assim».

Orlando Vitorino («Arte de Espectador», in Ensaio, Revista bimestral de cultura e opinião, dirigida por Francisco Moraes Sarmento, número um - Dezembro de 1980).




Orlando Vitorino




António Sérgio acaba às mãos de António Quadros


Têm mau agoiro as consagrações oficiais. Destinam-se, quase sem excepção, a exaltar homens de relativo e circunstancial valor ao suscitarem a reflexão e o balanço da obra que eles fizeram, levam a denunciar-lhes a efemeridade e marcam-lhes em geral o fim. Receio bem que seja isso o que está acontecendo com António Sérgio.

Digo que o receio porque me habituei, nos anos de juventude, a ver nele uma espécie de contraponto da vida espiritual portuguesa, qualquer coisa como o negativo de que o positivo carece ou, para empregar uma metáfora de que ele gostaria, uma espécie de mantissa no logaritmo; e também porque se me afigura muito provável que essa função contrapontística passe a ser desempenhada por gente muito inferior ao que António Sérgio foi, gente incapaz de respeitar as verdades e as realidades cujo saber ele, no mesmo acto de se lhe opor, ainda respeitava, admirava e invejava. A negatividade de António Sérgio muito nos ajudou, aos homens da minha geração, a valorizar isso mesmo que negava. Quando, por exemplo, Sérgio nos incitava a preferir a matemática à poesia, tentando iludir-nos dizendo que na matemática residia a mais íntima e alta poesia, ao que nos levava era a fortalecer o nosso culto pelos grandes poetas que ele detestava, por Nobre, por Junqueiro, sobretudo por Pascoaes e, depois, por Fernando Pessoa e José Régio, até tendo em conta que este último nunca deixou de nos recomendar o magistério de Sérgio. Quando, noutro exemplo, ensaiava desviar-nos dos caminhos abertos por Leonardo Coimbra e polemizava com Santana Dionísio e José Marinho, o que conseguia era levar-nos a descobrir como esses caminhos são os do verdadeiro pensamento e autêntica filosofia, caminhos muito mais fecundos e libertadores do que os dos seus ruminantes exercícios de «razão raciocinante». Quando, num último dos muitos exemplos que temos à mão, se desesperava em persuadir-nos de que uma nação não é mais do que uma sociedade e de que uma sociedade nacional não é mais do que uma empresa económica, o que obtinha era fazer-nos pensar a realidade espiritual das pátrias.

Foi no domínio da opinião, da opinião pública e vulgar por definição e, por redundância, opiniosa, que os exercícios raciocinantes de Sérgio encontraram fácil audiência e recrutaram dóceis e obedientes prosélitos. Devemos contudo fazer justiça a Sérgio reconhecendo que não era essa audiência e esse proselitismo que o satisfaziam. Tão depressa os via manifestarem-se logo exprimia o seu descontentamento que chegava a levar até à polémica com esses mesmos que, no fervor da obediência, correntemente a desenvolviam na adopção de uma ideologia, geralmente a marxista. Foi o caso de António José Saraiva que viu, estupefacto, como o tão falado «rigor racionalista» do seu mestre não era mais do que um «caprichismo polémico».




Aconteceu, todavia, terem sido esses triunfos opiniosos que ganharam a António Sérgio o prestígio de que gozou e o prolongamento desse prestígio num magistério que conseguiu perdurar, durante quatro decénios, entre as forças que, a partir da Guerra Mundial, acabaram por dominar a política, o ensino e a economia dos portugueses. O próprio salazarismo… (José Marinho muitas vezes acentuava a semelhança que havia entre o racionalismo de Sérgio e o de Salazar)… o próprio salazarismo adoptou e efectivou muito do que ele preconizava. Por exemplo: as prioridades de restauração nacional que enunciou no prefácio a uma edição de excertos de Oliveira Martins; ou a abolição do ensino do latim; ou a interpretação economista da História de Portugal, adoptada primeiro no ensino universitário e hoje alargada ao ensino secundário e até ao primário.

Tão esmagador foi este êxito opinioso, que as perorações racionalistas de Sérgio puderam sobreviver às irrefutáveis refutações que sofreram, seja nas críticas aos seus escritos (a de Jaime Cortesão, por exemplo, à sua doutrinação pedagógica), seja nas polémicas que gostava de provocar, em especial as que travou com Pascoaes, Malheiro Dias, Santana Dionísio e José Marinho, seja, por fim, na «desmontagem» definitiva que, em traços breves num contexto amplo, José Marinho e Álvaro Ribeiro fizeram do seu racionalismo «sem conceito de razão». E os políticos antiquados desta sempre juvenil 3.ª República ainda podem apresentar António Sérgio como seu doutrinador, seu pensador e até seu filósofo. Decidiram, neste ano do centenário do nascimento do autor dos «Ensaios», dar-lhe celebração oficial, com Comissão designada expressamente pela Assembleia da República que até hoje, vamos já em Maio, nada realizou. Ora é aqui que surge o tal meu receio de que, como todas as celebrações oficiais, também esta traga o mau agoiro de estar no fim a boa estrela de Sérgio.

O primeiro sinal do mau agoiro encontra-se no conjunto de depoimentos reunidos pelo semanário de literatura política «Jornal de Letras» e publicados, num dos seus últimos números, entre simpáticas notas biográficas, sentimentais memórias familiares e alguns poeirentos documentos políticos. Incidem os depoimentos sobre o que há «de melhor» na «filosofia» de Sérgio, sobre a sua «personalidade ímpar», sobre a semelhança entre ele e Herculano, sobre «o rigor do seu pensamento» e sobre «a modernidade da sua doutrina social». Vêm assinados, respectivamente, por Braz Teixeira, Piteira Santos, Agostinho da Silva, Castelo Branco Chaves e Natália Correia. Ora acontece que tais depoimentos ou são clara e cruelmente negativos ou estão longe de justificar o que de positivo apontam em Sérgio. Por exemplo: Natália Correia não se inibe de sublinhar, domínio onde é autoridade, a triste frustração das veleidades poéticas de Sérgio (a que poderia acrescentar as, ainda mais clamorosamente frustradas, veleidades teatrais); para as explicar, mais as afundando, denuncia o que há de «rígido» (ou de vazio?) no seu racionalismo; e para, depois de tais destroços, ainda salvar o náufrago, apresenta-o, domínio onde se lhe não conhece autoridade, como precursor de um neo-socialismo que vale tão pouco como o paleo-socialismo dos nossos partidos políticos. Outro exemplo: Agostinho da Silva depõe sobre a «teoria da história» (se assim lhe podemos falar) de António Sérgio e, no seu sempre admirável estilo de pensar e escrever, põe-se a sugá-lo no turbilhão joaquimita das suas, dele Agostinho da Silva, visões e mitos; para o fazer, tem de condenar radicalmente o introdutor da interpretação economista da nossa História afirmando que «os caminhos de Portugal serão os que se afiguram errados ou diferentes dos que ele próprio, Sérgio, tomaria».


Os depoimentos mais valorativos ainda são os de Piteira Santos e Braz Teixeira, homens de posições muito diferentes e até antagónicas. O primeiro nunca deixou de se firmar no que há de mais opinioso no sergismo, com seus coerentes desenvolvimentos marxistas; o segundo sempre se tem situado na linha leonardesca da «filosofia portuguesa», que Sérgio abominava. Piteira Santos fica-se – o que pode bem pronunciar que é o que ficará de toda a obra de Sérgio - em exclamações laudatórias. Braz Teixeira propõe – por um imperativo de razão compreensiva inadequado a um homem de razão judicativa como sempre foi Sérgio – uma série de sérias interrogações. As laudatórias exclamações do primeiro não são acompanhadas de qualquer mínimo fundamento: que «é ele, Sérgio, o maior pensador português de sempre»; porquê?; porque «foi ele, entre nós, quem criou o discurso ensaístico», argumento que, a ser aceite, poria fora do pensamento os maiores filósofos da História, desde Aristóteles a Hegel, desde Platão a Kant, desde Santo Agostinho a Leonardo. As interrogações de Braz Teixeira são movidas por qualquer coisa que não sabemos se havemos de chamar enigmática ou escolar. Começa B. Teixeira por reduzir António Sérgio a uma figura secundária no pensamento português contemporâneo, insusceptível de se comparar, num sentido, a Raul Proença, Leonardo e Pascoaes, noutro sentido a Álvaro Ribeiro, Delfim Santos e Marinho. As interrogações que depois propõe, caso obtivessem resposta, ainda o reduziriam a muito menos do que uma figura secundária. Braz Teixeira mostra saber que assim aconteceria pois justifica a sua proposta dizendo que é daquelas respostas que depende o futuro da «democracia que se afirmou agora constitucionalmente». Parafraseando aquilo do «há qualquer coisa de podre no reino da Dinamarca», diríamos que «há qualquer coisa de político na cabeça de Braz Teixeira».

Ao mesmo tempo que se publicam estes fúnebres depoimentos, apareceu um livro de António Quadros, «Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista», que inclui um longo capítulo sobre António Sérgio onde encontram resposta as interrogações de Braz Teixeira. O escrito de António Quadros não se ocupa apenas da polémica que António Sérgio travou contra o sebastianismo e o levou a extremos tais como o de chamar psicopatas e anémicos intelectuais a, entre outros, Pascoaes, Garrett, Oliveira Martins, Bruno, Fernando Pessoa e A. Nobre. Em parágrafos sucessivos, o escrito ocupa-se do «significado e sentido da sua obra» que conclui serem o de «prolongar e orientar os desejos de igualização pela mediocridade de uma burguesia desenraizada, céptica e materialista à procura de álibis para o seu pragmatismo de curto fôlego» e, bem assim, os de «instaurar uma censura interna, paralisar a autonomia intelectual dos indivíduos, transmitir o medo de transgressão aos novos tabus». Num segundo parágrafo, trata do racionalismo de Sérgio, mostrando como ele não é mais do que um «pseudo-racionalismo» ou, em rigor, um «voluntarismo maniqueísta». Num terceiro parágrafo, é do conceito de «uno unificante» que trata António Quadros. Talvez por o aproximar de um conceito a que José Marinho deu a mesma designação, Braz Teixeira vê nele o que pode «salvar» a «filosofia» de Sérgio. António Quadros mostra-nos como, em Sérgio, tal conceito se reduz àquela sinistra concepção do homem como «ser genérico» da qual, segundo a exposição feita na revista «Escola Formal», depende todo o marxismo e, até, todo o socialismo.






Boas razões tem pois o autor deste artigo para recear que este ano do centenário do fogoso plumitivo, com as suas comemorações oficiais, seja o ano em que se esvai a sua presença entre nós. Acontece, ironias do destino, que neste mesmo ano se completa também o centenário de Leonardo Coimbra que a «cultura oficial» esqueceu, desdenhou, ou, simplesmente, ignorou. Todavia, sucedem-se e multiplicam-se, desde o princípio do ano, reuniões de estudo da sua obra, conferências e colóquios. E uma empresa privada fez para Leonardo o que Piteira Santos pede que o Estado faça para Sérgio: a edição de todas as suas obras.

Assim o destino faz que a cultura acerte o passo com a verdade. Pessoalmente, uma indefinida tristeza me vem, todavia, de ver esvair-se a presença de António Sérgio…(in Ponto de Encontro, 16.6.1983, p. 8).

Nenhum comentário:

Postar um comentário