quinta-feira, 30 de julho de 2020

«Portugal teve de resistir a Castela para manter o seu direito de ser»

Escrito por Agostinho da Silva
















«Como arma de ataque ou de defesa, o pau é uma forma tão simples que a etnologia, em geral, não o inclui na categoria das "armas que se seguram com as mãos". No entanto, um bom jogador de pau não receia enfrentar qualquer adversário que use essas outras armas. Põe-se assim o problema de saber se o uso do pau como arma representa apenas um aspecto do uso do pau como implemento de carácter geral, ou se, pelo contrário, o uso do pau em geral representa a ampliação a outras funções daquilo que principalmente e basicamente era apenas uma arma.»

Nuno Russo («Esgrima Lusitana»).


«Era já dia claro; e o sol alto, por essas manhãs de Agosto, começa logo a morder. De castelhanos não havia notícia. Para além do Lena, as dobras do terreno, fechadas de mato, escondiam horizontes. O rei, trazendo sobre a armadura um loudel bordado com palmas verdes cercando escudos de São Jorge, na cabeça o bacinete cilíndrico [o que se conserva no tesouro da Batalha], armava cavaleiros: entre eles Vasco da Lobeira, futuro autor do Amadis de Gaula, tronco dos romances de cavalaria peninsulares. Tinha ao lado o arcebispo de Braga, D. Lourenço, nosso conhecido, pitorescamente arranjado; levava no elmo, em vez de pluma, uma imagem da Virgem, e o roquete de bispo por loudel sobre a cota de armas. Diante dele um clérigo erguia a cruz primacial, à imitação do seu predecessor que fora ao Salado com o Santo Lenho de Portel. Havia a maior extravagância nas armas e armaduras: bacinetes de camal, com caras ou sem elas, solhas, loudéis, cotas, faldões, panceiras, lanças, fachas de ferro e de chumbo, machados: todas as armas, de todos os feitios, mostrando, na sua variedade confusa, a desordem com que tudo se improvisara à vontade de cada qual: desordem, porém, sob que palpitava um pensamento firme e criador.

Ao inverso do que sucedia no magnífico exército castelhano em que a ordem era só aparente, aqui era-o só a desordem. Lá, o exército avançava trazido por um rei enfermo, cercado de povo inexperiente. Aqui, o rei era um rapaz educado pela vida, friamente forte; e o Condestável, escolhendo o lugar do combate, dera a medida do seu génio, até por se defender contra o medo dos seus, encurralando-os num local de onde não havia que fugir senão para o inimigo. As debandadas provocadas pelo pânico eram impossíveis nessa chapada cercada de despenhadeiros, fechada nas costas por uma garganta breve.

Arvorada a sua bandeira santa, aquela que primeiro se desfraldara ao sul do Tejo, quanto partia para os Atoleiros, Nun'Álvares, junto dessa garganta estreita, de joelhos, rezava fervorosamente. Trazia uma jaqueta de lã verde bordada de rosas sobre a armadura completa; à cinta levava a espada que o alfageme lhe corregera em Santarém, e uma adaga que só tirava quando ouvia missa. Orava fervorosamente, prometendo à Virgem um templo em Seiça, ao pé de Ourém, a São Jorge outro, ali mesmo, no lugar que os seus joelhos pisavam. [A igreja de Santa Maria de Seiça começou-a em 1393; a ermida de São Jorge existe ainda na aldeia desse nome].

(...) Foi então o grande alarido da batalha [de Aljubarrota]. Apertados num estreito lugar, a cavalo e a pé, homens-de-armas e peões, cruzavam os golpes. Os portugueses de Castela, vindo do centro da vanguarda e ficando por isso à frente do magote estavam no coração da peleja, que, dos lados, os ginetes castelhanos, destacados, acirravam. Mas o enorme vulcão de homens, cavalos, armas, cobertos por uma nuvem de dardos e setas, revolvia-se impenetrável na sua fúria. Os inimigos, achando uma luta corpo a corpo, tinham deitado fora as longas lanças de combate, ou tinham-lhes partido os contos; pelejavam com fachas, espadas e estoques. Os episódios homéricos repetiam-se, e os milagres, povoando o ar, traziam das nuvens os santos à peleja. Nun'Álvares via uma lança descer do céu e bater em cheio em seu irmão Pedro Álvares, o Mestre de Calatrava, que tombava morto. Revolvia-se a mó dos combatentes em torno da capela de São Jorge: ao lado flutuava ao vento, desfraldada, a bandeira mística do condestável. Uma cutilada fizera voar o elmo encimado pela Virgem: o elmo do nosso arcebispo D. Lourenço, que tinha um gilvaz na cara e a orelha cortada, deitando ribeiradas de sangue. Guevara, o roncador Guevara, untava a face com sangue, dizendo que se tingia com a gente que matava. D. Pedro, ouvindo-o, deu-lhe um golpe de través que o decapitou. Velásquez, o grande caçador, Sanchez de Toledo, o letrado, Galvez, o Sem-medo, Montachez, Oropesa, Mondonedo, acabaram todos num feixe às mãos de um só, o António. Salazar, o grão taful, o mais célebre rufião de Sevilha, abandonado pela amante e arruinado, investiu com o Gaspar que o levantou nos braços e o matou, a pernear, com a própria espada dele. Hilário morreu murmurando o nome da sua Antónia. O Lopo e o Vicente, Orestes e Pílades de Lisboa, que tinham jurado morrer juntos, acabaram abraçados. O Giraldo, sem escudo, das muitas cutiladas que levara, tomou-o do Perez, matando-o; e mataram-no a ele, rompendo-lhe o mesmo escudo com uma estocada, e metendo-lhe em hastilhas pela barriga dentro. Mem Rodrigues, lavado em sangue, deixava um rasto por onde passava. O Telo era morto; os Tabordas, Gonçalo Vasques, D. João, senhor de Galiza, Pêro Dias, o conde de Vilalpandos, Manrique: castelhanos e portugueses de Castela, caíam por terra agonizantes. D. Pedro, Conde de Vilhena e condestável, jogava a vida a golpes de facha com os Vasconcelos e com Vasco Martins de Melo, que o mataram.

E quando a vanguarda portuguesa cedia, Nun'Álvares, fitando a sua bandeira desfraldada ao vento, via-a cercada por um bando de pombas brancas que o enchiam de valorosa esperança. O rei vinha correndo da retaguarda em seu auxílio, guiado pela Senhora de Oliveira, de braços abertos... São Bernardo aparecia também, empunhando o báculo num braço de monge, donde caía um paludamento retinto em sangue. O céu abria-se para guiar a ideia alucinada pelo fragor da luta e o braço hirto nos crispamentos do instinto orgânico. Vinha o rei correndo e combatendo no meio da horrenda batalha, quando o Sandoval, aparando-lhe um golpe de facha, o desarmou, fazendo-o cair de joelhos. Estava por terra: ia morrer? Não; ergueu-se num salto, a investir; mas já o Macedo varara o castelhano com uma estocada deixando-o estendido. E com o socorro da retaguarda, reforçada pelas alas, todos os portugueses, reunidos, repeliram gradualmente os inimigos triturando gente e cavalos, castelhanos e franceses, numa confusão medonha de ver.

Observando que a balança pendia contra ele, o rei de Castela, içado em braços a uma mula, ardendo em febre, ordenou que a segunda linha avançasse, desenvolvendo em crescente, à moda dos árabes, para envolver os portugueses. Mas essa segunda linha não estava formada ainda; ainda o couce do exército com muita peonagem não concluíra a marcha; avizinhava-se a noite; e o movimento para avante chocava-se com o movimento de recuo, já declarado nos combatentes.







O Mestre de Alcântara, porém, com a sua cavalaria de homens-de-armas e ginetes, que torneara, como vimos, o arraial português por leste, assaltava-lhe, entretanto, sem êxito, a estacada de couce, no curral das bagagens onde os besteiros e peões se viam em perigo. A batalha que se vencia na frente, podia tornar-se em derrota pelas costas. Nun'Álvares correu lá. Estava a pé: tomou o cavalo do comendador-mor de Cristo, Pêro Botelho. Foi lá, restabeleceu os ânimos, repeliu os assaltantes, conjurou o perigo. E tornando à vanguarda, excitando o valor até à loucura, impeliu-a contra o inimigo, obrigando-o a retroceder. Restabeleciam-se as linhas de batalha; oscilava favoravelmente a grande seara de gente em armas; pendia do lado de Castela, começando a fraquejar e a ceder... A vitória estava ganha. Encerrado no seu fojo, o Condestável obtinha a vitória, nesse dia que ia caindo rapidamente, realizadas, uma a uma, as suas previsões, desde o instante em que, rompendo com o conselho e com o rei, abalara de Abrantes, disposto a impedir aos castelhanos a marcha sobre Lisboa.

E toda esta batalha, tão longa a contar: momento de vida intensa em que as linhas valem por anos, durara apenas meia hora. Anoitecia. A hesitação na vanguarda tornara-se em retirada.

- Já fogem!, já fogem! - gritavam do lado de cá; e a retirada transformava-se num debandar doido, procurando cada qual a sua besta para correr mais rápido, perdendo-se pelos matos, assustando o crepúsculo com um sussurro monstruoso de gritos de aflição e interjeições de ansiedade. A bandeira de Castela tombara por terra: o dragão mordia o pó, as divisas dilacerava-as o mato espezinhado, retinto em sangue. Os largos campos para os lados de Alcobaça palpitavam com a gente dispersa fugitiva, escondendo-se pela charneca, envolvendo-se nas dobras do manto da noite que vinha descendo. Acordavam as aldeias dos coutos de Alcobaça, e os aldeões, que o medo fechara em casa, saíram a ceifar na seara aflita dos desgarrados, matando e roubando. A padeira, em Aljubarrota, dizia-se que matara sete com a pá do forno.»

Oliveira Martins («A Vida de Nun'Álvares»).


«Depois que faleceram sem descendência os filhos de Filipe o Belo, foi dada a coroa de França ao sobrinho deste monarca, Filipe VI, filho do Conde de Valois. Assim foi a linha directa dos Capetos substituída no trono pela de Valois (1328). [A dinastia dos Capetos fora inaugurada por Hugo Capeto (987-996). A este seguiram-se em França os seguintes monarcas: Roberto (996-1031), Henrique I (1031-1060), Filipe I (1060-1108), Luís VI (1108-1137), Luís VII (1137-1180), Filipe Augusto (1180-1223), Luís VIII (1223-1226), Luís IX, mais conhecido por S. Luís (1226-1270), Filipe III (1270-1285), Filipe IV o Belo (1285-1314), Luís X (1314-1317), Filipe IV (1317-1322), e Carlos IV (1322-1328). Os três últimos eram filhos de Filipe o Belo].

Eduardo III, rei de Inglaterra, neto de Filipe o Belo por sua mãe Isabel, julgou-se lesado. [Contra as pretensões de Eduardo III foi invocada a lei sálica, que era uma colecção de costumes políticos e judiciários dos francos sálios e chegou a ser considerada como uma das leis fundamentais da monarquia francesa. Essa lei proibia a sucessão na linha feminina]. Nesta oposição de interesses teve origem uma guerra que devia prolongar-se por mais dum século (1337-1453).»

Fortunato de Almeida («Curso de História Universal», Vol. II).


«Esperava-se que a intervenção inglesa rematasse decisivamente a obra da independência iniciada pela dinastia nova, e assente já sobre os alicerces de duas campanhas reais: a de 1384, vencida pela Providência que desencadeara a peste; e a de 1385, vencida em Aljubarrota pela arte de Nun'Álvares. Seguindo a questão da herança de D. Pedro, o Cruel, Portugal, explorando a sua posição marítima, pedia por mar auxílio à Inglaterra, para se defender contra o Estado central da península hispânica. E Castela pedia-o à França vizinha, que nesses tempos, invadida pelos ingleses, mais ameaçada e quase perdida estaria, se a coroa castelhana fosse cair sobre a cabeça de um dos duques saxónicos. Por tal forma, a questão de Portugal era, pela primeira vez, o que tantas vezes foi depois: um episódio na grande contenda da influência ocidental europeia, debatida entre a França e a Inglaterra, quando o mundo culto podia dizer-se limitado aquém-Reno; e quando, no equilíbrio das nações modernas, nem a Alemanha, nem a Rússia, intervinham predominantemente.

A política internacional de D. João I estava indicada, e até imposta pelas circunstâncias. A aliança inglesa era a âncora que prendia à praia lusitana a nau imperfeita da nação portuguesa, ameaçada de naufrágio com os temporais de leste. Convidando o duque de Lencastre a vir tomar conta da coroa castelhana, talvez D. João I nem acreditasse completamente no êxito da empresa, nem sequer o desejasse; mas os ingleses, que vinham reivindicar para si próprios o trono, eram inimigos novos do seu inimigo, e aliados na campanha ainda não resolvida, apesar da série de vitórias que assinalavam os dois anos de guerra. Por isso, imediatamente satisfez o pedido de navios, e, de par em par, abriu os braços à expedição anunciada, preparando-se para cooperar com ela. Quer perdessem, quer ganhassem, o proveito para Portugal era certo: acaso seria maior ainda se perdessem, do que se ganhassem. Se Castela caísse nas mãos de ingleses, a sorte da França ficaria arriscada; e perante uma tal grandeza de forças, Portugal baquearia.

A aliança inglesa, portanto, servia para conter as ambições castelhanas: mas só para isto. O procedimento posterior de D. João I, sempre aberto à paz, sem abusar da vitória, sempre retraído perante os ingleses, sem faltar aos pactos da aliança: mostra como, no seu alto espírito político, a situação particular de Portugal se desenhava nitidamente. Era necessário conservar o trono castelhano, mas enfraquecido; e para isso era mister dar a mão ao inglês, mas contendo-lhe as ambições.




Por seu lado, os ingleses não podiam desconhecer que serviço estavam prestando à revolução portuguesa, permitindo o aliciamento de tropas e organizando a expedição do Lencastre; e sabendo-se que importância tinha já a marinha portuguesa, então sem dúvida superior à dos futuros dominadores dos mares, compreende-se a razão de ser da primeira convenção com Ricardo II, celebrada em Londres pelos representantes de Portugal. Por virtude dela, D. João I prestava ao seu aliado o auxílio de forças navais para as empresas em que andava empenhado. Não há, com efeito, compensação no corpo do tratado pois a compensação real estava nos factos simultâneos, cujo alcance para o êxito da quase temerária revolução portuguesa era palpável, e num sentido decisiva.»

Oliveira Martins («A Vida de Nun'Álvares»).


«O fiel de Deus já se acha no guerreiro, ao modo de como se acha em Elias, nas violentas guerras contra os sacerdotes de Baal. Elias arde em zelo pelo Senhor Deus dos Exércitos, Nun'Álvares apresenta-se como o "capitão devoto" que, afastado das tropas, ora e invoca o seu Deus, "suma e trina essência", em favor da sua causa, que ele tinha como justa, por ser causa da unidade católica. A sua vocação não é a guerra pela guerra, a sua vocação é a paz. Homem de confiança, vive-a e transmite-a aos súbditos, na refrega da batalha. E, vencedor, "sempre castiga como pai, e como juiz nunca". A imagem, assim proposta como que em antinomia, tem que se lhe diga: castiga como pai, não julga como juiz. Leia-se: a justiça acha-se limitada pela misericórdia. No essencial, a justiça; no resto, o amor.»

Pinharanda Gomes («O Galaaz do Carmelo», in «S. Nuno de Santa Maria - Nuno Álvares Pereira. Antologia de Documentos e Estudos sobre a sua Espiritualidade»).


«Venerado como santo, divinizado como herói, pela imaginação de um povo inteiro, Nun'Álvares, cuja fé realizou o milagre de remir, para lhe dar um posto na história da humanidade, marcou-lhe ao mesmo tempo o destino, quando, acabada a empresa, foi sepultar-se na cova de um mosteiro. Também Portugal, rematada a campanha heróica da sua expansão ultramarina pela catástrofe com que terminou o século XVI, se condenou ao sepulcro frio de uma devoção extenuante e dissolvente. Só os indivíduos podem aniquilar-se esteticamente: os povos, finando-se, desorganizam-se.

A revolução de 1383 e a dura guerra a que assistimos, mantendo a autonomia política do Estado português, deram-lhe porém uma nova alma: fizeram deste principado uma nação consciente da sua vontade colectiva; pelo mesmo tempo em que, na Castela vizinha, se ia definindo claramente o destino que a assinalava para a hegemonia, e afinal, para a unificação dos Estados peninsulares. Até então, em toda a Espanha, não houvera nações, na rigorosa expressão da palavra, mas sim apenas reinos, ou principados autónomos, nascidos no tumulto da reconquista, delimitados pela força das coisas, variando as fronteiras à mercê da arte, ou do valor dos soberanos. Desde a queda dos visigodos, a Espanha ficara decapitada, e as guerras entre os Estados cristãos são de facto guerras civis. Em cada Estado, as classes, incluindo a nobreza, eminente numa classe quase exclusivamente militar, não se sentem estrangeiras perante as vizinhas, e combatem por um ou por outro lado, instigadas por motivos vários: nunca pelo sentimento de solidariedade nacional.

Com o findar do século XIV mudam as coisas, e os sentimentos novos que se definem preparam o regime posterior do dualismo, em que o antigo Reino de Castela, passando mais tarde a chamar-se a Espanha, exprime com uma palavra só o pensamento unitário da sua existência. Na Espanha ficava todavia Portugal, e depois do baptismo de 1385, Portugal era também uma nação; e também no espírito dos seus monarcas principiaram a florir as ambições de realizar a unidade a seu benefício.

Ao problema propriamente geográfico acresceu desde logo o problema orgânico, pois a ideia nova de Nação diferia por completo do facto espontâneo dos Estados medievais. Eram, estes, agregados de famílias nobres e de vilas burguesas; existiam, federativamente, por justaposição, indiferentes às condições de proporção: a grandeza estava no esplendor das façanhas heróicas! Agora, a nação surgia com os caracteres de um ser uno e vivo, tendo como cérebro o Pensamento, incarnado na pessoa simbólica do rei. Das proporções do Estado dependia a sua grandeza; da sua grandeza a possibilidade de satisfazer à missão magnífica em que se sentia investido. Impossibilitado de se expandir na Península, Portugal viu-se forçado a embarcar. Ceuta foi a primeira viagem: Alcácer-Quibir a última.

É impossível reconstruir a história com hipóteses; mas a imaginação pára inquieta perguntando, se, com efeito, o sonho de Campanella não poderia ter sido um facto, caso o filho de D. João II não tivesse morrido de uma queda estúpida. O herdeiro do trono de Avis, monarca de toda a Península, senhor de todo o mundo extra-europeu, poria talvez sobre a cabeça a coroa de um império maior e mais firme do que foi o de Carlos V. Unificando-se politicamente a Península pelo ceptro de um rei português, enfeixando-se todos os Reinos da Espanha no período ascensional da sua fortuna, é possível que a Portugal sucedesse como ao Aragão; ao passo que, depois, quando, sobre uma catástrofe, a união se fez, o povo que num século atingira a plenitude da glória, identificou a união com a desgraça, chorando nas mesmas lágrimas a independência perdida e a fortuna dissipada. E se o acidente fatal de 1491, quando a princesa Isabel de Castela ficou viúva, não tivesse malogrado a ambição ingente do maior homem, talvez, que em Portugal nasceu, a coroa do herdeiro de D. João II, rutilante com as visões diamantinas de Nun'Álvares, que foi o Paracleto português: a coroa rutilante de Avis não teria, é quase certo, rolado pelos areais de Alcácer-Quibir, dispersando as suas pedras desengastadas como lágrimas soltas na face adusta da aflição cruciante de um povo.







Essa aflição, esse doloroso martírio com que nós, portugueses, pagámos e ainda pagamos, um instante de fortuna incomparável, não devem hoje surpreender-nos, pois uma das verdades sabidas é que os momentos de bem-aventurança na Terra são expiados sempre por largos tempos de amargura. O homem não nasceu para a felicidade, por isso mesmo que a natureza lhe deu a imaginação com que se eleva acima do mundo: a felicidade é o estado próprio dos seres apenas vegetativos. Tempo houve, porém, em que desta própria amargura da vida, a imaginação humana fez a escada mística por onde subia, das portas da morte, às visões luminosas do Céu.

Exemplo superior da concepção cristã da vida, e por isso venerado como santo, Nun'Álvares é porventura o tipo culminante da energia própria desta nossa raça peninsular ibérica, idealista na alma, e afirmativamente heróica. O heroísmo encontrou objecto no sentimento histórico da independência que transformou em consciência nacional; o idealismo vasou-se no credo religioso que havia de abrasar toda a Espanha, produzindo um dos fenómenos mais extraordinários da alucinação colectiva.

Históricas, ou transactas, as formas em que a sua energia e o seu pensamento se moldaram, por isso mesmo Nun'Álvares se levanta no passado remoto como o representante eminente do tempo em que existiu. Herdeiros das lições do passado, filhos de um mundo envelhecido, não podemos, é certo, repetir no seu objecto a devoção quase histérica dos santos medievais; mas havemos de aprender com os heróis, qual foi Nun'Álvares, de quanto o homem é capaz, desde que obedece aos impulsos generosos do seu coração e aos movimentos decididos da sua vontade enobrecida.

A alucinação medieval desfez-se logo que outra vez se ouviu, na Renascença, a voz diamantina da razão, e o encanto da beleza encheu de novo o mundo, repovoando os ares e os campos com os génios antigos da harmonia. Morrer bem: tal foi a sabedoria suprema de todos os tempos. À eutanásia dos gregos sucedeu o suicídio claustral com a esperança numa ultravida recheada de piedosa fortuna; mas a ideia que hoje fazemos da morte parece-se mais com a mais distante. Por isso as tebaidas, os claustros, os eremitérios, caíram em ruína; nem por isso, todavia, a noção da vaidade universal das coisas é para nós menor do que era para Nun'Álvares, apesar de ter descido voluntariamente do sólio onde se sentava à Távola Redonda da glória e da grandeza, para se esconder com humildade na sombra espessa do claustro. A certeza do prémio transcendente diminui o mérito da abnegação; e neste sentido o fim de Sócrates vale tanto como o dos santos; e talvez a tragédia de Útica valha mais do que muitos sacrifícios.

Nos tempos modernos, ninguém soube a Vida melhor do que nós, os povos da Espanha: isto é, ninguém afirmou tão superiormente a energia da vontade humana. Ninguém tão-pouco melhor soube morrer, do que o povo que incarnou em si, paradoxalmente, a teoria da morte no seio do Eterno: esse pensamento agudo como a lâmina de uma espada que, dobrando-se e traspassando o mundo, na sua redondeza, veio cravar-se-nos no coração para no-lo dessangrar. A Espanha foi vítima de um erro de definição; e se um dia os homens atinarem com a verdadeira teoria da Vida, ninguém, tão-pouco, saberá morrer por ela como o povo de entre todos gerado para o heroísmo.»

Oliveira Martins («A Vida de Nun'Álvares»).






Capelas Imperfeitas


Portugal teve de resistir a Castela para manter o seu direito de ser


«Oh que formosa coisa era de ver...»

FERNÃO LOPES


Se, porém, está marcado nos destinos que se seja ao mesmo tempo fraterno e universal, o que muitas vezes sucede é que se tenha de começar por pôr de lado aquilo que é apenas uma falsa fraternidade e repousa no desejo que têm os outros de exercer as suas escravaturas, tanto mais perigosas e difíceis de evitar quanto, na maior parte das vezes, se acobertam com os pretextos de uma irmandade que é necessário não quebrar. E Portugal teve, quase logo de início, de tomar a sua definida atitude em face de uma Castela que se não resignava a deixar que cumprisse seu particular destino uma daquelas regiões periféricas sem as quais a vida material lhe seria extraordinariamente difícil. Portugal teve de resistir a Castela para manter o seu direito de ser; teve, por obediência ao pai que o concitava com o seu chamamento, de ser aquela espada que fala o Evangelho e começar por actos de guerra a missão que era, afinal, essencialmente de paz; teve, para poder unir mais tarde, se separar primeiro.

Fê-lo como logo de princípio se constituíra em nacionalidade, apoiado nas características físicas de sua terra, toda em brando declive até o mar; apoiado no voluntarismo de sua gente, disposta a talhar-se um domínio que fosse não o contrário, mas o domínio daquela Santa Maria, a quem o Rei entregara o território; o único domínio sobre o mundo daquela que nada tivera enquanto o universo pagão se sustentara vivo e continuava a nada ter numa Europa que, no fundo, pagã continuava; o domínio daquela que representava a porção virgem da alma que sempre persiste em todo o homem e em que sempre se pode renovar o milagre de nascer um Deus; finalmente apoiado, pelo que respeitava ao irmão-corpo, numa economia que era das mais importantes para a Europa e que, por outro lado, se imbricava perfeitamente em todo o jogo da economia inglesa.

E é por este lado que a guerra da independência de Portugal é, paradoxalmente, ao mesmo tempo que o faz voltar as costas à Europa, o único momento em que Portugal está fundamentalmente interessado numa guerra europeia. Atoleiros, Trancoso, Aljubarrota e Valverde são episódios da Guerra dos Cem anos. Aos espanhóis aliados da França se opõem os portugueses aliados de Inglaterra; e, neste ponto, a vinda dos arqueiros ingleses significa o primeiro dos desembarques que, de vez em quando, para defender sua insularidade, a Inglaterra tem de realizar na Europa. Mas não só politicamente Portugal se opõe à Europa, não só militarmente, e pondo de parte todos os desencontros de terreno e de tempo, Nunálvares está contra Joana d'Arc. Em toda a sua luta, jamais o Português tomou uma atitude que pudesse de algum modo envolver uma quebra da unidade da Igreja. Porque a realidade era essa: todo o atentado contra a unidade da Igreja, todo o gesto por menor que fosse para impedir que Roma, pelo menos espiritualmente, governasse todo o Ocidente da Europa como ponto de partida para governar o mundo, era efectivamente um atentado contra o cristianismo; para o pormos mais claro no vocabulário moderno, contra o catolicismo.

As objurgatórias de Camões contra os outros povos que se denominavam cristãos e estavam por suas lutas internas enfraquecendo o cristianismo têm aqui o seu ponto de arranque. O infiel perdurará na medida em que essa fraternidade cristã se quebrar. O bárbaro continuará existindo na terra na medida em que o civilizado se dividir. E que estava fazendo apesar de tudo Joana d'Arc? Estava dando, quando tomava para si o direito de interpretar pessoalmente, segundo seu sentimento e sua razão, as vozes do Céu, estava dando a primeira base para o protestantismo germânico; e estava dando, quando defendia uma França contra uma Inglaterra, o primeiro reconhecimento daquele nacionalismo que tão anticristão se haveria depois de mostrar; tão protestante, de igual modo. Por esse lado se explica que um tribunal eclesiástico a condenasse. E se explica depois que a Igreja a canonizasse: porque na sua luta dramática, quando tudo parecia conluiar-se para a desesperar, Joana jamais deixou de ser humilde; como S. Francisco, defendendo doutrinas tão semelhantes às de Valdus, humilde fôra e, por humilde, santo; Valdus, porém, por seu orgulho, herege.


Mas Nunálvares estava, por uma parte, claramente obediente a um Papa de Roma, enquanto o castelhano, cismático, defendia o Papa de Avinhão; por outra parte, ele não estava batendo-se por uma nação portuguesa contra uma nação espanhola. Em primeiro lugar porque não havia uma nação espanhola, embora as tropas que invadiram o país não fossem exclusivamente castelhanas; em segundo lugar porque mesmo muito tempo depois de terminada a guerra, nunca os portugueses negaram que fossem espanhóis no sentido de pertencerem à Península: espanhóis, sim, mas espanhóis de Portugal, não espanhóis de Castela; espanhóis, mas espanhóis que defendiam, contra um estilo de vida de opressão e de fanatismo e de pura cobiça, um estilo de vida de liberdade, de compreensão e de cooperação que deveria ter sido, por suas razões históricas e por suas tradições, o verdadeiro estilo de vida da Península; espanhóis, mas espanhóis que defenderiam com o seu sangue e quantas vezes fosse preciso, atravessando os martírios de Almada ou de Lisboa, o direito de determinarem o seu próprio destino: e que, graças à geografia de seu território, graças à qualidade de sua gente, graças à fieira de seus portos marítimos, graças à sua plataforma de excelente pesca, graças a seus verões de excelente sal, podiam realizar as façanhas de que não seriam capazes nem o Sul, nem a Galiza, nem Catalunha. A guerra da independência não é uma guerra entre grupos nacionais, mas uma guerra entre irmãos: a guerra que o Evangelho já previra.

Quanto à aliança inglesa também não era ela, no seu aspecto histórico, uma aliança fundamental ou o reconhecimento de uma irmandade superior à irmandade peninsular ou, digamos, mais real do que ela. A aliança inglesa era, por uma parte, uma aliança de interesses, e é bem sintomático que seu primeiro acto tivesse sido comercial, e muito mais sintomático que, de um lado, o tivesse assinado o Rei de Inglaterra e, do outro lado, um negociante ou armador do Porto; era como se do lado de Portugal, o comércio fosse uma actividade particular naturalmente útil ao País e que ele não podia dispensar, mas de que o soberano, como seu representante supremo, não tomava conhecimento oficial; e como se, do lado da Inglaterra, o comércio fosse uma actividade nacional, profundamente intrínseca à nação e, como tal, sancionada pelo Rei; coisa que de jeito nenhum foi desmentido pelo que se seguiria na história da expansão britânica.

Mas era também como uma aliança de esperanças. O carácter português e o carácter inglês alguma coisa tinham de semelhante, talvez, abrindo porventura mais crédito do que elas merecem a hipóteses étnicas, pelo que em ambos havia de céltico. O lirismo, como uma das qualidades mais nitidamente estabelecidas em ambos, em ambos igualmente se disfarçava pela discrição e pelo rendido respeito à pessoa humana, inclusive à própria; a aventura do comércio e da navegação a ambos tentava, como igualmente os atraía a terra nevoenta e misteriosa em que se sumira o Rei Artur e em que D. Sebastião se viria a sumir; romances de cavalaria de um a outro passavam e em ambas as terras encontravam o mesmo interesse, mais do que interesse, o mesmo poético toque de inclusão da ficção na vida; a mesma infantaria, provocada por causas semelhantes se levantava contra uma cavalaria que as circunstâncias democráticas, logo depois duramente reprimidas em quase toda a Europa, condenavam para a história. Se juntarmos a isto a perfeita coordenação das duas economias como, pelo que podemos reconstituir através de raros documentos, um país fornecendo ao outro o cereal que lhe faltava, em troca das frutas, dos peixes e dos vinhos, podemos compreender que, para além dos interesses momentâneos, pudesse ter passado em cérebros portugueses, tão afeitos às largas concepções políticas, a ideia de uma aliança que envolvesse o mundo numa tessitura cristã. Ideia que ainda hoje não estaria totalmente perdida se se pudesse aproveitar Goa como ponto único de enlace entre uma Commonwealth britânica e uma comunidade de nações de língua portuguesa.

Igreja da Nossa Senhora da Imaculada Conceição em Goa.


Simplesmente, os fados ou as ideias humanas, outros caminhos ordenaram. A Inglaterra, que já entrara na luta contra a França, não para defender o seu direito de ser livre, mas para conquistar territórios em que se não falava a sua língua, amplamente merecera que Joana a batesse; acabou por defender, e penosamente, o direito de possuir uma insularidade, que, por vezes, tanto desajudou o mundo, mas que seria o seu sólido porto de armamento e o seu abrigo inexpugnável durante o período de aventuras ultramarinas. Por outro lado, e como consequência fatal do seu primeiro impulso, e sem que possamos dizer onde um é causa e o outro efeito, mas antes os tomando como dupla manifestação de uma mesma realidade, como uma espécie de corpo e alma de uma certa época da história o capitalismo e o protestantismo vão-se apossar da Inglaterra. Vão separá-la de Roma; e, por a terem separado de Roma, vão-na separar, não diremos para sempre, porque afinal todo o pecado é remissível, mas pelo menos para muito tempo, daquela humanidade que anseia, acima de tudo, por que finalmente se estabeleça na terra um regime de fraterno viver.

Mas com Portugal não é isso que sucede; Portugal entra na guerra e sai da guerra como o grande defensor da unidade da Igreja; a vitória da véspera de Santa Maria é igualmente a vitória de Roma sobre Avinhão e jamais se quebra a fidelidade portuguesa à Santa Sé, mesmo quando parece errar o Rei ou quando parece errar o Papa. E Portugal entra na guerra e sai da guerra não defendendo insularidade alguma, não defendendo isoladamente algum; o que ele ganha e faz reconhecer é o seu direito ao Atlântico, é o seu direito de ser irmão dos outros povos do mundo. E o ganha contra as tentadas opressões de uma tirania, que tanta vez depois assaltará Portugal, ou de dentro ou de fora, e que no fundo o que procurava ou tem procurado é isso mesmo: fazer de Portugal não um país dos sete mares mas um país das pequenas províncias, quando muito de estreito conforto burguês; cortar a sua vocação missionária; pautar o seu viver não pela epopeia, mas pela contabilidade.

É esse surto magnífico de vida; essa vitória do que é santo contra o que é temporal; essa unidade da nação em defender o futuro, que vai ser de sacrifícios, de saudades e lágrimas, segundo o seu signo inicial; é esse apostar-se à História Trágico-Marítima, quando podia ter pactuado e se rendido; é esse ser do ser, arriscando o que é, que vão dar a eloquência, a emoção, a piedade, a sensibilidade e a força, a inteligência e a poesia, a veracidade, a criação de um Fernão Lopes, que vão fazer dele, não diremos talvez o autor de um novo Evangelho, mas pelo menos de novos Actos dos Apóstolos; dos Apóstolos que nascem ali para a preparação de um catolicismo universal. O que faz que Fernão Lopes bata Ayala, ou Froissart é que ele conta o seu país, e o seu país daquela hora única no mundo, não conta uma Espanha ou uma França, tão vulgares, apesar de toda a sua grandeza, como em qualquer outro tempo; é grande o artista; maior, porém, por detrás dele, Portugal. (in Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, Guimarães Editores, Lisboa, pp. 45-54).




terça-feira, 28 de julho de 2020

Frei Nuno Herói e Santo

Escrito por Manuel Nunes Formigão





Ver aqui, aqui e aqui



Frei Nuno, Herói soldado,
É grande o teu ideal,
Repete a história o brado:
Por Deus e Portugal.
Prodígios são do Céu;
E o Carmo excelsa rota,
Sublima o nome teu.

Coro
Ó Condestável Santo,
Sê tu, nosso broquel
Esmague o teu encanto,
A sanha de Lusbel.
Ressoe e por toda a parte
Em pró do teu ideal.
Audaz pregão de guerra,
Dom Nuno de Portugal.

Inspira à juventude,
De Deus, da Pátria o amor,
O culto da virtude,
Coragem e valor!
Nas lides da existência,
Sê sempre o seu farol,
E guia-a com clemência,
À luz do Eterno Sol!


Música de Inácio Aldossoro, SS CC., in Jubilate, Lxª., 1939, nº 117.



Convento do Carmo, Lisboa.








quinta-feira, 23 de julho de 2020

Suaves Cavaleiros

Escrito por Orlando Vitorino


«O materialismo moderno surge quando parece alcançada a finalidade que Descartes preconizara à filosofia. O que fora desígnio mental de filósofo era agora uma bela convicção que todos perfilhavam: com a indústria, com a sua capacidade de produção regular e incessante ao abrigo das vicissitudes a que estão sujeitas as colheitas naturais, com a sua potencialidade de desenvolvimento ilimitado e de reprodução interminável, estaria enfim obtido o instrumento da fartura inesgotável, a abundância universal, a "riqueza das nações". A todos seria doravante dado tudo de que necessitassem e ficariam abolidas as divisões e dependências entre os homens, triste fruto das carências que não era possível satisfazer. Não haveria mais senhores e servos, liberdade e justiça seriam enfim reais.

Mas o que na dramática realidade se observava, se sofria e cada vez mais se veio acentuando, era precisamente o contrário de tão confiante expectativa. Com o triunfo do industrialismo, a desigualdade e servidão dos homens alargava-se a proporções nunca antes atingidas em sociedade alguma, até naquelas em que a distinção entre homens livres e escravos era atribuída a insondáveis desígnios da natureza ou a fatais consequências da guerra; e com a sua incessante expansão, o industrialismo sujeitou o mundo a uma fealdade e a uma poluição cada vez mais asfixiantes, adquiriu os mecanismos para destruir a natureza ou imediatamente ou num inexorável prazo, formulou as doutrinas que dão o estado de servidão como sendo a mesma liberdade, que subordinam tudo o que é superior ao inferior, que fazem da ignorância, da pequenez mental e da redução da acção humana à manufactura as detentoras da virtude e que levaram já a uma degenerescência da espécie humana.

Face a tais consequências - num aspecto para delas irresponsabilizar o industrialismo, noutro aspecto para as justificar - é que se vai erguer, entre a religiosa aceitação dos que se julgam mais desesperados ou impotentes, o materialismo moderno. Sua primeira expressão consiste, precisamente, em asseverar que, com o domínio da natureza que supõe, com o primado da vontade e prioridade da acção que representa e com a abundância que promete trazer a todos os homens, a produção industrial estabelece as condições para que a sociedade rejeite os vestígios da transcendência que tem em si e se conheça como aquilo que verdadeiramente é, como um materialismo. O método deste conhecimento será o materialismo dialéctico.

Pretende o materialismo dialéctico constituir uma tradução da dialéctica hegeliana também segundo a interpretação que dela fez Feuerbach. A dialéctica hegeliana tem por paradigma a formação do conhecimento no trânsito que vai do ser que se ignora ao ser que se conhece: no primeiro momento, o ser aí está em sua pura inocência ou total ignorância de si; no segundo momento, o ser nega-se a si para se fazer o outro de si; no terceiro momento, situado assim fora de si pela negação de si, o ser adquire de si mesmo, como outro, o conhecimento ou saber que no primitivo estado de inocência jamais poderia alcançar, e regressa então a si.

A tradução desta dialéctica do ser e do conhecimento em termos de materialismo obedece à interpretação e exemplificação que de tal dialéctica fez L. Feuerbach e é a seguinte: no primeiro momento, que será o do capitalismo, a sociedade aí está na inocência ou ignorância daquilo que é, do seu materialismo, ignorância que alimenta ou de que a si mesma se ilude atribuindo-se princípios transcendentes, origens religiosas, finalidades éticas, constituições jurídicas; no segundo momento, o da "crítica da economia política", a sociedade nega-se a si mesma, nega o que estava sendo no anterior momento de ignorância ou de capitalismo, para se fazer o outro de si, se analisar e conhecer como o materialismo que é; no terceiro momento, que será o do socialismo, a sociedade, adquirido o conhecimento do que é, regressa a si como saber de si.

Esta tradução materialista da dialéctica hegeliana constitui um claro exemplo daquilo a que Hegel chamou "intelecto abstracto" e "razão raciocinante", isto é, do intelecto e da razão que se fecham em si mesmos, nenhuma relação têm com a realidade de que se ocupam e operam com abstracções. Com efeito, nenhum sentido real tem a abstracta substituição do ser pela sociedade. Nada há de mais diverso. O ser é uma unidade substancial e indissolúvel, que não se compõe de partes. É todo ele que começa por estar na ignorância de si, e é todo ele, sempre permanecente na sua unidade ôntica, que se faz o outro de si para, também todo ele, regressar a si conhecendo-se. Se a dialéctica é a expressão deste movimento, não há dialéctica sem ontologia. [Para o pensamento da dialéctica, e de como é vã toda a dialéctica que não suponha uma ontologia, ler o admirável livro de José Marinho Teoria do Ser e da Verdade (Guimarães Editores, Lisboa, 1961)].

A sociedade, pelo contrário, é um composto de partes, uma colecção de indivíduos que se agregam movidos por causas e fins bem clara e previamente determinados. O seu começo, que o materialismo dialéctico pretende equivalente ao estado de inocência do ser, não é portanto um estado de ignorância de si, mas precisamente o contrário: é um estado que, como nenhum outro, tem presente o saber das causas e fins que fizeram que a sociedade existisse, que fizeram que os homens nela se agrupassem. Constitui, portanto, um absurdo pretender que alguma sociedade possa alguma vez ignorar-se a si, desconhecer as causas e fins que lhe deram origem e a mantêm; tal ignorância seria a sua inexistência. É é igualmente absurdo pretender que a sociedade se possa separar ou cindir de si, fazer-se o outro de si para se conhecer. A cisão numa sociedade, numa agregação de indivíduos, só poderá constituir a sua dissolução, a desagregação das suas partes, a dispersão dos indivíduos que a compõem.






O saber que a sociedade tem de si, das suas origens e fins, é o conteúdo, não da dialéctica, mas do direito, que, referindo aos princípios essas origens e fins, lhes confere um significado principial. Todavia, o desenvolvimento triunfante da filosofia moderna levou a sobrepor a economia ao direito no governos dos povos. Quando é o direito que detém o governo dos povos, os princípios não estão subordinados aos condicionalismos transitórios, circunstanciais e extrínsecos . Porque não serão, evidentemente, a verdade, a liberdade e a justiça que se hão-se conformar às acções dos homens, mas as acções dos homens que se terão de conformar aos princípios. E substituindo-se ao direito, a "economia política" não pode deixar de condicionar a realização dos princípios, por mais respeito que lhes dedique, aos meios, possibilidades e conveniências da produção e da riqueza. Todavia, o materialismo moderno viu na "economia política", não só a expressão daquele absurdo estado de ignorância de si que atribui à sociedade, como o obstáculo que se interpõe entre as virtualidades da produção industrial e a sua realização, o agente maléfico que desfaz as convicções e esperanças que os homens foram levados a depor no industrialismo, a barreira levantada à antropologia do "ser genérico". O materialismo moderno reveste, então, a forma de uma "crítica da economia política". [Depois de Engels escrever Esboço de uma Crítica da Economia Política (1843), livro que Marx diria ser "uma crítica genial das categorias económicas", sucessivamente elabora Marx, primeiro, uma crítica do direito moderno considerando-o na sua última sistematização filosófica, a A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1844), domínio que significativamente logo troca pelo da economia; e, depois, três críticas da economia política: uma, que permaneceu inédita durante quase um século e veio a ser publicada com o título de Primeira Crítica da Economia Política (1844); outra, talvez a de discursividade menos obscura, que se apresenta apenas como Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859); finalmente, O Capital, que se subintitula de Crítica da Economia Política (1867).

Como se vê trata-se sempre de crítica, designação na época prestigiosa graças à filosofia de Kant e que chegou a ser a designação geral com que os "hegelianos de esquerda", atribuindo-lhe um certo carácter de cientificidade, substituíam a palavra filosofia. O materialismo está longe de lhe dar, todavia, um sentido equivalente ao kantiano no qual a crítica se destina a estabelecer as condições do conhecimento ou os limites do conhecimento possível. Aqui, tem por finalidade a polémica - polémica contra a religião em Feuerbach e Bruno Bauer, polémica contra a sociedade e a moral em M. Stirner, polémica contra a filosofia, contra o direito, contra a economia, em Marx e Engels. Explicar-se-á, assim, a definição que dela dão, no livro A Ideologia Alemã (trad. port., Lisboa, 1975, p. 12) os próprios Marx e Engels: "o crítico, esse ordenador de casamentos e funerais"].»

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»). Ver aqui e aqui


«Motivos vários, cuja investigação compete ao historiador da cultura, divulgaram entre nós o erro de que existe um método dialéctico de promoção do pensamento e de representação da realidade e, o que é pior, atribuíram a sua fundação a Hegel. (...) Chamam alguns vulgarizadores de doutrinas sociológicas dialéctica hegeliana à dialéctica de Fichte, ignorando ou esquecendo que foi o autor dos Grundlage der gesammten Wissenschaftslehere quem, da doutrina da oposição kantiana entre fenómenos e nómenos, desenvolveu a oposição do eu e do não eu, para formular a doutrina lógica da antítese e da síntese como factores de ciência. É evidente que Fichte cruza o esquema da judicação com o esquema da volição, no que se mostrou fiel ao pensamento germânico, acentuadamente violentista, energetista e pessimista. Fácil será verificar que à lógica de Fichte, e não à de Hegel, se subordinam os sistemas de Feuerbach e de Marx. Hegel não era um pensador dialéctico, mas um pensador dramático.»

Álvaro Ribeiro (« A Arte de Filosofar»).



«O industrialismo é, de certo modo, filho do espírito da mística cristã...»

Leonardo Coimbra («A Filosofia de Henri Bergson»).



«Os nominalistas e os terministas, imitando a abstracção matemática, deram ao problema dos universais uma solução que prepara a falácia do idealismo, e serviram assim o engenho de análise mortífera e de uniformidade industrial que lacera, em vez de redimir, a Natureza.»

Álvaro Ribeiro («Aristóteles e a Tradição Portuguesa»).


«Toda a doutrina política implica uma antropologia ou uma concepção do homem. E importa mais saber o que seja esta concepção do que saber o que seja o seu programa de governo.

Duas doutrinas disputam hoje a adesão ou o domínio dos povos: a doutrina da nova direita, que tem por núcleo central o liberalismo, e a doutrina da nova esquerda, que tem por núcleo central o comunismo. Em rigor, trata-se da oposição entre a concepção do homem do individualismo e a concepção do homem do socialismo.

É a primeira uma doutrina da liberdade humana. O liberalismo reconhece que cada ser, cada homem, possui uma singularidade que, além de irredutível, é indivisível ou individual. O primeiro atributo do liberalismo é, por conseguinte, o individualismo, e sua concepção do homem é a de que o ser humano real e vivente é necessariamente um ser singular e individual que não se pode reduzir nem a qualquer outro ser nem a qualquer generalidade, género ou espécie.



Ver aqui, aqui, aqui e aqui



A segunda doutrina, o comunismo, repudia toda a individuação (que, na terminologia da sua propaganda, identifica primariamente com o egoísmo) e recusa-se a reconhecer que o ser humano possua uma singularidade irredutível. Afirma, então, que o ser de cada homem não está nele mesmo mas reside na espécie ou no género, e neste sentido proclama que o homem é um "ser genérico".

A concepção liberalista do homem está assegurada por toda a realidade e o seu saber confunde-se com a mesma ciência antropológica. O que distingue o homem de todos os seres naturais, é a individuação. Esta individuação manifesta-se, não apenas, como acontece na generalidade dos seres humanos, na unidade isolada de sua forma ou corpo; não apenas, como acontece nos outros seres animais, na unidade orgânica, anímica ou movente da sua existência, mas sobretudo na faculdade de pensar. De todos os actos de que a vida é feita, o pensamento é aquele que só um ser uno, indiviso e irredutível tem a capacidade de assumir. A liberdade humana radica, deste modo, na liberdade de pensar.

A antropologia comunista, depois de repudiar a individuação, reduz cada ser humano ao género ou à espécie. Trata-se de uma concepção que só tem possibilidades de se exprimir com algum sentido dentro dos limites da sociabilidade, identificando o género com a colectividade. Cada ser humano nada será, portanto, em si mesmo mas, reduzido ao género, será aquilo que for a colectividade. Existência e acção humanas serão totalmente absorvidas na existência e na acção colectivas, e repudia-se tudo o que suscitar manifestação da singularidade: a divisão do trabalho, a competição e a concorrência e, fundamentalmente, o pensamento, origem e garantia da individuação. Repudiado o pensamento, repudia-se consequentemente a liberdade.

Enquanto a concepção liberalista do homem se identifica com o carácter científico da antropologia, a concepção comunista só recentemente adquiriu uma terminologia própria. Ao homem absorvido na colectividade deu ela a designação de "ser genérico", designação utilizada pela primeira vez por um tal Pierre Leroux, comunista francês dos inícios do século XIX, que a expôs num livro confuso e ridículo mas muito lido e exaltado pelos comunistas da época. Um exemplo: depois de ter declarado que "humanidade é um ser genérico", acrescenta: "Qu'est-ce donc encore une fois que l'humanité? Je dis que c'est l'homme humanité; c'est-à-dire c'est l'homme ou chaque homme dans son développment infini, dans sa virtualité qui le rend capable d'embrasser la vie entière de l'humanité et de réalizer en lui cette vie..." Ludwig Feuerbach foi quem, a seguir, fez do "ser genérico" a sua concepção do homem e desenvolveu-a no livro A Essência do Cristianismo de um modo literariamente mais correcto do que o do "criador" da designação mas, substancialmente, ainda mais confuso e errado: o "ser genérico" seria a ideia da divindade mas sem divindade. De Feuerbach colheu-a Karl Marx, e expõe-na no livro A Questão Judaica despindo-a das vestes anti-religiosas do seu predecessor e vestindo-a de roupagens comunistas.

De tão opostas concepções do homem resultam as igualmente opostas concepções da existência social. Enquanto o liberalismo, fundando-se na singularidade do indivíduo, suscita o aperfeiçoamento de cada um e a harmonia e o amor entre todos (pois só há harmonia e amor onde há singulares e diferentes), o comunismo, fundando-se no repúdio da singularidade de cada um e da diferença entre todos, apela para a passividade uniforme ou informe.»

Orlando Vitorino («Manual de Teoria Política Aplicada»). Ver aqui, aqui e aqui




Suaves Cavaleiros


1 - O que os governos idolatram 


O governo das sociedades contemporâneas é orientado segundo um princípio absolutizado e universalizado, a que tudo se deve subordinar: o princípio da economia.

O predomínio absoluto deste princípio começou por constituir a arma que conquistou para a burguesia o domínio das sociedades. Conquistado esse domínio, logo o princípio da economia se revelou instrumento da mais flagrante e dolorosa injustiça. Multiplicaram-se as suas vítimas vertiginosamente, até abrangerem a quase totalidade dos homens.

Quando essa injustiça, assim estabelecida, ficou patente e adquiriu as proporções de escândalo, procurou-se atribuir às modalidades e processos de aplicação do princípio, não ao próprio princípio, a sua origem e causa. Mantendo-se assim, no seu pedestal, esse princípio absoluto e único, reforçando-o e elevando-o até mais alto, dividiram-se em duas correntes principais os adoradores do ídolo - chamaram-se uns socialistas, chamaram-se outros capitalistas. O que os distingue é apenas a modalidade, o processo daquilo que ambos os grupos designam por «distribuição da riqueza», designação sarcástica pois do que efectivamente se trata é da «distribuição da pobreza». De qualquer modo, o ídolo é o mesmo, o princípio fica intocável e sua soberania continua a ser total.


2 - O contrário das revoluções inúteis 


Ora o que nos anos mais recentes começou a ser posto em causa foi o próprio princípio. Não apenas a sua soberania, mas ele mesmo, como princípio ordenador de classes, hierarquias e possibilidades de vida dos homens integrados nas organizações sociais.


Jesus Christo retratado como o Alfa e o Ómega nas Catacumbas de Roma (séc. IV d. C.)



Quem o põe em causa, sejam personalidades ou grupos que se vão manifestando aqui e além, sem propósito coordenado e prévio, logo sofre o ferrete social do réprobo, imediatamente se vê segregado. Como os cristãos refugiados nas catacumbas, como tudo o que os cristãos representaram na fase final do declínio de uma civilização e início de outra. E, ao contrário das revoluções inúteis - as que se destinam a mudar «o que isto é por aquilo que isto tem sido», ou as que se destinam a convencer-nos a todos de que «é preciso que todos mudem para que tudo fique na mesma» - ao contrário dessas espalhafatosas revoluções inúteis, os que põem agora em causa o princípio soberano da ordem e da injustiça fazem-no silenciosamente. Sem ruído, sem escândalo. Suaves cavaleiros.


3 - O regresso à natureza 


Uma das manifestações é o regresso à natureza. O princípio soberano da economia abomina e condena a natureza. Os próceres dele, no dealbar do seu domínio, logo a condenaram. Na origem, Lutero. Depois Kant pôde dizer: «Falam-me da beleza de um céu estrelado... A mim, um céu cheio de estrelas apenas me lembra um rosto picado de bexigas». E outro, Hegel: «Vale mais a mínima ideia que perpassa no cérebro de um homem, do que o mais deslumbrante espectáculo de natureza» ou «Que dizer das montanhas e sua beleza? Apenas isto: que elas aí estão». E logo outro, repetitivo, o sacerdote-mor da economia, Marx: «A vida rural? O idiotismo da vida rural!».

A natureza tem ritmos e cadências que só não desesperam os economistas e esta sua sociedade e civilização porque de vez os expulsaram dela e até julgaram tê-los expulso da real existência humana. A natureza, apenas a querem para lhe extrair as matérias-primas da indústria. Mais nada. Os ritmos sociais da vida humana devem ser, hão-de ser, são os industriais. Como industrial é toda a riqueza, toda a produção, todo o trabalho. Na indústria, sim, os ritmos são iguais, certos, inalteráveis; não estão sujeitos, como a natureza e os seus modos de criação, ao capricho imprevisível e à diversidade intolerável dos climas, estações, secretos ritmos e sopros. São planeáveis e contabilizáveis, introduzem-se em estatísticas, sujeitam-se ao cálculo e à previsão seguríssima.

Além disso, a natureza não pode ser o lugar do homem. O lugar do homem não é um lugar natural. O lugar do homem é a cidade - melhor, o burgo. Porque a cidade é romana e grega, sem muralhas em volta para a defender dos inimigos ou a proteger da natureza circundante. O lugar do homem é o burgo que nasce nas casas encostadas aos castelos e se alarga em ruas estreitas e sem praças, hoje só ruas para máquinas e rotundas para as máquinas virarem. Os campos em volta cortam-se de rodovias e cobrem-se de fábricas, e dos fumos e dos esgotos dessas fábricas. Industrializam-se.


4 - Marx está errado! 


O princípio económico começa, pois, a ser posto em causa. Claro que nunca ele foi reconhecido pelos que sabem: os que simplesmente sabem ou, concedamos, sabem do homem, de sua natureza e seu espírito. Agora, porém, são as vítimas que se começam a erguer.

O sinal mais ostensivo veio de um estado americano, a Califórnia, que só por si tem sido a quinta potência industrial do mundo. Foi aí que as populações, ricas e prósperas, primeiro se surpreenderam de já não possuírem a natureza de que sempre tinham usufruído; os mares poluídos, as praias transformadas em esgotos, a atmosfera saturada de fumos, os campos cobertos de casas e ruas a perder de vista. Depois, sobre o assim sensível aos olhos, o que é sensível à inteligência e à alma: a uniforme monotonia do trabalho industrial, a ausência de descanso, repouso ou remanso, a carência de valores espirituais e psíquicos. Ao lado de todo este vazio, de toda esta inutilidade humana, que vale a famosa prosperidade económica? Que representa ela? Por que preço se paga?

E em breves anos a população da Califórnia vê surgir, formar-se, ampliar-se as estruturas institucionais e políticas da quinta potência industrial do mundo, uma nova e perturbante espécie social. E verifica, com espanto, que há vozes que se erguem e se ouvem contra a industrialização, contra a idolatria do princípio económico, contra a monotonia do trabalho fabril, contra a sua próspera e oca produtividade. As vozes dirigem-se também aos possidentes e aos proletários, e procuram ser persuasivas. A minoria inicial alarga-se subitamente e representa quase um terço da população.

O governador do Estado (1), veterano do cinema e representante da velha sociedade ainda dominante, exprime bem o que é e o que representa quando, em discurso público, responde às novas e estranhas minorias:« Quem viu uma árvore, viu todas as árvores». E os operários mais irremediavelmente disciplinados e fartos, em coro: «estes tipos querem ensinar-nos aquilo de que havemos de gostar...».
















North Laguna Beach


South Laguna Beach







Localização de Laguna Beach em Orange County, Califórnia.


Entretanto, o que se torna grave e temível é que a minoria, inicialmente considerada utópica e louca, se põe a crescer e ameaça atingir um decisivo poder eleitoral. Durante dois anos o «establishment» organiza-se e promove uma vasta e persistente campanha, lançando contra ela os poderes que, consoante a nunca desmentida teoria marxista, constituem os dois únicos sectores ou classes de toda a sociedade burguesa: os proprietários e os proletários, uns e outros contentes e satisfeitos na metade da laranja onde foram instalados. Ora os novos bárbaros recusam instalar-se, quer numa, quer noutra metade, não se identificam ou sequer se aliam com uns ou com outros, antes a ambos e ao seu comum mundo industrializado, economicizado e politizado, igualmente repudiam. E veio isto acontecer quando, precisamente, esse tratado de Tordesilhas social, burguês e marxista, estava prestes a atingir a plena e perfeita realização, quando já parecia não haver no mundo senão proprietários e proletários, triturados já os entes intermédios situados naquilo que Hegel chamava o «espírito absoluto» e levou Marx a declarar invertido todo o Hegelianismo. Quando, assim, a calmaria da burguesia industrializada parecia já nada ter que a ameaçasse, toda a sociedade composta só, não de homens nem de indivíduos, mas de classes, e estas reduzidas a duas, as únicas possíveis e reais, eis que começam a proliferar pelo mundo os que recusam, refutam, contestam, repudiam toda essa bela e secular construção, e com um poder só atribuível a uma classe vêm ameaçar exactamente o Estado mais progressivo, mais próspero, mais acabado e perfeito, essa idílica Califórnia, de outrora vastas praias, outrora largos campos e aconchegadora atmosfera, num clima tépido, invejável, desejável e aprazível. Para mais, não constituem uma classe social - se atendermos ao que Marx ensinou sobre o que é uma classe social - definida pelas suas estruturas e factores económicos e, por eles, movendo sua actividade e delineando o seu modo de existir.

Marx, então, também está errado? O nosso avô Marx, de profusas barbas, profeta trovejante e criança ingénua, tão apto para papão dos capitalistas e paizinho russo dos socialistas, também está errado?! Uma minoria surge, ergue-se, seduz, amplia-se, e não podemos sequer encerrá-la nos quadros tão seguros de uma classe social? Uma minoria que conjuga tudo isso, todos esses - os que falam do espírito, da arte, do pensamento, dos deuses, coisas que tínhamos conseguido reduzir a um mero formalismo cerimonioso, que dizem que «o homem nasceu para ser feliz, ocioso e vário»? - tudo isso, todos esses que Marx nos prometera que seriam inexoravelmente repelidos, anulados, dissolvidos na evolução dialéctica, esmagados no choque das contradições dialécticas das duas únicas forças reais: os senhores e os servos, os capitalistas e os socialistas, os patrões e os operários???


5 - Os idólatras da liberdade matam os que são livres 


Da Califórnia partem os dois suaves cavaleiros, num filme com uma bela história contada em imagens que correram mundo e seduziram a imaginação dos mais jovens. «Easy Rider» se chamava o filme, e o que narra é, na grande tradição das narrativas iniciáticas, uma viagem, da Califórnia até à Flórida, que são os países mediterrânicos da América. Da Califórnia até à Flórida como, portanto, o herói homérico desde Troia até Ítaca. Mas o que eles cavalgando percorrem são domínios dos homens que vivem numa sociedade anquilosada, ainda não morta, mas já ressequida, dura, impiedosa e cruel.










Daytona Beach


Dormem, à noite, debaixo de árvores e do céu estrelado. Antes de adormecerem, conversam sobre esses homens e essa sociedade que os repele e segrega, os insulta e ameaça. «Eles falam muito da liberdade. Mas a liberdade é, para eles, só isso, isso de que se fala e que é só para se falar. Se encontram alguém que seja já efectivamente livre, logo o assassinam».

A meio caminho, junta-se-lhes um companheiro que saberá levá-los até onde é preciso que vão. Um templo? Um prostíbulo? Seguem-no, confiantes. O companheiro não só possui um segredo, como é alegre e feliz. Encontraram-no na prisão de uma cidade onde, por embriagado e apesar de ser filho-de-família burguês, o encerraram por uma noite. Como a eles. Saíram juntos da prisão e seguiram caminho juntos. Para irem até onde ele os saberia levar. Mas os homens por quem passaram farejam o perigo e, às portas disso a que ele os levava, quando dormiam esperando a madrugada para entrar, assassinaram-no à paulada. Assim, têm os outros de entrar sozinhos, lá onde entraram, templo ou prostíbulo, entre os cânticos do Kyrie Eleison. Depois, a rapariga que vem com eles apenas lhes diz: «Eu sou Maria». Há então um momento (breve ou longo?) de delírio. Entre os cânticos, confundem-se as imagens de rosas e de cruzes. E a si mesmo se surpreendem, mais tarde, outra vez suavemente cavalgando, easy rider, na estrada sem destino.

Os de um camião que passa, farejando o mesmo perigo que já tinham farejado no amigo morto, ficam possessos de ódio sem razão. Apontam as armas, disparam, e deixam-nos estoirados à beira da estrada. (in A Ilha, Suplemento Cultural, n.º 4, 1 a 14 de Janeiro de 1971).


(1) À época (Janeiro de 1970), o governador era Ronald Reagan.