terça-feira, 21 de novembro de 2017

O tomismo: uma filosofia do século XIII e da Europa Central

Escrito por F. Van Steenberghen




Santa Escolástica. Ver aqui


«[...] - E a renovação do tomismo?

- Do tomismo, ou da Escolástica? 

- Do tomismo, repito.

- É um engano. Efectivamente, o magistério eclesiástico impõe aos professores dos seminários a obrigação de ensinar o tomismo e a obra de S. Tomás, que os clérigos se esforçarão por transmitir aos leigos. Mas o tomismo é uma filosofia do século XIII e da Europa Central muito diferente do nosso aristotelismo arábico e judeu -, que por isso mesmo, não pode ser assimilado pelos pensadores do nosso tempo e do nosso país. 

Mando vir dois cafés, enquanto ao nosso lado continua a zumbir o eterno tema, o futebol. E Álvaro Ribeiro prossegue:

- Que acontece, então? Há uns intérpretes que se dedicam a mostrar a concordância de S. Tomás com uma filosofia perene, que vai de Aristóteles a Heidegger. Em vez de citar os filósofos que produziram as doutrinas, cita-se a sua tradução tomista, se possível em latim. É uma questão de fontes ou de citações. Tomista é, em suma, aquele que cita S. Tomás de Aquino. 

- Em Portugal...

- Em Portugal nem sequer há tábuas de concordância. O nosso tomismo é franco-belga, um tomismo vergado ao preconceito da razão pura, mais próprio para cartesianos do que para aristótelicos, enfim, um tomismo sem filiação em Santo Alberto Magno. Não houve até agora um sacerdote ilustre que se desse ao trabalho de criticar, interpretar e traduzir, do ponto de vista tomista, a filosofia portuguesa, de Pedro Hispano a Leonardo Coimbra. Tal acontecerá, porém, dentro de alguns anos, a julgar por certos sintomas de interesse que não enganam. 

- Sim, tenho lido alguns - bem raros, já sei - artigos de pensadores católicos em que começa a notar-se a referência à filosofia portuguesa, embora sobretudo com carácter histórico...

- Não há dúvida. Mas teria interesse e seria oportuna a publicação de um livro que fosse para hoje o que foi para 1924 a tão discutida obra de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, «A Igreja e o Pensamento Contemporâneo». A apologética católica tem hoje aspectos muito diferentes em todos os países do mundo, mas em Portugal deram-se acontecimentos culturais que obrigam a uma revisão da doutrina. Depois do positivismo de Augusto Comte e dos seus sequazes franceses, divulgou-se entre nós o positivismo de Kant, Feuerbach e Marx, que alguns estudantes julgam ser materialismo dialéctico, e divulgou-se também o positivismo alemão de Husserl, mera teoria da descrição dos efeitos, com as suas consequências existencialistas. Três formas de positivismo em referência às quais teve de reagir a filosofia portuguesa. Haverá um sacerdote português, suficientemente culto, que possa escrever o livro da resposta à inquietação das novas gerações? Um livro que resolva enfim os problemas da nossa apologética? Um livro intitulado «À Igreja Católica pela Filosofia Portuguesa»?...».

«O Testemunho de Álvaro Ribeiro» (in «As Portas do Conhecimento», dispersos escolhidos).


«Quando em 1882 Renan tão sorridentemente anunciava a morte do Cristianismo, as correntes então dominantes do pensamento humano pareciam na verdade justificar as suas fementidas palavras.

Como PILATOS outrora em face de Jesus, que declarava ser a Verdade, o mundo intelectual perguntava cepticamente, agora: "que é a verdade?" - e não a viu, como ele... Quis medir a grandeza da Obra Divina pela sua pequenez - e passou sem a reconhecer.


O positivismo, o cientismo, o diletantismo, o pessimismo e o realismo condenavam a Religião Cristã, em nome da razão humana - substituindo ao culto puríssimo de Cristo o culto de uma coisa impuríssima, o homem!

[...] Não só o Positivismo foi abandonado como sistema filosófico, mas só os cegos poderão deixar de ver a brilhante renovação e reconquista tomista que se vai operando nos meios intelectuais mais modernos. Lovaina, Paris e Roma são centros muito activos da brilhante renascença. A mocidade ardente de JACQUES MARITAIN, a cabeça mais filosófica deste movimento, desde que descobre a filosofia perennis, reconhecendo a absurda contradição intrínseca das filosofias chamadas modernas, consagra-se inteiramente ao saneamento do pensamento contemporâneo, por meio dela. Sendo anti-moderno, com denunciar a degradação intelectual da filosofia moderna, e especialmente da de BERGSON, seu antigo mestre, proclama-se ao mesmo tempo ultra-moderno, e é-o, pela corajosa audácia de um pensamento que fez toda a experiência do pensamento anterior, e lhe mediu... os absurdos. A filosofia de BERGSON foi uma filosofia de étape, que libertou os espíritos da tirania positivista; mas MARITAIN, seguido pelos novos, trabalha eficazmente para consolidar o pensamento actual na filosofia que o próprio BERGSON chamou "natural ao espírito humano".

[...] Acaso se haverá notado que até agora tenho falado excessivamente da França, e pouco de Portugal.

Poderia justificar-me, dizendo que, à semelhança do que no século XVI dizia PEDRO RAMUS da Universidade de Paris, assim a França é a mãe espiritual de todo o orbe, pelo menos o orbe latino. Até as criações mais admiráveis do profundo mas nebuloso génio germânico, ou do positivo génio inglês, ou do místico génio slavo, não entram verdadeiramente na grande circulação do pensamento universal, senão depois de passadas pelo belo e claro espírito francês.

Pelo que diz especialmente respeito a Portugal, já desde há muito que emigrou espiritualmente para a França, não estando eu muito longe de supor que o melhor meio de dizer novidades na nossa terra é falar... em português. EÇA DE QUEIRÓS, o português que até hoje teve o espírito mais gaulês, escreveu um dia que "Portugal era um país traduzido do francês em calão". Sem ferir a nota do paradoxo, poder-se-ia dizer que quem deseje saber o que se passou em Portugal, interrogue a... França.

Foi com a geração de 1870 que "o estúpido século XIX", como brutalmente diz LÉON DAUDET, chegou a Portugal».

D. Manuel Gonçalves Cerejeira («A Igreja e o Pensamento Contemporâneo»).


«A escolástica constitui-se, sem dualismo gnóstico, numa translatio studii que caminha em duas vias: a lectio, ou exegese das doutrinas, que necessariamente induz à disputatio, à altercatio, à arte de argumentar e de demonstrar, que foi a "arte de Raymundo" (Lullo) e de Tomás de Aquino. A arte disputativa, necessária à demonstração da verdade e à refutação dos erros e sofismas, gera as tendências doutrinais, nascidas de oposição tética, raro atenta à busca da coincidentia dos opostos, que foi um ideal de Nicolau de Cusa. A primeira fase da escolástica como que fica preenchida pela polémica dos Universais, no século IX, que, a partir da exegse de Aristóteles, determina as sequências ideológicas futuras, tanto em filosofia, como em ciência, como em teologia, tanto mais que as disputas não visam apenas confronto das três teologias, mas envolvem também uma disputa interna, a que opõe idealistas e realistas, universalistas e nominalistas, não obstante a obediência à regra de ouro de que o philosophus amator Dei est, ou exactamente por causa dessa regra. A multiplicidade de tendências é característica da segunda fase, em que se assumem as quatro grandes escolas: augustinismo, tomismo, escotismo e nominalismo.

Foram estas três últimas escolas que recuperaram Aristóteles da imagem negativa que, dele, legara a patrologia greco-latina, e foram elas as nossas origens porquanto a "escolástica (medieval) representa para nós, portugueses, um período de formação filosófica", e a medievalidade escolástica é "a idade das nossas origens" (A. Ribeiro, in Atlântico, 5, 1947, pág. 59). A escolástica lusitana participou de forma activa e determinante na doutrinação da filosofia da cristandade medieval. Paulo Orósio serviu a lectio da dedução providencialista até quase ao fim da primeira escolástica e os escritos de Martinho de Dume entraram em lições gerais do magistério, por vezes atribuídos a Séneca. A escola franciscana vê-se ilustrada com Santo António de Lisboa, enquanto Fr. Paio de Coimbra ilustra a escola dominicana. Pedro Hispano, com seu platonismo avicenizante, é o mestre das Sumas Logicais cuja leitura foi obrigatória nas escolas até meados do século XVI, por ele se obtendo iniciação na lógica. Álvaro Pais é modelo do augustianismo, tanto em seu país como lá fora. Um estrangeiro, Tomás Escoto, afirma em Lisboa o averroísmo latino como se gnose fosse. A tendência escotista acha exemplos europeus em Gomes de Lisboa e André do Prado. A ética senequizante serve a maioria dos mestres, incluindo os laicais, como D. Duarte e D. Pedro. O nominalismo é porventura menos relevante, ainda que se proponha nos escritos de Pedro Margalho (Escólios em ambas as Lógicas, 1520. Tra. port. de M. P. de Meneses, 1965) que mitiga o nominalismo dos precursores de Descartes como sejam Gomes Pereira e Francisco Sanches. O tomismo foi, nesta primeira escolástica, menos substancial do que seria depois, sem embargo de a lição tomista ser ouvida desde meados do século XIII na escola dominicana de Santarém, e desde cerca de 1270, em Alcobaça, cujos alunos iam a Paris escutar o mestre.

Pedro Hispano


As polémicas internas, a especialização científica com a tónica da separação do trívio e do quadrívio (assim se introduzindo a distinção entre ciências morais e ciências naturais); o empirismo dos Descobrimentos, que privilegiou uma razão indutivo-experimental e rectificante das deduções a priori, se bem que assentes no critério silogístico; o ideal humanista, que preconiza a abertura ao relativismo teológico e ao interculturalismo; e, acima de tudo, a reforma luterana e a assunção da nações germanas à ilustração; determinam, em conjunto, a decadência da primeira escolástica, cujo património se sujeita à corrosão que deriva, não da filosofia, mas dos acidentes e conjunturas sociais. Todavia, do mesmo passo que os factores corrosivos prevalecem, há motivações renovacionistas que progridem, e que vão dar como fruto a Segunda Escolástica.

A Segunda Escolástica é a escolástica medieval renovada segundo os critérios dos novos tempos, e preparada para uma controvérsia com as novas correntes de pensamento. O cânone medieval reveste-se das aquisições modernas e eis a nova escolástica. Os factores de ascensão, embora dispersivos, são unificáveis: a dialéctica revaloriza-se como arte primacial na Europa católica e, recuperando a lição antiga, Belchior Beleago e Diogo de Contreiras tentam revalidar o coração mental do pensamento antigo; há uma palingénese do aristotelismo, apesar do ascenso do platonismo e da filosofia pré-platónica, palingénese essa que questiona Aristóteles segundo o método humanista, conforme ao modo do aristotelismo de António de Gouveia; o tomismo, face à heterodoxia reformista, advém aparelho disputativo de primeira grandeza, revelando uma flexível mas autoral funcionalidade; contra o vernaculismo filosófico da Reforma, valoriza-se a iniciação latina; o Concílio de Trento determina as políticas culturais da Contra-Reforma: criação dos seminários diocesanos, novos institutos religiosos (Companhia de Jesus), reforma do Santo Ofício, aprofundamento das fontes doutrinais da Escritura, da Tradição e do Magistério. A Hispânia soergue-se a baluarte geográfico da Contra-Reforma em todo o mundo: pela disputa anti-reformista na Europa, pela missionação no resto do mundo. É um século de ouro que se inicia (1540-1640) e que começará a ser o da fundação ou renovação das escolas. O Colégio das Artes é fundado em 1547 num meio universitário onde, desde 1540, já tinham sido criados vários colégios universitários das ordens religiosas. Os jesuítas tomam conta do Colégio das Artes (1555) e a breve trecho o esquema topográfico da Segunda Escolástica está definido: Salamanca, Alcalá, Coimbra, Évora. De 1540 a 1640 é um tempo de ascensão, de 1640 em diante é um tempo de enfraquecimento. O episódio mais considerável é o Curso Conimbricense que recapitula as grandes teses da primeira escolástica: a filosofia não reside na vontade mas na inteligência; ela é o amor da sabedoria; ciência das cousas humanas e divinas, visa a contemplação da verdade olhando as coisas como as coisas são. Próprias da nova escolástica são duas sínteses: em filosofia, a síntese aristotélica que, modelada por Pedro da Fonseca e pelos Conimbricenses, como que esgota a lógica formal de Aristóteles; em teologia, a síntese tomista, já segundo o rigor literalista dos dominicanos, levado a um alto momento de síntese por António de Sena e por João de Santo Tomás, já segundo a síntese dos jesuítas, desde Fonseca a Suárez e a Molina. Sem embargo, a estrutura das sínteses concede espaços de ambientação eficaz, tanto ao platonismo renascentista, como ao augustinismo, como ao avicenismo e ao empirismo, apesar de notória falta de contacto entre as ciências especulativas e as ciências experimentais no plano da natureza. Há, porém, certa mutação externa da cultura em acto que a escolástica suscitou, mas que não acompanhou através de magistral influência. Convém distinguir: a escolástica manteve a essência do saber filosófico, mas não respondeu em tempo oportuno ao processo de cisões que, dela derivado, se concluiu fora dela e, algumas vezes, contra ela. O método filosófico escolástico não se transformou em erro dentro da escolástica, mas a dialéctica do saber, já apontada por Aristóteles, dividida entre ciência e opinião, levou ao maior avaliamento da opinião e a um como que juízo de que também a opinião é ciência, quando a ciência está para além da opinião. Supunha-se, na emergência, que todo o filósofo cristão deve aderir a uma seita (Melgaço, Scotus Aristotelicus, II, pág. 44), sendo, a escolástica peripatética, não mais do que uma seita, a par do gassendismo, do cartesianismo, do newtonismo, do ecletismo e do sincretismo, de todas as opiniões ou doxologias recentiores, esquecida ou posta de parte a regra de ouro da ancilaridade transracional da filosofia, e a norma de que esta procede por dedução lógica. A falta de actualização quanto a uma epistemologia das ciências é uma das causas que afecta o prestígio da escolástica. Além disso, o método escolástico é menos vulgar do que a exposição dos filósofos modernos que, assim, devém mais perceptível pelo poder político. A importação das ideologias recentiores, a incapacidade de actualização do Curso Conimbricense (Francisco Soares e António Cordeiro ainda tentaram a reforma, mas os ventos da história sopravam contra), a ascensão do iluminismo, destruíram a influência da escolástica, depois de ela ter fecundado o pensamento moderno, como se mostra nas obras de Descartes, de Leibniz e de Wolffio. Considera-se que a reforma pombalina dos estudos, coetânea da expulsão da Companhia de Jesus marca, entre 1758 e 1773, o fim da Segunda Escolástica. Erradicada a escolástica jesuítica, Pombal deu aos franciscanos, através de Fr. Manuel do Cenáculo, as faculdades de reforma dos estudos, pelo que, em tempo de Cenáculo (fal. 1814) há uma revivescência da escolástica franciscana e dos seus valores, o escotismo e o lulismo, emparceirados com uma adesão formal às filosofias modernas. Em boa verdade, a escolástica, afecta à mendicância, só termina em 1834, quando as ordens religiosas são expulsas. De um modo ou de outro, o peripatetismo sobreviveu nas religiões às quais o pombalismo concedeu licença de ficar, e que ficaram, até 1834. O fenómeno a que, a partir daí, se assiste é o da tentativa de instauração de uma escolástica nova, orientada pela política de Estado, decidida a influenciar a sociedade mediante o ensino. A essa nova escolástica três caracteres a definem: laicidade, eclectismo (que se dissolve na constante implantação de compêndios expositivos) e carência de um corpo axiológico prévio, contrariamente ao que ocorre na escolástica propriamente dita. Considere-se, em todo o caso, que o abandono da tradição escolástica equivale à decadência da filosofia.

A sequela decadentista afectou o magistério filosófico em todas as escolas. No último quartel do século XVIII assume vitalidade um movimento de renovação, a Neo-escolástica, que é definível como um regresso crítico à tradição pela leitura da filosofia e dos métodos à luz dos modernos, segundo o critério das escolas, o tomismo, o escotismo, o suarezismo, conforme as vinculações dos institutos religiosos, e sobretudo, já dos jesuítas exilados, já dos dominicanos de obediência tomista. O movimento evita o encarecimento pouco crítico da filosofia clássica e procura a plena informação no conhecimento científico, natural, psicológico e sociológico; de igual modo evitando o encerramento no sistema a favor de uma permanente análise crítica, por forma a concluir pelas coincidências e pela interacção da tradição e da evolução. Depois de uma fase de elaboração, o movimento vê-se oficializado pela encíclica Aeterni Patris (1879) a partir de cuja doutrina a neo-escolástica atinge uma dinâmica de radicação expansiva, embora o tomismo fosse privilegiado naquele documento. O neotomismo assume corpo em centros como Coimbra (Tiago Sinibaldi) e Braga (Martins Capela) ainda no século XIX. Há uma fractura de sequência entre 1910 e cerca de 1930, apesar do aparecimento de autores isolados. A criação da Faculdade de Filosofia (Braga, 1947) e do Centro de Estudos Escolásticos (Lisboa, 1950) ajuda a desenvolver novas sequências de tipo colegial. O neotomismo acha expressão em Manuel Correia de Barros, em pensadores dominicanos (Francisco Rendeiro), em professores jesuítas, já matriciados a uma visão existencial, já orientados para a exegese fenomenológica. O neo-escotismo tem corpo no pensamento da escola franciscana, mediante autores como Ilídio de Sousa Ribeiro, L. Cerqueira Gonçalves e Manuel Barbosa da Costa Freitas. Do augustinismo é típico o pensamento de Arnaldo Miranda Barbosa e de A. Ambrósio de Pina, havendo uma tendência augustinizante no âmbito da Faculdade de Teologia».

Pinharanda Gomes («Escolástica», in «Dicionário de Filosofia Portuguesa»).








«[...] entre todos os doutores escolásticos brilha, como astro fulgurante, e como príncipe e mestre de todos, Tomás de Aquino, o qual como observa o Cardeal Caetano, "por ter venerado profundamente os santos doutores que o precederam, herdou, de certo modo, a inteligência de todos". Tomás coligiu suas doutrinas, como membros dispersos de um mesmo corpo; reuniu-as, classificou-as com admirável ordem, e de tal modo as enriqueceu, que tem sido considerado, com muita razão, como especial defensor e honra da Igreja. De espírito dócil e penetrante, de fácil e segura memória, de perfeita pureza de costumes, levado unicamente pelo amor da verdade, rico em ciência divina e humana, justamente comparado com o sol, aqueceu a terra com a irradiação de suas virtudes, e encheu-as com o resplendor da sua doutrina.

Não há ponto da filosofia que não tratasse com tanta penetração como solidez. As leis do raciocínio, Deus e as substâncias incorpóreas, o homem e as outras criaturas sensíveis, os actos humanos e os seus princípios, são objecto das teses que defende, e nas quais nada falta, nem a abundante colheia de investigações, nem a harmoniosa coordenação das partes nem o excelente método de proceder, nem a solidez dos princípios, nem a força dos argumentos, nem a lucidez do estilo, nem a propriedade da expressão, nem a profundidade e gentileza com que resolve os pontos mais obscuros.

Ainda mais. O doutor angélico buscou as conclusões filosóficas nas razões e princípios das coisas, que têm grandíssima extensão e encerram em seu seio o gérme de quase infinitas verdades, para serem desenvolvidas em tempo oportuno e com abundantíssimo fruto pelo mestre dos tempos posteriores. Empregando o mesmo procedimento na refutação dos erros, o santo doutor chegou ao seguinte resultado: debelou todos os erros dos tempos passados, e subministrou invencíveis armas para dissipar os que haviam de aparecer nos tempos futuros. Além disto, ao mesmo tempo que distingue perfeitamente, como convém, a fé e a razão, une-as ambas pelos vínculos da mútua amizade, conservando a cada uma seus direitos e salvando sua dignidade; de modo que a razão, levada por Tomás até ao zénite humano, não pode elevar-se a maior altura; e a fé não pode esperar que a razão lhe preste mais numerosos e mais valentes argumentos do que aqueles que lhe forneceu Tomás.

Por isso, principalmente nos séculos passados, homens doutíssimos, de grande renome em teologia e filosofia, procurando com incrível empenho as obras de Tomás, se têm consagrado, não só a cultivar sua angélica sabedoria, mas também a compenetrar-se inteiramente dela. É sabido que quase todos os fundadores e legisladores das Ordens religiosas têm imposto aos seus companheiros o estudo e a doutrina de S. Tomás e o cingirem-se a ela religiosamente, ordenando que a nenhum deles seja lícito separar-se impunemente, ainda em coisas pequenas, das pegadas deste grande homem.

Para não falarmos da família de S. Domingos, que se gloria de direito próprio de o ter por mestre, os Beneditinos, os Carmelitas, os Augustinianos, a Companhia de Jesus e outras muitas Ordens estão obrigadas a esta lei, como atestam os respectivos estatutos.

É aqui que se levanta jubilosamente o espírito ao pensar nessas celebérrimas academias e escolas, que outrora floresceram na Europa, de Paris, de Salamanca, de Alcalá, de Douai, de Tolosa, de Lovaina, de Pádua, de Bolonha, de Nápoles, e de Coimbra e outras muitas. Ninguém ignora que as glórias destas Academias cresciam de certo modo com o tempo, e que as consultas que se lhes faziam, nos mais importantes negócios, gozaram de grande autoridade em toda a parte. É também sabido que, naqueles grandes asilos da sabedoria humana, Tomás reinava como príncipe em seu próprio império, e que todas as inteligências, tanto dos mestres como dos ouvintes, se curvavam com admirável harmonia ao magistério e autoridade do Doutor angélico.

[...] outra palma parece ter sido reservada a este homem incomparável. Tem sabido granjear dos mesmos inimigos do dogma católico o tributo de suas homenagens, de seus elogios e da sua admiração. Com efeito, é sabido que entre os chefes dos partidos heréticos tem havido alguns que declararam em voz alta que, suprimida a doutrina de S. Tomás de Aquino, se comprometiam a empreender uma luta vantajosa contra todos os Doutores católicos e aniquilar a Igreja. Infundada esperança, mas não infundado testemunho.






Sendo assim, veneráveis irmãos, todas as vezes que olhamos para a bondade, força e inegável utilidade desta disciplina filosófica, tão amada de nossos pais, entendemos que tem sido uma temeridade o não haver continuado em todos os tempos e lugares a render-se-lhe a honra que merece; principalmente tendo a filosofia escolástica em seu favor o largo uso, a opinião dos homens eminentes e, o que é o principal, a aprovação da Igreja.

[...] Finalmente, todas as disciplinas humanas devem esperar grande incremento e prometer-se uma grande defesa desta restauração dos estudos filosóficos que Nós temos proposto. Porque da filosofia, como da sabedoria moderadora, costumam as belas-artes tomar a sã razão e recto método, e beber dela o seu espírito como de fonte comum da vida.

De facto, e por uma constante experiência se prova que as artes liberais têm florescido principalmente quando tem permanecido incólume a honra e o sábio juízo da filosofia; e que têm jazido no desprezo e quase olvidadas, quando a filosofia tem decaído e se tem envolvido em erros e vãs subtilezas. Pelo que, ainda as mesmas ciências físicas que agora são de tanto valor, e que causam singular admiração em toda a parte com tantas ilustres invenções, não só nenhum dano hão-de padecer, causado pelo restabelecimento da filosofia antiga, mas antes receberão muito auxílio. Pois que para o frutuoso exercício e incremento delas não basta só a consideração dos factos e a contemplação da natureza; senão que, quando constam os factos, deve subir-se muito alto e procurar com todo o cuidado reconhecer a natureza das coisas corporais, investigar as leis a que obedecem e os princípios de onde provém a ordem das mesmas, sua unidade no meio da verdade e sua afinidade no meio da diversidade. Para cujas investigações é admirável a força, luz e auxílio que presta a filosofia escolástica, se for ensinada com ilustrada razão.

A este respeito apraz-nos consignar que só com grave injúria se pode atribuir à mesma filosofia o defeito de opor-se ao adiantamento e progresso das ciências naturais; pois que os escolásticos, seguindo o parecer dos Santos Padres, tendo ensinado a cada povo na antropologia, que a inteligência só por meio das coisas sensíveis pode elevar-se ao conhecimento dos seres incorpóreos e imateriais, têm compreendido por si mesmos que nada há mais útil para o filósofo do que investigar atentamente os segredos da natureza, a aplicar-se por largo tempo ao estudo das coisas físicas. Isto mesmo fizeram eles: porque S. Tomás, o bem-aventurado Alberto Magno e outros príncipes da escolástica, não se entregaram à contemplação da filosofia de tal sorte que não dessem também grande atenção ao conhecimento das coisas naturais; antes, nessa ordem de conhecimentos, muitas das suas afirmações, muitos dos seus princípios são aprovados pelos mestres modernos, que reconhecem sua exactidão. Além disto, mesmo neste nosso tempo, muitos e insignes doutores das ciências físicas têm dado público testemunho de que entre as afirmações certas e verdadeiras da física moderna e os princípios filosóficos da escola, não existe realmente contradição alguma. Nós, pois, proclamando que é preciso receber de boa vontade e com reconhecimento tudo o que for sabiamente dito, ou utilmente inventado seja por quem for, vos exortamos, veneráveis irmãos, com todo o encarecimento, a que, para defesa e exaltação da fé católica, para o bem da sociedade e para o adiantamento de todas as ciências, ponhais em vigor e deis a maior extensão possível à preciosa doutrina de S. Tomás. Dizemos doutrina de S. Tomás, porque se se encontrar nos escolásticos alguma questão demasiadamente subtil, alguma afirmação inconsiderada, ou alguma coisa que não estiver em harmonia com as doutrinas experimentadas nos séculos posteriores, ou que seja finalmente destituída de probabilidade, não intentamos de modo algum propô-la para ser imitada pelo nosso século».

S. S. Leão XIII (in Carta Encíclica «Aeterni Patris»).


«A palavra Escolástica evoca, na consciência dos estudantes mal avisados, um processo bárbaro de didáctica, que consiste na leitura de textos sagrados, canonizados ou oficializados, acompanhada ou seguida de comentários que interpretem ou actualizem a doutrina perpétua. O lente examinará a memória e a ortodoxia do estudante por meio de exame, isto é, pela prova oral e pela prova escrita. Desse modo a Escolástica autoritária é uma didáctica adversa ao diálogo socrático e à dialéctica platónica, mas aquela obsta à liberdade do espírito que aspira pela verdade e que a reconhecerá em Deus.

A Escolástica medieval teve, efectivamente, uma origem teológica, bíblica ou livresca, proveniente das antigas "casas de estudo e de oração", que a História nos diz terem surgido nas comunidades judaicas, cristãs e islâmicas. Foi depois da queda do Império Romano, ou durante a Idade Média que os Islamitas invadiram a Penísula Ibérica, e entre eles foram os Árabes os importadores de traduções de muitos livros da literatura, da ciência e da filosofia gregas, alguns dos quais inteiramente desconhecidos dos estudiosos cristãos. Ernesto Renan, no seu célebre livro sobre Averrois, escreve o que merece ser citado para nunca ficar esquecido.

Averroes

"A introdução dos textos árabes nas escolas ocidentais divide a história científica e filosófica da Idade Média em duas épocas completamente distintas. Na primeira, o espírito humano não tem para satisfazer a sua curiosidade mais do que alguns restos do ensinamento dado nas compilações de Marciano Capella, de Beda, de Isidoro, e alguns tratados técnicos, cujo uso frequente salvou do olvido; na segunda é a ciência antiga que volta ao Ocidente, mas agora mais completa, nos comentários árabes ou nas obras originais da filosofia grega a que os romanos haviam preferido os compêndios vulgares" [Ernest Renan, Averroès et l'Averroisme: Essai historique - Paris, 1850, pag. 200].

A Europa cristã teve em Carlos Magno um grande defensor da cultura ocidental, pois deve a esse célebre imperador o estabelecimento parisiense da filosofia escolástica segundo os programas e os métodos do ilustre Alcuíno. A este monge britânico se deve a tripartição das disciplinas escolásticas em gramática, retórica e dialéctica, as quais constituem o grau preparatório, ou propedêutico, dos estudos filosóficos e teológicos. A Escolástica cristã não praticou o estudo da língua grega, deu preferência à língua latina, - a língua dos letrados ou sábios, - e daquela falta resultaram inexactidões, impropriedades e deslizes na nomenclatura filosófica, as quais só seriam corrigidas em edições publicadas depois da Renascença italiana.

Alguns historiadores consideravam a Idade Média como época bárbara de trevas e de obscurantismo. Tal juízo impróprio e excessivo tem sido atenuado pela investigação moderna que exalta os valores da escolástica cristã e da literatura popular. Foi durante a Idade Média que se fundou a nacionalidade portuguesa, e em belas páginas escritas pelo historiador Teófilo Braga está relatado o esforço dos escritores leigos, representativos do povo, pela constituição de uma cultura independente da ortodoxia dos clérigos.

Com a fundação das ordens mendicantes no século XII, Franciscanos e Dominicanos, foi dada ao clero regular a possibilidade de praticar a livre docência em diversas universidades europeias. Bastará uma breve referência à obra apologética de Santo Tomás de Aquino. Ao ilustre doutor da Igreja Católica deve a cultura moderna a separação radical dos domínios próprios da teologia e da filosofia, ou a distinção das duas faculdades gnósicas do conhecimento humano, a fé sobrenatural e a razão natural.

Este princípio de separação nítida entre a lei científica e o dogma religioso, imperante nas Universidades, facilitou o advento do racionalismo iluminista, característico da Idade Moderna. Ele permitiu o desenvolvimento da experimentação numericamente medida, e abriu novos caminhos para a visão mecanista e monista do Universo. Hipótese ousada para estabelecer grandes sistemas filosóficos, segundo os quais a única substância obedece a esquemas mecânicos, visíveis ou invisíveis, mas adequados à representação mental da dedução geométrica.

Ensinou o Santo Doutor que a filosofia culmina na ideia de Deus, a qual pode ser demonstrada, provada, argumentada segundo os processos lógicos da razão humana. Há cinco raciocínios, ou cinco vias, de prova existencial de que do espectáculo do Universo se infere uma inteligência suprema, criadora, reguladora e conservadora, à qual devemos atribuir o santo nome de Deus. Os cinco argumentos clássicos, e outros mais que possam ser apresentados pelos filósofos, constituem os preâmbulos da fé, e devem ter lugar propedêutico na catequese cristã.

Para o autor de A Alegria, a Dor e a Graça o significado da vida humana está no esforço inconsciente para conhecer, amar e servir a Deus. A maioria dos homens ignora essa verdade, ou procede como se tal ignorasse, e tal ignorância se patenteia na idolatria prestada aos valores efémeros com que julgam o indivíduo e a sociedade, a moral e a política, a arte e a técnica. Compete aos filósofos transformar aquela obscura inconsciência em luminosa consciência para que do amor humano se deduza a fraternidade universal.



Leonardo Coimbra



O problema de Deus apresenta-se por várias vezes na obra escrita por Leonardo Coimbra. Ele formula-se na indagação da prova que se torne evidente e luminosa, como o Amor dantesco que move o Sol e, com ele o ser de todas as criaturas. Tal indagação, longe de ser única ou uniforme para todos os espíritos, é variável segundo o carácter, o temperamento e a afectividade dos adolescentes, os quais, por não encontrarem a prova racional ou experiencial que lhes fale à alma, se tornam sujeitos à malícia das inferiores idolatrias.

Leonardo Coimbra elimina sucessivamente os erros das provas consideradas cousistas, admitidas por pessoas que não aprofundaram as doutrinas religiosas, e recorre a uma apologética dependente dos conceitos de infinito, de sublime e de amor. A teologia há-de, porém, ser sujeita ao exame da teodiceia, que, sendo a doutrina da justiça de Deus, exige a conciliação do bem com o mal. Aos adolescentes, que vivem num ambiente que lhes é adverso, difícil, proibido, parece-lhes evidente a prevalência do mal, quando confessam sucessivamente o cepticismo, o pessimismo e o nihilismo, variantes de uma antropologia sem Deus.

Leonardo Coimbra viveu numa época em que a Escolástica, o tomismo e o aristotelismo ainda não haviam sido dignificados pelo resultado das investigações eruditas que os papas Leão XIII e Bento XV haviam aconselhado e promovido entre clérigos e leigos. A Universidade de Coimbra, na medida em que se mostrava continuadora do ensino dos Jesuítas, expulsos de Portugal em 1759, era tida como reaccionária contra o positivismo de Teófilo Braga e dos seus continuadores. O espírito anti-clerical dos políticos monárquicos e republicanos fomentava um ateísmo que descia dos jornalistas até às massas populares.

A filosofia portuguesa decaiu profundamente ao afastar-se da escolástica e do aristotelismo, tradicionais no país. O Marquês de Pombal, procedendo como quem sabe o que não quer enquanto ignora o que quer, considerava Aristóteles como um filósofo abominável, indigno de ser mencionado nos compêndios escolares, e até mandou cancelar, censurar ou suprimir as referências que eram feitas ao Estagirita na tradução portuguesa do tratado de lógica de António Genovesi. Não prescreveu, porém, qual o sistema filosófico que deveria ser adoptado no ensino universitário, porque o espírito do reformador estava apenas preocupado com o ensino politécnico, quer dizer, da ciência e da tecnologia, enfim, da habilitação sindical.

A decadência dos estudos filosóficos no período do liberalismo religioso, político e económico que sucedeu ao "reinado" do Marquês de Pombal, explica perfeitamente que os estudiosos mais sérios vissem no sistema de Augusto Comte um plano aceitável para a reforma da educação portuguesa. A tal apostolado se dedicou Teófilo Braga, que tendo sido primeiramente atraído por Hegel e Vico, assimilou, ensinou e divulgou o sistema positivista, logo que para tal obteve cadeira no Curso Superior de Letras de Lisboa (1872). Entendia o ilustre professor que a reforma filosófica deve preceder a reforma política, já que tal era a motivação do Partido Republicano Português, mas os revolucionários impacientes e apressados desrespeitaram a ordem normal, impuseram ao País instituições determinadas pela fraseologia mitológica e metafísica, e precipitaram os acontecimentos para o abismo retrógrado que tem sido julgado pelos historiadores esclarecidos.

A filosofia portuguesa, disciplinada durante quatro séculos pelos textos de Aristóteles, traduzidos em latim segundo os comentários de Santo Tomás, não poderia crescer, florescer e frutificar perante a literatura romântica e realista do liberalismo religioso, político e económico. A Universidade não aceitou a lição de Jorge Hegel ou de Augusto Comte, dois escolásticos, na construção da enciclopédia das ciências filosóficas. O século XIX foi, por isso, um século de decadência nos estudos liceais e universitários, e caracterizado por reduzida produção de escritos originais de estudos especulativos.

Em 1868, quando publicou a História da Filosofia em Portugal, Lopes Praça, então estudante de jurisprudência, apreciava com desgosto o atraso em que se encontrava o ensino oficial do nosso país. A reflexão do moço estudioso sobre a filosofia jurídica e a filosofia política dos publicistas portugueses permitiu-lhe augurar um período de confiança benévola no futuro da cultura portuguesa. Merecem transcrição alguns trechos desse notável documento histórico.



"Ainda não se criou entre nós uma Filosofia Nacional Característica. Uma das vitórias alcançadas neste terceiro período é a preferência do português ao latim para escrever em matérias filosóficas. A vulgarização e o radicamento da Filosofia Racional entre nós depende muito desta conquista. Se muitos dos nossos Reformadores escreveram ou desejaram que se escrevesse em latim, era só para as Academias e para os sábios; mas amavam a instrução e procuravam pôr a Filosofia ao alcance de todos.

O que falta é uma escola superior junto da Universidade onde a Filosofia seja ensinada em toda a sua altura, a fim de os estudantes subirem devidamente preparados para as diversas faculdades que se destinarem. Este estabelecimento auxiliaria muitíssimo as escolas de instrução secundária e contribuiria para os progressos e radicamento da Filosofia Racional na nossa terra.

Mas admitindo já que nós possamos chegar um dia a imprimir nas Ciências Filosóficas o selo da nova individualidade, é de crer que a Filosofia que houvermos de nos apropriar não seja a idealista. Porque, posto que até hoje haja preponderado nas nossas escolas uma Filosofia imposta e não livremente escolhida, é certo que o génio português não propende para as abstracções aturadas do Idealismo, nem possui suficiente energia para as demoradas generalizações metafísicas de uma Filosofia toda espiritualista. Que um ou outro espírito o consiga, facilmente o acreditaremos; que a generalidade se eleve até ele, é o que as nossas convicções nos não deixam admitir. E aqueles dos nossos Filósofos que pensarem livremente não controvertem o nosso modo de pensar a este respeito.

Não passe muito embora de uma conjectura o que vamos dizer, estamos persuadidos que, a adoptar-se em Portugal uma escola Filosófica, ou a criar-se, só se generalizará e será portuguesa quando se recomendar pelo senso prático e moderação que deu à Escola Escocesa um lugar eminente na História Geral da Filosofia"».

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado», II).


«Em geral podemos afirmar que a Filosofia que substituiu entre nós a Aristotélico-escolástica, foi a Eclética, embora predominasse no Ecletismo este ou aquele sistema e, designadamente, o sensualismo. Os nossos filósofos não se desembaraçaram facilmente do axioma escolástico: - nihil est in intellectu, quod prius non fuerit in sensu».

Lopes Praça («História da Filosofia em Portugal»).


«Em Portugal, apesar de o consenso geral sobre este assunto (o da existência de uma Filosofia portuguesa) afinar pelo juízo que antes expusemos (negativo), houve um erudito que não se dedignou de empreender uma crónica do pensamento filosófico lusitano, em tempo em que o espírito nacional, saindo do romantismo racionalista e patriótico, enveredava pela senda desdenhosa do cosmopolitismo hipercrítico, bem longe da aproveitada economia com que modernamente se recolhem todos os esforços das velhas gerações (...). Esse cronista, que em pleno realismo ousou afirmar a existência de alguma especulação entre nós, foi o Doutor J. J. Lopes Praça, então ainda estudante na Universidade de Coimbra (...). Lopes Praça deu uma compreensão muito vasta à filosofia, que por vezes se torna sinónimo de instrução pública, não aprofundou a análise dos monumentos e não levou o seu estudo além de Silvestre Pinheiro Ferreira. Mas nem por isso deixa de ser um pioneiro muito para encomiar».

Fidelino de Figueiredo («Estudos de Literatura», 4.ª série).


«Aquela filosofia que hoje se ensina nas escolas com a designação de "filosofia moderna", caracteriza-a Hegel por "abandonar totalmente o domínio da teologia filosofante" e constituir "o ponto de partida daquilo  que os franceses chamam as ciências exactas". O que lhe é essencial, o primado da vontade, recebe-o todavia a filosofia moderna da teologia escolástica. Por isso dizemos que só aparentemente ela representa uma ruptura com a teologia, filosofante ou não, e antes a prolonga dando-lhe, precisamente no abandono da expressão teológica e na construção das ciências exactas, as condições para um triunfo que, há quatro séculos indiscutido, hoje podemos ver ter sido, e estar sendo, ilusório.

Tal como é entendida escolarmente, a filosofia moderna teve o seu primeiro pensador em Descartes e o último em Hegel. "Herói do pensamento" - chama Hegel a Descartes; e acrescenta: "Jamais se poderá insistir bastante nem com suficiente amplitude expor a acção exercida por este homem sobre o seu tempo e sobre o desenvolvimento da filosofia em geral"; "com ele, podemos enfim sentirmo-nos em casa, como o mareante que grita depois de uma longa e temorosa viagem por turbulentos mares: Terra!"



Num trecho do seu Discurso do Método, enuncia Descartes aquilo a que deve dedicar-se a filosofia:

"... em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, pode encontrar-se uma outra, prática, que, conhecendo o poder e as acções do fogo, da água, do ar, dos céus e de todos os corpos que nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres dos nossos artesãos, de igual modo os poderíamos utilizar em tudo aquilo para que servem, tornando-nos assim como que donos e senhores da natureza".

Tão significativo texto, o mais significativo quanto aos propósitos da filosofia moderna, abre com o repúdio dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, e certo tom desdenhoso da expressão pressupõe que já então ela se podia dar por repudiada. Essa filosofia é a escolástica, de que será portanto o contrário essa outra, prática, que Descartes preconiza. Na clara segurança do texto não aflora a mínima suspeita de que a filosofia prática venha, não substituir, mas prolongar a especulativa ou escolástica. Assim se forma a imagem de ruptura que, da sua época e do seu pensamento, Descartes transmite: aí, o futuro se dissocia e libertará do passado. Não se trata de uma mesma filosofia que terá tido a primeira fase na escolástica e a segunda, dela complementar, no pensamento chamado moderno. Aquele todo que, fundado no primado da vontade, nós vimos ter reunido a patrística agostiniana, a escolástica medieval e o pensamento científico e ao qual se adunava a designação de filosofia moderna ou até, numa sugestão de mais verídico rigor, a de filosofia nórdica, aqui surge decididamente negado. Uma ruptura se declara.

Quem parece ter seguramente sabido que de ruptura se não tratava, terão sido os pensadores meridionais: os ibéricos da neo-escolástica, os aristotélicos conimbricenses, Pedro da Fonseca. Também Pedro da Fonseca enaltece o princípio da liberdade e faz ceder o teocentrismo escolástico perante o antropocentrismo renascentista; mas ainda polemiza contra o nominalismo e o escotismo e, sobretudo, acentua o carácter transcendente da criação. Assim participa, por um lado, na nova fase humanista da filosofia moderna enquanto, por outro lado, procura preservar a possibilidade de conciliação com a filosofia antiga, possibilidade comprometida no escotismo e, em especial, na evanescência do que há de essencial e perene, se não eterno, na natureza quando reduzida, mediante a ideia de criação sem garantia transcendente, a formas de existência efémeras e acidentais. Ora a neo-escolástica de Pedro da Fonseca é que é, propriamente, essa filosofia especulativa que se ensina nas escolas [Desde o século XIII até ao século XVI, o livro de ensino da lógica, ou arte de pensar, utilizado na generalidade das escolas da Europa foram as Sumas de Pedro Hispano, só substituídas, a partir do século XVI, pelas Institutiones Dialecticae, de Pedro da Fonseca, que, no tempo de Kant, ainda era o livro seguido no ensino da filosofia]».

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).


«Vai sendo afirmado, dentro das instituições que renovam o cultivo da filosofia escolástica, algum espírito de independência na interpretação do tomismo, que tende a deixar de ser positivista para ser existencialista, interpretação distante da verdade aristotélica, mais fiel às tradições culturais do povo português. Do ponto de vista filosófico mais nos interessa o regresso a Aristóteles do que à consequente interpretação da obra de S. Tomás de Aquino. Em 1960 já é possível reler a encíclica de 1950 sem receio de que ela afecte a pluralidade e a liberdade dos modos nacionais de filosofar.

A tendência para fazer do tomismo, e de uma só escola tomista, ou de uma só interpretação do tomismo, a filosofia católica, tem ido sempre esbarrar com os ditames da experiência e do bom senso. Étienne Gilson, em um dos seus mais divulgados livros, não deixa de remeter irónicas censuras àqueles escritores católicos, para os quais:

"...Idade Média quer dizer escolástica, e escolástica significa verdade, eterna filosofia, delimitação rigorosa de um domínio dentro do qual tudo é verdade, fora do qual tudo é erro. Nestas condições, os grandes sistemas escolásticos serão expostos de modo tal que pareçam conter a solução antecipada de todos os problemas filosóficos e a refutação de todos os erros. Assim nos surgem essas exposições da doutrina tomista onde vemos um S. Tomás refutar antes de tempo os erros de Locke, Kant, Spencer e Bergson".

Verificando, porém, que na ordem apostólica é indispensável conciliar a verdade una com a expressão múltipla para que a doutrina flexível se adapte às circunstâncias e às oportunidades, visto que também na ordem do Mundo não deixam de ser o espaço e o tempo, factores de afastamento, diferenciação e diversidade, foi pelo Magistério Eclesiástico sendo consentida melhor interpretação da filosofia escolástica. Exigir a obediência de uma fidelidade literal aos escritos de S. Tomás seria exigência contraditória, porque o próprio Doutor Angélico nunca foi homem de um só livro (unius libri), antes procurava com erudição em vários autores, comentadores, compiladores e escritores a solução preferida de cada problema determinado, não deixando de invocar também a divina assistência do Espírito Santo. Admitiu o Magistério Eclesiástico que normalmente se eliminasse o que na obra de S. Tomás existe de doutrina contrária à que tenha sido definida pela Igreja na posteridade dos séculos, mas além disso aconselhou a incorporação na filosofia escolástica de todos os resultados de que a cultura vem beneficiando desde o século XIII ao nosso tempo.

Consequentemente, aquelas ordens religiosas que, durante séculos, seguiram tendências teológicas e filosóficas que divergiam do método, da doutrina e dos princípios de S. Tomás se viram obrigadas a solicitar do Magistério Eclesiástico uma margem de liberdade indispensável à sua específica missão apologética e apostólica.






É notável, neste caso, o exemplo da Ordem dos Frades Menores não só porque durante muitos séculos preferiu o ensinamento de S. Boaventura ao de S. Tomás de Aquino, mas também porque foi dentro dela que surgiu a obra de Duns Escoto, o qual remodelou profundamente a filosofia escolástica. As constituições gerais da Ordem dos Frades Menores prescreviam, com maior ou menor força, a obrigação de seguir no ensino filosófico e teológico a doutrina do Doutor Subtil. Estes documentos eram submetidos à aprovação do Papa, sendo de notar o breve Ad Eximius de 31 de Outubro de 1634, pelo qual Urbano VIII aprovou até ordenações mais rigorosas do Capítulo de Toledo.

Formaram-se também dentro da escolástica albertino-tomista escolas que se designam ou tendem a designar-se pelos respectivos centros universitários; entre nós tornaram-se célebres os conimbricenses, os eborenses e os bracarenses. Na escolástica do século vinte também se distinguem os centros de Lovaina, de Milão e de Genebra, ao lado de outros menos importantes como o Instituto Católico de Paris. A aceitação do tomismo há-de ser imediatamente seguida de pensamento que o interprete, mas de muitas interpretações surgem necessariamente as divergências e as deturpações. Convém, a propósito, dizer algumas palavras sobre a notável discussão havida em torno das 24 teses tomistas, aprovadas pela Sagrada Congregação dos Estudos em 27 de Julho de 1914.

Reconduzir o tomismo a vinte e quatro teses, quer figurem ou não ao longo da extensa obra do Anjo da Escola, pareceu a vários autores como obra arbitrária, de critério difícil de aceitar, e portanto de consequências temerárias. Como entre as teses escolhidas algumas havia que contradiziam ou contrariavam o ensino tradicional das outras ordens escolásticas, logo surgiram reparos dos teólogos e filósofos que seguiam os ensinamentos de Duns Escoto ou de Francisco Suárez. Consultada aquela congregação sobre o alcance doutrinário e disciplinar das referidas teses, foi em 1916 esclarecido que representavam apenas normas directivas para o ensino eclesiástico. Assim se entendeu que não havia razão para excluir do ensino eclesiástico as teses contrárias de Escoto ou de Suárez, que costumavam ser ensinadas respectivamente pela Ordem dos Frades Menores e pela Companhia de Jesus. O Papa Bento XV, em carta datada de 19 de Março de 1917 e dirigida ao padre Ledochowski, Geral da Companhia de Jesus, significou uma quebra do rigorismo tomista.

Também a encíclica Studiorum ducem, do Papa Pio XI, inclui textos que permitem uma interpretação mais liberal da filosofia escolástica. O ponto mais litigioso das 24 teses tomistas estava na distinção entre essência e existência, considerado por alguns teólogos o fundamento da filosofia cristã. As discussões escolásticas sobre tal distinção, que segundo os intérpretes pode ser lógica, modal ou ôntica, influíram certamente na efervescência de doutrinas que mais tarde seriam agrupadas no capítulo da filosofia existentiva, existencial ou existencialista.

Na encíclica Humani Generis foram especialmente mencionados o idealismo, o imanentismo, o pragmatismo, o evolucionismo e o existencialismo. Sabido é, porém, que a Igreja Católica não condena palavras, mas apenas teses ou proposições que se verifique serem contrárias à fé ou à moral. A prova está na liberdade concedida ao existencialismo cristão que os fiéis continuam a discutir. A condenação incide, pois, em determinadas teses que se encontram implícitas nos sistemas filosóficos designados pelas palavras mencionadas. Afinal de contas verifica-se serem teses condenadas pelos concílios ou por decisões eclesiásticas, aquelas que abrem o caminho que vai das heterodoxias para as heresias. A cosmologia escolástica parece ameaçada por aquele tipo de hipótese que nega a realidade das espécies substanciais e que consequentemente reduz ou anula as virtudes dos sacramentos, mediante os quais se exerce a acção transítica do mundo visível para o mundo invisível, quer dizer, a mais alta missão do sacerdócio e, consequentemente, a missão da Igreja. Efectivamente só a física aristotélica, perseguida ou repelida pela tecnologia moderna, permite atribuir à distinção entre a natureza e a graça aquele valor indispensável para a acção religiosa. Assim, a filosofia será uma arte, nunca uma ciência, e muito menos um sistema. A gnoseologia activista de um Maurice Blondel torna-se atraente a quantos duvidam daquele preceito parmenidiano segundo o qual a verdade surge na adequação do pensar ao ser. O ser, conforme ensina Aristóteles, é susceptível de acepções, categorias e modos que possibilitam a mobilidade do pensamento, e que portanto repugnam à sua quietação. Os sistemas condenados pela Humani Generis permitiam dúvidas sobre a aptidão da inteligência para atingir a verdade una, certa e imutável, enquanto a filosofia escolástica, se apresenta como um método seguro de exposição das verdades atingidas, ou um sistema coerente de todas as teses compostas para harmonizar a razão com a fé.

Tão insistente referência a um pensador do século XIII, considerado assim no cume, na cúpula ou no cabo da Escolástica, é facto que, ao ser historicamente explicado, tem dado motivo a diversas interpretações. A proeminência atribuída à obra e à doutrina de S. Tomás, considerado doutor comum da Igreja, tinha em vista garantir a perenidade de certos princípios da metafísica - os princípios de razão suficiente, de causalidade, de finalidade -, senão a unidade doutrinal da própria filosofia. Esta é a explicação mais frequentemente dada de se recomendar o regresso à escolástica na formação cultural dos futuros sacerdotes.

Abadia de Monte Cassino onde estudou Tomás de Aquino.


Dir-se-ia que a escolástica medieval, elaborada em latim, língua do culto e da cultura, subordinada à razão, ainda precavê como nenhuma outra os fiéis de incorrerem no perigo dos erros filosóficos e teológicos que ameaçam o cristianismo. É, aliás, perfeitamente compreensível e admissível que o Magistério Eclesiástico não quebre o zelo de avisar os fiéis quanto aos erros dos sistemas filosóficos, e assim tem procedido ao longo dos séculos, como se pode ler nos respectivos compêndios de história. A sucessão de tantos e tão variados sistemas de heterodoxia não impressionará, porém, o estudioso que souber qual é a causa da ilusão, ou do prestígio, dos caleidoscópios. Cada novo sistema filosófico, garantido pelo talento literário do seu autor, apresenta-se como agrupamento ou composição de novos argumentos em torno de um reduzido número de teses antiquadas. Compete à crítica examinar a validade desses argumentos e discernir as teses que ressurgem com uma tenacidade explicável pela condição humana. Enquanto houver quatro tipos humanos, ou temperamentos, classificáveis pela caracterologia, haverá também um reduzido mas irredutível número de atitudes ou reacções para com a verdade. A classificação e a esquematização facilitam o discernimento. Assim, no que do ponto de vista escolástico mais importa conhecer, convém atender a que os sistemas variam pela actualização dos argumentos às circunstâncias e às oportunidades, mas classificam-se essencialmente em torno dos problemas singulares das relações da razão com a fé, da filosofia com a teologia e do Estado com a Igreja.

Seria piedosa mentira, mas por isso mesmo seria faltar à verdade, dizer-se que nunca houve heresias e heterodoxias no território que teve outrora o nome de Portugal. Omitir o nome de hereges célebres e de célebres heresiarcas, para manter a ilusão de que o povo português foi sempre e totalmente fidelíssimo à Igreja Católica, seria proceder ao contrário do que a história exige quando se propõe explicar as razões implícitas nos eventos. Merece, por isso, perpétua gratidão dos estudiosos admirados esse célebre monumento de erudição que é a Historia de los Heterodoxos Españoles, escrito por Marcelino Menendez y Pelayo. A religiosidade dos povos ibéricos é minuciosamente analisada nesse livro que inclui documentação útil sobre a heterodoxia. Trabalho análogo, mas de resultados dispersos por publicações efémeras, realizou-o Sampaio Bruno quando pretendeu demonstrar que a convergência das tradições hebraica, cristã e islâmica se configura no culto do Espírito Santo».

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).


«Para propor ao pensamento a finalidade de dominar a natureza, supõe-se a sujeição do pensamento à vontade; para tornar possível essa finalidade, supõe-se a natureza como fabulosa. Como obter, então, a segurança de que tal pensamento não é mais do que artificioso e arbitrário? Onde fundar aquela necessidade que se apresenta como o que é característico da ciência moderna, de suas leis e suas certezas? Como não alargar à ciência a mesma irrealidade atribuída à natureza de que ela é o conhecimento?

Lançada já a caminho, apresentando-se já, à imagem da teologia medieval, como um saber feito e dado, agora não se revelando nos textos sagrados, nos eventos simbólicos e na religião em geral, mas contendo-se nas forças que se manifestam através das fugazes aparições que são "os corpos que nos rodeiam", a ciência moderna faz da filosofia uma ancilla scientiae como a escolástica a fizera uma ancilla theologiae, e encarrega-a da tarefa de a libertar do antagonismo que lhe está na origem. Os filósofos nórdicos aceitam docilmente o encargo e, fiéis à tradição escolástica, "inibidos - como de Hegel dirá Heidegger - de considerar a verdade e o seu reino", não lhes custa reconhecer que a expressão do saber dado e feito transitara da teologia para a ciência, e fazem consistir a filosofia no estudo das condições e processos pelos quais o conhecimento recebe, agora dada na ciência, a verdade que fora dada na religião. Substancialmente, praticamente, o encargo da filosofia foi o de assegurar que à irrealidade do mundo sensível corresponde a realidade do seu conhecimento científico, e pode dizer-se que todo o desenvolvimento da filosofia moderna consistiu em determinar a radical distinção entre pensamento e natureza para situar no pensamento toda a origem do conhecimento. Em oposição à natureza, só o pensamento será real, tese que levou a "filosofia prática" a, simultânea e paradoxalmente, se fazer, por um lado, ciência exacta e a suscitar, por outro lado, uma complementar "filosofia especulativa" que, apresente-se ou recuse-se como tal, implica o mais extreme, e também o mais abstracto, espiritualismo.

Num primeiro momento, destituiu-se a sensação de qualquer virtualidade cognitiva. Para os antigos, constituía a sensação, por mais fugaz e instante, uma apreensão daquilo que de permanente e real pode conter o que é sentido (ao avistar Callias, dizia Aristóteles, imediatamente conheço o homem que há em Callias), e a sensação era portanto o início de um processo que conduzia o pensamento até ao universal. Para os modernos, a sensação é, segundo a sugestiva expressão de Gabriel Marcel, um "paraíso perdido": o que na sensação se dá, imediatamente, com a sensação, se perde. Assim começam os modernos por negar que o conhecimento do mundo sensível tenha origem nesse mesmo mundo sensível, isto é, que a realidade do pensamento dependa da irrealidade da natureza. Os corpos, aparições e fenómenos naturais não estão em si mesmos, mas nas representações que adquirem nas formas da sensitividade e nas relações entre elas que lhes são dadas pelas categorias do intelecto. Sistematizada pela crítica de Kant, esta doutrina já se encontra na escolástica, sobretudo em Duns Escoto. Mas o seu fundamento lógico e ontológico foi-lhe dado por Descartes que, também neste ponto, se ergue na torre de vigia dos mareantes onde Hegel o imaginou a gritar "Terra!" No mesmo Discurso do Método onde preconiza a ciência moderna, estabelece ele a dependência em que a afirmação do ser está do pensamento: só se pode dizer que é o que é pensado. E ao fechar o círculo iniciado por Descartes, já identificado o conhecimento científico com o conhecimento racional, ou já sobreposta a noção escolástica de razão às antigas noções de intelecto, pensamento, inteligência e espírito, Hegel identifica, já não a afirmação do ser, mas o mesmo ser, com a razão, e diz que o racional é real.

No intervalo entre o primeiro e o último dos filósofos nórdicos, a questão da irrealidade do mundo sensível e da realidade do conhecimento vai-se exprimindo em sucessivos graus, ora admitindo-se que o mesmo real se representará simultaneamente na natureza e no pensamento, ora afirmando-se que só o pensamento garantirá o real, ora identificando-se o real com o cognoscível, ora limitando-se o cognoscível ao sensível e remetendo-se o que não cabe na ciência para o silente mundo do ignoto metafísico ou nomenal.




Orlando Vitorino


Sempre, todavia, a ciência moderna vê fugir-lhe a segurança que os filósofos nórdicos se haviam comprometido alcançar-lhe; sempre neles sente latejar aquele espiritualismo extreme que chega a tornar-se patente em algumas explosões do ideísmo inglês e do idealismo alemão; sempre, com o espiritualismo, vê espreitar, vigilante, uma transcendência que ameaça a "filosofia prática" de atribuir realidade à natureza e destituir "os corpos que nos rodeiam" daquela inteira e dócil disponibilidade com que se devem entregar às mãos da ciência. Até em alguns pensadores - certos empiristas ingleses ou aqueles em quem o espiritualismo se reacendeu - aflora e toma corpo a suspeição, não só sobre o valor, mas sobre o sentido do conhecimento científico. E sendo embora inegável que a generalidade dos filósofos nórdicos afirma a realidade do saber próprio da ciência, nenhum deles no entanto nega em definitivo a transcendência. Os pensadores mais rigorosa ou limitadamente científicos, os cientistas em geral, tácita ou declaradamente manifestam por isso suas preferências pelas soluções - primárias embora - que levam a concluir que o pensamento é matéria. Como na matéria se supõe uma evidente e imediata realidade, dizer que o pensamento é matéria imediatamente o assegura como real; e como, por outro lado, se supõe também que a matéria seja o contrário de toda a transcendência, pois o que a transcendência transcende é a matéria, a realidade que a matéria confere ao pensamento radicalmente repudia qualquer modo, suposição ou afirmação da transcendência. A tese da irrealidade do mundo sensível deixará, então, de ser necessária e perde o carácter de condicionante da ciência. Com efeito, se o pensamento, ou a representação de um objecto é real, e dado que um mesmo objecto é susceptível de múltiplas, diversas e até contrárias representações, então já não é preciso afirmar a irrealidade do mundo sensível para que o pensamento disponha indiscriminadamente da natureza, à qual dará as representações mais adequadas aos seus desígnios.

Assim se foi formando um materialismo moderno que se deu por missão autorizar o conhecimento científico a constituir-se tão dono e senhor da natureza que pode levar esse senhorio até à destruição dela, para isso derrotando o obstáculo que a transcendência representa ao atribuir às formas naturais, aos "corpos que nos rodeiam", uma realidade, ou intrínseco ser, que os tornaria, se não intocáveis e sagrados, ao menos indisponíveis».

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).


«Decisivo será saber quais as razões da específica forma que, sob vários matizes, assume a filosofia em Portugal, com suas profundas implicações estéticas e religiosas, sua exclusão tão peculiarmente marcada das exigências cientistas ou positivistas. Por isso bem parece urgente determinar as profundas e não extrínsecas ou convencionais razões por que a filosofia portuguesa se emancipa mais tardia e lentamente da teologia e da dogmática, determinar por que motivo os nossos pensadores ou se detêm subitamente a meio de uma promissora carreira especulativa, ou regressam às mesmas formas de ortodoxia das quais o pensamento se libertara.

Torna-se cada vez mais urgente averiguar se foi, como em geral se julga, por insuficiência, receio ou crédula obstinação que os nossos pensadores, como os da vizinha Espanha, se mantiveram perplexos e até renitentes perante os caminhos da filosofia moderna, ou se, pelo contrário, se aperceberam da unilateralidade, hoje patente, em que na linha cartesiana ou baconiana a filosofia europeia se começara desenvolvendo. Notamos, por um lado, que a história não está por inteiro contada, propendemos, por outro lado, a admitir, e cada vez com mais implacável firmeza, que se a causa da verdadeira filosofia não foi assegurada por uma escolástica de inspiração divina e teológica, ela não é também assegurada pela nova escolástica de inspiração humanística e científica.

A causa da filosofia não é a daquele céu, mas não é também a desta terra. Importa primordialmente aprendê-lo. A partir disso será compreendida e valorizada a filosofia que temos e tivemos».

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).


«A doutrina da cisão atinge não só a teologia, mas também a antropologia. Estando, por várias vezes, figurada no livro Teoria do Ser e da Verdade a posição dos deuses contra os homens, em palavras de subtil ludicidade, seria de esperar que também nele fosse representada a oposição das mulheres aos homens, segundo um jogo antigo que no nosso tempo vai declinando já para a arte e também para o trabalho. Repreensível falta numa fenomenologia da cisão, já que é para todos evidente que da secção genésica emergem os sexos, já que a observação da criança, da tendência para o género, da previsão da hereditariedade merece ser demoradamente considerada no preâmbulo de uma ontologia do amor. Entendido como problema, segredo ou mistério, o amor representa sempre a sublime virtude criacionista, porque longe de ser a paixão consistente no aprender e no receber vive na acção generosa do dar e do ensinar. A inclusão dos entes racionais nos três grupos naturais dos homens, das mulheres e das crianças, superando a cisão crónica das eras, das épocas e dos séculos, propícia a todos os pensadores de dedução cronológica, paira acima da planificação usada pelos historiadores das religiões, das filosofias e das ciências. A humanização está longe de ser ilusão dos humanistas, porque na consciência humana se espelhou a palavra divina, talvez perdida mas também prometida, e portanto infinita. A parábola cristã não revoga, porque apenas purifica e simplifica, os mitos, os ritos e os símbolos de mais velhas teologias e teogonias».

Álvaro Ribeiro («Decisão e Indecisão na Casa de Portugal»).


«Regra de ouro da "Filosofia Portuguesa" é a de não haver Filosofia sem Teologia, nem Filosofia substante sem Teologia que a justifique».

Pinharanda Gomes («A "Escola Portuense"»).








«Ao ponto de vista do ensino francês se deve aquela opinião corrente, que se apoia na oposição polémica de Descartes a Aristóteles. É uma tradição escolar que substitui a tradição escolástica. A lógica e a metafísica de Aristóteles, princípio e fim de um sistema filosófico, são fundamentalmente criticadas por incompatíveis com o sistema da física moderna; de aí a inverter a posição do problema filosófico, a pedir à física moderna uma lógica e uma metafísica, a fundamentar na epistemologia o novo intelectualismo, vai o passo rápido e fácil do ensino francês.

Os escritores de formação universitária que ultimamente têm abordado, entre nós, assuntos de carácter filosófico, seguem o ensino estrangeiro: manifestam geral concordância em atribuir à matemática e à física um predomínio intelectual que leva à adulteração da lógica e à repulsão da metafísica; mas, assim, acompanham tardiamente um movimento caduco.

E por daquele ponto de vista terem sido julgadas as vicissitudes da filosofia em Portugal, admite-se inadvertidamente que a persistência na silogística escolástica e a resistência passiva ao cartesianismo, longe de parecerem um enigma cuja decifração seria de proveito, dêem pretexto a juízos pessimistas, e até injuriosos, acerca da capacidade especulativa dos portugueses.

Afastados da Europa Central, por situação geográfica e por missão histórica, desatentos à aurora e ao crepúsculo da filosofia "moderna", (da Renascença ao Iluminismo), talvez os portugueses preservassem dessa maneira uma qualidade oculta mas original; assim, o que na linha internacional parece marcha retardatária, talvez possa ser interpretado como fidelidade nobilíssima, se não como astúcia antevisora.

A expressão especulativa do génio manifestado nos Descobrimentos só mais tarde, e de outras fórmulas, poderia surgir. Quando o movimento romântico e o idealismo alemão se reflectiram em Portugal como luar distante, quando uma nova relação entre a cultura e a Natura modificou a direcção da filosofia, já o pensamento português procurou exprimir-se pelos sistemas contrários que do romantismo, por acção ou reacção, se consideram derivados; mas o iluminismo repelia ainda para as zonas infernais qualquer tentativa audaciosa dos filósofos especulativos. O pensamento hodierno, levando mais longe do que o romantismo o estudo dos conceitos de tempo e de vida, verificou a deficiência filosófica da interpretação determinista da lei natural, da hipótese comteana dos três estados, da generalização indevida da doutrina evolucionista, além de outros dogmas afins. Agora, a problemática filosófica, resultada da crítica aos erros dominantes nos três séculos passados, oferece ao espírito português a possibilidade de verificar a compatibilidade do aristotelismo dos coimbrões com o mais elevado e o mais recente voo do pensamento especulativo».

Álvaro Ribeiro («O Problema da Filosofia Portuguesa»).


«O Marquês determinou, em 1758, o encerramento de todas as escolas e de todos os colégios orientados pela Companhia. Em 1759, decreta a expulsão da mesma e a total proibição de exercício do ensino. Por fim, no alvará de 28 de Junho de 1759 lança as bases do novo ensino público, que afastaria o "fastidioso método" dos Jesuítas. Último Reitor do Colégio das Artes, Francisco Taveira (fal. 1770), seguiu para o exílio em Itália; o último professor do curso filosófico, Eleutério de Sousa (fal. 1768 em Ferrada), já não concluíu o curso que iniciara em 1756. O exílio era decretado: a influência dos Conimbricenses proibida. O cânone pombalino é de uma fatal objectividade: "Sou servido abolir e desterrar, não somente da Universidade, mas de todas as escolas públicas e particulares, seculares e regulares de todos os meus reinos e domínios, a Filosofia Escolástica" - leia-se: a filosofia conimbricense. Quem não aceitasse a disposição, seria proibido de aceder ao ensino público, sem apelo. Enfim, confirmando a execução da vontade consular, o Reitor Reformador da Universidade de Coimbra, D. Francisco de Lemos, em carta de 23 de Fevereiro de 1773 para o Marquês de Pombal, garantia o exílio de Aristóteles das "lições de Coimbra". Era o termo de um ciclo de procura (muitas vezes de comodismo e de sedentarismo intelectual) que durara quase duzentos anos. Enfim, num gesto não totalmente esperado, o breve Dominus a Redemptor Noster Jesus Christus, assinado pelo papa Clemente XIV, em 1773, extinguia a Companhia de Jesus, reconstituída em 1814, fora da circunstancialidade que ao nosso tema inere.

Queremos omitir a apologia pombalina em favor das decisões contra os Jesuítas. Limitamo-nos a remeter para livros como a Dedução Cronológica e Analítica (1767) e para o Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra (1772), em que todo o argumentário gira em torno de um mote: que os jesuítas eram sequazes da seita muçulmana, disfarçados de cristãos, para a conquista do Reino. Obnubilado, o método conimbricense entrava na era da ocultação.

Tudo tem a ver com tudo. As dificuldades da filosofia portuguesa continuam vigentes, tal como Álvaro Ribeiro demonstrou no seu polémico, e pouco atendido, O Problema da Filosofia Portuguesa (1943). Aristotélico, Álvaro não aceitava de ânimo leve o aristotelismo conimbricense, que achava impuro, uma vez ser assumido numa proporção eclesial, e porque, segundo Álvaro Ribeiro, a filosofia tinha de se dispôr a uma equidistância do Estado e da Igreja, para ser livre. A outra tese alvarina concerne ao seguinte: a filosofia é a visão enciclopédica de todas as ciências. Que lhe era dado ver? Que, depois da prova real conimbricense, a filosofia nunca mais voltou a ser apresentada como organon total e circular do saber. Os exercícios filosóficos, tal como dizia Manuel de Góis, são ensaios parcelares. Uns se imergem na ontologia, outros na metafísica, outros na ética, outros na estética, outros na política, outros no direito, outros em ínfimas especialidades. A ciência propriamente física como que se divorciou da filosofia, sendo claro que nem os físicos abundam em filosofia, nem a filosofia abunda em física. Lamentava Álvaro Ribeiro, que demorasse o surgimento do "nosso Aristóteles", isto é, do autor, ou da instituição, - individual ou colegial - que elaborasse o ciclo de todas as ciências à luz dos primeiros princípios. Para que não haja lugar a disputas subjectivas, diremos de um modo simples: a meditação da experiência conimbricense testemunha que subsiste o problema da filosofia portuguesa, que dorme na esperança do seu novo filósofo, tal como a alma, no tratado de Manuel de Góis, anseia por toda a clarividência universal: Deus spes mea, cogita móri».

Pinharanda Gomes («Os Conimbricenses»).







«Na verdade, a ciência da alma comunica admiravelmente com a filosofia primeira, pois por uma certa analogia e semelhança atingimos pelo nosso intelecto as substâncias inteligíveis e livres da matéria, e a mente humana, transformando-se para além de si mesma, é chamada para a natureza divina donde proveio. O que quer que na mente exista de perfeição encontra-se em Deus, fonte de todas as perfeições e nela ainda mais bem conhecida uma vez afastada toda a imperfeição.

Por último, por uma razão comum, a todas as partes da filosofia é oportuna esta meditação sobre a alma, porque a alma participa da razão e da prudência (como afirma Trismegisto no Asclépio), como que Orizon da eternidade e do tempo, do inteligível e do nexo da natureza corpórea e dos limites. Ou, como outros disseram, suma de todo o mundo, pois a natureza intermédia representa as extremas, a superior como imagem, a inferior, como exemplar. Acontece que a doutrina da alma é como um compêndio de ciência das coisas humanas e divinas e prepara-nos para todo um outro conhecimento da verdade. Mostra também o brilhante fruto desta contemplação aquilo que Santo Agostinho afirma, no livro 2 de A Ordem, capítulo 8º: Sem dúvida que há duas questões principais em filosofia; uma acerca da alma, outra acerca de Deus. A primeira, faz com que nos conheçamos a nós mesmos, a outra, que conheçamos a nossa origem. Aquela é-nos mais agradável, esta é mais gloriosa, aquela torna-nos dignos de uma vida feliz, esta torna-nos bem-aventurados».

COMENTÁRIOS DO COLÉGIO CONIMBRICENSE DA COMPANHIA DE JESUS Sobre os três Livros do Tratado Da Alma de Aristóteles Estagirita.


«De facto, se deixarmos de lado, como condição indispensável de progresso espiritual, o que em termos historiográficos se traça e divulga nas instituições universitárias, veremos surgirem novos rumos de investigação já apontados por Álvaro Ribeiro. O mais importante é o de a cultura cristã, não obstante as obras de Porfírio e de Boécio, dever a Pedro Hispano, num período que se poderia dizer anterior à vigência do aristotelismo de S. Tomás e de Santo Alberto Magno, o conhecimento da obra lógica e psicológica do Estagirita. E porque, com razão, "tem sido afirmada a primazia do aristotelismo arábico na Península Ibérica", com a sua tradição esotérica oralmente transmitida, urge prestar a devida atenção ao que realmente distingue a Escolástica portuguesa da Escolástica francesa.

De resto, Pedro Hispano representa a possibilidade de os Portugueses poderem vir a encarar positivamente a influência das três tradições orientais na formação da nossa Nacionalidade. E neste processo, a possibilidade de também poderem vir a compreender como a preponderância do nosso aristotelismo, aliado, por vezes, a formas neoplatónicas, garantiu ao nosso ensino escolástico a superioridade com que se afirmou na história do pensamento europeu. Enfim, um aristotelismo que, presente na Idade Média sob a forma de proposições de origem revelada e sobrenatural, decaiu no racionalismo moderno, nomeadamente quando, em Portugal, "na transição do ensino franciscano para a adopção da síntese albertino-tomista", se deu a nítida separação entre a fé e a razão. Mas isso, caro leitor, fica, por agora, na expectativa de "um novo Cristo cujos milagres sejam argumentos"».

Miguel Bruno Duarte («Noemas de Filosofia Portuguesa»).








O tomismo: uma filosofia do século XIII e da Europa Central



 1 - O tomismo na filosofia do século XIII

A intuição fundamental


Para julgar equitativamente a filosofia de Tomás de Aquino, é preciso situá-la no seu contexto histórico. Ora, a cristandade medieval foi, no século XIII, teatro de uma crise intelectual sem precedentes, provocada pela invasão maciça da filosofia pagã a partir de meados do século XII. O avanço irresistível do aristotelismo no seio das jovens universidades e até nas faculdades de teologia era uma séria ameaça para o pensamento cristão; nas faculdades das artes, cada vez mais emancipadas, o perigo de um neopaganismo não era imaginário. Todos os grandes doutores do século XIII tiveram consciência desta inquietante situação. A intuição pessoal de Tomás de Aquino parece-me ter sido a de compreender que era urgente dotar a cristandade com uma filosofia autêntica, depois de repensar os problemas teológicos à luz deste instrumento racional. Até ao fim do século XII, o mundo cristão tinha vivido sob um regime intelectual teológico: fora das escolas de ciência sagrada, onde se ensinava a doutrina cristã sobre a base dos escritos inspirados (sacra pagina), e de algumas escolas de direito e de medicina não existiam senão escolas de artes liberais, que ofereciam aos jovens uma formação de base destinada a prepará-los para os estudos superiores de teologia, às vezes de direito ou de medicina. À parte a lógica, sétima das artes liberais, a filosofia estava ausente destes programas escolares.

Em resumo, a cristandade não possuía nenhuma filosofia digna deste nome; sob a pressão da literatura nova, corria o risco de adoptar a filosofia pagã de Aristóteles.

Tomás de Aquino lançou-se à obra desde o início da sua carreira professoral (1252). Em alguns anos criou a primeira filosofia verdadeiramente original produzida pela civilização cristã: o tomismo.


As fontes

O termo criar não é aqui tomado em sentido estrito, pois esta filosofia nova não foi construída de cima a baixo a partir de nada. Alimentou-se, pelo contrário, de uma tradição muito larga, e este é o primeiro mérito de São Tomás. A conjuntura histórica era favorável a esta rica achega do passado: o jovem mestre dominicano encontrava-se na confluência de todas as correntes de pensamento vindas da Antiguidade, pagã e cristã, depois da Idade Média, latina, árabe e bizantina: platonismo e aristotelismo, helenismo e arabismo, paganismo e cristianismo, encontram-se pela primeira vez na Universidade de Paris, que é já, por este tempo, a metrópole intelectual da Igreja. Tomás de Aquino soube explorar estas abundantes e variadas fontes: a sua informação é surpreendente e alarga-se a toda a literatura disponível.

A sua fonte principal, em filosofia, é evidentemente Aristóteles, que ele adopta resolutamente como mestre de pensamento: rompendo com as hesitações dos seus contemporâneos, mesmo do seu mestre Alberto de Colónia, faz suas as teses essenciais do aristotelismo e restitui-as à sua pureza primitiva. A sua fidelidade ao Filósofo condu-lo a opor-se muitas vezes a Platão e mesmo a Santo Agostinho (sem o contradizer abertamente), ao iraniano Avicena, ao judeu Avicebron, ao árabe Averróis, ao colega franciscano Boaventura. Os seus numerosos comentários a Aristóteles são inigualáveis obras-primas, pois manifestam ao mesmo tempo uma penetração extraordinária de textos muitas vezes obscuros em razão da sua extrema concisão, uma exegese quase sempre muito fiel, mas ao mesmo tempo uma independência de espírito sem reserva quando julga dever corrigir ou ultrapassar Aristóteles. A sua exegese é por vezes menos fiel porque, quando o sentido de um texto é discutível no seu conteúdo literal, chega a interpretá-lo no sentido mais próximo do pensamento cristão, sem ter em conta posições fundamentais do aristotelismo: é assim que atribui ao Estagirita a doutrina da criação e a doutrina da imortalidade da alma humana individual.

Já nenhum historiador sério vê hoje no tomismo um aristotelismo integral e exclusivo. O aristotelismo autêntico não podia satisfazer nenhum pensador cristão, pois as lacunas da sua metafísica tornavam-no inaceitável para todo e qualquer pensador monoteísta: judeus, cristãos ou muçulmanos, todos recorreram ao platonismo ou ao neoplatonismo para dar uma forma filosófica às verdades religiosas fundamentais. Como eles, Tomás de Aquino professa um aristotelismo neoplatonizante: aproveita do neoplatonismo, da causalidade metafísica, da composição de esse e de essentia em todo o ser criado.

Para ser completo, têm de mencionar-se também as fontes patrísticas e as fontes escolásticas do pensamento de São Tomás, mas, além delas, numerosas fontes secundárias, de ordem filosófica (o estoicismo, por exemplo), literária, jurídica e científica.


A síntese pessoal

Se Tomás de Aquino é largamente tributário das suas fontes pelos materiais que explorou com uma curiosidade insaciável, a síntese filosófica que edificou é profundamente original, e este facto impressionou vivamente os seus contemporâneos, a uns para exaltar o seu génio criador, a outros para denunciar as suas perigosas inovações.






Guilherme de Tocco, confrade de Tomás e seu primeiro biógrafo, é a testemunha eloquente da impressão que o ensino do mestre causava aos seus ouvintes pela sua novidade radical: «Ele levantava novos problemas, tratava-os com um método novo e com argumentos novos; tão bem que, depois de o ter ouvido expor novas doutrinas apoiadas em novas razões, ninguém duvidava de que Deus o iluminava com clarões de uma nova luz: o seu juízo era desde o início tão firme que ele não hesitava em ensinar novas opiniões que Deus se tinha dignado revelar-lhe em uma nova inspiração".

Alguns anos após a morte de Tomás, a escola teológica dominicana está conquistada pela sua doutrina e defende-a com vigor contra os ataques dos conservadores. A influência do mestre defunto conquista também outros teólogos eminentes, tais como os seculares Godofredo de Fontaines e Pedro de Auvergne, Egídio de Roma, o fundador da escola dos Ermitas de Santo Agostinho, mais tarde a escola carmelita. Ainda em sua vida, o ascendente de Tomás de Aquino era marcante na Faculdade das Artes de Paris; a sua influência sobre Sigério de Brabante é hoje bem assente. O renome do ilustre pregador atingirá a sua apoteose no Paraíso da Divina Comédia, onde preside à coroa dos doze sábios no quarto céu, o da luz.

Mas se a obra de Tomás de Aquino suscitou a admiração fervorosa de numerosos discípulos, foi também vivamente contestada. Os seus adversários foram teólogos, seculares e sobretudo franciscanos, que permaneciam fiéis às tradições da faculdade de teologia e se reclamavam de Santo Agostinho. Já em 1270 Tomás tinha sido atacado publicamente pelo mestre franciscano João Peckham. Várias das suas teses filosóficas tinham sido atingidas, se não visadas, pela grande condenação de Paris de Março de 1277. Entre 1277 e 1279, o franciscano Guilherme de la Mare publica o Correctório de Frei Tomás (Correctorium fratis Thomae), no qual denuncia 117 erros encontrados nos escritos de Tomás. Teses tomistas foram censuradas em Oxford em 1277, 1284 e 1286.

A ameaça de excomunhão que acompanhava o decreto de 7 de Março de 1277 travou incontestavelmente o progresso do tomismo em Paris, pois várias das suas doutrinas pareciam suspeitas em razão do seu parentesco com as do aristotelismo heterodoxo. Foi necessária a canonização de São Tomás em 1323 para pôr fim a estes entraves.

Com a maior parte dos historiadores, penso que os receios dos teólogos conservadores não eram fundados: as doutrinas filosóficas de Tomás de Aquino não ameaçavam a ortodoxia cristã. No plano filosófico, o seu pensamento parece nitidamente superior ao dos seus adversários e marca um progresso decisivo na evolução da filosofia. Aos olhos do historiador do pensamento, Tomás de Aquino domina o seu século, pois a sua obra é o coroamento do longo esforço de reflexão provocado pela literatura nova. Sem dúvida, a escola tomista não chegará a ser maioritária na Idade Média, por razões históricas bem conhecidas, sobretudo o maremoto do nominalismo do século XIV. O valor da filosofia criada por São Tomás só mais tarde se revelará plenamente: como dizia Gilson, «este solitário não escreveu para o seu século, mas tinha o tempo a seu favor» (1).


II - Condições de um renascimento do tomismo

Conspecto histórico


A ideia de um retorno ao tomismo autêntico surge entre os dominicanos de Nápoles desde meados do século XVIII, em reacção contra a escolástica eclética que dominava nas escolas católicas de filosofia. Mas a necessidade de restaurar o pensamento católico fez-se sentir ainda mais nos princípios do século XIX, na sequência da confusão provocada pela Revolução e da ameaça que a filosofia de Kant representava para o pensamento tradicional. Alguns professores italianos consideram que o pensamento de São Tomás oferece as bases de renovação filosófica cuja necessidade se sente. O movimento tomista desenvolve-se lentamente no decurso do século XIX até à sua consagração oficial por Leão XIII na encíclica Aeterni Patris, datada de 4 de Agosto de 1879. O impulso dado aos estudos tomistas por esta intervenção foi decisivo ao suscitar uma vasta corrente de estudos históricos e doutrinais, que se estendeu a todo o mundo católico e ultrapassou mesmo notavelmente as fronteiras do mundo católico.

Mas, desde o fim do século XIX, o movimento tomista cinde-se em duas correntes divergentes. Em Lovaina, e mais tarde em Paris e em Milão, desenvolve-se uma escola tomista nitidamente progressista, na qual o tomismo é largamente aberto à ciência e se presta ao diálogo com todas as correntes do pensamento contemporâneo; fiel no essencial ao pensamento de São Tomás, este neotomismo não hesita sacrificar o que é caduco na sua obra e sobretudo a formulação escolástica da sua doutrina. Nas universidades romanas, pelo contrário, e noutros centros que se inspiram no mesmo espírito, professa-se um paleotomismo, um tomismo de estrita observância, caracterizado por uma preocupação de rejuvenescer a expressão do seu pensamento e de a confrontar com a ciência e a filosofia actuais.

Hoje, as universidades romanas libertaram-se largamente deste tomismo ultraconservador e pode-se esperar que o recente concílio lhe tenha dado o golpe de misericórdia. Era demasiado optimismo, pois um paleotomismo agressivo sobrevive ainda em alguns meios bastante influentes e numerosos discípulos de São Tomás sofrem ainda, em diversos graus, o contágio destes meios.

Polegar de S. Tomás de Aquino preservado num relicário na Basílica de Sant'Eustorgio em Milão.



Uma opção desconcertante

A escolha de São Tomás como mestre do pensamento terá sido feliz? À primeira vista, ser-se-ia levado a duvidar, pois a opção dos pioneiros do renascimento tomista no início do século XIX parece desconcertante. Eles sentem vivamente a necessidade de uma filosofia sólida, que possa entrar em diálogo com o pensamento contemporâneo e nomeadamente com o kantismo. Ora, eles voltam-se para um teólogo que não deixou nenhuma exposição da sua síntese filosófica; para um escolástico do século XIII, admirador de Aristóteles, cujas doutrinas, na maior parte, conservou, incluindo a sua física; para um autor cujas obras estão todas escritas em latim, o latim da Escola, com o seu vocabulário filosófico hoje extravagante.

Certos observadores, na Igreja e sobretudo fora dela, não deixaram de formular estas objecções. Alguns fizeram-no em termos muito agressivos, denunciando como sem sentido querer ressuscitar em pleno século XX uma maneira medieval de pensar, ligada a uma cultura inteiramente ultrapassada. É difícil dizer em que medida os promotores do retorno a São Tomás se aperceberam dos escolhos que iam encontrar. O que é certo é que o estudo pessoal dos escritos do santo doutor lhes tinha revelado a extraordinária profundidade do seu pensamento filosófico e que esta convicção os levou a minimizar e, de toda a maneira, a afrontar as dificuldades da sua empresa.

Por meu lado, penso, com todos os tomistas, que estes pioneiros tinham razão, pois estamos convencidos do valor permanente e da fecundidade da filosofia que Tomás de Aquino incorporou na sua obra literária imensa e variada, deixando-nos o cuidado de a pôr em evidência e de a reconstruir. A sua concepção do conhecimento intelectual, a sua ontologia (nela compreendendo a sua teologia natural), a sua antropologia e a sua moral mantêm um valor inestimável; mesmo as teses filosóficas da sua cosmologia são de natureza a esclarecer o estudo do universo corporal, que deve evidentemente fazer-se hoje tendo em conta as aquisições da ciência positiva.


Modernizar o tomismo

É verdade, no entanto, que estes tesouros estão escondidos num conjunto de escritos que têm a marca do seu tempo: a sua linguagem, o seu vocabulário, a sua forma literária e muitas vezes mesmo a sua estrutura lógica pertencem à Idade Média. Por isso, os partidários de uma renascença tomista encontraram-se e encontram-se ainda perante uma tarefa imensa: a de modernizar a filosofia de São Tomás, de a repensar e de a reescrever numa linguagem acessível aos homens do nosso século. Os tomistas mais clarividentes compreenderam-no e têm produzido obras notáveis. Mas esta imperiosa necessidade escapa aos tomistas «de estrita observância», porque não dão conta da historicidade de qualquer pensamento humano concreto. A sua veneração pelo mestre leva-os a um culto da letra que exclui qualquer crítica e todo o progresso para além dos limites de uma rigorosa ortodoxia tomista. Este estado de espírito surpreendente, tanto mais que contrasta com a liberdade de que actualmente usam os melhores exegetas católicos dos livros inspirados, explica-se em parte pelo medo do relativismo: receia-se comprometer a imutável verdade sacrificando fórmulas consagradas pela tradição. É confundir a verdade com a sua expressão. A verdade não muda, mas a sua expressão é sempre tributária da linguagem e da cultura em que se encarna. Um pensador que, por impossível, se exprimisse sem respeitar os usos do seu meio seria incompreensível para os seus contemporâneos. Reconhecer isso nada tem de comum com o relativismo; é, pelo contrário, a condição requerida para que a verdade, liberta da sua expressão ultrapassada, se possa revelar no seu valor necessário e imutável. Além disso, seria insensato pretender que nenhum progresso filosófico tenha sido realizado desde o século XIII e que o pensamento de São Tomás representa a forma definitiva e imperfectível da filosofia.

A atitude dos tomistas ultraconservadores compromete gravemente qualquer renascimento tomista, pois ela enclausura o tomismo num verdadeiro gueto intelectual e impede por completo a irradiação do pensamento de São Tomás no mundo actual. Esta atitude é, de resto, muito antitomista, pois Tomás de Aquino deu o exemplo de uma perfeita abertura ao progresso, a ponto de suscitar a violenta reacção dos conservadores do seu tempo. Recusar-se a modernizar o pensamento de Tomás de Aquino é fazer dele um fóssil, um vestígio interessante do passado, uma peça de museu, e não um pensamento vivo.

Que é preciso modernizar na obra de São Tomás? 

Primeiro a sua problemática filosófica, pois é preciso interpelá-la com a problemática actual. Três exemplos entre os mais importantes farão compreender de que se trata.

É preciso aceitar pôr adequadamente o problema crítico, isto é, o problema do valor do conhecimento humano. Não se pode ignorar Guilherme de Ockham, Descartes, Hume, Kant, Husserl e o neopositivismo neste domínio. Numerosos tomistas eminentes compreenderam-no, desde Balmes e Mercier até Noël, Maréchal, Olgiati, de Vries e tantos outros. Não se pode, pois, seguir Gilson na sua curiosa recusa de qualquer crítica fundamental do conhecimento, sob pretexto de que qualquer concessão deste género conduziria fatalmente ao idealismo.


Segundo exemplo: o problema da existência de Deus. A maior parte dos tomistas tem apresentado e apresenta ainda as célebres cinco vias da Suma de Teologia sem ter em nenhuma conta o estado da ciência e da crítica filosófica. Foi preciso chegar a 1958 para ler uma exposição aprofundada da inadaptação das cinco vias ao pensamento científico actual: o Padre D. Durbale, dominicano francês, pôs muito bem em evidência (embora num estilo por vezes difícil) as diferenças de clima intelectual que tornam os homens de ciência impermeáveis a estas demonstrações medievais (2). Eu mesmo tentei recentemente alargar a inquirição à obra literária integral do santo doutor, para discernir nela aquilo que para nós continuava válido e aquilo que não resiste à crítica (3).

Finalmente, é claro que o problema cosmológico deve ser colocado em bases muito diferentes daquelas que se encontram em São Tomás. Desde sempre se sabia que o santo doutor tinha feito sua, como todos os seus contemporâneos, a física de Aristóteles, mas os tomistas minimizavam quase sempre o impacto desta física caduca sobre a filosofia de Tomás de Aquino. Numa notável investigação sobre os corpos celestes, o Padre Litt mostrou que São Tomás considerava as teses da física aristotélica como doutrinas fundamentais da filosofia da natureza: o geocentrismo; os quatro elementos e as suas propriedades essenciais; as esferas celestes transparentes portadoras dos planetas e das estrelas fixas; a incorruptibilidade dos corpos celestes e a sua influência determinante sobre todos os fenómenos do mundo sublunar. As suas reservas incidem unicamente na astronomia de observação e nas teses divergentes dos astrónomos gregos (4).

Em não poucos casos, têm também de se actualizar as soluções propostas por São Tomás aos problemas filosóficos. O que acaba de ser dito sobre a problemática implica já numerosos retoques doutrinais, quer eliminando uma argumentação pouco satisfatória, quer rectificando certas posições, quer completando o pensamento do mestre. Mas outras actualizações se impõem. Percorramos as etapas que distinguimos na exposição da sua filosofia e indiquemos de passagem os progressos que podem ser realizados.

As doutrinas que agrupámos no primeiro capítulo, porque oferecem as bases do saber científico, podem ser desenvolvidas em um tratado completo de epistemologia. Este termo é aqui tomado no sentido de uma teoria fundamental do conhecimento tal como ela pode ser elaborada no limiar da filosofia, apoiando-se nos dados imediatos da consciência. Em um tratado deste género, a análise tomista da consciência pode ser completa à luz dos dados da psicologia empírica; a crítica da sensação deve ser modernizada, assim como a crítica do conceito; por fim, a unidade do conhecimento deve ser mais sublinhada, ultrapassando o dualismo da sensação e do pensamento, demasiado marcado no aristotelismo (5).

Em metafísica, que é, sem dúvida, a parte mais sólida da filosofia de São Tomás, são desejáveis numerosos progressos na formulação e na demonstração das teses do santo doutor. Eis alguns deles: extensão verdadeiramente transcendental da ideia de ser (o Ser infinito não é estranho ao ens commune); dedução rigorosa dos atributos transcendentais; demonstração da composição constitutiva do ser finito (esse-essentia); demonstração do princípio de actividade (todo o ser finito é princípio de actividade); formulação do princípio metafísico de causalidade; demonstração da existência do Ser infinito pela dupla via do ser e do agir; crítica das cinco vias (quinque viae); esquema da dedução rigorosa dos atributos divinos; alcance exacto da transposição das noções de potência e de acto em metafísica; demonstração da unicidade divina, da inteligência divina; impossibilidade da presciência eterna dos actos livres; identidade da criação, da conservação e da moção das criaturas; natureza exacta do mal (que não conduz a uma simples privação do bem); eliminação de diversas excrescências cujo lugar não cabe na metafísica (composição de matéria e de forma; devir substancial); predicamentos; problema teológico da subsistência); a introdução destes temas na metafísica pertence mais à escola tomista do que ao próprio São Tomás (6).

A filosofia da natureza legada por São Tomás está evidentemente em grande parte ultrapassada. Tem de ser repensada de alto a baixo, tendo em conta o que as ciências positivas nos ensinam hoje sobre o mundo corporal. A tarefa é particularmente delicada pelo facto de a própria ciência estar em contínua evolução, de ela não pretender revelar-nos a natureza ontológica do mundo corporal e de não ser fácil encontrar nela as bases de uma interpretação filosófica do universo.



S. Tomás de Aquino




Isto é sobretudo verdadeiro para o mundo inanimado, que constitui o objecto das ciências físico-químicas e de todas as ciências conexas. Parece, no entanto, possível elaborar uma cosmologia sóbria e prudente, concebida como uma metafísica especial do mundo corporal, quer dizer, um ensaio de aplicação da metafísica dos seres finitos ao caso particular dos seres materiais: mostrar-se-ia em que medida e sob que formas as noções de indivíduo, de substância, de actividade, encontram aplicação no universo corporal; também aí se estudariam as noções de movimento, de tempo e de espaço; abordar-se-ia aí, enfim, a questão da origem do universo (onde penso que a posição agnóstica de São Tomás deve ser ultrapassada e que o mito de um mundo eterno no passado deve ser rejeitado).

A antropologia de São Tomás é uma das peças mais preciosas da sua filosofia. Nela se encontra uma concepção notável da natureza humana, das actividades específicas do homem e do seu lugar no universo. São Tomás elaborou-a vencendo as antinomias com as quais o platonismo e o aristotelismo, o augustinismo e o averroísmo tinham esbarrado. Progressos são, todavia, desejáveis na apresentação actual desta antropologia: natureza da sensação, demonstração da natureza imaterial do pensamento (São Tomás retomou sobretudo a prova aristotélica, mas a demonstração do carácter espiritual da inteligência humana pode ser enriquecida hoje pondo em relevo diversos aspectos da actividade intelectual); a distinção real dos dois intelectos, activo e receptivo, não parece impor-se; terminologia mais exacta para exprimir a composição hilomórfica (o homem não é composto de alma e de corpo, segundo correntemente o diz São Tomás utilizando uma fórmula dualista, enquanto rejeita o dualismo, mas de alma e de matéria prima); tratamento mais sóbrio do estatuto da alma separada, reservando à teologia avançar mais a tal respeito.

A filosofia tomista do agir humano conserva todo o seu valor, não somente nas suas teses fundamentais, mas em numerosas aplicações. É, todavia, claro que os problemas de ordem prática têm todos de ser abordados e resolvidos em um contexto novo. O moralista não pode ignorar o contributo imenso das ciências humanas, sobretudo da psicologia e das ciências afins, da sociologia e das ciências económicas. Muito menos pode ignorar os processos por vezes revolucionários das ciências biológicas, cujos sucessos põem em termos novos certos problemas de ordem ética. Enfim, há que tomar em consideração todas as situações novas resultantes das condições de existência actuais da humanidade: citemos, a título de exemplos, a repartição desigual da riqueza e o subdesenvolvimento de uma parte considerável da humanidade; a existência de numerosas ditaduras de esquerda e de direita; a corrida aos armamentos e a ameaça de guerra nuclear.

É preciso, enfim, modernizar a expressão do pensamento de São Tomás. É quase supérfluo dizê-lo, pois a actualização da problemática e de numerosas soluções dos problemas filosóficos de modo nenhum seria eficaz se as doutrinas do santo doutor não fossem apresentadas em uma linguagem acessível aos nossos contemporâneos. Ainda aqui, a atitude dos tomistas conservadores foi muitas vezes aberrante: sustentava-se outrora, em certos meios tomistas, e não dos menos influentes, que a filosofia de São Tomás estava indissoluvelmente ligada ao latim e que, em virtude disso, era preciso ensiná-la e aprendê-la em latim. Era condenar a própria ideia de um renascimento do tomismo, pois se esta filosofia não pode exprimir-se senão em latim, não tem interesse para o pensamento contemporâneo. O dilema é inevitável: ou falamos a linguagem do nosso tempo, ou então pregamos no deserto. É preciso, pois, transpor o pensamento de São Tomás do latim escolástico para as nossas línguas vivas. É preciso também traduzir a sua terminologia escolástica em um vocabulário menos desconcertante para o leitor moderno ou pelo menos explicar claramente o sentido dos termos escolásticos que se considera dever conservar. Este trabalho de transposição é por vezes difícil, é verdade, mas foi realizado com êxito por tomistas eminentes e nós devemos inspirar-nos nos seus exemplos.


Realizações

O programa que acaba de ser esboçado como condição de sucesso de um renascimento tomista já não está no estádio dos projectos e dos votos. Existe uma literatura tomista de alto valor científico, na qual este programa está em larga medida realizado. Parece-me útil apresentar aqui algumas destas realizações sob a forma de uma introdução breve às obras que foram seleccionadas para a bibliografia sumária dada no fim deste volume, em conformidade com as regras da colecção. A literatura tomista conta hoje mais de 10 000 títulos: quer isto dizer que não é fácil separar de entre eles algumas obras particularmente recomendáveis. O critério de selecção foi mencionar os trabalhos mais proveitosos para uma primeira iniciação ao estudo de São Tomás e algumas monografias particularmente modelares do género de estudos que convém empreender se se quer contribuir para a renovação do tomismo.



Triunfo de São Tomás de Aquino sobre os hereges, de Filippino Lippi.



A) Textos. - A edição da Somme théologique em fascículos contam hoje 55 volumes; é realização de numerosos autores, de maneira que o valor da tradução e das notas é desigual. Constitui, em todo o caso, um instrumento de trabalho muito útil para os principiantes. A tradução francesa da Summa contra gentiles foi feita pelos dominicanos da província de Lião; é deliberadamente mais literária que literal. O livro primeiro é precedido de uma Introduction historique (pp. 7-123) do Padre Gauthier, obra magistral na qual todos os problemas de crítica relativos à suma são sujeitos a um aprofundado exame.

B) Ambiente histórico. - La philosophie au XIIIe siècle (594 páginas) é o resultado de uma longa elaboração. Tratava-se primitivamente de uma inquirição sobre a génese histórica do pensamento de Sigério de Brabante (1942); este trabalho foi desenvolvido para o tomo 13 da Histoire de l'Église, de Fliche e Martin, que descreve o movimento doutrinal no século XIII (1951); uma nova reelaboração deu-lhe a forma definitiva (1966). São Tomás é aí situado no seu ambiente histórico e é-lhe consagrado um capítulo de 50 páginas; a carreira de São Tomás, a intuição fundamental, a realização, as fontes da sua filosofia, o tomismo, filosofia e teologia.

C) Vida e obras. - O dominicano suíço Padre Walz publicou uma vintena de trabalhos relativos à vida de São Tomás, e entre outros uma biografia em alemão: Thomas von Aquin (Basileia, 1953). Esta obra foi actualizada e consideravelmente ampliada pelo cónego Novarina, então director do Seminário Maior de Lons-le-Saunier. É a melhor biografia de São Tomás em francês; nela se encontram excelentes tábuas, inclusive a lista dos escritos autênticos, classificados por géneros literários e datados.

A Introduction, do Padre Chenu, é um precioso complemento da biografia de São Tomás. Com uma mestria inigualável, o autor situa primeiro a obra literária do mestre na vida concreta de um professor de Teologia nos meados do século XIII. Descreve a seguir as diferentes categorias de escritos legados por São Tomás e termina cada capítulo com Notes de travail que abrem pistas aos investigadores. Não poderá prescindir-se desta mina de informações se se quer abordar os textos de uma maneira inteligente.

D) Personalidade. - Le Docteur Angélique, de Maritain, data da época em que o autor se declarava antimoderne; ele evoluiu até um dia se proclamar ultramoderne, mas o seu fervor tomista não variou. O objectivo deste pequeno livro é mostrar em que sentido o tomismo está acima da história e, por conseguinte, sempre actual. Nele se encontram quatro painéis: o santo; o sábio arquitecto; o apóstolo dos tempos modernos; o Doutor Comum. Em anexo, três documentos pontifícios em tradução francesa: a encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII (1879); o «motu proprio» Doctoris Angelici, de Pio X (1914); a encíclica Studiorum ducem, de Pio XI (1923).

O Saint Thomas d'Aquin publicado pelo Padre Sertillanges na colecção «Les Grands Coeurs» é um estudo atraente da personalidade do santo doutor. Nele se encontra um esboço biográfico, um resumo sobre a obra literária do mestre, um retrato do escritor e do poeta, enfim uma exposição sobre a sua missão póstuma. São Tomás visto e apreciado por um humanista.

Mons. Grabmann foi o maior medievista alemão do nosso século. O seu livrinho Thomas von Aquin. Persönlichkeit und Gedankenwelt teve sete edições; a tradução francesa aqui mencionada foi feita sobre a 6.ª edição alemã. O autor apresenta a personalidade e o pensamento do santo doutor em um escorço que é uma boa iniciação.

O Thomas d'Aquin de Mons. Gillet, antigo mestre geral dos Dominicanos, apareceu na colecção «Les Constructeurs». A obra está centrada sobre a personalidade do teólogo e mostra em que é que Tomás de Aquino foi um construtor em teologia: fez deste saber uma verdadeira ciência, foi um grande teólogo e um perfeito humanista. Vários bosquejos completam as obras precedentes: a vocação dominicana de São Tomás e a sua formação intelectual na escola de Alberto Magno; filosofia e teologia; Tomás moralista e místico, sociólogo e pedagogo.

E) Filosofia. - Obra de dimensões modestas, Les grandes thèses de la philosophie thomiste dirige-se ao público culto, em uma linguagem viva, que nada tem de escolástico. É uma apresentação muito pessoal, na forma, das principais doutrinas filosóficas de São Tomás; o ser e o conhecimento; Deus, a criação, a providência; a natureza e a vida; a alma humana, a actividade moral [Trad. portuguesa, As Grandes Teses da Filosofia Tomista, Braga, Livraria Cruz, colecção «Critério», 1951. Na mesma colecção encontra-se traduzida a interessante obra de G. C. Chesterton S. Tomás de Aquino, Braga, 1957. (N. do T.)].



Santo Tomás de Aquino confundindo a Averroes, por Giovanni di Paolo.



A obra em dois volumes do mesmo dominicano francês apareceu primeiro com o título Saint Thomas d'Aquin, na colecção «Les grands Philosophes» (1910); a 5.ª edição tem um título mais esclarecedor: La philosophie de saint Thomas d'Aquin (1940). A ordem adoptada é a da Suma de Teologia. À parte este defeito, estes volumes apresentam uma exposição muito fiel das doutrinas filosóficas do santo doutor: é uma tradução em bom francês das melhores páginas da Suma e por vezes de outros escritos.

Editada pela primeira vez em 1919 em um modesto volume de 174 páginas, Le thomisme, de Gilson, tornou-se em 1954 uma importante obra de 552 páginas. Nas primeiras edições, Le thomisme trazia como subtítulo: Introduction au système de saint Thomas d'Aquin. Tendo Gilson adoptado, como Sertillanges, a ordem da Suma de Teologia (que é naturalmente uma ordem de exposição teológica, o inverso da ordem filosófica), fez-se-lhe observar que, procedendo assim, renunciava a expor o sistema filosófico do santo doutor. Mas Gilson via uma característica da «filosofia cristã» no facto de tratar a filosofia em uma ordem teológica; a partir disso, mais do que modificar o plano do seu livro, preferiu mudar o subtítulo, que se tornou, a partir da 3.ª edição, Introduction à la philosophie de saint Thomas d'Aquin. À parte este processo de exposição, Le thomisme é uma muito boa iniciação às doutrinas filosóficas de São Tomás. Gilson põe bem em relevo (nas últimas edições) aquilo a que chama «a metafísica do Êxodo»: a doutrina do Esse subsistens (Deus é o Existir puro, subsistindo sem essência limitadora) é apresentada como a transposição da revelação divina: «Eu sou aquele que é».

F) Monografias. - O Padre Rousselot, jesuíta fracês morto em 1915 na batalha de Verdun, tinha publicado em 1908 L'intellectualisme de saint Thomas. Em muito foi uma revelação, pois o autor oferecia, com mão de mestre, uma notável introdução às posições mais essenciais do santo doutor. A inteligência é descrita como a faculdade do real e, em consequência, como a faculdade do divino. O intelectualismo de São Tomás é, portanto, um realismo metafísico, que está nos antípodas de todas as variedades de idealismo. Recentemente ainda, o livro do Padre Rousselet encantava um leitor culto, que, sem ser filósofo, tinha o gosto pelas coisas do espírito.

A metafísica tomista foi objecto de numerosos trabalhos de grande valor. Eis alguns dos mais notáveis. Estamos no coração da ontologia tomista com o livro do Padre de Finance, também jesuíta francês. Être et agir dans la philosophie de saint Thomas. É, em suma, um vasto comentário do adágio Agere sequitur esse (o agir é consequência do ser). Metafísica do ser: o acto supremo, a composição de ser e de essência, a participação no ser pela criação. Metafísica do agir: finalidade do universo, dinamismo universal, graus do agir.

Apresentado primeiro como tese principal para o doutoramento em letras (1931), o livro de M. Forest La structure métaphysique du concret selon saint Thomas d'Aquin foi reeditado em 1956 com uma redacção notavelmente melhorada. O método histórico é nele relevante: o pensamento de São Tomás não é apresentado como uma entidade intemporal, mas sim no mundo vivo do seu século. O autor vê no tomismo um esforço bem sucedido em ordem a conciliar Platão e Aristóteles.

Já em 1939, em uma obra italiana, o Padre Fabro tinha repensado a metafísica tomista por meio da ideia de participação e tinha chegado à mesma conclusão que Forest: São Tomás unificou, em uma síntese superior, as filosofias de Platão e Aristóteles. Estes temas são retomados e desenvolvidos no importante volume de 1961: Participation et causalité selon saint Thomas d'Aquin (650 páginas). O seu vasto conhecimento da história permite ao Padre Fabro dialogar com Hegel, Kierkegaard ou Heidegger da mesma maneira que com Parménides, Platão, Aristóteles e Proclo, ou ainda com Eckhart, Nicolau de Cusa e Suarez. Bem entendido, esta suma não se destina a principiantes.

O meu livro recente Le problème de l'existence de Dieu dans les écrits de saint Thomas d'Aquin é uma inquirição que se estende a toda a carreira do santo doutor. Aqui, como em outros casos, se verifica o contraste entre o seu pensamento, cujo valor é eminente, e a expressão, que traz a carga das marcas do tempo.

Para a filosofia da natureza, duas obras foram assinaladas. A do Padre Legrand, jesuíta belga, é um estudo de uma vastidão considerável; extravasa mesmo os quadros da filosofia da natureza, pois fala também dos espíritos criados. A variedade dos temas tratados nestes dois volumes é surpreendente; e como o autor se refere constantemente aos textos, é a inesgotável riqueza da obra literária de São Tomás que ressalta desta obra: L'univers et l'homme dans la philosophie de saint Thomas.



A Criação do Céu e das Estrelas, na Catedral de Monreale, Sicília (finais do século XII).



Claustro



Interior



O grande Pantocrator na abside


O Padre Litt era um trapista belga, grande leitor de São Tomás desde a sua juventude. O seu livro Les corps célestes dans l'univers de saint Thomas d'Aquin preenche uma lacuna evidente. Pelo exame de centenas de passagens em que São Tomás fala dos corpos celestes, o autor mostra que não se pode expor objectivamente a filosofia do santo doutor sem dar lugar aos corpos celestes.

No domínio da filosofia moral, quatro obras foram referidas. A do Padre Sertillanges, La philosophie morale de saint Thomas d'Aquin, completa os dois volumes mencionados acima, no final dos quais somente 35 páginas foram consagradas ao acto moral.

O livro de Gilson Saint Thomas d'Aquin é uma recolha de textos traduzidos em bom francês (texto maior) e explicados (texto menor).

Quanto à obra de Mons. Leclercq, então professor em Lovaina, La philosophie morale de saint Thomas devant la pensée contemporaine, é uma exposição muito pessoal, e, por conseguinte, por vezes discutível, da moral tomista. Nela se encontram títulos como estes: o enigma do livre arbítrio, a evolução psicológica da moral moderna, o desejo de Deus antes do cristianismo, o problema do amor, a procura do amor gratuito, o amor na filosofia contemporânea, a obrigação e imperativo categórico, limites da moral sem Deus, a prova da existência de Deus pela ordem moral.

O Padre Marty, jesuíta francês, estuda La perfection de l'homme selon saint Thomas d'Aquin. É uma maneira muito sugestiva de abordar o problema moral. O homem, microcosmo, síntese da matéria e do espírito, pessoa cujo destino é eterno, é o único ser vivo que goza do privilégio das espécies: a perenidade. A sua perfeição realiza-se por interiorização. O interesse principal desta monografia reside nas análises minuciosas de numerosas noções e doutrinas utilizadas por São Tomás na construção da sua filosofia moral.

G) O renascimento tomista. - Sob o título Le retour à saint Thomas estão agrupados estudos relativos ao renascimento do tomismo e às condições de sucesso deste intento.

O objectivo principal dos trabalhos que acabo de apresentar é fazer conhecer a filosofia autêntica de São Tomás, expô-la numa linguagem moderna e fazer a distinção entre aquilo que está desactualizado e aquilo que permanece precioso para nós. É, pois, um tomismo rejuvenescido, quanto ao fundo e quanto à forma, que se salienta nestas publicações. Na medida em que esta modernização seja alcançada, poderá o tomismo entrar em diálogo com as outras correntes da filosofia contemporânea e estar presente na vida actual do pensamento (in O Tomismo, Gradiva, 1990, pp. 151-174).



Notas:

(1) É. Gilson, La philosophie au Moyen Âge, 2.ª ed., Paris, 1944, p. 590.

(2) D. Dubarle, «Pensée scientifique et preuves traditionnelles de l'existence de Dieu», na obra colectiva De la connaissance de Dieu, pp. 35-112 (Desclée De Brouwer, 1958).

(3) F. Van Steenberghen, Le problème de l'existence de Dieu dans les écrits de saint Thomas d'Aquin (Lovaina-a-Nova, ed. do Instituto Sup. de Filosofia, 1980).

(4) Th. Litt, Les corps célestes dans l'univers de saint Thomas d'Aquin (Lovaina, Public. universit., 1963).

(5) Encontrar-se-á um ensaio de epistemologia tomista concebido desta maneira no meu pequeno tratado de Epistémologie (Lovaina, Public, universit., 4.ª ed., 1965).

(6) Encontrar-se-á um ensaio de rejuvenescimento da metafísica tomista no meu pequeno tratado Ontologie (Lovaina, Public. universit., 4.ª ed., 1966). Eliminar-se-á também da metafísica o estudo das substâncias espirituais, cuja existência não pode ser demonstrada rigorosamente pela razão.


A Expulsão do Paraíso, por Giovanni di Paolo.



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