domingo, 6 de fevereiro de 2011

Portugal e o iberismo (iii)

Escrito por Franco Nogueira





Oliveira Martins



Um outro grande vencido da vida impõe de novo destaque especial: Oliveira Martins. Já se percorreram os passos maiores do seu iberismo: era mitigado, inocente, de boa-fé; melhor compreensão das realidades e lúcida percepção dos objectivos espanhóis suscitaram sérias dúvidas ulteriores; e estas levaram ao repúdio final. E agora, perante a crise: foi modificada pelo ultimatum a atitude de Martins? Prostrado pela emoção, poucos dias após o gesto inglês, em artigo no Tempo, vai ao extremo de defender a aliança das duas monarquias peninsulares. E por muitos volumes e artigos seus podemos encontrar referências ao episódio dramático. Asserenado um tanto o seu ânimo, será talvez no Portugal em África que melhor se concentra e exprime o pensamento deste vencido da vida quanto ao ultimatum. Para Martins, mais do que as consequências imediatas da crise, importa analisar o futuro; e em qualquer caso, pela sua seriedade, a crise obriga a meditar. Talvez mais grave, e de emoção ainda mais funda, foi a separação do Brasil, «um momento de desespero muito mais cruel do que pode vir a tornar-se a situação agora». Mas a grandeza do perigo exaltou a energia nacional. Há que compreender a agitação popular, mas já se entende menos o seu aproveitamento para «interesses facciosos»; e isso porque, nos momentos solenes de risco, é «o patriotismo e não o partidarismo que deve falar». Na circunstância, para Oliveira Martins, o Conselho de Estado e o Governo não podiam fazer senão o que fizeram, sob pena de, por retaliação inglesa, se perder uma parte importantíssima do Ultramar; e a manifestação feita contra Barros Gomes foi suma injustiça - para o ministro e para o Governo. Decerto: o ultimatum de 11 de Janeiro foi, escreve Oliveira Martins, «um destes actos odiosamente brutais que nem são das temeridades, nem dos arrojos, tantas vezes expiatórios de violência»; e impôs «a lei da força a quem só podia invocar o direito»; e a Inglaterra usou de «uma astúcia felina», iludindo os Portugueses enquanto se mobilizavam meios navais para eventual assalto a posições portuguesas. E agora - o desagravo. Que desagravo? Há que fortalecer o Exército, e a Marinha; mas a «força que principalmente há-de sair da comoção nacional é a força filha do civismo e do juízo». Cortar passo a passo os vínculos com os ingleses, nada mais racional, sensato e patriótico; mas «isso não é o desagravo pleno e satisfatório». Liquide-se o litígio com a Inglaterra pela melhor forma possível; e depois há que pôr a casa em ordem; e emancipar Portugal; e recuperar para os Portugueses o comércio; e extirpar em suma o «nosso desleixo e a nossa inércia». E como remata Martins a sua visão da crise e do futuro? Recomenda o rearmamento de Portugal - e acaso a substituição, como propôs no Tempo sob o espinho do desespero, da aliança luso-britânica por uma aliança luso-espanhola. Neste último ponto, há assim um retorno de Martins a uma posição mental e psicológica anterior; e sucumbiu por instantes ao mesmo sentimento que a crise desencadeou em alguns espíritos mais frouxos, ou impressionáveis, ou precipitados. Cedo se refez Oliveira Martins, contudo, e de desencantou. Bem antes da sua morte prematura, espírito lúcido e patriótico que era, soube bem perscrutar as realidades. E manteve-se, ao fim e ao cabo, fiel à sua síntese: «amizade espanhola primeiro; pressão depois; violência final». E em qualquer caso, como remédio para os males nacionais, este vencido da vida via apenas o civismo, o juízo, a reforma dos hábitos de desleixo e inércia, o patriotismo. Mas entre os nossos homens de génio do século XIX um nome está ainda omitido. Não foi um vencido da vida, no sentido de pertencer ao seu grémio. Mas acaso se poderá considerar o maior dos vencidos, e decerto o foi pelo drama e pela tragédia. Refiro-me naturalmente a Camilo Castelo Branco. Este homem, de tanto génio como infortúnio, está torturado pela ameaça de cegueira em fins de 1889, princípios de 1890. Nos começos de 90, justamente, escreve ao seu grande amigo Tomás Ribeiro: «Ainda não ceguei de todo; mas estou perdido, se não me acodes». Pouco depois, nova carta: «Estou a cegar. Perdido! Vou fugir daqui para não me matar debaixo dos teus olhos e do teu amor». Mas quando em 1 de Janeiro Portugal é agredido pelo ultimatum, aquele homem, que escrevia «estar sem olhos, sem pernas, sem cérebro», reage, e lança-se num poema que intitula Extermínio da Inglaterra. E foi essa a contribuição camiliana para a Anátema, publicada em Coimbra. Uma outra parte dessa composição foi mais tarde inserida, por Abril de 90, no jornal República, do Porto. Camilo classifica o poema, de seiscentos e cinquenta versos, repartidos em quadras, como de trovas alegres. Mas não parece, ainda que haja sido sumária a minha investigação, que o contributo de Camilo para o protesto contra a Grã-Bretanha tenha ultrapassado aquela poema. E depois, em Maio de 90, de novo é o autor do Amor de Perdição solicitado para colaborar na imprensa antibritânica. Enfermo, martirizado pela cegueira, o desesperado de S. Miguel de Seide recusa-se. E escreve a Tomás Ribeiro uma carta de angústia: «Eu estou na cama em trevas cerradas e cortado de dores. Se houvesse Deus, eu já devia ter morrido pelo muito que lhe peço a morte. Não contribuo para o jornal contra a Inglaterra porque não sou inimigo dos Ingleses. Encontro-os com os primeiros Afonsos a conquistar o Sul de Portugal; achei-os em Aljubarrota defendendo os falsos direitos do Mestre de Avis contra D. João de Castela; encontrei-os em frente de Lisboa defendendo os direitos do rei português D. António contra Filipe II. No terramoto de 1755, a Inglaterra remeteu à desolada Lisboa uma frota com donativos superiores a quinhentos mil cruzados. Acho os Ingleses ligados a Portugal contra Napoleão e empenhados em restituírem D. João VI ao trono. Encontro ainda, nos nossos dias, os Ingleses por mar e por terra batendo as forças do usurpador D. Miguel. Estes factos não me irritam patrioticamente contra a Inglaterra. Quanto aos macololos, sabes de mais que no fim do reinado de D. João III eram já perdidas as linhas hidrográficas de África. Depois de Alcácer Quibir, nem portugueses nem espanhóis pensaram mais nos cafres. Depois de 1640, nunca lá se mandaram missionários, nem protecção, nem educação. Tudo aquilo prescreveu como se a vaga de dois séculos lambesse os areais onde foram escritos os direitos de Portugal». Não importa averiguar do rigor histórico de alguns pormenores desta carta. Convém reter essa conclusão, todavia: para o autor de Onde está a felicidade?, em momentos cruciais, fora com a Inglaterra, e não com potência continental europeia, que Portugal se deparara; e esta era a explicação da aliança luso-britânica. Porque os interesses permanentes de Portugal estavam mais próximos dos interesses permanentes daquele país do que de outro qualquer. E isso tinha um preço político, alto sem dúvida, mas inferior ao que resultaria da diluição na Península. Mas por que se torna pungente esta carta? Pelo estado de espírito em que foi escrita: cerca de quinze dias depois de a remeter a Tomás Ribeiro, a 1 de Junho de 1890, Camilo suicida-se em S. Miguel de Seide com um tiro de revólver.


Mapa Cor-de-Rosa


No quadro do ultimatum inglês, ligado ao surto de iberismo, cumpriria referir o estudo de Moniz Barreto intitulado A Situação geral da Europa e a política exterior de Portugal, publicado algum tempo depois na Revista de Portugal. Moniz Barreto foi espírito tão gentil e lúcido como idealista; e no terreno político deixou-se envolver e arrebatar pela emoção, pelo ódio à Inglaterra; e como retaliação contra esta advogou uma conduta externa que inelutavelmente entregava, como dádiva, Portugal à Espanha. Este texto de Moniz Barreto teve as suas repercussões, e vastas. E estas haviam de repor todo o problema - na sua constante pendular.

(...) Sim: os republicanos espanhóis haviam feito quanto possível para cativar os seus correligionários portugueses. Destes, por oportunismo ou convicção mas sobretudo por boa-fé, alguns se deixaram aliciar. Simplesmente, os republicanos espanhóis ligaram ao iberismo e à união ibérica o seu republicanismo e a sua hostilidade à Grã-Bretanha: e foi nessa base que apoiaram os portugueses da mesma família política. Cometeram neste particular um erro, e sério. Havia republicanos portugueses que eram iberistas? Havia-os, ao menos no sentido que a candura portuguesa atribui à palavra. Mas o partido republicano português, no seu ideário e na sua estrutura moral, não era iberista. Moreira Júnior, deputado monárquico, insinuara entendimentos iberistas por parte dos republicanos. Sem embargo de ocasionais tergiversações, Teófilo Braga parece manter-se numa linha firme depois do congresso de Badajoz, e por 1906 responde indirectamente aos rumores: «a história dos Estados peninsulares que se constituem em nações no fim da Idade Média assenta nas tendências separatistas», «a ideia da União Ibérica é um absurdo nascido da obsessão de interesses dinásticos»; e o português e o espanhol «não se confundiram na constituição histórica das nacionalidades peninsulares, nem se confundirão nas remodelações políticas vindouras» (T.B., A Monarquia e a União Ibérica, in A Lucta, I-XII-1906). Mas às insinuações ínvias de Moreira Júnior, replicava António José de Almeida, em público e com vigor: «no embate entre monárquicos e republicanos também eu só admito portugueses. Pela primeira vez, pela última, pela única vez, estamos de acordo. Em nome do meu partido, tomo o compromisso solene de que nós, republicanos, jamais aceitaremos qualquer auxílio interesseiro que nos venha de qualquer parte. Nesses casos, não queremos nem uma baioneta, nem um braço, nem uma moeda» (História da República, ed. Século, 242). Era claro António José, e firme.

Proclamada a República em 1910, logo no ano seguinte correm rumores de contra-revolução monárquica. Agitam-se Paiva Couceiro, e alguns seus adeptos. Consideram os republicanos que a Espanha é então o maior inimigo da República portuguesa; e sentem o pavor de uma intervenção espanhola. Diz Junqueiro: «A Espanha não digere Portugal vivo; a Espanha só pode digerir o cadáver de Portugal». E Bernardino Machado, para prevenir a intervenção espanhola que receia, envia a Madrid uma nota enérgica, que tem a aprovação do ministro britânico (Raul Brandão, O Vale de Josafat, 37, 38; também Carlos Malheiro Dias, Do Desafio à Debandada, I, 325, e II, 143 e segs). Há mesmo uma exaltação nacional, sobretudo na imprensa de Lisboa, perante o que se julga serem as possibilidades de um ataque armado da Espanha, próximo ou remoto. Por isso, José Relvas, na altura em Madrid, informa Lisboa de que a rede ferroviária espanhola obedecia ao plano de invasão de Portugal pela Espanha (J. Medeiros Ferreira, ob. cit., 28). Elementos militares portugueses sustentam a necessidade de rearmamento para defesa das costas portuguesas e dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, com unidades marítimas de combate bastante fortes para defrontarem o inimigo que, por exclusão das grandes potências, só poderia ser a Espanha. Círculos espanhóis encaram como improvável um conflito com Portugal, e sem entusiasmo mas também sem receio; e têm-se por melhor armados e melhor disciplinados. Mas se a Espanha monárquica não tem intuitos agressivos, julga-se no entanto que Lisboa, e em particular após a entrevista dada por Teófilo Braga (chefe do Governo Provisório da República) a um jornalista espanhol, está ajudando os republicanos espanhóis (Carlos Malheiro Dias, Entre Precipícios, 273 e segs). Acaso poderemos talvez pensar, todavia, que alguns grandes nomes republicanos sentiram confusos estremecimentos iberistas em momentos fugazes das suas carreiras políticas. Possivelmente um Afonso Costa, que em Madrid sugerira uma aliança entre os dois países; possivelmente um Egas Moniz, a quem Afonso XIII exprimira o desejo de estreitas relações comerciais e económicas, e que se rendeu deslumbrado ao «alto espírito» que viu no rei de Espanha. Mais tarde, o mesmo rei Afonso XIII daria ao Diário de Notícias, através de Augusto de Castro, uma extensa entrevista: nas velhas pisadas de Filipe II, ou de Carlos III, ou Carlos IV, pronunciava-se sobre comunicações entre os dois países (agora vias férreas), problemas de pescas, tratados de comércio, intercâmbio económico: e manifestava o desejo de que fosse encurtado o tempo de viagem entre Lisboa e Madrid, exactamente como Filipe II cuidara de um projecto de encurtar distâncias entre as duas cidades. E mais; na conversa privada com Augusto de Castro, atacou Afonso XIII violentamente a Inglaterra; advogou a denúncia da aliança luso-britânica; e considerou de interesse para Portugal acolher-se à protecção de Espanha (Luiz Vieira de Castro, Limbo, 34). Nestes traços, não se podia descortinar quebra na linha tradicional do iberismo espanhol. Mas por detrás das palavras do rei, a imprensa portuguesa não viu nada. Mas o Governo britânico vira: ao aproximar-se a guerra na Europa, Londres julgava ter razões para pensar que a Espanha de Afonso XIII, para entrar na luta ao lado dos Aliados, exigiria Tânger, Gibraltar e as mãos livres em Portugal; mas a Inglaterra não se dispunha a anuir a essa ambição (J. Medeiros Ferreira, ob. cit., 20). E os passos conhecidos da entrevista foram muito louvados. Para A Lucta, orgão dos unionistas de Brito Camacho, o monarca espanhol fora muito amável para Portugal e criara direito ao reconhecimento dos Portugueses. E a República, que reflectia o sentir dos evolucionistas de António José de Almeida, e que este fundara, repetia os ditames de Afonso XIII, e descia ao pormenor já clássico: «amarrados à velha bandeirola da aliança inglesa, que nunca nos serviu para nada, não soubemos valorizar ainda nenhuma das nossas excepcionais condições». E no entanto fora àquela bandeirola que Bernardino Machado recorrera quando julgou Portugal ameaçado de invasão, por parte da Espanha. Mas sem embargo de um ou outro daqueles desvios, o Partido Republicano e a I República jamais adoptaram o iberismo como doutrina oficial, ou como política, e nem assumiram atitudes ou praticaram actos que tivessem esse cariz.






Se o iberismo ao tempo da monarquia fora defendido por republicanos para destruírem o trono, são agora alguns monárquicos que se apresentam como arautos da mesma tese para atacarem a República, e acaso derrubá-la. Neste particular, é também esclarecedor o volume recente de Hipólito de la Torre sobre antagonismo e fractura peninsular. Estavam conscientes do «perigo espanhol», é a tese do livro, os mais esclarecidos políticos da I República, e em alguns momentos não excluíram mesmo a possibilidade de uma intervenção de além-fronteiras (6). Para mais, a I República vivia em crise permanente; indigência ideológica e doutrinal, angustiante desconfiança nos homens e nas instituições, instabilidade endémica. Como sempre durante as tormentas, e por nevoeiro mental e desvairo psicológico, confiava-se num milagre de curandeiros, num encoberto redentor, num sebastianismo de amuleto. Na sofreguidão por qualquer coisa que resolvesse os problemas nacionais - já que o espírito de sacrifício, o sentido de missão, a competência, o trabalho, a consciência cívica desaparecem ou ficam em surdina - desencadeiam-se pela década de 1910 alguns movimentos que tentam, do mesmo passo, preencher o vazio ideológico da sociedade portuguesa e modificar instituições. E desses movimentos, ou ao menos dos homens que neles participaram ou os inspiraram, alguns sucumbiram ao iberismo numa ou noutra fase da sua pregação. E importa aqui retomar agora o artigo de Moniz Barreto intitulado A Situação geral da Europa e a política exterior de Portugal. É este na verdade o texto fundamental, aproveitado durante a crise, para uma ulterior renovação da teoria iberista. Neste particular, António Sardinha é o mais minucioso doutrinador, e acaso o mais representativo. Não esconde Sardinha, aliás, o seu deslumbramento perante o ensaio de Moniz Barreto; e parece lícito afirmar que as teses daquele constituem ampliação das ideias do autor de A literatura contemporânea. Para Sardinha, a Espanha estava protegida a norte pelos Pirenéus; mas o seu flanco ocidental encontrava-se a descoberto; e isto porque Portugal não era apto, por si, a repelir uma agressão praticada por grande potência contra a Espanha. Deste modo, apenas uma Península politicamente unitária poderia ser garantia de defesa de ambos. Sardinha queria assim que a geoestratégia da Península coincidisse com a sua geopolítica. Precisamente fora essa a situação entre 1580 e 1640. Por outras palavras, e como sublinhado no início deste capítulo, aquela coincidência ou sobreposição significam a Península submetida ou ocupada por uma única soberania. Dentro deste unitarismo, e nas teses de Sardinha, à Espanha caberia uma política europeia e mediterrânica; e a Portugal, uma política atlântica; e contra este poder peninsular não teriam meios de agir as demais potências. Sardinha parecia supor ou imaginar que isto seria viável mantendo os dois países a sua soberania, independência, identidade próprias; e que esse, e somente esse, era o objectivo espanhol; e que assentes essas premissas, o simples decurso do tempo e a simples acção do peso espanhol não arrastariam a nenhumas outras consequências nem alterações. Mas completando-se assim, prosseguem as teses de Sardinha, os dois países dilatariam a e o império. E é este em síntese o fundamento de A Aliança Peninsular, que consubstancia o iberismo de António Sardinha. E é à luz daquelas ideias que interpreta as crises, os acontecimentos, as figuras: procura conciliar o inconciliável; homens e factos são deformados o que basta para os moldar às necessidades da tese. Com isenção, escreve o historiador e ensaísta espanhol Juan Beneyto: «A hispanofilia de Sardinha leva-o a dulcificar a impressão geral que produz aquele período (Beneyto, España, Meseta y Litoral, 131). Destaquem-se os que parecem mais expressivos. Reconhece Sardinha a existência de um perigo espanhol para Portugal; e logo invoca (tendo em mente possivelmente a Batalha de Toro) um perigo português para a Espanha. Simplesmente, não salienta que se não equivalem os dois perigos, nem pela sua extensão, nem pela sua natureza: o perigo espanhol resulta do poderio da própria Espanha, e da sua obsessão centralizadora e dominadora, ao passo que o invocado perigo português não provém de Portugal, da sua vontade ou da sua política, mas de uma eventual situação internacional em que uma grande potência, inimiga da Espanha, atacasse esta através de Portugal. Esta diferença é fundamental; e aquela situação, nos precisos termos em que Sardinha a entrevê, jamais se verificou na história. Aliás, ainda que tivesse fundamento a alegação de Sardinha, esse quadro nunca poderia justificar nem legitimar a eliminação da soberania portuguesa. Quando muito, autorizaria a Espanha a organizar e a fortificar defensivamente a sua fronteira com Portugal. No fundo, pessoalmente, António Sardinha sente-se bem em Espanha: é «um «pobre peregrino lusitano que deseja tomar assento à lareira de Castela», para receber desta a «fidalguia carinhosa»; mas não se recorda de que essa «fidalguia» significava precisamente a política praticada desde Afonso X a Afonso XIII, e de que Afonso Henriques foi acaso o primeiro a dar-se conta, e a recusar sempre. Equaciona Sardinha o quixotismo com o sebastianismo: considera o primeiro a expressão dramática de um sentir espanhol, de matriz telúrica, enquanto o segundo seria mera reacção ingénua perante desgraças indefinidas de que, ciclicamente, o povo português se julga vítima: e um outro actuariam em planos diferentes. Para documentar o paralelismo igualitário dos dois povos, Sardinha enumera o que supõe serem influências portuguesas em Espanha: Tirso de Molina haver-se-ia inspirado em temas portugueses; Serafim de Freitas ensinou em Valhadolide; L Calderón de la Barca usou a língua portuguesa num verso; Lope de Vega, Fernando Herrera, Velez de Guevara, Augustin Moreno, interpõem em obras suas alguns personagens portugueses; era português Velazquez; Antonio Moro teria sido inspirado por Sanchez Coelho; e Filipe II fora «um caso interessantíssimo de puro lusitanismo», e como rei fora melhor que muitos reis naturais, e isso porque despachava em português, escrevia às suas filhas a exprimir saudades do cantar dos rouxinóis em Portugal, e apreciava os púcaros e barros de Estremoz, além de procurar garantir as liberdades e privilégios dos Portugueses (7). Por outro lado, são mil as contradições de António Sardinha. E insensivelmente resvala para a negação do dualismo na Península: Castela é a irmã mais velha, a Espanha é a Espanha-Madre, a Madre-Espanha: e as figuras e episódios que contrariem as suas teses são postos em ridículo, ou ignorados. Um Álvaro Pais, um Mestre de Avis, um Febo Moniz são apoucados e reduzidos a nada. Mas Sardinha dá por vezes a sensação de pretender em verdade exaltar glórias e tradições nacionais; e sente-se alarmado quando na Liga Naval, por 1915, se lançaram conferências sobre a questão ibérica. Então insurge-se contra um iberismo que seja unitário ou unitarista, e que lhe aparece de súbito contrário à geografia e à história. Tem aqui afinidades com Teófilo Braga, que no entanto Sardinha acaba por classificar de faccioso e arcaico, de trabalhador estéril, de intelectual desacreditado. Mas Sardinha atribui aquele iberismo unitarista a manejos maçónicos, e liberalistas, e jacobinos. (Deverá anotar-se de passagem que, sem embargo do iberismo de alguns maçons portugueses, a Maçonaria Portuguesa, subordinada ao grande Oriente Lusitano e mesmo de outras obediências, não foi iberista. Era seu princípio fundamental o «amor da Pátria». Veja-se Fernando Catroga, estudo citado, 445 a 447). Lança-se então Sardinha no peninsularismo, espécie de supernacionalismo, a que se subordinam, em pé de igualdade, tanto Portugal como Espanha. Invoca o exemplo do Império Austro-Húngaro - mas esquecia que o equilíbrio entre a Áustria e a Hungria não existe entre Portugal e a Espanha, nem jamais existiu, ou poderá existir.



António Sardinha



Conduzia-se no fundo um iberismo em jeito de ataque aos republicanos, como estes o haviam advogado como método de ataque aos monárquicos. Mas por parte daquele doutrinador - também dirigente espiritual e intelectual do Integralismo Lusitano, além de escritor e poeta de consequência - foram transpostos limites e sustentadas teses em que os seus próprios amigos políticos não puderam acompanhá-lo. Hipólito Raposo, para citar um exemplo frisante, compreendeu todo o fatal alcance do iberismo: e sublinhava que na Espanha «sempre vive e palpita em segredo a aspiração do perigoso dualismo de Filipe II ou o intento de absorção de Filipe IV» (H.R., Folhas do Meu Cadastro, 25). Luís de Almeida Braga verberava os «castelhanos do interior» e julgou necessário vir explicar A Aliança Peninsular: o que Sardinha «queria era que não se diminuísse o sentido universal do nosso génio»: desejava uma simples «colaboração amigável» entre os dois países: mas não «a velha e estulta quimera do iberismo» (L. de A.B., Posição de António Sardinha, 76). João do Amaral, na Monarquia, não se eximia a acentuar que «entre uma nação forte e uma nação fraca, aliança quer dizer a breve trecho - absorção». Sobretudo quando essa absorção é facilitada pela existência de longa fronteira comum. E José Pequito Rebelo, outro integralista de nota, não escondia a sua devoção monárquica e os seus desejos de amizade com a Espanha; mas estacava aí o seu iberismo; e julgava que se poderia ir até uma determinada raia, e parar nesse risco, quando e se se quisesse. A tudo respondia Alfredo Pimenta, não integralista mas monárquico ardente na altura: «entre Castela e Portugal havia, há ainda hoje, e necessário é que haja sempre o abismo intransponível que abriram os reis de Portugal». Em particular, deveria acaso Pimenta ter acrescentado, quando deixaram de praticar e abandonaram a desastrosa política de casamentos peninsulares. E quanto ao Integralismo Lusitano em si, o movimento manteve-se sempre dentro do mais extremado patriotismo e do mais fervoroso nacionalismo, e também sempre na linha da aliança luso-britânica (in ob. cit., pp. 122-124 e 128-134).


Notas:

(6) Confirma a notícia dada por Raul Brandão, no Vale de Josafat, atrás referida. Outras fontes abonam o mesmo ponto. Segundo muitos responsáveis da época, aquela possibilidade teria mesmo estado iminente por ocasião do 19 de Outubro de 1922, a famosa e trágica noite sangrenta.

(7) Neste particular, e dentro de certos limites, e por uma política de tacto e aliciamento, há alguma verdade, quanto ao período inicial, na última afirmação. Mas acabou por prevalecer o centralismo de Madrid: o sempre presente conde-duque de Olivares.

Continua


Um comentário:

  1. Os invito a participar:
    http://posits.x10host.com/ni-espana-ni-portugal-iberia-encuesta-y-politica-ficcion/

    ResponderExcluir