domingo, 30 de abril de 2023

"Não é a terra que se explora: é Portugal que revive"

Escrito por Oliveira Salazar


(...) A descoberta abnegada e teimosa é sem dúvida um título; o sangue dos soldados, nas lutas de ocupação, selo material da posse; mas o que está feito é mais – é a fusão da raça e da terra, o alargamento, até aos confins do sertão, das estreitas fronteiras da Península, a mesma Pátria reproduzida, alma e sangue, ao modo de mãe em seus filhos.

A charrua penetra o solo mais que o ferro da espada; o suor fertiliza a terra mais que o sangue das veias; o espírito afeiçoa e transforma os homens e a natureza mais profundamente que a força material dos dominadores. As fundas pegadas e traços que ficaram de nós na terra e nas almas, por muita parte onde não é nosso o domínio político, e têm maravilhado os observadores desde as costas de Marrocos à Etiópia e do Mar Vermelho aos Estreitos e ao Mar da China, vêm exactamente de que a nossa obra não é a do caminheiro que olha e passa, do explorador que busca à pressa as riquezas fáceis e levando em seu coração a imagem da Pátria, se ocupa amorosamente em gravá-la fundo onde adrega de levar a vida, ao mesmo tempo que lhe desabrocha espontâneo da alma o sentido da missão civilizadora. Não é a terra que se explora: é Portugal que revive...

(Oliveira Salazar, «A Europa em guerra. Repercussão nos problemas nacionais» (9 de Outubro de 1939), in Discursos e Notas Políticas, III, 1938-1943, Coimbra Editora, 1944, pp. 178-79).



segunda-feira, 17 de abril de 2023

Defesa do Ultramar no Conselho de Segurança da ONU (ii)

Texto baseado nas palavras proferidas por Franco Nogueira no Conselho de Segurança, a 24 de Julho de 1963


 



«Ora a verdade é que no povo português concorrem duas características que são virtudes das mais altas quando tomadas no todo – isto é, a Nação – mas que não deixam de ter um reverso quando projectadas na vida diária dos vários escalões dos agregados políticos e sociais. Refiro-me ao extremado sentido individualista do português e à sua generosidade de alma. Aquele leva-o a retrair-se perante toda a tentativa de alinhamento comunitário, em que as suas convicções sobre as coisas e as pessoas haveriam de subordinar-se à acção de uma minoria dirigente. É inevitável criar-se uma espécie de desconfiança perante a autoridade, não porque se lhe negue idoneidade, mas porque se deseja que ela seja menos apegada ao geral e mais ao particular, o que quer dizer ao humano. Daí resultam não poucas contradições na maneira de ser dos portugueses, que o estrangeiro dificilmente pode compreender: profundamente católico, quando religioso, o português é, ao mesmo tempo, anticlerical; estudioso e cumpridor não respeita, por princípio, o mestre; altamente competente quando profissional tem dificuldade em adaptar-se ao trabalho de conjunto. No círculo do seu viver quotidiano cada português tem conceitos próprios que diferem dos do seu vizinho, num pormenor que poderá ser secundário mas é quase sempre bastante para impedir que se dêem as mãos no mesmo esforço. Este traço do carácter português dá às nossas gentes apurado sentido crítico que, perante os acontecimentos, as leva desde logo a aperceber-se do que neles é genuíno e essencial; mas que ao mesmo tempo lhes reduz as proporções e provoca a observação arguta, quase sempre com acento nos aspectos negativos das pessoas e das coisas. Na prática, e em termos da vida política, isto significa que o povo português a menos que reconheça a presença do ideal nacional, colabora com dificuldade. Aí se encontra, creio, a explicação primordial do inêxito do partidarismo político em Portugal; aí se encontra, também, um escolho que exige determinadas ordens de limitações para que as liberdades políticas possam ser realmente vividas.

Não se infira daqui que o português é cínico ou interesseiro, pois na origem desse individualismo crítico não se encontra uma atitude intelectual nem um cálculo de utilidade: pelo contrário, é também peculiar do português ser generoso, afectivo, emocional. E é precisamente esse lado emocional que pode arrastar o português a vibrar em volta de um facto, de uma ideia, de uma personalidade. Em tais períodos, o espírito generoso do povo leva-o a perder o seu habitual sentido das realidades. Quando a experiência demonstra que as promessas eram vãs ou a personalidade menos heróica, o português readquire rapidamente o seu equilíbrio embora por vezes com exagerado desânimo. Quer dizer que, também em Portugal, a demagogia pode ter e tem tido os seus êxitos. Mas a nós tem-nos parecido ser esse um caminho pouco honesto, pois que joga em demasia com as esperanças do povo, embora na certeza de não poder satisfazer mesmo os seus anseios legítimos.»

Oliveira Salazar («Realidades da Política Portuguesa»).


«O homem, o homem social, económico e político, está hoje possesso de ideias messiânicas: a sociedade igualitária, a actividade criadora socializada e cientificamente planeada, a felicidade tecnicamente organizada, o governo mundial, a igualdade universal e o desenvolvimento rápido dos povos atrasados. Dado o carácter messiânico destas ideologias, e a sua disseminação pelas grandes massas, a comunidade cristã sentiu-se impressionada por aquelas, e adoptou-as, fazendo-as tão suas que colocou ao seu serviço todo o zelo apostólico e o fervor missionário de que a Igreja é capaz. Muitos vêem aqui um sério risco de cedência às tentações da cidade secular de César, e um perigo de que, de teológica que deve ser, se possa transformar em sociológica a Igreja de Cristo. Seria talvez este o sentido das palavras que o Papa Paulo VI pronunciou em Fátima, quando afirmou ser um mal “que a Igreja substituísse a teologia dos verdadeiros e grandes mestres por ideologias novas e particulares”. O serviço das ideias havidas como messiânicas, e que afinal são provisórias como todo o sistema de governo da cidade, está absorvendo o conceito de Deus, e quase se lhe sobrepõe, e por isso em muitos círculos é apresentado como sendo de anti-Igreja a atitude daqueles que procuram ir ao encontro das massas oferecendo-lhes, sem que o façam em nome de Cristo, aquilo que sabem que as massas gostam de escutar. Devemos meditar profundamente em outras palavras recentes de Sua Santidade quando há pouco proclamou o seu receio de “autodestruição da Igreja”. Porque, com efeito, alguns há que assinalam uma separação ou apartamento entre a Igreja e o destino espiritual do homem: não se vai a extremo de negar que aquela prepare e conduza à redenção e resgaste deste: mas na ordem de precedência atribui-se lugar prioritário ao messianismo ideológico de César, quase se transferindo para a sociedade os predicados de Deus. E neste ponto há quem sublinhe uma contradição que na verdade não se afigura bem esclarecida.»

Franco Nogueira («A Crise Contemporânea: suas Coordenadas», conferência proferida no Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa, em 13 de Fevereiro de 1969»).

 



«Cabral, Neto e Santos [aquando da recepção papal] encontravam-se em Itália a participar na Conferência Internacional de Apoio aos Povos das Colónias Portuguesas, destinada a mobilizar apoios entre organizações e governos da Europa. A União Soviética, através do Conselho Mundial para a Paz e Cooperação, um organismo ligado ao KGB, ajudou a financiar o encontro».

José Freire Antunes («Nixon e Caetano, promessas e abandono»).



«Foi realmente pena que o nosso Paulo VI não tivesse levado da nação portuguesa o pontapé no traseiro que bem diligenciou merecer».

Santos Costa a Marcello Caetano



DEFESA DO ULTRAMAR NO CONSELHO DE SEGURANÇA


III

Quando comentei o discurso do ministro da Tunísia, afirmei que o conflito no Norte de Angola era de facto instigado e organizado no exterior. É importante o ponto, e espero que o Conselho me escute com algum pormenor neste particular. Direi desde já que, nos primeiros meses de 1961, logo afirmámos que eram estrangeiros ou representavam interesses estrangeiros os terroristas que haviam atravessado a fronteira do Norte de Angola. Para além dos factos chegados na altura ao conhecimento das autoridades portuguesas e dos testemunhos das populações das áreas afectadas, é abundante a prova de que mãos alheias dirigiram os ataques terroristas. Do próprio facto de não havermos tomado quaisquer medidas cautelares deverá concluir-se que nenhuma perturbação interna era esperada, ou receada. Na área nenhumas forças de segurança existiam, e justamente por isso os terroristas, durante algumas semanas, assassinaram e esquartejaram pessoas – fossem brancos, negros ou mestiços – mas contra estes crimes não tiveram as Nações Unidas uma sóbria palavra de reprovação. Por outro lado, agitadores estabelecidos no estrangeiro e os seus patrocinadores formulavam ameaças de violência antes desta ser desencadeada. Estas considerações óbvias, se não se quer aceitar a palavra do Governo português, deveriam impor-se às consciências honestas. Todavia, é significativo que em alguns círculos não só era rejeitada a palavra do Governo português, e ignorada a prova circunstancial aduzida, mas esforços supremos foram envidados para convencer o mundo de que o terrorismo estrangeiro, que afectou uma pequena parte do Norte de Angola, constituía um genuíno movimento nacionalista abrangendo todo o território. E durante muitos meses esta deliberada mentira foi repetida para que, a poder de repetição, assim fosse persuadida a opinião pública mundial e se justificassem novas e ilegais interferências de fora. E no entanto, com o passar do tempo, centenas de inquiridores estrangeiros visitaram Angola, e vieram dizer a verdade. Tem agora o mundo perante si os testemunhos de observadores, altamente qualificados e de muitas nacionalidades e profissões, que publicaram os relatos das suas investigações no território.


Ver aqui

Não é hoje já possível, com efeito, negar que existe uma vasta malha de interesses estrangeiros, que abrange governos, partidos políticos e até empresas, e que pretende perturbar a paz em Angola. Não estou fazendo uma afirmação gratuita, nem utilizando apenas as nossas fontes privadas de informação. Larga massa de provas pode ser colhida na imprensa mundial, incluindo a que não faz segredo do seu apoio aos movimentos antiportugueses; e tudo ocuparia vários volumes. Mas é escasso o tempo, e por isso mencionarei somente algumas declarações de origem insuspeita. Ainda bem recentemente, The New York Times, de 7 de Julho de 1963, escrevia: «A Tunísia iniciou o fornecimento de armas ligeiras em Maio de 1961, logo após o começo das hostilidades em Angola, e continua a dar intermitente auxílio financeiro e militar.» Mas tornemos ao ano de 1961. Em 19 de Junho desse ano, Dakar-Matin escrevia: «Ghana tornou-se o arsenal dos combatentes da liberdade em Angola.» O mesmo jornal aludia à deliberação do grupo de Monróvia em que este prometia «apoio moral e material» aos que combatessem Portugal em Angola, e descrevia o desembarque de largas quantidades de armas russas no porto ghanês de Takoradi, sob a protecção da própria polícia de Ghana. E Dakar-Matin esclarecia: «Largas partidas daquele armamento são secretamente introduzidas no interior de Angola através da costa.» Na primeira semana de Agosto de 1961 vários orgãos da imprensa internacional noticiavam que dois pilotos britânicos haviam descoberto uma rede clandestina de tráfego de armas para Angola, transportadas em caixas rotuladas de «oleaginosas». O Daily Express, de Londres, afirmava que era organizado em Ghana aquele contrabando. O Journal du Dimanche, de Bruxelas, escrevia em 6 de Agosto de 1961 que o tráfego clandestino de armamento fora iniciado na Primavera daquele ano, que coincidiu com os primeiros ataques de terrorismo no Norte de Angola, e o New York Times, de 17 de Dezembro de 1961, esclarecia que o treino de estrangeiros na Tunísia progredia em bom ritmo, e que as armas fornecidas por aquele e outros países africanos continuavam a afluir a Angola. Em 13 de Março de 1962, o jornal de Oslo Morgenbladet inseria uma notícia da Associated Press, emanada de Léopoldville, em que se corroboravam aquelas informações e se indicava que voluntários de vários países estavam sendo concentrados para atacar Angola. Segundo o Observer, de 8 de Abril de 1962, combatentes estrangeiros treinados na Tunísia eram em breve esperados no Congo. Outras notícias sobre o mesmo assunto surgiram no Glasgow Herald, no New York Herald Tribune, no Christian Science Monitor, no Washington Post, todos de Abril de 1962. Citarei ainda o New York Times, de 3 de Junho de 1962, onde se afirma que os estrangeiros eram treinados na Tunísia e se revela que «já haviam participado em acções contra tropas francesas na fronteira da Argélia», e que o chefe daqueles «tinha recentemente recebido carregamentos de armas e novos carregamentos eram em breve esperados da Tunísia». E esclarecia que os mesmos «incluíam metralhadoras ligeiras e pesadas, granadas e minas terrestres.» Estas revelações eram confirmadas pelo The Baltimore Sun, de 3 de Junho de 1962; e pelo Al Ahram, do Cairo, de 9 de Janeiro de 1962; pelo Newsweek, de 10 de Dezembro do mesmo ano; e pelo New York Herald Tribune, Maroc Information, La Nation Africaine, La Dépêche d’Algerie e vários outros jornais, de 18 de Janeiro de 1963. Repetiram a notícia La Nation Africaine e Le Figaro, de 22 de Maio de 1963, e L’Orient, de 6 de Junho do mesmo ano. E depois de quanto precede presumo não serem necessários mais pormenores. E julgo inútil sublinhar o papel desempenhado pela República do Congo no auxílio à agressão contra Angola. São os factos tão clamorosos que me dispenso de acumular provas; e a base de treino em Kinkuzu, o fornecimento de espingardas e metralhadoras, as afirmações públicas produzidas por membros do governo Congolês são tão conhecidas que mais testemunhos, embora à nossa disposição, podem ser considerados supérfluos. Terá ainda o ministro da Tunísia a audácia de afirmar que não é conduzida por estrangeiros a agressão contra Angola?



Referi somente alguns factos e alguns testemunhos públicos comprovativos do papel desempenhado por aqueles interesses estrangeiros que têm praticado uma intervenção directa na violência desencadeada no Norte de Angola. Poderia aduzir outros elementos da mesma natureza relativos a outros territórios portugueses de África. Abstenho-me, para poupar o Conselho. Nem julgo necessário amontoar mais provas, porque hoje nem sequer se tenta já ocultar a verdade. Mas suponhamos, para simples fins de debate, que existem genuínos movimentos nacionalistas nos territórios portugueses. Seria por esse facto legítimo que os membros desta Organização autorizassem no seu solo campos de treino, auxiliassem terroristas estrangeiros, enviassem voluntários e fornecessem armas, e tudo com o fim de atacar um outro governo membro? É porventura lícito, nos termos da Carta das Nações Unidas, encorajar a violência em território de terceiros?




IV

Quanto precede, Senhor Presidente, leva-me a suscitar um problema sério. Durante os últimos anos, uma nova legalidade está sendo criada, uma nova concepção da lei apareceu nos negócios internacionais, uma nova estrutura jurídica está governando a vida ou alguns aspectos da vida da comunidade das nações. Mas há neste particular um ponto de interesse a sublinhar: aquela nova noção de legalidade internacional opera somente numa direcção única, para um só propósito, e para benefício de alguns apenas. Ser-me-á permitido vincar com um exemplo o que tenho no pensamento? Quando a República do Congo estabelece oficialmente bases de treino contra Angola, trata-se de acto legal; mas se adoptássemos prática idêntica nos nossos territórios, seria havida por ilícita a acção. Quando se diz que serão enviados terroristas contra Angola, é legítima a intenção, e aqueles são designados por voluntários; se acaso fizéssemos o mesmo, seria o facto tido por ilegal, e os voluntários receberiam o nome de mercenários. Eu poderia continuar. E tenho a certeza de que o delegado do Império Soviético não dá o seu acordo às minhas palavras, e isso porque o Império Soviético, ao definir agressão, incluiu nesta as actividades subversivas contra outro Estado, e os actos de terrorismo e apoio de grupos armados. Pergunto-me com perplexidade como reconcilia o representante soviético a definição de agressão aceite pelo seu governo e os factos que acabo de apontar. Tenho de concluir quanto a este aspecto, Senhor Presidente, que estamos perante duas ordens de países na comunidade internacional: aqueles a que tudo é autorizado, seja qual for a justificação que lhes ocorra apresentar; e os demais, a que não é sequer permitido praticar o que os primeiros praticam. E não penso que seja válido o que os primeiros praticam. E não penso que seja válido defender a legitimidade dos actos com fundamento na legitimidade dos objectivos. Porque seria contraproducente essa atitude: esta equivaleria a aceitar que se tornasse legítimo quando fosse apoiada pela força. Seria, por outras palavras, a destruição do governo pela lei.

V

De novo regresso à política portuguesa, Senhor Presidente. Tem sido afirmado e repetido que aquela é errónea, inaceitável, anacrónica, agressiva, repressiva, desligada dos tempos modernos, denegadora dos direitos humanos e da liberdade individual; e que além de tudo constitui uma ameaça à paz e à segurança. Se me pudesse fatigar, estaria exausto de escutar estas acusações. E no entanto a verdade é que nenhuma tentativa idónea foi alguma vez feita para avaliar a política portuguesa. Esforço algum foi jamais envidado para saber se os fundamentos ideológicos da política portuguesa estão conformes ou opostos aos mais altos ideais da humanidade. Desejo algum foi jamais expresso no sentido de analisar os métodos e os objectivos, para se saber se são aceitáveis. Nada de quanto precede foi alguma vez investigado. Critica-se com o fim de criticar; e não se sabe já o que se critica; nem se afigura que haja sequer interesse em apurar a realidade da política portuguesa. Tenho de considerar indispensável, portanto, expor alguns básicos, para benefício dos de boa fé somente, e acaso também para aqueles que consigam manter um espírito aberto sem ideias preconcebidas.


Alberto Franco Nogueira

Como um primeiro aspecto, e que constitui o fundamento da política portuguesa, afirmarei a nossa profunda convicção de que no mundo nenhuma raça é superior ou inferior a qualquer outra raça. Somos assim fortemente opostos a toda a sorte de segregação racial. Acreditamos que uma democracia racial forma a mais sadia base de qualquer sociedade humana. Acreditamos que todas as raças devem viver em comum, e trabalhar em harmonia para o bem comum. É esta para nós uma tradição multicentenária, e pensamos que todas as raças e todos os povos podem contribuir utilmente para benefício da humanidade, e que o progresso se consegue apenas quando tais contributos sejam conjugados entre si. Daqui parto para um segundo aspecto fundamental da nossa política. Refiro-me à formação de uma sociedade multirracial integrada, que aproveite os valores culturais e morais de todos. E quando falo de sociedade multirracial, não estou a pensar na simples coexistência de diferentes grupos sociais ou étnicos. Penso numa comunidade em que todos os grupos étnicos se encontram estreitamente integrados, e caldeados, com um profundo sentimento íntimo de unidade. E a história confirma este ponto de vista. Nações constituídas por mais de uma raça foram ou são grandes nações; e aqueles países que se fecham a contactos raciais e se dizem formados por uma raça pura, dão-nos talvez uma impressão de felicidade; mas a verdade é que não são motores de progresso, nem de iniciativa, e tendem a volver-se em conjuntos humanos adormecidos e parados. E por último, Senhor Presidente, nós acreditamos que o crescimento de uma sociedade humana tem mais garantias de ser prosseguido se houver igualdade perante a lei, e se idênticas oportunidades forem concedidas, e abertas a todos, sem olhar a raça, cor, origem ou religião. Quer isto dizer que são os mesmos para quaisquer os direitos e os deveres. Quer isto dizer, e é essa a nossa política, que são para todos iguais os direitos políticos, e idêntico o acesso ao ensino e no campo económico e social.

Estes aspectos abrangem o conjunto da vida de qualquer comunidade, e o seu progresso deve ser medido pelo grau de participação de todos os habitantes nas actividades políticas, educativas, económicas e sociais daquela. Linhas mestras da política portuguesa são, portanto, a promoção e a expansão dessa participação nas províncias ultramarinas. Não nos arrogamos a perfeição; mas é indubitável que, dentro da nossa estrutura, e de harmonia com os artigos 55.º e 56.º da Carta da O. N. U., todos são iguais, com idênticos direitos civis e beneficiando da mesma representação política. E eu dirijo-me a este Conselho, e pergunto: que crítica válida pode ser aduzida contra as bases ideológicas e filosóficas da política portuguesa? Nenhumas, além de frases sem conteúdo. E vou mais longe: afirmo que a nossa política não é expediente de apressada criação; não é recurso oportunista para superar dificuldades; e não é disfarce de outras políticas. É um facto: nós acreditamos que a nossa política constitui uma resposta permanente para problemas permanentes; e é em si uma solução para dificuldades que existem no continente africano. E não preciso de audácia para dizer que a nossa política está conforme aos mais elevados ideais da humanidade, no plano da filosofia e da religião, no plano da política ou da sociologia. Não frisará com algumas frases demagógicas, e acaso será obstáculo a interesses alheios à África. Mas estas não são razões válidas, nem que devamos ter em consideração.

São sempre da mesma natureza os ataques verbais contra a política portuguesa, e revolvem-se em torno das mesmas frases vazias e das mesmas palavras sem significado. Já discuti algumas das acusações; mas há outras. Por vezes afirma-se que é caracterizada pelo imobilismo a política portuguesa, e que é anacrónica, além de não ter em conta os desenvolvimentos dos tempos modernos. Todos os de boa fé, e todos que hajam estudado a política portuguesa, concordarão que são infundadas tais acusações. Não quero fatigar o Conselho, e abster-me-ei de recorrer a páginas de história antiga; mas porque são pertinentes haverei de indicar alguns pormenores recentes.

Em 1911 foram feitas importantes reformas na estrutura política e administrativa dos territórios ultramarinos, dentro da concepção da igualdade de todos. Em 1933, reafirma-se a mesma orientação na Constituição política aprovada por plebiscito naquele ano; e depois de 1933 numerosas outras medidas foram aprovadas. Em 1961 e 1962, novas reformas da mais alta importância. Regedorias e municipalidades foram criadas onde não existissem; foi alargada a participação da população rural no encaminhamento dos seus negócios; e por nova lei fez-se provisão para a universalidade do sufrágio. E neste ano de 1963, há algumas semanas apenas, foi posta em vigor nova legislação. Sofreu profundas alterações a Lei Orgânica do Ultramar, e um passo em frente foi dado na descentralização administrativa territorial; e as decisões foram tomadas em consulta com os representantes eleitos das províncias ultramarinas. São de largo alcance as implicações da nova lei. Os territórios ultramarinos estão desde há muito representados, evidentemente, na Assembleia Nacional através dos seus deputados eleitos; mas desde agora estarão representados também na Câmara Corporativa, no Conselho Ultramarino, e em todos os demais orgãos de âmbito nacional. Calcula-se que atingirá cerca de cem o número de delegados eleitos pelos territórios ultramarinos para os orgãos nacionais. Por outro lado, em Angola e Moçambique foram estabelecidos conselhos económicos e sociais, sendo também eleita a maioria dos seus membros. Foi igualmente ampliada a composição dos Conselhos Legislativos cujos membros, salvo duas excepções, são todos eleitos. E devo por último sublinhar que a competência de todos os orgãos territoriais foi ampliada, e abrange agora todos os assuntos de interesse directo para a província, muito particularmente em assuntos financeiros e económicos.




Creio que de tudo haveremos de tirar uma só conclusão: a participação dos habitantes dos territórios ultramarinos está assegurada nos planos político e económico, em nível territorial, pelas regedorias, municipalidades, conselho económico e social, e conselho legislativo; e, em nível nacional, através da Câmara Corporativa, da Assembleia Nacional e do Conselho Ultramarino. A partir de Setembro próximo, e até ao começo de 1964, terá início o processo eleitoral, garantindo o carácter representativo da nova estrutura política e administrativa. Do nosso ponto de vista, é acima de tudo importante que seja assegurada a cada indivíduo a oportunidade de ocupar na sociedade o lugar para que tenha capacidade, sem distinção de cor, raça ou credo religioso. Penso que poderemos dizer com verdade que o conjunto da população está apto a fazer escutar a sua voz no governo nacional e no governo local; detém em suas mãos a administração; e em todos os níveis está-lhe garantida a sua expressão própria. Havendo salientado todos estes aspectos, afigura-se-me que será ainda de interesse para este Conselho esclarecer que todos os esforços estão sendo feitos para assegurar o progresso social, económico e cultural de todos os habitantes. Solicitámos, por outro lado, estudos independentes sobre problemas dos territórios à Organização Internacional do Trabalho, à Organização Mundial de Saúde e à Organização para a Alimentação e Agricultura. Constituem motivo de orgulho para a administração portuguesas as conclusões a que chegaram aqueles estudos, e destruíram as críticas de muitos que as formulavam sem haver analisado a situação. Aquelas agências especializadas apresentaram algumas sugestões construtivas, que vamos executar. Para dar ímpeto novo à formação de um escol em todos os territórios, o treino de professores e a construção de escolas primárias, secundárias e técnicas têm sido estimulados. E por último direi que a partir de Setembro próximo será iniciado o funcionamento das Universidades de Luanda e de Lourenço Marques.

VI

Senhor Presidente: num rápido esboço, é esta a nossa política. Sabemos que outros podem usar outros métodos. Mas não é esse o problema. Para nós, a questão consiste em saber se são legítimos os nossos métodos, honrosos os nossos objectivos, e apropriados aos verdadeiros interesses do povo e conformes aos seus desejos. Sobre nenhum destes pontos subsiste a menor dúvida no nosso espírito. Decerto: não agimos de harmonia com frases feitas, ou em obediência a oportunismos políticos, ou para satisfação de interesses estrangeiros, que aliás são alheios ao continente africano. Sinceramente acreditamos estar dentro dos termos da Carta da O. N. U., cujas provisões cumprimos, e actuar consoante os mais altos ideais humanos, e os interesses reais de todas as populações das províncias portuguesas, e as exigências do progresso e desenvolvimento das sociedades humanas. Acreditamos que seguimos o caminho certo, e não admitimos que sejam impugnadas a nossa seriedade e a nossa honestidade. Todos os que conhecem a África, todos os que sejam imparciais e objectivos, todos esses concordarão em que estou dizendo a verdade; e, em torno desta mesa, os membros e não membros deste Conselho sabem no íntimo dos seus corações que estou expondo factos, sem embargo de estes poderem acaso não se afeiçoar às conveniências políticas do momento. Todos sabem que os critérios e os processos definidos pelas Nações Unidas para uma verdadeira autodeterminação não são justos nem realistas. Uniformidade de métodos e de soluções não se harmonizam com a diversidade e variedade dos problemas das comunidades humanas. E digo mais: todos sabem que existe estreita interdependência entre a evolução económica e social de um grupo humano e a sua estrutura política. Ignorar esta realidade é suscitar o caos e lançar os alicerces do neocolonialismo da África. Alguns neste Conselho não estarão talvez preparados para o reconhecer em público: mas no segredo das suas consciências todos sabem e reconhecem que é assim.

Por nossa parte temos apresentado propostas e sugestões. Estamos de boa fé. Desejamos conversar com os países de África, e estudar em comum os problemas africanos, e tomar em conjunto medidas construtivas. Somos criticados; somos vítimas de acusações; sugerimos conversas entre todos; fazemos convites para que nos visitem. Seguimos uma política de vanguarda, e estamos prontos a discutir sem condições prévias, nem limitação de temas. Que se teme? Quais os motivos de reserva? Nada pedimos, nem solicitamos mercê ou graça, e somente esperamos aquela boa fé que tem de considerar-se como subentendida. Muito obrigado, Senhor Presidente.

(In Franco Nogueira, Debate Singular, Ática, Lisboa, 1970, pp. 106-120).


quinta-feira, 13 de abril de 2023

Defesa do Ultramar no Conselho de Segurança da ONU (i)

Texto baseado nas palavras proferidas por Franco Nogueira no Conselho de Segurança, a 24 de Julho de 1963


«A reconsideração geral dos factos e dos conceitos que se encontram na base da política africana e da política do Mundo Ocidental em relação à África, pensamos que se fará a tempo de evitar as últimas derrocadas; e, embora o nosso povo seja muito atreito a afinar os seus juízos pelo veredicto estrangeiro, neste particular a barreira oposta pela consciência da Nação às campanhas vindas de todos os quadrantes não pôde ser vencida nem abalada sequer; e seria bem importante que o fosse, para os que trabalham na desintegração europeia, tanto aqui como no Continente Africano. O povo não pode ter o conhecimento em pormenor destes problemas; tem porém a acuidade do instinto que, tendo-o feito Nação há muitos séculos, o mantém atento às exigências da sua identidade e da sua própria sobrevivência. E do que se trata afinal é de sobreviver e continuar igual a si próprio.

Temos pois a unidade e coesão das forças armadas e quase seria uma traição aos mortos que houvesse o mais pequeno dissídio; temos a consciência da Nação firme e bem formada acerca deste problema fundamental. Pergunto a mim mesmo o que pode valer, em face deste bloco, a agitação e as lucubrações, mesmo que inspiradas do estrangeiro, dos que infelizmente perderam a sua alma de portugueses e não sentem já Portugal.»

Oliveira Salazar («Unidade das Forças Armadas e Consciência Nacional»).


«Deploro ter de afirmar que não suscitou a menor curiosidade a situação económica, social, educativa e políticas nas províncias portuguesas, nem os meus colegas africanos revelaram qualquer desejo de que aquela fosse investigada. Sem dúvida: as nações africanas têm direito de assumir essa atitude; mas se se recusam a informar-se, e a conhecer os factos, não têm depois direito a formular ataques violentos e infamantes contra Portugal, baseando-se em realidades que teimosamente se eximem a investigar. E também foram desprezadas as questões de paz e segurança, e nenhuma vontade houve em averiguar se os territórios portugueses são ameaça a uma e a outra. Decerto: estão as nações africanas autorizadas a tomar esta posição; mas se se furtam desdenhosamente a examinar aqueles aspectos, então não lhes é lícito acorrer a este Conselho para nos fustigarem com as acusações que todos escutámos. Estão moral e politicamente inibidas de se permitirem as alegações que têm feito: ou aceitam considerar e analisar os aspectos que acabo de referir, ou cumpre-lhes reduzirem-se ao silêncio, e absterem-se de acusar e de injuriar.

(...) De tudo quanto fica dito, Senhor Presidente, haverei de extrair algumas conclusões. Dir-se-ia que os delegados africanos julgam ser-lhes lícito dizer o que lhes agrade, como lhes agrade, quando lhes agrade; insultar de acordo com as suas fantasias; ofender e ferir de harmonia com a sua desvairada imaginação; e, tendo procedido assim, solicitam-nos moderação, compreensão, cooperação. Em torno da mesa deste Conselho, por razões tácticas, usam de algum retraimento e de alguma cortesia; mas na Quarta Comissão da O. N. U. o vilipêndio e o arbítrio contra Portugal atingem níveis que vão além da mais audaciosa imaginação; e em reuniões internacionais de outros organismos fazem as mais injuriosas afirmações. Há pouco, em Roma, numa sessão da F. A. O., uma delegação africana afirmou tranquilamente que as autoridades em Angola estavam executando um plano que previa o assassínio de uma criança africana por minuto; e essa delegação pediu às demais, com aparente seriedade, que acreditassem no facto. Estão os delegados africanos medindo o que dizem? Ou julgam que disfrutam de especiais privilégios? Ou que os demais são destituídos de sensibilidade? Mais grave do que tudo, porém, é a circunstância de as delegações africanas saberem que não têm fundamento as acusações, nem são verdadeiras, e formulam-nas sem embargo. Visitou as Nações Unidas no decurso da presente sessão o Chefe de Estado de um país africano, e por ter íntimo conhecimento da política portuguesa e da situação nos territórios portugueses ficou surpreso e perturbado quando escutou durante alguns debates as acusações contra Portugal. E perguntou se os delegados africanos na realidade acreditavam no que afirmavam. Foi negativa a resposta daqueles; mas acrescentaram que “tinham de dizer o que diziam para manterem pressão política sobre Portugal”. E os representantes africanos sentem-se tão seguros de si que jamais lhes ocorre ser possível, num dia próximo ou remoto, virem a ser vítimas do mesmo procedimento demagógico que agora aplicam a outros. Por isso querem que tudo aconteça ao seu sabor, com desdém soberano pelas opiniões e pelos direitos alheios. Pedem respeito pela lei, desde que sejam os legisladores; exigem o cumprimento da Carta, se lhes for consentido emendá-la e interpretá-la a seu gosto; e quando invocam a paz e a segurança, têm em mente a sua paz e a sua segurança apenas. Há poucos dias este Conselho, por desejo das delegações africanas, votou uma resolução que instava com um país membro para que organizasse uma sociedade em bases multirraciais. Será de presumir que se considerou ser esse um ideal a atingir. Mas hoje, perante este mesmo Conselho e por parte das mesmas delegações, condena-se a política portuguesa, cujo alicerce é precisamente constituído pelo multirracialismo, de que somos pioneiros, e é dito que essa política ameaça a paz e a segurança do mundo. Não existe ameaça, nem pode ser provada; e por isso se ajunta desde logo que, se não existe, terá então a ameaça de ser criada e fomentada. Dada esta posição obstinada, tudo quanto Portugal faça é falta grave: erramos porque não nos curvamos a imposições estrangeiras; porque não nos submetemos a exigências alheias; porque rejeitamos interpretações ilegais da Carta; e porque não pactuamos com as flutuações políticas da Assembleia.»

Franco Nogueira («Novo debate no Conselho de Segurança», texto baseado nas palavras pronunciadas perante o Conselho de Segurança, em 9 de Dezembro de 1963).

DEFESA DO ULTRAMAR NO CONSELHO DE SEGURANÇA


O seguinte texto é baseado nas palavras proferidas por Alberto Franco Nogueira na sessão do Conselho de Segurança da ONU, em 24 de Julho de 1963, no decurso do debate sobre o Ultramar. Na reunião tomaram parte os Ministros dos Estrangeiros da Tunísia, da Libéria, da Serra Leoa e de Madagáscar. 

Senhor Presidente: Estou-lhe grato por me haver dado a palavra e quero também aproveitar esta oportunidade para exprimir o meu apreço pelo convite que me foi dirigido para participar neste debate.

I

Permitir-me-á, Senhor Presidente, que responda a afirmações aqui feitas e que respeitam directamente ao meu país. Antes de o fazer, contudo, julgo fundamental traçar um quadro claro dos antecedentes desta reunião, e do processo que conduziu a esta convocação do Conselho de Segurança. Para isso, tomo dois documentos básicos: a carta das delegações africanas, de 11 de Julho de 1963, e o memorandum explicativo que lhe está anexo. Se compararmos os dois documentos, algumas observações parecem pertinentes. O memorandum refere-se a «territórios sob administração portuguesa»; a carta alude a «territórios sob dominação portuguesa». Significam estas expressões uma e a mesma coisa? No caso afirmativo, por que não usam ambos os documentos a mesma fraseologia? No caso negativo, a minha delegação tem então o direito de ser informada do alcance da diferença. Temos estado habituados no passado às palavras «territórios sob administração portuguesa»: não obstante serem inaceitáveis para a minha delegação, reconheço que se conformam com os preceitos legais da Carta, aliás aplicáveis a outros casos, e que têm sido empregues em resoluções anteriores da Assembleia. Mas agora exijo que me seja dito qual a base legal e jurídica para as palavras «territórios sob dominação portuguesa». Em que artigos da Carta, em que resoluções da Assembleia, em que precedentes, em que prática se firmaram os autores da carta para redigirem o documento como o fizeram? Ao Conselho parecerá ser este ponto de pouca monta e sem importância; mas é diversa a minha opinião; e denuncio o facto como mais um exemplo do caminho perigoso percorrido por esta Organização, que procura adulterar as realidades e distorcer as palavras da Carta para efeitos políticos e fins de propaganda. Dir-se-á sempre idêntica a técnica: escolher alguns artigos da Carta, seleccionar alguns factos, usar metade de uns e outros, e preencher a outra metade com factos imaginários e frases truncadas. Escapam-me as razões que impediram os autores da carta de referir «territórios sob extermínio de Portugal» ou «sob genocídio» ou «sob depredação» de Portugal. Mas quero focar outro ponto. Indica o memorandum explicativo que a recusa de Portugal em obedecer a algumas resoluções da Assembleia criou «uma fonte permanente de conflito e tensão internacional, que constitui uma séria ameaça à paz e à segurança internacionais, que continuam a piorar.» Portanto, segundo o memorandum, existe uma séria ameaça à paz e à segurança. Mas a carta declara: «O estado de guerra em alguns territórios, por motivo da recusa de Portugal» em aceitar as resoluções da Assembleia, «constitui uma quebra da paz e da segurança». Memorandum e carta são da mesma data, pelo menos oficialmente; mas os seus autores saltaram de uma séria ameaça à paz, conforme o primeiro documento, para um estado de guerra, como afirma o segundo documento. Não faço comentários, salvo para dizer que nego e rejeito os dois documentos. Mas ainda outros pontos suscitam novas observações. A carta alude a um estado de guerra motivado pela recusa de Portugal em cumprir resoluções da Assembleia. Estabelece-se assim uma ligação directa entre aquela recusa e o estado de guerra: por implicação afirma-se que o estado de guerra existe porque não obedecemos às resoluções ou porque a recusa em fazê-lo conduziu à guerra. Parece-me da maior gravidade, Senhor Presidente, as conclusões a que chegaram os autores dos dois documentos.


Ver aqui

Todos sabemos que numerosas resoluções da Assembleia Geral – na verdade a maior parte – não são cumpridas; todos sabemos que numerosos países membros têm ignorado inteiramente as resoluções que os afectam de forma directa; e todos sabemos que algumas grandes potências se recusam por sistema a cumprir as resoluções do Conselho de Segurança ou da Assembleia quando lhes são desfavoráveis. Não me proponho destacar qualquer país; mas sabem quantos aqui se encontram que estou exprimindo a verdade. Todavia, nunca vi afirmado que o simples facto do não-cumprimento de uma ou várias resoluções da O. N. U. conduza a um estado de guerra. Mas esta afirmação é agora feita, e em termos claros; e desde que os autores dos dois documentos em causa não tiveram o propósito de estabelecer qualquer discriminação contra o meu país – disso estamos convencidos, não é verdade? – impõe-se a conclusão de que estamos perante um princípio novo, e de aplicação geral a todos os membros das Nações Unidas. Espero que sejam compreendidas as implicações; e se as aceitarmos então não poderemos mais invocar as Nações Unidas como uma organização de paz. E por último, Senhor Presidente, quero salientar que tanto a carta como o memorandum, ao citarem algumas resoluções da Assembleia, apresentam das mesmas uma interpretação que não tem a concordância da minha delegação. Não discuto agora este aspecto; mas quero deixar registadas as minhas fortes reservas, e reiterar a posição que tem sido tomada pela delegação portuguesa em numerosas ocasiões anteriores.

Baseiam-se os dois documentos que estou analisando em algumas deliberações da Conferência de Adis-Abeba de Maio último [1]. Sou assim compelido a aludir àquela reunião, apenas no que respeita ao meu país, e serão por isso breves as minhas observações. No § 6 da recomendação pertinente, votada em Adis- Abeba, menciona-se a «verdadeira guerra de genocídio» que o Governo português estaria praticando. Categoricamente, e com a maior energia, nego tão absurda alegação. No § 7, a recomendação reflecte uma avidez de propaganda insaciável, ao aludir ao Relatório do Comité dos 24: este pretende descrever a situação nos «territórios sob a administração portuguesa» mas na recomendação fala-se de «territórios sob dominação portuguesa». Nos §§ 8 e 9, a recomendação insta pelo corte de relações diplomáticas e consulares entre os países africanos e Portugal, e pelo boicote do comércio, dos navios e aviões portugueses. Mas estas decisões, em conjunto com outras medidas, não estão de acordo com a ética das Nações Unidas, nem parecem próprias de Estados que estão continuamente proclamando o seu respeito pela Carta e pela paz. Na verdade, estas resoluções de Adis-Abeba constituem, no meu parecer, uma nítida violação dos preceitos da Carta, e a minha delegação exige esclarecimentos sobre a forma como todas estas ameaças, como toda esta hostilidade organizada e inspirada, como todos estes actos podem ser conciliados com os princípios e os propósitos ali claramente estatuídos. Mas neste momento não quero referir-me a outros aspectos da Conferência de Adis-Abeba, e comentá-los-ei quando apropriado no decurso desta minha declaração. 

II

Depois destas observações preliminares, Senhor Presidente, responderei às acusações formuladas contra o meu país, e desde já quero referir-me ao discurso do ministro dos Negócios Estrangeiros da Libéria, que estudei com toda a atenção. Concordo inteiramente com o ministro quando este louva a «amizade por todos os povos e governos que acreditam na dignidade e igualdade dos homens, e os respeitam». Fiquei surpreso, por isso, quando ouvi o ministro descrever a política portuguesa como «bárbara e desumana», mas sem documentar a acusação. Mas ao apresentar as suas alegações, o ministro da Libéria levantou outros pontos mais importantes. Na primeira parte do seu discurso, o ministro baseou-se no artigo 73.º do Capítulo XI da Carta [2]. Devo confessar que fiquei estupefacto. Este problema do art.º 73.º foi discutido há anos, e durante numerosos anos, noutros orgãos da O. N. U. Em sessão após sessão da Assembleia Geral foi travado debate sobre a interpretação válida do art.º 73.º. Ao ministro liberiano afigura-se que, nos termos daquele preceito, Portugal está obrigado a fornecer às Nações Unidas relatórios periódicos sobre a evolução política, económica, social e cultural dos territórios. Decerto: o ministro tem o direito de acolher essa opinião e de a sustentar. Mas eu tenho também o direito a uma opinião diferente. Na verdade, o Capítulo XI da Carta intitula-se «Declaração sobre territórios não-autónomos», e portanto deixa à discrição dos Governos Membros, de acordo com a sua respectiva ordem jurídica, os termos em que devem formular aquela declaração. A responsabilidade internacional que resulta do Capítulo XI não tem semelhança com a que deriva dos Capítulos IX e XII da Carta. Não quero, porém, discutir este ponto longamente. Quero apenas dizer ao ministro da Libéria que a interpretação portuguesa do artigo 73.º não foi inventada pelo Governo português, nem é produto da imaginação portuguesa, nem possui qualquer originalidade. Era a interpretação da vasta maioria da Assembleia Geral quando Portugal foi admitido nas Nações Unidas, e nós apenas a encontrámos já estabelecida e aceite pela generalidade. Algumas delegações modificaram agora a sua interpretação do art.º 73.º Estão no seu direito. Mas não têm direito a proceder como se nunca houvessem partilhado da primeira interpretação; e nem vejo que deva Portugal ser criticado apenas porque mantém como sua a opinião que ainda não há muito era a da maioria. A verdade é que não foram alteradas as provisões da Carta, e por isso a sua interpretação não pode subitamente ser oposta à que era. Não é uma questão, por nossa parte, de tratarmos com desprezo quaisquer resoluções da Assembleia: pensamos que tais resoluções são ilegais hoje, como eram ilegais no passado. Mas tudo isso é irrelevante: mesmo que a interpretação do ministro liberiano fosse exacta, e ainda que a aceitássemos, o resultado único seria o envio ao secretário-geral, pelo Governo português, de informações sobre a situação nos territórios portugueses. E contudo os países africanos, na última Assembleia Geral, afirmaram explicitamente que já não sentiam interesse na obtenção de tais informações, e que consideravam como encerrada a questão do art.º 73.º Se o ministro da Libéria, no entanto, deseja de novo suscitá-la, por mim estou pronto ao debate do problema. Mas o meu colega, que se senta à minha direita – prefiro vê-lo à direita, mais do que à esquerda! – acrescentou que em Dezembro de 1960 e no princípio de 1961 o Governo da Libéria recebeu «relatórios autorizados» sobre a situação em alguns territórios portugueses. E tudo o mais no seu discurso se baseia naqueles relatórios, sem que nos seja dito em que consistem, donde provêm, quem é responsável pelos mesmos, que grau de imparcialidade possuem, e qual o crédito que merecem. Alguém se surpreenderá se eu exprimir as maiores reservas sabendo, como sei, que esses documentos não contêm a menor parcela de verdade? Infelizmente, o ministro da Libéria parece acreditar naquelas fontes, e por isso a sua versão dos acontecimentos não tem a mais remota ligação com a realidade. Darei alguns exemplos. Afirma o ministro que até ao fim de Julho de 1961 os jornalistas estrangeiros não foram autorizados a entrar em Angola. Isto só é verdade no que respeita a um curto período depois de Março daquele ano, e apenas porque não podíamos garantir a sua segurança em face dos cegos ataques dos terroristas. Mas o ministro absteve-se de acrescentar que, após aquela data, mais de quatrocentos jornalistas estrangeiros, de muitas nacionalidades, têm visitado os territórios portugueses, que se encontram abertos a todos os de boa fé. E daqui parto para uma observação de ordem geral. O ministro dos Estrangeiros da Libéria deposita a sua fé nos relatórios de uma subcomissão que há alguns meses estudou a situação de um território português. Recordo, todavia, que na altura foi por nossa parte afirmado que não podíamos aceitar as conclusões da subcomissão, e isso por vários motivos. Indicarei dois: porque tudo fora baseado quase exclusivamente em testemunhos anónimos, em rumores, em fontes hostis e tendenciosas; e porque se desprezara por completo as informações que o meu Governo forneceu, ou estas foram utilizadas de forma a diminuí-las ou anulá-las. Não podemos aceitar este procedimento: não podemos aceitar que a informação oficial, apresentada por um Governo membro, seja tratada com desprezo: e assim o dissemos na altura. Tenho a certeza de que o ministro da Libéria conhece estes factos, e por isso eu esperei que, dirigindo-se a este Conselho, se tivesse firmado em melhores fontes. Dou um exemplo. Disse o ministro: «a alegação do Governo português de que todos os africanos gozam dos mesmos direitos dos europeus, e podem eleger e ser eleitos para orgãos legislativos, não é apoiada por provas produzidas perante a subcomissão. Toda uma série de leis não escritas impõe à população africana um estatuto de séria desigualdade. Desde os requisitos financeiros até aos literários, tudo prova que é falsa a alegação, e o relatório indica que a grande maioria dos africanos não é constituída por cidadãos no verdadeiro sentido da palavra». Isto disse o ministro liberiano; e a questão é importante porque respeita a direitos políticos; e eu nego a exactidão do que foi afirmado. Não existem leis não escritas: tudo é regulado pela legislação em vigor. E que nos diz esta? Que todos podem votar desde que preencham uma de três condições: saber ler e escrever; ser chefe de família; ou pagar ao Estado, como imposto, cerca de três dólares anuais. Estas condições aplicam-se a todos indistintamente, e não há qualquer desigualdade no estatuto político de quem quer que seja. E eu poderia citar outras afirmações do ministro liberiano. Referiu-se, por exemplo, a «ficções e expediente rapidamente legalizados». Estas ficções, todavia, datam do século XVII. E o ministro disse: «na constituição portuguesa de 1822 nenhuns preceitos se referem às colónias». Não é verdade: refere-se-lhes o art. 132.º daquela Constituição. Mais adiante, o ministro afirmou: «é assim patente que toda a prosperidade de que Portugal possa gozar e todo o progresso que possa ser feito deve ser atribuído à existência das colónias, cujos habitantes têm, em troca, recebido um tratamento brutal e desumano.» Para além das expressões usadas, e que são deploráveis, impugno o fundamento desta afirmação, e digo o seguinte: os territórios ultramarinos possuem completa autonomia económica e financeira; votam e arrecadam os seus próprios impostos; e a lei proíbe que a riqueza produzida num território seja transferida para outro. Mas eu poderia destruir ainda outros passos do discurso do ministro da Libéria: não desejo, todavia, prolongar excessivamente esta declaração.

Escutei também atentamente as palavras do ministro dos Negócios Estrangeiros da Tunísia. Devo dizer imediatamente que lamento algumas das expressões que usou. Falou de uma «situação de agonia»; de um «pretexto frívolo»; de uma «repressão sem quartel»; de um «círculo vicioso de repressão», etc. São mais do que deploráveis estas expressões, sobretudo porque nenhuma ligação têm com a realidade. Quero salientar, porém, as três acusações principais lançadas por aquele ministro. Em primeiro lugar, o Sr. Slim disse que apenas em 1951 havíamos nós imaginado a «ficção ridícula» de designar os territórios como «províncias ultramarinas». Não é verdade. Fica-se estupefacto: como pode uma afirmação destas ser feita, e da mesma extraírem-se conclusões, após tão numerosos esclarecimentos dados nesta e noutras Organizações? Mais uma vez eu afirmo que data de 1612 a primeira lei portuguesa que usa a expressão «províncias ultramarinas», e cito a disposição pertinente: «A Índia e as outras terras de além-mar não são distintas nem separadas deste Reino, nem lhe pertencem por união, mas são membros do mesmo Reino como as outras províncias europeias; e são governadas pelos mesmos magistrados, de harmonia com as mesmas leis, e gozam dos mesmos privilégios como aquelas Províncias do dito Reino, e por consequência um homem que nasça e viva em Goa, ou no Brasil, ou em Angola, é tão português como o que nasça e viva em Lisboa.» Nós encontramos a mesma concepção numa nova lei de 12 de Março de 1633, e igual terminologia é empregue nas constituições políticas de 1822 (artigo 132.º), de 1832 (Título X), de 1842 (Título X), de 1911 (Título V), e de 1933 (artigo 135.º). Espero na verdade que o ministro dos Estrangeiros da Tunísia concorde finalmente comigo em que a «ficção» de que falou é pelo menos bem velha. Mas quero tratar agora de um segundo aspecto. O meu colega da Tunísia afirmou que «não pode ser seriamente sustentado haver o conflito sido instigado do exterior» porque «toda a subversão criada do exterior apenas pode ser efémera e destinada à falência». Dentro de um momento, ocupar-me-ei deste ponto mais em pormenor, mas desde já quero dizer o seguinte: o conflito foi na realidade instigado e organizado e abastecido do exterior. Concordo, todavia, com o ministro tunisiano: precisamente porque foi assim; precisamente porque o conflito não tem o mínimo apoio no interior dos territórios; precisamente porque não representavam ninguém aqueles que conduziram os ataques de 1961, nem possuíam a confiança dos povos; precisamente por tudo isto foi possível restabelecer a ordem, assegurar a normalidade de vida, fazer falhar os ataques terroristas; e dessa falência resultou alguma irritação e algum desapontamento em círculos estrangeiros; e o facto explica as manobras políticas que tentam encobrir o naufrágio da acção directa. Finalmente, o ministro da Tunísia discorreu longamente sobre «os bombardeamentos de uma aldeia senegalesa por aviões militares portugueses», e acrescentou: «aquilo que em 1961 o Conselho de Segurança considerou como provável ameaça à manutenção da paz e da segurança internacionais verificou-se infelizmente em 1963 com o bombardeamento de uma aldeia senegalesa». Eis um raciocínio na verdade surpreendente, que suscita um comentário: ficou provado em 1963 que não havíamos bombardeado qualquer aldeia senegalesa; e por nossa parte foi proposto um inquérito local por uma comissão imparcial. Recusou-a o Conselho; o incidente foi encerrado; e não tenho conhecimento de que haja ameaçado a paz e a segurança do mundo. Mas quando nos permitimos usar, para objectivos políticos, a nossa fértil imaginação, e tentamos criar factos ou inventar realidades que não existem, somos inexoravelmente levados a proferir afirmações artificiais e vazias que não resistem a exame detido.

Antes de findar esta parte das minhas palavras, quero dizer muito claramente ao ministro do Madagáscar que, como o seu Governo sabe, não é às baionetas e aos canhões que confiamos a nossa política, nem temos recusado a visita de personalidades designadas pelas Nações Unidas às províncias ultramarinas portuguesas. E ao ministro dos Estrangeiros da Serra Leoa quero simplesmente significar que, em minha opinião, não pode considerar como provocadora uma diferença de pontos de vista. E quanto às fantasias e à longa lista de mentiras expostas perante o Conselho pelo representante do regime de Khrouchtchev, desejo com singeleza negar categoricamente o que afirmou quanto aos soldados espanhóis, e tenho ainda a caridade de o esclarecer, para que esteja razoavelmente informado, de que Portugal não é membro do Mercado Comum.

(In Franco Nogueira, Debate Singular, Ática, Lisboa, 1970, pp. 93-106).



[1] Reunião efectuada na capital etíope, de 22 a 25 de Maio de 1963, em que participaram todos os países africanos e onde foi criada a Organização da Unidade Africana.

[2] O artigo 73.º  sob o título «Declaração sobre territórios não-autónomos» – prevê a prestação de informações por parte dos países que administrem territórios coloniais, nas condições ali previstas e segundo o critério dos países responsáveis. Foram estas informações que o Governo Português se recusou a prestar, por considerar os territórios portugueses como autónomos.


 

Continua