segunda-feira, 30 de abril de 2012

A maçonaria é só uma (i)

Escrito por José Antonio Ullate Fabo 





Grande Loja Unida de Inglaterra




«A história da maçonaria é uma sucessão de invejas, de ciúmes, de conjuras, de divisões, de ambição desmedida. Foram disputas pessoais que provocaram o confronto entre os maçons antigos da Grande Loja de Iorque e os maçons modernos da Grande Loja de Londres (a que nasceu em 1717), dissensão que deu origem a uma guerra interna durante 80 anos, com implicações internacionais: as duas lojas procuraram obter o reconhecimento das Grandes Lojas da Irlanda e da Escócia, que primeiro o fizeram à loja de Londres, logo à de Iorque, e finalmente, outra vez à de Londres. A luta encarniçada da Grande Loja de França contra o Grande Oriente francês não dizia respeito a diferenças essenciais na concepção da maçonaria, mas sim a ambições pessoais. O rito de Misraïm fez frente ao escocismo (como veremos, ambos são ritos daqueles que foram chamados altos graus, por oposição aos três graus básicos – aprendiz, companheiro e mestre – que formam a maçonaria azul ou simbólica) e à maçonaria moderna, recusando-se a reconhecer a condição de maçons dos dois últimos, por pruridos de protagonismo na confecção dos ritos, e logicamente, como em todos os casos, pelos chorudos direitos de iniciação. A luta prolongada e inflamada entre o Supremo Conselho dos graus 33 (rito escocês, ou seja, de altos graus) e o Grande Oriente de França, que fundava também lojas de graus filosóficos, não tinha como pano de fundo nenhuma discrepância doutrinal, mas antes a sempiterna ambição duns e doutros. O Grande Oriente de França emancipou-se da Grande Loja Unida de Inglaterra cem anos antes de suprimir a menção do G.A.D.U., pelas mesmas razões: para ver quem manda. Quando se consuma a decisão de 1877 (de suprimir do ritual todas as menções "religiosas"), as Grandes Lojas e os Grandes Orientes dividem-se de novo, mas a questão de fundo é quem decide a estratégia a seguir: os princípios são os mesmos. Basta deitar uma olhada à clássica História da Franco-Maçonaria, escrita pelo irmão maçon – entusiasta mas crítico – F.T.B. Clavel, que abrange até aos anos 1840, ou a monumental História Geral da Maçonaria, de Dantón, para constatar como, página após página, toda a história maçónica é uma complexa conspiração, sobretudo interna. No livro de Clavel, ficam a descoberto as paixões baixas e as ambições vorazes que impulsionam fragmentações sucessivas, irregularidades, suplantações e reconciliações, dentro do movimento maçónico».

José Antonio Ullate Fabo («O Segredo da Maçonaria Desvendado»).





A UNIDADE DE PRINCÍPIOS NA MAÇONARIA

Se observarmos as definições da maçonaria - incluindo a nossa tentativa de definição - pode parecer que o principal em todas elas é o ênfase posto na moralidade peculiar e na formação da vontade do maçon. De facto, todas elas denotam a grande importância que se confere à moral particular dos maçons para a consecução do fim da irmandade. De facto, os próprios maçons costumam afirmar que a maçonaria é, antes de mais, uma ética.

«Ética e maçonaria deveriam confundir-se para o bom maçon».

«A maçonaria é, antes de tudo, ética articulada numa moral peculiar, humanista na plena acepção da palavra» (Serrano e Altarriba).

O texto citado, no entanto, diz mais adiante que a peculiar moral maçónica se «aproxima do ser humano mediante a via iniciática». O ensinamento maçónico é tutelado por alegorias e por símbolos.




Mas, sem ignorar a importância da moral na maçonaria, qualquer moral, por mais «peculiar» que seja, depende de certos princípios intelectuais, de certas «fontes da moral». Quais são os princípios em que assenta a moral maçónica?

A configuração da moral maçónica vai depender da concepção que a maçonaria tem do significado último da realidade – a sua «cosmogonia» - e da concepção que faz do ser humano – a sua «antropologia».

Vejamos, pois, se os maçons partilham a mesma concepção da realidade nos seus fundamentos últimos.



 O CRITÉRIO DA REGULARIDADE: UMA PISTA FALSA

A maçonaria chamada «regular», bem como muitos dos ritos dos altos graus desenvolvidos a partir daquela, têm como um dos seus fundamentos inamovíveis a afirmação da existência de um ser supremo, que designam por Grande Arquitecto do Universo (G.A.D.U.). Mackey, na sua Enciclopédia da Franco-Maçonaria, diz que Grande Arquitecto do Universo é «o título com que se designa a Deidade na linguagem técnica da franco-maçonaria».

Mas a questão do reconhecimento da existência do Grande Arquitecto do Universo provocou um cisma dentro da maçonaria, divisão que perdura ainda hoje. A instituição que agrupava a maior parte das lojas de França, o Grande Oriente (G.O.F.), tinha funcionado com autonomia disciplinar em relação à Grande Loja Unida de Inglaterra (G.L.U.I.) desde finais do século XVIII. Depois de grandes debates internos, o Grande Oriente de França decidiu, em 1877, - seguindo os passos do Grande Oriente da Bélgica, que já o havia feito seis anos antes – deixar de obrigar os candidatos a acreditar na existência de uma divindade, pelo que suprimiu a obrigação de jurar perante um livro da «Lei Sagrada», de acreditar na imortalidade da alma e eliminou toda e qualquer menção ao Grande Arquitecto do Universo, nos rituais e nos templos. A partir de então, as reuniões e os trabalhos da maçonaria da obediência do Grande Oriente de França, deixariam de estar dedicadas à glória do G.A.D.U. Também a partir de então, a maior parte das lojas de todo o mundo iriam dividir-se seguindo uma destas duas tendências, a da Grande Loja Unida de Inglaterra ou a do Grande Oriente Francês. Em muitos países, irão constituir-se uma Grande Loja e um Grande Oriente, separados. É precisamente nesta divisão que se baseia o conceito de «regularidade» e «irregularidade» maçónica: um conceito que só tem sentido dentro da própria maçonaria, e que discrimina as lojas e os maçons que se mantêm fiéis aos «padrões» antigos (landmarks), e estão reconhecidos pela Grande Loja Unida de Inglaterra, em relação àqueles maçons e lojas que não fazem uma interpretação tão literal dos landmarks e que carecem do reconhecimento da G.L.U.I.

Como se pode ver, o conceito da regularidade só é aceite pelos maçons que se auto-denominam «regulares», enquanto os chamados maçons «irregulares», negam qualquer valor a essa dualidade e preferem denominar-se «adogmáticos», «liberais» ou democráticos». Para complicar mais as coisas, a tendência congénita que os maçons têm para dividir-se e para formar novas obediências, somada ao facto de a Grande Loja Unida de Inglaterra só reconhecer uma única obediência regular por país, teve como resultado que muitas lojas que cumprem os requisitos teóricos da regularidade estejam fora desta. Apesar disso, continuam a utilizar a denominação de regulares para não serem confundidas com as adogmáticas, ou irregulares.

Independentemente de outras considerações, a regularidade maçónica é um critério pouco útil cientificamente, pois, sendo um conceito exclusivo, só diz alguma coisa daqueles a quem se aplica pela positiva (os regulares), ao passo que daqueles a quem é negado (os irregulares), não nos diz nada, havendo entre eles grandes diferenças de que não se dá suficientemente conta. Doravante, faremos referência à regularidade, ou irregularidade, sem que isso signifique uma tomada de posição nesse litígio interno da maçonaria, como também utilizaremos alguns termos «irregulares», por exemplo «maçonaria adogmática» ou «liberal», na medida em que esta terminologia está consagrada pelo uso e com o intuito de ter uma melhor compreensão das referências.



UMA EXIGÊNCIA NÃO TÃO ABSOLUTA






A disparidade existente entre os maçons, no que toca ao reconhecimento institucional da existência, ou não, de um ser supremo, parece aos nossos olhos uma diferença aparentemente irreconciliável. Estaremos perante um primeiro obstáculo, insanável, para determinar que tipo de crença os maçons, no seu conjunto, têm no que diz respeito à ordem no mundo?

Talvez não seja assim. Os «padrões», ou «limites do território», designados quase universalmente pela palavra inglesa landmarks, são listas que recolhem os pontos inalteráveis da essência da maçonaria especulativa tradicional, ou regular. Estes landmarks incluem a obrigatoriedade, para os que quiserem ser maçons, de reconhecer a existência de Deus. Assim, por exemplo:

1. O landmark número 19, dos recolhidos por Albert Mackey: «Uma crença na existência de Deus como Grande Arquitecto do Universo, é um dos limites mais importantes da Ordem (…) a negação da existência de um Poder Supremo e Vigilante de tudo, determina uma incapacidade absoluta para a iniciação».

2. Primeiro landmark, da lista elaborada por Luke Lockwood: «a crença na existência de um Ser Supremo, em alguma revelação da sua vontade…».

3. Número 8, dos landmarks de H. B. Grant: «Exige-se a crença incondicional na existência – e a reverência ao seu nome – de um Ser Supremo, ao qual os homens chamam Deus, e ao qual os maçons se referem como Grande Arquitecto do Universo».

4. Primeiro landmark, de John W. Simmons: «A crença na existência de um Ser Supremo...».

5. Primeiro landmark, de Roscoe Pound: «A crença em Deus».

A «Regra de doze pontos da franco-maçonaria», norma exigida pela Grande loja Unida de Inglaterra para obter o reconhecimento da «regularidade maçónica», declara no seu primeiro ponto:

«A franco-maçonaria é uma fraternidade iniciática que tem como fundamento tradicional a crença em Deus, o Grande Arquitecto do Universo».

Pois bem, o requisito da crença no Grande Arquitecto do Universo, proclamado tão afincadamente nestes, e em muitos outros documentos, que deu lugar ao percurso desgarrado dos Grandes Orientes, na realidade, não constitui uma diferença essencial entre os maçons regulares e irregulares.

Os maçons regulares e irregulares estão certamente mergulhados numa disputa de método que tem provocado rixas e confrontos entre eles. Não obstante, nem uns nem outros se negam mutuamente a condição maçónica (salvo as excepções desaprovadas pela maioria dos maçons). Isto é que é decisivo.

Na maçonaria de tipo inglês, abundam os agnósticos não beligerantes, para quem não é problema a aceitação simbólica do Grande Arquitecto do Universo; e vice-versa, a omissão nos Grandes Orientes irregulares de qualquer menção ao G.A.D.U., à imortalidade da alma ou ao livro da Lei Sagrada, não implica a priori a sua «proibição», pelo que, se um maçon, privadamente, professar qualquer tipo de religião, não entra em colisão com a obediência irregular.

A este respeito, costuma passar despercebido um dado curioso e muito revelador: quando, em 1877, o “convento” do Grande Oriente de França decidiu eliminar das suas Constituições todos os artigos que contivessem referências a Deus, à Lei Sagrada ou à Imortalidade da alma, a medida foi adoptada por iniciativa do então Grão-Mestre, que presidia ao Conselho da Ordem, Frédéric Desmons (1823-1909). O que chama a atenção neste assunto, é que o senhor Desmons era de profissão… pastor protestante, o que demonstra que a intenção da medida não era excluir os candidatos que admitissem a existência de Deus, ou que acreditassem na sobrevivência da alma, mas sim despojar o ritual de exigências excessivamente «dogmáticas». Ao mesmo tempo que Desmons pugnava por essa política dentro da loja, continuava a exercer a sua actividade religiosa de pastor protestante, à sua maneira. Foi uma personagem de um fanatismo laicista extremo, como é típico do Grande Oriente de França.












Poucos anos depois de ter conseguido a supressão das menções ao Grande Arquitecto do Universo nos trabalhos da sua obediência, abandonou o exercício do seu ofício religioso para dedicar-se plenamente à actividade política, na qual teve um certo êxito, pois chegou a alcançar a vice-presidência do Senado francês. O seu sectarismo anti-liberal levou-o a colaborar no assunto que deu origem ao «escândalo das fichas», uma conjura pela qual os maçons organizaram um sistema de controlo dos membros das forças armadas que consistia em facilitar a ascensão aos filiados na maçonaria enquanto aos membros do exército que eram notoriamente católicos militantes, aos que enviavam os seus filhos para colégios católicos ou àqueles cujas mulheres assistiam à Missa, era-lhes vedada qualquer promoção. Desde todos os recantos de França, uma apertada rede nacional enviava para o Ministério da Guerra as fichas com todos os dados dos militares «clericais». Aí, eram arquivadas num ficheiro que era designado por «Cartago». Os militares que figuravam no «Cartago», não tinham qualquer hipótese de conseguir ascender na carreira. Essa história ignominiosa é narrada com abundantes detalhes pelo maçon Alec Mellor. Quando, em 1905, a conspiração se tornou do conhecimento público, houve uma enorme comoção em França. Há que ter em conta que o próprio Desmons, e com ele, muitos anti-clericais do G.O.F. que professavam uma religião meramente privada, não tiveram qualquer problema em ser qualificados para ingressar numa loja de obediência regular e teísta inglesa (in «O Segredo da Maçonaria Desvendado», Diel, 2009, pp. 59-64).

Continua


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