sábado, 26 de fevereiro de 2011

O Caso da Finisterra do Noroeste

Escrito por Francisco da Cunha Leão






Agora a periferia galega. No cotovelo da costa cantábrica com a atlântica, ela forma o noroeste da Península, e ao maciço seu esqueleto orográfico (galaico-duriense), articula-se o relevo do Portugal de além-Vouga.

Temos que fundamentalmente constitui a mesma nação que a portuguesa, para cuja formação concorreu decisivamente meia Galiza, influindo de tal sorte no conjunto humano e na idealidade do novo Estado que o substracto psicológico português, as atitudes frente ao mundo e à vida, e os móveis de acção se mostram similares, salvaguardadas que sejam as consequências do trânsito histórico, do activismo político e da integração de ingredientes exóticos. O asserto verifica-se até nos luso-descendentes. Reservamo-nos para discutir o tema e a tese a propósito da periferia não absorvida, irredutível que é Portugal. Por ora, interessa-nos apenas traçar um breve escorço das razões a que atribuir o irremediável afastamento da esfera política portuguesa de uma região que naturalmente se lhe devera associar, como participante do mesmo todo.

Está em primeiro lugar a cisão da faixa atlântica pelo rio Minho, acontecida no reinado de Afonso VI de Leão (cuja largueza de senhorios já lhe justificava a designação de imperador) com o desmembramento do Condado Portucalense no regime de feudo directo da Coroa, e não subordinado ao condado da Galiza, ao contrário do que tem corrido nos compêndios conforme às já rebatidas opiniões de Herculano e Gonzaga de Azevedo (1).

Desde os primeiros reis asturianos, a Galiza, libertada por Afonso I, o Católico, dos mouros que a não haviam ocupado por inteiro (2), surge espontaneamente da monarquia cristã, ora com governo próprio, ora mesmo como reino, até que o centro do novo Estado foi transferido para Leão. De outro modo, os ressentimentos locais logo deflagravam pelas armas numa terra de vastos senhorios e turbulenta nobreza.

Restabelecida por Afonso VI a unidade do grande Estado de Fernando, o Magno, e para mais alargado este, a situação da Galiza começou a tornar-se excêntrica, bem como a de toda a faixa ocidental já definitivamente assente na linha da Serra da Estrela e do Mondego.

Cada vez se deslocava mais para a meseta central o tablado político e militar. Todavia a irrequieta província do Noroeste não podia ser menosprezada, nem assim a reconquista dos litorais do ocidente. Estas circunstâncias determinaram, como é sabido, por influência da Ordem de Cluny, a atribuição do governo da Galiza, como condado, a D. Raimundo, e a formação de um outro, desentranhado do primeiro, confiado a D. Henrique. Os dois condes e parentes ficaram ligados ainda pelo casamento com duas filhas do próprio soberano.

A divisão da Galiza pelo Minho, além de não ser destituída de fundamento geográfico, posto que meramente local, - dadas a grandeza e veemência das afirmações pessoais que de uma e outra banda se manifestaram, simultâneas ou a curta alternância, e as imperiosas linhas de força divergentes em que tiveram de inserir-se, arrastadas, as duas metades da Galiza, originou dois quadros políticos cedo tornados inamovíveis, contra o que seria de prever do que não passava de simples arranjo de oportunidade sobre um todo territorial e humano homogéneo.


 Santiago Matamoros


Expliquemos e desenvolvamos quanto baste para se tornarem inteligíveis os factos que transformaram numa separação de Estados o que não passa de mero limite administrativo, à moda feudal da época:

a) A fronteira pelo Minho era a mais indicada, admitindo-se, como é evidente, ser ao mesmo tempo necessária a divisão da Galiza. Impunha-se assegurar a defesa e o combate aos sarracenos ao longo do Atlântico, numa circunscrição especial fronteira do tipo marca. Daquela Galiza centrada em Compostela por motivos religiosos e políticos, era difícil a condução da guerra para o Gharb. O reino iniciado em Oviedo, esse deslocara a capital para Leão, em plena meseta peninsular, e iria deslocá-la para Toledo, obedecendo aos imperativos da luta cada vez mais ao sul. As sucessivas contendas internas e as preocupações com o Islão seu fronteiriço, mal lhe permitiam desvios a oeste.

A divisória estabelecida, repetimos, era a mais indicada. Além de apartar distritos políticos (portucalense e conimbricense) que constituíam o mínimo indispensável de território e gente para resistência, povoamento e ataque, não lhe faltava sequer fundamento natural - o melhor que poderia encontrar-se para uma dicotomia da Galiza de então.

Isso não provinha propriamente de a fronteira se apoiar num rio, por sinal o maior do interior da terra galaica, porque os rios, as mais das vezes, antes agregam que dividem. Mas o curso inferior do Minho - ao contrário do que acontece a montante, além-da-fronteira, na várzea do ribeiro de Orense - dispõe de um vale estreito, em grandes troços alcantilado, com escassas passagens para o hinterland.

A linha mestra das comunicações na parte portuguesa acompanha o mar, ou segue a curta distância dele, ao longo de uma planície ou sequência de terreno pouco acidentado que ininterruptamente vai de Caminha a Viana, e com variantes até ao Porto, e daí para o sul ramificada na maior largura do triângulo litoral português. Essa linha mestra sofre uma distorção para leste ao longo da margem esquerda do Minho até Valença, para se internar por Tui, na Galiza propriamente dita, até Pontevedra, Caldas de Reyes, Padrón e Santiago, aflorando aí o mar somente nos extremos orientais das escarvadas rias.

Aliás, o principal caminho histórico entre a Galiza e Portugal, por essa razão e pela importância de Braga, afastava-se muito do mar. A foz do Minho aparta dois tipos de costas: ao norte, em vez de baixa, pouco recortada, com rochedos e praias, a costa segue agreste, escarpada, inóspita, por Oya e Baiona (3). Observa-se a partir daí a principal individualização geográfica da Galiza em relação ao Entre-Douro-e-Minho: as costas altas entremeadas das profundas reentrâncias das rias que, além de óptimos portos naturais, levam a maresia ao íntimo das terras. Isto dá um carácter anfíbio a muitas povoações galegas, o arvoredo e os milheirais descem às águas já pouco salinas daqueles braços de mar, enquanto quedam barcos e apetrechos marinhos pelo meio dos campos, debaixo das ramadas ou rentes aos canastros e cruzeiros de granito esculpido.

A divisória dentro da Galiza latu sensu foi portanto a mais natural (4). O mesmo se não infere para uma fronteira entre nações, porque geograficamente (à parte o facto apontado) quase se não dá pela transição, e no mais, em culturas agrícolas, fisionomia económico-social, população, o Minho nada separa como no famoso desenho de Castelão.

b) O achado da sepultura de Santiago Apóstolo - em apoio da lenda do evangelizador da Península, cujos restos mortais teriam sido trazidos para cá depois do martírio - ocorreu no princípio do século IX (ano de 813) com autenticidade logo aceita (5) dando origem a Compostela (de Campus Stellae) ao tempo em que corria na Espanha a primeira de todas as cruzadas. A urbe que brotou no local depressa originou outra Jerusalém. Logo a nova cidade santa se converteu no principal centro de peregrinação de todo o Ocidente, uma Anti-Meca, no dizer de Américo Castro, mercê do interesse que a Igreja pôs em estimular a fé na Península, e atrair a esta, em luta com os sarracenos, as dedicações religiosas e militares, e também por obra de valorização local da parte dos prelados de Compostela. O fundo céltico da Galiza, propenso ao maravilhoso, veio servir o cristianismo, com a dinamogenia deste novo mito.

Catedral de Santiago de Compostela









A estrada de Santiago que de França conduzia a Compostela (6), apoiada em conventos, albergues, hospitais e defendida por cavaleiros, foi calcorreada durante séculos por um vaivém ininterrupto de peregrinos. De nada valeram as vieiras - o símbolo marítimo.

O vínculo das peregrinações amarrou à Espanha continental e ao resto da Europa à Galiza, quando Portugal, virado ao sul, iria divergir para o caminho dos mares. Veio, volvidos séculos, acentuar a disjunção entre Galiza e Lusitânia operada pela divisão administrativa e rede de estradas do Império Romano, ao ser incluído o além-Douro na Espanha Citerior, articulado ao nódulo de comunicações de Astorga, - assunto de que trataremos noutro lugar.

c) O facto foi aproveitado e estimulado pelos bispos santiaguenses, em especial Diego Gelmirez que recebeu o báculo no ano de 1100. Esse homem pertinaz e dúctil governou a Igreja compostelana até 1140 e, com alternativas de maior ou menor influência, a própria Galiza. Ensilveiravam-se-lhe na mente dois soberanos pensamentos que, segundo Manuel Murguía, foram: «el de la sublimación de su iglesia y ciudade y el engrandecimento del país gallego» (7). Conseguiu-o numa vida de lutas porfiadas que a História Compostelana exalta.

Em contrapartida, Alexandre Herculano interpreta-o duramente como figura monstruosa de ambição e duplicidade (8). Há que atender à época e às complexas circunstâncias que obrigaram o Prelado a um duplo jogo contínuo: a desconfiança pontifícia que encontrou quanto à Diocese de Compostela, a que se atribuía uma posição orgulhosa, rival, em relação a Roma; o xadrez feudal galego no qual sobressaía o poder e a vontade dominadora da Casa de Trava; a volubilidade matrimonial e política da rainha D. Urraca consorciada em segundas núpcias com o poderoso Afonso I de Aragão. A obra realizada foi notável: engrandeceu a sua Igreja e a sua cidade; senhoreou muitas vezes o curso dos acontecimentos; conseguiu emancipar a diocese de subordinações metropolitanas, com dependência directa de Roma e elevação de ordinário à categoria de Arcebispo; salvaguardou a autonomia galega no quadro da monarquia leonesa.








Agarrado em demasia ao terreno, a sua visão não excedeu porém o regionalismo e será de atribuir-lhe boa parte da responsabilidade da fractura entre Portugal e a Galiza. A encarniçada pugna que sustentou contra a Arquidiocese de Braga, quase sempre com vantagens, e a participação constante nas querelas de um enorme reino em que os germes centralistas prevaleciam e no qual a Galiza não podia dominar por lhe ficar cada vez mais excêntrica, concorreram para tornar definitiva a fronteira do Minho, na ilusão de uma baldada esperança - quando, a partir da outra margem pelos descampados do Gharb progredia a imorredoira gesta que iria consolidar Portugal, e com ele uma periferia autónoma, voltada à liberdade dos oceanos.

Se Gelmirez tivesse aceite o asilo que lhe ofereceu a condessa portugalense D. Teresa, suserana dos bispos de Orense e Tui, na altura em que acudira à defesa de uma rainha traiçoeira que logo após o mandou encarcerar, talvez o rumo da história outro pudesse ter sido e a potência marítima lusíada receberia a favor do muito que fez um tal reforço, como os marinheiros de Padrón e Pontevedra, e esse viveiro rural do Noroeste, que seria de vaticinar-lhe grandeza porventura maior e seguramente mais sólida. A Galiza «podia ter arcado enquanto Portugal barcava», consoante a expressão feliz dum moderno ensaísta português (9).

O seu caminho não era engolfar-se pelo disputado planalto do Centro, atrelada ao carro de reis que a governavam de Leão, Valhadolide, Burgos e Toledo, mas acompanhar Portugal.

Se Braga tivesse detido a posição que fruíra antes das invasões muçulmanas - cabeça da Galiza como capital dos suevos associada à primazia eclesiástica do ocidente (10) - a marcha para o Sul não acarretaria por certo a rotura galaico-portuguesa.

d) Do lado portucalense, outros factores se criaram. Vigorosas afirmações pessoais também sobressaíram aqui, fortalecendo o núcleo da nacionalidade. O conde D. Henrique, D. Teresa, os magnates de Entre-Douro-e-Minho e Riba Douro, D. Afonso Henriques, oferecem-nos um friso de caracteres fortes cujo sentido político depressa se definiu numa linha que levou à independência e a destino próprio.



D. Afonso Henriques



Acrescente-se, para cá do Minho uma tendência de progressismo na estrutura social que não escapou a Sanchez Albornoz (11), em contraste com o que se verificava na Galiza, onde, segundo Murcia (12), as ferozes lutas entre os condes não permitiram que o sentimento popular tomasse o incremento que teve em outros povos.

Para mais, esses poderosos senhores dividiam-se em relação às intromissões e assuntos exteriores, contrastando com a unidade da nobreza portucalense perante idênticas circunstâncias. Resultaria tal união das entrelaçadas ligações familiares?

Não que os de aquém-Minho deixassem de ser tentados a tirar proveito das dissensões continentais. Houve hesitações, mas dissiparam-se a tempo. Prevaleceu e acabou por os absorver a missão que lhes impunha a ocupação da extensa margem de território em poder dos sarracenos, do vale do Mondego ao vale do Tejo e daí ao Algarve, em larga franja de litoral. D. Teresa manifestou mais amor aos seus domínios de além-Minho, de cujos bispos (Orense e Tui) garbosamente se fazia acompanhar, que aos de leste. E D. Afonso Henriques abandonou deliberadamente o senhorio de Astorga. Pela paz de Tui, desiste dos seus direitos sobre terras galegas para se votar por inteiro à reconquista do Sul. Poucos reinados bastaram.

No entanto, de uma e outra banda do Minho, na comum linguagem que os diferençava dos mais, dois povos irmãos cantavam por igual, produzindo uma das mais intensas e formosas florações poéticas da Idade Média, impregnada do mesmo inconfundível fundo sentimental que, hoje como ontem, nos dois lados persiste. Da profundeza dos séculos, mundivisão idêntica lhes selava as almas, desde as sepulturas pré-históricas aos primórdios cristãos, numa gnose própria, em que um paganismo típico se inseriu na redentora, universal doutrina (in O Enigma Português, Guimarães Editores, 1998, pp. 43-50).



Notas:

(1) Damião Peres, no seu trabalho Como Nasceu Portugal, em cuja 3.ª edição nos fixamos, rebate a tese da subordinação inicial do Condado Portucalense ao da Galiza, utilizando documentação mais recente, com argumentos que nos parecem decisivos.

(2) Àparte malhas menos importantes um extenso reduto se mantivera fora do domínio sarraceno, na diocese Iria Flavia e entre os rios Ulla e Minho, no abrigo de uma linha de montanhas, segundo Lopez Ferreiro.

(3) Silva Teles, Portugal - aspectos geográficos e climáticos, observa haver uma «mutação teatral». Ao norte do Minho a «terminação de um edifício alteroso); ao sul, a costa é «discordante em relação às formas orográficas».

(4) Já houvera outra divisória na Galiza romana, pelo rio Lerez, junto a Pontevedra, entre os conventos jurídicos Lucense e Bracarense. A Província não excedia então o Douro, pelo que a divisão era mais equilibrada e as facções mais homogéneas, pois o convento Bracarense incluía com o Entre-Douro-e-Minho e parte de Trás-os-Montes as actuais províncias de Pontevedra e Orense agro-socialmente afins. A fronteira pelo Minho nas circunstâncias em que foi atalhada, era a que tinha melhor fundamento estratégico e geográfico.

Imperador Carlos Magno


(5) A lenda da pregação na Península de S. Tiago é una lenda tardia, segundo Pierre David, e nela se inseriram outras menos verosímeis ainda. Quase instantaneamente se propagou, não tardando que o Papa Leão III desse crédito, por uma bula, à convicção do achamento da sepultura do Apóstolo próximo de Iria Flavia (Pádron) que o respectivo Prelado, o povo galego e o Rei Afonso II de Oviedo fervorosamente sentiram. O Imperador Carlos Magno foi dos primeiros peregrinos.

(6) Também conhecida por «caminho francês» por ser o que era seguido pelas principais peregrinações. Os quatro caminhos que vinham de França - três dos quais se juntavam em Ostabat para atravessar os Pirenéus, passar em Pamplona até Puente de la Reina, - formavam um só a partir deste lugar. O trajecto prosseguia por Estela, Burgos, Carrión, Sahagun, León, Astorga, Ponferrada, Portomarín e Ferreiros até Santiago. Atravessava Navarra, Leão e Castela pelas próprias capitais. «Por este camino llegaron a nosotros las influencias europeas y ilegaron a Francia las influencias compostelanas», diz Vicente Risco, (História de Galicia). A arte jacobea espalhou-se ao longo desse caminho. Em 1170 fundou-se a Ordem de Cavalaria de Santiago para proteger oe peregrinos e lutar contra os mouros.

(7) Manuel Murguía, Dom Diego Gelmirez, Editorial Nova, Buenos Aires.

(8) Alexandre Herculano, História de Portugal. Sanchez Albornoz, Españoles ante la Historia, dia que Gelmirez encarna «la sobre-humana astucia» e considera a sua acção para a Galiza equiparável à do Cid para Castela.

(9) Agostinho da Silva, Reflexão. Maior base populacional e lavradora nortenha, com espírito previdente e sofredor, teria contribuído muito para consolidar os êxitos ultramarinos de Portugal.

(10) A sedes metropolitanas, antes da invasão árabe, eram Tarragona, Toledo, Sevilha, Mérida e Braga. Esta última cidade foi por conseguinte a capital religiosa de todo o Noroeste. Após os primeiros embates a diocese que sobreviveu foi a de Lugo, beneficiada pelo prestígio bracarense, conforme Pierre David.

«Si Lugo joue le rôle de capitale réligieuse du royame asturien, c'est... parce que le metropolite de Braga y a fixé sa residénce» (Étude historique sur la Galice et Portugal, p. 124).

Nos fins do século IX restabelecia a diocese de Braga, esta logo empreendeu retomar a sua antiga importância. Mas pouco depois a obra de Gelmirez fez-se sentir. «Les archevêques Géraud et Maurice de Braga étaient donc à la tête d'un province eclésiastique à preu égale à celle que régissaient les metropolites de Braga à la période suève; seule la diocèse de Compostelle était exempte depuis 1095». (id. p. 168). Em 1118 ascendeu Compostela a arquidiocese.

Sé Catedral de Braga




















(11) Sanchez Albornoz, Españoles ante la Historia, p. 83: «En la terra de foris - los páramos de León y las llanuras de Castilla - y aún em la Terra Portucalensis fronteira, la repoblación y las necessidades de la guerra habian dado origem en el siglo IX y en el X a una massa numerosa de pequeños proprietarios libres; y sus servicios en la lucha contra el moro les habian permitido conservar sus privilegios. Pero en Galicia ni surgieron nuevos hombres libres ni hubo defensa posible para los pobres campesinos apegados al terruño desde havia milenios. La ventosa señorial los absorbio...»

(12) Manuel Murguia, Historia de Galicia, I tomo, p. 97.


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Da cultura peninsular

Escrito por Agostinho da Silva




Cabo da Roca (Sintra).



«Eis aqui quase cume da Europa...».

Luís de Camões



Tomando como um todo a cultura peninsular, talvez nela encontremos, não digo uma característica, mas pelo menos um movimento ou um problema mais constante do que o de querer determinar se na realidade a Espanha, aqui no sentido de toda a Península, se deve dedicar, por ter atingido a Plenitude do que é melhor para o mundo, se deve dedicar à tarefa de hispanizar o dito mundo; ou se, modestamente reflectindo no que lhe falta e considerando desejável o que não tem, se deve, pelo contrário, matricular numa espécie de escola de universalismo, como moço de aldeia que afronta pela primeira vez, porque ele ou a família o acharam desejável, ou simplesmente o Estado o tornou obrigatório, a cultura elaborada nas cidades e por elas imposta. Hispanizar o mundo, ou às vezes, apenas a Europa, por quanto se sabe que através dela, na sua época áurea de expansão, o universo se teria hispanizado, eis um dos termos do dilema; europeizar a Espanha, eis outro dos termos do dilema.

Acontece, porém, que não só, e em primeiro lugar, a atitude inteligente e largamente humana não é a de aceitar dilemas, mas ou a de mostrar que são falsos ou a de se encarreirar a terceiras soluções de que o lógico se não lembrou, a não ser que lhe não fosse conveniente pô-las; como também, e em segundo lugar, conviria saber de que modo a Espanha já é suficientemente hispânica. Isto é: se na realidade, antes de procurarmos resolver o problema em face da Europa, não teremos de resolver o problema em face de nós próprios. Porquanto pode perfeitamente suceder que, em virtude de várias circunstâncias históricas, e poderemos pôr assim a questão, para não termos de entrar em discussão sempre enfadonha e dificilmente terminável de quem teve ou não a culpa, pode ser que, em virtude das tais circunstâncias históricas, a nossa península nunca tivesse podido desenvolver-se plenamente, e todo o resto venha daí.

Por um e outro motivo, pois, deixaremos de lado o tomar parte na polémica que opôs, por exemplo, Verney e gente do anti-Novo Método, Feijóo e gente do anti-Teatro, e, mais modernamente, Gasset e Unamuno ou metade do dito Unamuno à outra metade de Unamuno. Nitidamente nos recusamos à batalha. O que não quer dizer que se não tenha uma ideia muito clara do que vale a Europa em face da Hispânia. Não creio que a verdadeira cultura e a verdadeira humanidade e o verdadeiro futuro do mundo estejam para lá dos Pirenéus; não creio que aquilo a que se deveria chamar a Europa, excluindo cuidadosamente não só a nossa Península Ibérica, mas igualmente o sul da Itália, daquilo a que hoje se chama Europa, não creio que a Europa da gente loira, ordenadora e filosófica seja muito mais do que isso, ordenadora e filosófica, e possa ver-se livre, a não ser por uma transformação que lhe atingiria o próprio cerne, daquele feitio utilitário, prático e mecânico, que a América do Norte, sua herdeira, levou às últimas consequências.

Posto este credo, que é talvez um pouco violento e simplista, mas que tem a vantagem de ser firme, e bastantes vezes a Europa, para ser firme, tem sido violenta e simplista, não voltaremos à questão senão acidentalmente e se tal se oferecer. O que nos importa aqui é a Península, o que nos importa aqui é a tal Espanha, de Mediterrâneo a Atlântico e do Cantábrico a Gibraltar. E a interrogação que nos pomos a nós próprios é se essa Espanha alguma vez o foi plenamente; e, se o não foi, quando a deixaram à vontade; e o que protestou, quando impedida; e o que, ou atinge ou morre, se apresenta sob dois signos, por assim dizer: o signo da variedade e o signo da convivência.



Pirenéus



Ninguém vai dizer que a França é um país monótono. Nem monótono na paisagem física; nem monótono na paisagem humana; nem monótono nas realidades culturais. Seria extremamente fácil enumerar todas as variedades da França. Mas aqui me interessa uma coisa outra: o rememorar, para mim, e para todo o viajante que passa da França para a Espanha pela entrada mais habitual, o pulo de mundo para mundo que representa o deixar-se a última cidadezinha francesa e entrar na primeira das terras espanholas. A diferença consiste no seguinte: que do lado da França a convivência se consegue por se ter atingido um tom neutro de cortesia humana numa paisagem de certo modo neutralizada pelo paciente esforço de séculos; do lado de Espanha ninguém sacrifica a personalidade à convivência; espanhol convive com espanhol como molécula convive com molécula na teoria cinética dos gases; chocando, chocando e chispando no choque. Então, e insistindo na tal teoria cinética, eu só tenho duas maneiras de conseguir que um número elevado de moléculas num recipiente limitado me não faça explodir: uma consistirá em reforçar as paredes, e isso calcula-se em pressão por centímetro quadrado; a outra consistiria em fabricar um vaso de paredes elásticas.

Ora, de um modo geral, eu posso ter diante da vida duas atitudes: a de utilizar e a de deixá-la exercer-se, para meu recreio e dos outros, como se fosse um jogo. De cada vez que as tais circunstâncias históricas, quem sabe por obediência a que leis internas do mundo, precisaram de espanhol sob pressão, fabricaram-lhe recipientes de grossíssimas paredes; prenderam o espanhol; prenderam-no como os romanos, prenderam-no com os visigodos, prenderam-no com Carlos V, prenderam-no com o breve parlamentarismo, e com outros sistemas mais modernos; e talvez outras prisões o esperem, se os fados lhe não correrem favoráveis. Acho que o único recipiente elástico que lhe fabricaram foi o do califado de Córdova e um pouco o dos reinos de taifas; talvez uma rápida Idade-Média, com seus «comuneros». Depois, cilindro e válvula; exígua válvula.

O grande instrumento de todas estas prisões foi sempre o castelhano, pagando com seus defeitos as suas qualidades, pagando com a sua violência a sua paixão, pagando com a sua intolerância a sua fidelidade, pagando com o seu jeito predador a solitária beleza do pastor-cavaleiro. E as vítimas, não falando agora do espanhol individual, foram as outras regiões da Península, nascidas para ser as livres colaboradoras de um grande todo e condenadas, por um trágico destino, a ser, em opressores regimes centralistas, um nada para um quase nada de valor humano. Galiza, Catalunha, Navarra, Andaluzia, Bascos, Levantinos, ao correr da história, pouco mais do que escravos de escravos: porque escravidão, no fim de contas, pelo que respeita a degradação humana, age para os dois lados, para o lado do opressor e para o lado do oprimido. Com uma grande vantagem a favor das regiões periféricas: é que, vencidas, jamais se submeteram; e, no momento oportuno, se poderão comportar como nações livres que jamais renegaram a sua liberdade e jamais, abandonando seus mortos, desistiram da luta.






Fachada da Praça do Obradoiro da Catedral de Santiago de Compostela.



E aqui, ao que me parece, se insere a grande façanha de Portugal. O que Portugal fez de maior no mundo não foi nem o descobrimento, nem a conquista, nem a formação de nações ultramarinas: foi o ter resistido a Castela. O ter mantido, através de sangue e fogo, o princípio da independência dos territórios periféricos. E o ter mostrado, naquilo que cabia em suas forças, e mais do que isso, porque verdadeira história só se faz assim, naquilo que estava muito para além das suas forças, de que modo uma Espanha livre e convivente poderia ter transformado a face do mundo. Aceita-se hoje em história de Roma que o assassínio de César, impedindo-o de levar por diante o seu projecto de romanização do mundo europeu, do Báltico aos Urais, veio pôr depois todos os problemas que resultaram da existência de bárbaros não romanizados; veio pôr o problema da Prússia e veio pôr o problema da Rússia. Uma Península livre e una, com regiões culturalmente autónomas e com descentralização administrativa; uma Península a que se tivesse estendido o sistema de governo peculiar da Idade Média portuguesa, isto é, o de, numa prefiguração da Commonwealth, haver uma companhia de repúblicas unificadas por uma coroa; uma Península que tivesse conservado aquele gosto de conversação, de «vida conversável», como diria mais tarde um navegador, para cristãos, judeus e árabes, essa Península, para lá de todas as contingências económicas, teria dado modelo ao mundo. Teria, como numa renda de bilros, dado o «pique» ao mundo. E o dito mundo, Europa inclusive, se podiam depois ter dado à tarefa de ir plantando alfinete e lançando ponto. Que foi decerto modo, o que fizeram, mesmo só com o trabalho de Portugal.

Por ter garantido a possibilidade, pelo menos em amostra, de arquitectar o que teria sido um universo verdadeiramente católico, vejo eu Aljubarrota como a maior batalha da história, a par daquela outra em que Constantino venceu Justiniano. Não apenas por isso, no entanto. Mas igualmente porque é só em Portugal que as outras nações da Península podem ver uma esperança e um ponto de apoio para uma futura liberdade. Por circunstâncias próprias, e evitarei o mais possível dizer da raça, ou de ambiente ou de economia ou de missão divina, e por vontade intrínseca e ainda por longo treinamento, porque estas coisas na realidade não se aprendem na fantasia, mas vendo e pelejando, Portugal, é, de todos os cantos da Península, o único que tem verdadeiramente génio político, talvez, de todas as gentes que falam latim pelo mundo, o único real herdeiro do povo romano.

Só que, por fatalidade, e logo desde o começo, faltou a Portugal, para uma plena acção, a companhia e a integração de seu complemento natural para os lados do Norte. A acção de Portugal no Brasil não teria sido o que foi, apesar de toda a actuação do minhoto nas Gerais, garantindo um Brasil interior, ou do transmontano sobre o Prata, garantindo afinal a fronteira de Oeste, se não tivesse havido o bandeirantismo dos seus alentejanos e, indirectamente, as suas guarnições algarvias para o Sul; a gente mais ou menos mourisca para o sul do Tejo, a gente já de falar crioulo, os que vinham do deserto e de seu gosto aventureiro e livre, serviram de complemento aos de Entre-Minho-e Tejo, verdadeira base de Portugal, o Portugal da gente que finca pé na terra e obriga a terra a dar tudo o que tem, metal ou seiva, ou isso mesmo, base a conto de lança. Mas, para o Norte, a Galiza não estava.




Não estava a Galiza que, para empregar as palavras do dito popular em que se define a casa bem governada, podia ter arcado enquanto Portugal barcava. Com o tal galego «sórdido», no sentido camoniano, talvez o ouro da Índia e Brasil tivesse dado maior proveito e se não tivesse, em plena época de afluxo de riquezas, de fazer aportar ao Tejo frotas de cereal para pão. Por outro lado, talvez sua «nai» não tivesse sido sempre para o galego, que emigra sem ser aventureiro, a eterna figura velada pelas lágrimas dela e pelas lágrimas dele; talvez as «campanas de Bastabales» não ressoassem na delida chuva com o tão melancólico chamar. Mas tempo vem, atrás de tempo; se há «talvez» para o passado da História; pode ser que um dia a reintegração da Península em si mesma, na sua liberdade essencial, se faça através da reunião de Portugal e de Galiza. Dois noivos que a vida separou (in Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, Guimarães Editores, pp. 25-34).


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A mulher enquanto alimento do homem

Escrito por Ernesto Palma








«Emília – Os homens são só estômago, nós o seu alimento.
Quando famintos, comem-nos. Depois, saciados, vomitam-nos».

William Shakespeare («Otelo»).



Solene advertência:

Ernesto Palma autorizou-nos a publicar o texto, excerto de um longo Tratado de Culinária, a que deu o título de A Mulher enquanto Alimento do Homem, com a condição de o precedermos desta solene advertência: a de que este escrito nada tem a ver com sexo.

Por dois motivos impõe ele a advertência, um jocoso, outro estético. Um jocoso porque não poderá o autor suportar ver-se abordado por leitoras que, ou mais femininas e iludidas com o que vai no mundo, lhe solicitem receitas culinárias em que se querem servir ao homem, ou, mais feministas e enganadas, o queiram militantemente agredir. E se Ernesto Palma não quer servir de pasto à risota estúpida dos homens ignorantes e grosseiros, também tem a convicção de que o seu escrito, mais tarde o seu Tratado, não é coisa para mulheres lerem.

O motivo estético da advertência acaba por ser muito mais do que estético. Trata-se do seguinte:

Na alvorada do mundo, muitos milénios antes de Deus ter encarnado e se fazer homem, encarnou a Beleza fazendo-se mulher. E assim como Deus, ao fazer-se homem, disse aos homens: “Comei, que é o meu corpo”, assim a mulher em quem a Beleza encarnou disse, mas mais simplesmente: “Comei…”

Formou-se uma religião, uma liturgia, seus ritos, seus cultos e sua igreja, para receptáculo da comida que Deus fez de si. O que se formou para comer a mulher, ou a Beleza que se fez mulher para ser comida, não foi uma religião, foi a arte, toda a arte, que sem isso nunca teria existido.

Ernesto Palma é, como se sabe, um homem do teatro, não um homem de teatro: não é dramaturgo, nem actor, nem empresário, não escreve nem encena peças, mas fez do teatro o seu habitat desde que os desatres dos campos agrícolas onde nasceu o exilaram para a cidade. Aí assistiu, depois da falência agrícola, à falência do teatro cujos restos se acabaram por refugiar em revistas do Parque Mayer, em Lisboa. Ou à tarde, sentado num “café”, a uma mesa sobre a qual se espalham, em volta do livro que vai lendo, chávenas vazias, o maço de cigarros, os óculos que tira e põe, ou à noite, saindo e entrando pela porta da caixa dos teatros, espreitando num uma cena, noutro uma actriz, assistindo a ensaios sentado ao fundo da plateia, onde lhe vão pedir a opinião e os conselhos, actores velhos como ele ou coristas sem idade, coristas hoje designadas nos cartazes por “jovens artistas”, é no Parque que o pode encontrar quem o procura.


Parque Mayer


Ernesto Palma envelheceu? Não tanto. Cabelos grisalhos e pouco mais. Mas o bastante para já se felicitar por nunca ter casado, para já não falar às mulheres com falas de faminto. O leitor conhece-o e sabe como, de toda esta saturnificação, ele consegue colher flores difíceis. Foi da saturnificação que deparou dita no palco com a personagem de Shakespeare na epígrafe deste texto citada, foi dela que Ernesto Palma extraiu a flor de pureza e castidade que é o seu Tratado de Culinária, A Mulher enquanto Alimento do Homem.

Talvez o leitor que o conhece estranhe, no excerto que publicamos, a ironia sem truculência e o sarcasmo sem grotesco pelos quais se habituou a identificar os escritos de Ernesto Palma, os escritos de outrora. Talvez a diferença seja a de o tempo ter passado (outra citação poética: “O passado vivi-o, que fazer?…”). Dizemos que o leitor talvez estranhará. Mas para isso seria necessário supor que o leitor conhece os escritos de Ernesto Palma. Raros porém são eles, porque o autor do Tratado de Culinária é um homem sóbrio: no 57, as entrevistas na Ilha aqui e além pelos anos fora. Aquando da falência agrícola, nos meses mais duros ou até famintos, escreveu e publicou o seu único livro, A Orientação da Leitura, que é recomendado em sérias bibliografias e ainda se pode encontrar nos alfarrabistas.

A verdade é que Ernesto Palma não é um escritor, mas uma personalidade. A cultura portuguesa tem, aliás, mais personalidades que a fazem do que escritores ou pintores ou dramaturgos. Almada foi muito mais uma personalidade do que um pintor; Fernando Pessoa, mais uma personalidade do que um poeta. Nos melhores, ser uma personalidade é ser o que Emerson chamava “um homem representativo” e Tomas Carlyle um “herói”.

Contemporâneos dos que referimos, os pintores foram Eduardo Viana e António Soares, os poetas Teixeira de Pascoaes e José Régio. A ligação de Ernesto Palma à nossa cultura fez-se mediante o grupo da “filosofia portuguesa”.

Mas o que de mais solene tem a solene advertência à leitura do excerto de Ernesto Palma, é o que se diz agora e, podemos adiantar, está no cerne do seu
Tratado de Culinária. O Tratado de Culinária é, afinal, um Tratado de Estética. Vejamos.


A origem e o fim de toda a arte é, naturalmente, a beleza. Ora não há beleza em si ou, se houver, é inacessível ao homem, uma vez que o acesso à beleza só é possível pela sensação. A sensação é dos sentidos e os sentidos são cinco: o ouvido, a que especialmente se refere a poesia e a música e é tido em Aristóteles, pai de todos nós, como o mais importante dos sentidos; a vista, a que são referidas as artes plásticas e Almada naturalmente sobrevalorizou num livro admirável; e bem assim para os demais, até para o sexto-sentido aristotélico, para o bom-senso cartesiano e para o senso comum da vulgaridade. Ora a beleza ofusca cada sentido ou cada espécie de sensação e, ao tornar-se acessível, é a todos os sentidos que se dirige cumulativamente. A sua manifestação terá então de suscitar as sensações de todos os sentidos, e é o que ela alcança pela encarnação. A encarnação é a mulher e é como alimento do homem que abrange e reúne o conjunto de todos os sentidos. Porque só no alimento intervém e participam todas as sensações, entre si se completando e harmonizando.

Em resumo e repetindo: Não há beleza em si, beleza pura, isolada, inviolável e inacessível. Tudo o que é belo é sensível e sensual. De tudo o que é belo há sensação, não a sensação de um único sentido mas de todos os sentidos. Não só da vista, como entendem os pequenos pintores; não só a do ouvido, como julgam ridículos melómanos; nem só a do perfume, a do sabor e a do tacto. Para ser de todos os sentidos, a beleza encarnou na mulher. Para isso a mulher é para comer pois é no alimento que todos os sentidos se combinam.

Ao falar-nos assim, Ernesto Palma falava com a turbulência que lhe é própria, até com sarcasmos inúteis que não registamos. Diz-nos: “Todos Vocês andam entregues a um cristianismo que, afirmando a igualdade de todas as almas, decaiu até à mísera democracia da igualdade de todos os votos… Andam Vocês entregues a isso e não entendem que uma única coisa no mundo é igual para todos os homens: a beleza que encarna a mulher para alimento do homem? Não entendem que só a partir daí, da mulher enquanto alimento do homem, é possível a arte e é possível a “educação estética do género humano”, hoje nas mãos da mais atroz fealdade? Não entendem? Se Vocês não entenderem, quem é que há-de entender?”





A mulher enquanto alimento do homem


Serve-se em casaco de peles e ataviada de jóias. Depois polvilha-se de rosas e rega-se de vinho.


Das peles:

As peles destinam-se a acentuar, dando-lhe um relevo mais apetitoso, os volumes do corpo, suas alturas e suas funduras. Devem escolher-se a preceito e, na sua generalidade, o preceito é este: peles negras como as do astrakan para os corpos morenos de cabelos pretos com os quais ainda condizem melhor as peles cinzentas como as de marta; castanhas, como as do vison, da raposa e da lontra, para os corpos brancos de cabelos loiros. É imprescindível que as peles estejam cuidadas e brilhantes, não baças.


Das jóias:

O atavio das jóias destina-se a tornar luminosa a coloração do corpo da mulher. Como essa coloração é diferente em cada parte do corpo, convém que umas sejam as jóias para o rosto, outras para o pescoço, outras para os seios e outras para os braços. Deve evitar-se ataviar de jóias, como fazem os orientais, o ventre e as coxas, porque residindo aí o sacrário da mulher, devem comer-se em êxtase ou em delírio ou em loucura que só a limpidez da carne nua propicia e todo o atavio perturba. [Nota: Por influência dos vestuários desenhados para comércio, e também dos pintores modernos, generalizou-se a transferência para os joelhos e as pernas, do apetite das coxas, e do ventre que elas enquadram. Compreende-se assim que o dramaturgo Ionesco tenha escrito que “o que há de mais belo no mundo são as colunas dos templos e os joelhos das raparigas”. Se Ionesco não fosse um artista, teria acrescentado: “porque ambos conduzem ao sacrário”].

Nas peles brancas as jóias devem realçar a coloração rósea que elas sempre têm mas mais ou menos viva. As jóias mais próprias serão, então, as pérolas. Mas se a coloração rósea for muito ou demasiado viva, como nos corpos das mulheres de Bruges, convém substituir as pérolas por brilhantes. Esse o motivo de, em quase todas as mulheres, os seios se tornarem mais saborosos quando os mamilos são beijados ou aspirados juntamente com os brilhantes que as cobrem.


Nos corpos morenos não aparece, em geral, a coloração rósea e quando aparece é nos mamilos e na parte interior das coxas, Estas, já sabemos que se não devem ataviar de jóias. E para os mamilos como em todas as outras partes do corpo deve recorrer-se às pedras coloridas: a verde esmeralda, o negro topázio, o vermelho rubi.


Das rosas e do vinho:

Os melhores apreciadores, amantes sem pressa, regam a mulher de vinho depois de as terem polvilhado de rosas desfolhadas, pétalas de rosa.

Ao paladar… veremos que o paladar, no banquete da mulher, não reside apenas na boca mas espalha-se por todos os poros da pele tal como o “sexo” não está só no lugar ou orgão assim erradamente chamado mas em todos os lugares do corpo… ao paladar, dizíamos, de quem se banqueteia da mulher, o sabor oscila entre dois extremos: um que designaremos por aveludado, mais comum nas loiras, outro por sedoso, mais comum nas morenas. Entre esses dois extremos, o saber que há no sabor pode descobrir toda a espécie de variedades e combinações.

Ora as rosas são, como a pele da mulher, uma mais sedosas outras mais aveludadas. Devem pois ser escolhidas as sedosas para os corpos aveludados, as aveludadas para os corpos sedosos. Consegue-se deste modo uma maior, uma infinita variedade de combinações, dependendo, das doses, do condimento, do gosto de cada cozinheiro.

Além das que dissemos, ainda as rosas se destinam a complementar, levando-o a uma espécie de apoteose que é já glória da mulher, o condimento das jóias.

Quanto ao vinho, atende-se naturalmente, como em todos os banquetes, ao sabor e à cor. No banquete de mulher, o sabor tem de ser antigo, forte, engrossado com mel e a cor nunca branca porque, sobre a coloração do corpo da mulher, é neutra. Da cor tinta, tem o vinho infinitas variedades. Junta-se ela à das rosas, não só para as ajudar a contemplar o condimento das jóias, mas sobretudo – e isto é o que há de mais importante no banquete – para fluidificar todos os atavios e, com eles, a mesma carne da mulher que, nessa fluidez, se torna meiga, terna e tenra. A rega não deve espalhar-se igualmente por todo o corpo mas traçar nele sulcos sinuosos, nascidos no pescoço (quando a cabeça da mulher já estiver, sem forças, tombada para trás) ou nos mamilos. Devem esses sulcos confluir no sacrário mas correndo o mais devagar possível para o que cumpre à mulher – sempre o fará quando bem condimentada – arredondar, engrossar ou altear o ventre como se estivesse abrindo por dentro numa espécie de preparação ou desejo de ficar prenha.

Há quem, em vez de vinho e rosas, utilize cremes, óleos e outros produtos como claras de ovo, mas isso só denota gostos e hábitos de taberneiro.

Obs.: Entendem alguns, gente fina e culta dando-se ares, como a que vai aos concertos da Gulbenkian, que o condimento das rosas e do vinho provém do preceito do poeta oriental: “Bebei o vinho na estação das rosas…” Estamos longe de concordar com eles. Em primeiro lugar, porque os orientais não comem a mulher com erotismo e amor, formas de comer intransmissivelmente europeias. Em segundo lugar, porque o poeta acrescenta ao seu preceito: “que a estação das rosas vai acabar”, metáfora que significa que o poeta está velho. Ora a mulher, se não é banquete para adolescentes, também não é alimento para velhos (in Leonardo, Ano I, n.º 4, 1988, pp. 64-65).








sábado, 19 de fevereiro de 2011

Lavagem de notícias

Escrito por Olavo de Carvalho







Folha de S. Paulo, 18 de abril de 2005

Dia 31 passado, os jornais brasileiros espremeram em textinhos de dez centímetros uma das notícias mais importantes deste século e do anterior: documentos da extinta Alemanha Oriental confirmavam que o atentado contra João Paulo II, ocorrido em 13 de maio de 1981 na praça de São Pedro, fôra planejado pelo governo soviético e realizado através do serviço secreto búlgaro. A TV omitiu a notícia por completo. Quarenta e oito horas depois, a menção discretíssima aos tiros que devastaram a saúde do papa já estava esquecida - e, como se não tivesse nada a ver com a sua morte, não voltou a aparecer no noticiário.

No meio de tantos insultos lançados à memória do falecido pontífice, os panos quentes estendidos sobre a ação macabra de seus agressores foram, decerto, o mais cínico e perverso. Mas não constituem novidade no comportamento da grande mídia. Quando o escritor Vladimir Bukovski, o primeiro pesquisador a vasculhar os Arquivos de Moscou, voltou de lá com as provas de que a KGB havia subsidiado durante mais de uma década a imprensa socialdemocrata da Europa Ocidental, mesmo os jornais soi disant conservadores opuseram uma renitente má-vontade à divulgação do fato, alegando que não era bom “reabrir antigas feridas”. Na mídia nacional, permanece tabu a confissão do agente tcheco Ladislav Bittman, de que a famosa participação da CIA no golpe de 1964 foi um truque difamatório criado pela espionagem soviética através de documentos falsos distribuídos por jornalistas brasileiros que então constavam da folha de pagamentos da KGB. E assim por diante.

Com 500 mil funcionários e uma rede mundial de milhões de colaboradores, a KGB foi - e é - a maior organização burocrática de qualquer tipo que já existiu ao longo da história humana (o paralelo com a CIA é grotesco pela desproporção), com recursos financeiros ilimitados e funções que vão infinitamente além das atribuições normais de um serviço secreto, abrangendo o controle de milhares de publicações, sindicatos, partidos políticos, campanhas sociais e entidades culturais e religiosas em todo o mundo. Sua influência na história cultural do século XX é imensurável. Entre os anos 30 e 70, não houve praticamente escritor, cineasta, artista ou pensador famoso, na Europa e nos EUA, que não fosse em algum momento cortejado ou monitorado, subsidiado ou chantageado por agentes da KGB. É impossível compreender a circulação das idéias no mundo nesse período sem levar em conta o maciço investimento soviético no mercado ocidental de consciências. A infinidade de crenças, símbolos, giros de linguagem e cacoetes mentais que se originaram diretamente nos escritórios da KGB e hoje se encontram incorporados ao vocabulário comum, determinando reações e sentimentos cujo teor comunista já não é reconhecido como tal, ilustra a eficácia residual da propaganda longo tempo depois de atingidos os seus objetivos imediatos. No manejo desses efeitos de longo prazo reside uma das armas mais eficazes do Partido Comunista, que, com nomes variados, é o único organismo político com alguma continuidade de comando e unidade estratégica que subsiste em escala mundial do século XIX até hoje.






A extinção oficial do império soviético não diminuiu em nada o poder da KGB, apenas a renomeou pela enésima vez. As menções freqüentes da mídia ocidental à “máfia russa” só servem para encobrir dois fatos que os estudiosos da área conhecem perfeitamente bem:

(1) A máfia russa é o próprio governo russo e não outra coisa, e o governo russo é a KGB e nada mais.

(2) Desde o começo da década de 90 não há mais máfias nacionais em competição sangrenta, mas uma aprazível divisão de trabalho entre organizações criminosas de todos os países, uma autêntica pax mafiosa que, por meio do narcotráfico, do contrabando de armas, da indústria dos seqüestros etc., gerou um poder econômico mundial sem similares ou concorrentes imagináveis. Conforme mostrou a repórter Claire Sterling no seu livro Thieves' World (“O Mundo dos Ladrões”), New York, Simon & Schuster, 1994, a constituição desse Império do Crime deu-se sob o comando da “máfia russa”, que continua regendo o espetáculo. Muito antes disso, a KGB já tinha uma atuação intensa no narcotráfico, prevendo a possibilidade de usá-lo um dia como fonte alternativa de financiamento para os movimentos revolucionários locais, como veio mesmo a acontecer (v. Joseph D. Douglass, Red Cocaine. The Drugging of America and the West, London, Harle, 1999).

O leitor não deve estranhar a menção a organizações religiosas. Nos EUA, o Conselho Nacional das Igrejas é notoriamente uma entidade pró-comunista (v. Gregg Singer, The Unholy Alliance, Arlington House Books, 1975), e o mesmo se deve dizer de seus equivalentes em outros países. A penetração da KGB nos altos círculos da Igreja Católica e sua influência decisiva nos rumos tomados pelo Concílio Vaticano II são hoje bem conhecidas (v. Ricardo de la Cierva, Las Puertas del Infierno e La Hoz y la Cruz, ambos pela Editorial Fênix, de Barcelona). E Mehmet Ali Agca, o assassino contratado pelos soviéticos para matar o papa, não disse senão o óbvio ao declarar que não poderia ter agido sem a ajuda de membros da hierarquia eclesiástica. Não por coincidência, as mais estapafúrdias “teorias da conspiração” literárias ou cinematográficas, que envolvem nesse empreendimento assassino até mesmo a CIA, recebem da mídia mais espaço e tratamento mais respeitoso do que os documentos oficiais que oferecem a prova da autoria do crime.




Assim como existe lavagem de dinheiro, existe lavagem de notícias. Essa tem sido a principal atividade da mídia ocidental elegante nas últimas décadas. Se não houvesse outras fontes de informação, todo mundo já teria se persuadido de que o comunismo jamais existiu, e estaria pronto para aceitá-lo de novo como utopia de futuro, com outro nome qualquer.


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Górgias ou da retórica (iii)

Escrito por Platão





Sócrates




Sócrates

E no início desta discussão, Górgias, afirmou-se que a retórica tem por objecto não os discursos relativos ao par e ao ímpar, mas aqueles que se referem ao justo e ao injusto. Estou a dizer bem?

Górgias

Estás.

Sócrates

Ao ouvir-te falar como falaste, supus que a retórica nunca poderia ser uma coisa injusta, dado que o objecto dos seus discursos é a justiça. Mas quando, pouco depois, disseste que o orador podia também fazer um uso injusto da retórica, surpreendido com tais palavras que me pareciam encerrar uma contradição, observei que se, como eu, achasses que só há vantagem em ser refutado, valia a pena continuar a nossa conversa, de outro modo o melhor era ficar por ali. No prosseguimento da nossa conversa, vês que afinal se chegou à conclusão de que o orador é incapaz de fazer um uso injusto da retórica e de querer praticar a injustiça. Pelo cão, Górgias, não será uma breve conversa que nos permitirá ver claro em matéria tão complexa.

Polo

Que quer isto dizer, Sócrates? A tua opinião sobre a retórica é, de facto, aquela que as tuas palavras dão a entender? Ou julgas que, lá porque Górgias se envergonhou de não concordar com a tua afirmação de que o orador conhece o justo, o belo e o bom e está em condições de ensinar estas coisas a quem o procura sem as ter aprendido antes, donde resultou talvez uma certa contradição nas suas palavras - coisa que tu muito aprecias, ao arrastar as pessoas a questões deste género. Claro que ninguém vai dizer que não conhece o que é justo e que não é capaz de o ensinar aos outros! Uma autêntica falta de educação é o que revela essa maneira de conversar.

Sócrates

Meu caro Polo, é exactamente para isto que nós devemos querer os amigos e os filhos, para, quando, já velhos, nos acontece dar algum passo em falso, corrigirem os nossos actos e as nossas palavras. Agora, por exemplo, se porventura eu e Górgias errámos nos nossos raciocínios, estás tu presente para nos corrigir. Tens obrigação de o fazer. Pela minha parte, se te parece sem fundamento a concordância a que chegámos em relação a algum dos pontos tratados, di-lo e voltaremos a esse ponto. Ponho apenas uma condição.

Polo

Qual?

Sócrates

Terás de refrear a tua tendência para os longos discursos, que já exemplificaste no início da discussão.

Polo

Como! Não poderei dizer tudo aquilo que me apetecer?

Sócrates

Grande infelicidade seria a tua, caro amigo, se viesses a Atenas, o lugar da Grécia em que é maior a liberdade de expressão, para seres o único a não gozar desse privilégio. Mas considera agora a outra face da questão: se te puseres a falar longamente, sem querer responder às minhas perguntas, não serei eu o infeliz se não me for permitido partir sem te escutar? Mas se te interessa a discussão aqui travada e queres rectificar alguma coisa, volta, como te disse, ao ponto que quiseres, interrogando e respondendo, como eu e Górgias fizemos, refutando e deixando-te refutar. Pretendes saber nesta matéria o mesmo que Górgias, não é verdade?




Athena



Polo

Exactamente.

Sócrates

Convidas, portanto, quem quer que seja a fazer-te as perguntas que quiser e estás convencido de que és capaz de responder.

Polo

Absolutamente.

Sócrates

Escolhe então o que preferes: pergunta ou responde.

Polo

Já escolhi. Responde-me, Sócrates: uma vez que Górgias te parece embaraçado com a definição de retórica, diz tu o que pensas que ela seja.

Sócrates

Perguntas-me que espécie de arte é, em minha opinião, a retórica?

Polo

Exacto.

Sócrates

Para te ser franco, Polo, não considero a retórica uma arte.

Polo

O que é então para ti a retórica?

Sócrates

Uma coisa que, num tratado que há pouco li, declaras ter convertido em arte.

Polo

Que queres dizer com isso?

Sócrates

Uma forma de actividade empírica.

Polo

Achas que a retórica é uma actividade empírica?

Sócrates

Acho, a menos que tu sejas de outra opinião.

Polo

Actividade empírica destinada a quê?

Sócrates

A produzir um certo agrado e prazer.

Polo

Mas então não te parece que a retórica é uma coisa bela, ao ser capaz de dar prazer aos homens?

Sócrates

Vejamos, Polo. Julgas que conheces já o meu pensamento sobre aquilo que a retórica é, para agora me perguntares se não a acho bela?









Polo

Não disseste que a retórica é uma actividade empírica?

Sócrates

Já que gostas de dar prazer aos outros, não te importas de me fazer um pequeno favor?

Polo

Às tuas ordens.

Sócrates

Pergunta-me então que espécie de arte é para mim a cozinha?

Polo

Está bem: que espécie de arte é a cozinha?

Sócrates

Não é arte nenhuma, Polo. Pergunta-me agora: «o que é então?»

Polo

Seja essa a pergunta.

Sócrates

Uma forma de actividade empírica. Pergunta-me ainda: «Destinada a quê?»

Polo

Admitamos que faço essa pergunta.

Sócrates

A produzir agrado e prazer, Polo.

Polo

Então cozinha e retórica são uma e a mesma coisa?

Sócrates

De modo nenhum, mas cada uma delas é um ramo diferente da mesma profissão.

Polo

Que profissão?

Sócrates

Talvez a verdade seja um pouco dura de ouvir... Custa-me dizê-lo, em atenção a Górgias, não vá ele pensar que quero ridicularizar a sua profissão. Se a retórica que Górgias professa é aquilo que eu penso, não sei. A discussão anterior não deixou bem claro o seu pensamento a este respeito. Mas aquilo a que eu chamo retórica é parte de um todo que não pertence ao número das coisas belas.

Górgias

Parte de quê, Sócrates? Fala, sem receio de me ofender.

Sócrates

Penso, Górgias, num género de ocupação que nada tem de científico e que exige um espírito intuitivo e empreendedor, por natureza apto para o convívio com as pessoas. Dou-lhe o nome geral de «adulação». Nela distingo diversas partes, uma das quais é a cozinha, que, sendo no consenso geral uma arte, a meu ver não o é, mas sim uma actividade empírica e uma rotina. Partes da mesma adulação são para mim também a retórica, a toilette e a sofística, portanto, quatro ramos com objectos específicos.

Se Polo quer continuar a interrogar-me, que o faça, porque eu ainda não lhe expliquei que parte da adulação é, segundo o meu ponto de vista, a retórica. Ele parece, no entanto, não ter compreendido isto e, assim, antes de eu acabar a minha resposta, já me está a perguntar se não considero a retórica uma coisa bela. Mas eu não lhe responderei se a acho bela ou feia, antes de ter respondido à pergunta sobre aquilo que ela é. É uma questão de método, Polo! Se queres saber que parte da adulação é, a meu ver, a retórica, pergunta.

Polo

Está bem, pergunto. Diz lá então que parte é.








Aquiles combatendo




Corpo de Heitor levado de volta para Tróia




Sócrates

Entenderás bem a minha resposta? Na minha interpretação, a retórica é um simulacro de uma parte da política.

Polo

Que significa isso? Queres dizer que é bela ou feia?

Sócrates

Acho que feia, visto que considero feio tudo o que é mau. Pelos vistos, tenho de te responder como se já soubesses o que estou a tentar dizer-te.

Górgias

Por Zeus, Sócrates, não entendo nada do que dizes.

Sócrates

É natural, Górgias. Ainda não me expliquei claramente, mas Polo é jovem e impetuoso.

Górgias

Deixa-o lá então e explica-me a mim a tua afirmação de que a retórica é o simulacro de uma parte da política.

Sócrates

Vou tentar esclarecer-te sobre o meu conceito de retórica. Se não for exacto o que eu disser, Polo refutar-me-á. Não há uma coisa a que chamas corpo e outra a que chamas alma?

Górgias

É evidente que sim.

Sócrates

Não achas que, para cada uma delas, há um estado que se designa por «saúde»?

Górgias

Claro que acho.

Sócrates

Mas vejamos: não pode essa saúde ser apenas aparente em vez de real? Darei um exemplo: muitas pessoas parecem gozar de boa saúde e ninguém, a não ser um médico ou um professor de ginástica, poderá facilmente ver que não é assim.

Górgias

Dizes bem.

Sócrates

Afirmo, pois, que no corpo e na alma há algo que lhes concede aparência de saúde, embora, de facto, não a tenham.

Górgias

Tens razão.

Sócrates

Pois bem, vamos a ver se consigo exprimir com mais clareza o meu pensamento. Digo que há duas realidades diferentes a que correspondem duas artes: à arte que se refere à alma chamo política; à que se refere ao corpo não posso atribuir uma designação só, mas, embora a cultura do corpo constitua uma unidade, distingo nela duas partes, a ginástica e a medicina. O que na política corresponde à ginástica é a legislação, o que nela corresponde à medicina é a justiça. Há, portanto, dois grupos de artes que se definem pelo seu objecto, de um lado a medicina e a ginástica, do outro a justiça e a legislação. Mas os elementos de cada grupo acusam também diferenças entre si.

Da existência destas quatro artes, que visam o maior bem do corpo ou da alma, se apercebeu a adulação, não por meio de um conhecimento raciocinado, mas por via da conjectura, e, dividindo-se então em quatro partes e insinuando cada uma delas sob a arte correspondente, fez-se passar pela arte cujo disfarce adoptou. Não tem o mínimo interesse em procurar o que seja o melhor, mas, sempre por intermédio de prazer, persegue e ludibria os insensatos, que convence do seu altíssimo valor. É assim que a cozinha toma a aparência da medicina, fingindo conhecer os alimentos que são melhores para o corpo, de tal maneira que, se coubesse a crianças, ou a homens tão pouco razoáveis como as crianças, decidir qual dos dois, médico ou cozinheiro, conhece melhor a qualidade boa ou má dos alimentos, o médico acabaria por morrer de fome.

A isto chamo eu adulação, que considero uma coisa vergonhosa, Polo (é a ti que neste momento me dirijo), porque visa o agradável sem a preocupação do melhor. E sustento que ela não é uma arte, mas uma actividade empírica, porque não tem na sua base um princípio racional que permita justificar as várias formas do seu procedimento no que respeita à sua natureza e às suas causas. Ora, eu não chamo arte a uma actividade que não esteja fundada na razão. Se tens algo a objectar ao que afirmo, estou pronto a fornecer explicações suplementares.

Portanto, repito, a cozinha é a adulação disfarçada de medicina. Da mesma maneira, à ginástica corresponde a toilette, prática malfazeja e enganadora, vil e indigna de um homem livre, que ilude com aparências, cores, cuidados da pele e vestuário, a tal ponto que, interessadas em exibir uma beleza artificial, as pessoas descuram a beleza natural, proporcionada pela ginástica.






Resumindo, dir-te-ei, em linguagem matemática (talvez assim me compreendas melhor), que a toilette está para a ginástica como a sofística para a legislação, e a cozinha para a medicina como a retórica para a justiça. Estas actividades, já o disse, distinguem-se pela sua natureza. Dada, porém, a estreita relação que existe entre elas, sofistas e oradores confundem-se, ao realizar o seu trabalho no mesmo domínio, sobre os mesmos assuntos, sem conhecerem exactamente a natureza das suas funções e com idêntica ignorância a seu respeito por parte dos outros homens. Efectivamente, se, em vez de ser a alma a comandar o corpo, fosse este a comandar-se a si próprio: se a alma não submetesse a realidade à sua apreciação, distinguindo a cozinha da medicina, e fosse o corpo a fazer essa distinção, com base apenas no critério do prazer que retira destas coisas, então, meu caro Polo, teriam aqui inteira aplicação aquelas palavras de Anaxágoras que tu conheces muito bem: «Todas as coisas se misturariam e confundiriam», e a medicina e a saúde não se distinguiriam da cozinha... (460e-465d).