domingo, 28 de agosto de 2011

Estado e Pranto da Igreja

Escrito por Álvaro Pais 




Sé Catedral de Silves


«No século XIV foi Bispo de Silves D. Álvaro Pais, clérigo natural de Santarém, que antes exercera o cargo de Secretário do Papa João XXI, em Avinhão. Era homem extremamente culto, autor de vários trabalhos, entre os quais Do Poder Papal e Colírio da Fé contra as Heresias. Defendeu sempre a supremacia do poder papal sobre o dos reis. 

Em Silves malquistou-se com a população pelo facto desta se manter em erros e vícios como a poligamia, que muito atacou, e com o Comendador de Mértola. Por esse motivo, vítima de ameaças tremendas e de perseguição, teve de fugir da cidade. Diz uma tradição que, ao abandonar Silves, amaldiçoou a cidade do alto do Monte da Jóia e que, por isso, Silves começou desde logo a decair.

Em virtude de um conflito com o Rei D. Afonso IV, que o queria submeter às suas justiças, D. Álvaro Pais refugiou-se em Sevilha, onde morreu».


Garcia Domingues 





Estado e Pranto da Igreja


E que ninguém na terra pode apelar, salvo para Deus, do seu [Papa] juízo e sentença pronunciada de ciência certa […], porque apela-se do menor para o maior […]. Ora, o Papa só tem Deus como superior […]. Creio, no entanto, que se poderia apelar do Papa mal informado para o informar bem. […] Com efeito, podendo o Papa pecar e ser enganado como homem […], não deve ele, que foi posto para corrigir os erros dos outros, envergonhar-se se corrigir o erro próprio, a fim de não nascerem injustiças da fonte donde manam os direitos […] Também fez em favor disto o que se lê de Alexandre Magno, monarca do Oriente, quando uma vez cheio de fúria condenou à morte um seu soldado. Como apelou da sentença para o imperador, este perguntou-lhe: «Acaso não sou eu o imperador?» Ao que observou o soldado: «Não, porque o imperador não se enfurece». Devido a isto, o imperador Alexandre revogou a sentença, dizendo: «Dizes a verdade».

[…] Também em razão da jurisdição, que é boa, o Senhor determina se obedeça mesmo aos maus superiores. Causa I, q. I, cap. Non quales: «Portanto, considera, imperador: se ele disse para serem ouvidos os que se sentavam na cadeira de Moisés, quanto mais julgas que devem ser obedecidos os que se sentam na cadeira de Pedro?».

[…] E que a Igreja universal não pode errar senão em seus membros corruptos […], porque Cristo, que é a sua cabeça, ora pela fé dela […]. O Pai sempre ouve e atende a oração do Filho.

[…] E que, naquilo que não vai contra os artigos da fé e coisas a eles adjacentes e contra os sacramentos, o Papa pode mais sozinho que toda a Igreja Católica e os concílios […], porque toda a jurisdição vem dele; ele, porém, recebe-a imediatamente de Deus […].


Vaticano


[…] E que, salvo em certas coisas mínimas, ninguém, nem mesmo o colégio dos cardeais, vagando o papado sucede ao Papa na jurisdição. Todavia, durante a vacatura do Papado, parece que a assembleia dos cardeais pode excomungar ou anatematizar […].

[…] E que, mesmo que nesta vida o Papa faça ofensa ou injustiça a alguém, não tem juiz sobre si, nem é obrigado a escolher juízes ou árbitros a cuja sentença se sujeite, se não quer. […]

E não se diga: assim, o Papa, às vezes, agravará uma pessoa, esta não encontrará justiça sobre a terra, e deste modo perecerá a justiça. Confesso que pode acontecer que o Papa proceda contra a justiça ou peque […] e que a justiça algumas vezes seja banida. Mas não admira, porque muitas coisas, que ficam impunes neste mundo, estão reservadas para o juízo divino […], mormente os actos do Papa […]. E note-se que, se o Papa delinquir, será punido junto de Deus mais severamente que outrem.

Também não é obrigado a eleger árbitros, porque então seria coagido, ao menos por medo da pena, a cumprir a sentença deles […]. Mesmo que entre as partes se estabelecesse ou dissesse que o cumprimento da pena ficava ao arbítrio do Papa, a verdade é que este seria condenado pela arbitragem […]. E, assim, o Papa, que não pode ser condenado por via ordinária, seria condenado por via arbitral, o que não deve fazer-se, pois aquilo que se proíbe por uma via não deve regularmente admitir-se por outra […].

Ora, o Papa nem directa nem indirectamente pode ser condenado, nem dar a ninguém o poder de o julgar, embora, por humildade, o tenha feito algumas vezes […].

E não obsta o que se nota à dist. LXIII, cap. in synodo, na glosa sed numquid, porque não é verdade o que João [André] aí observa: que o Papa, em caso de heresia, pode dar ao imperador o poder de o depor com o consenso dos cardeais. Sendo o Papa constituído pelo Senhor, príncipe e juiz de tudo […], e pelos Apóstolos […], é impossível pelo direito que o próprio Papa possa constituir sobre si outro príncipe ou juiz superior, ou um arquipapa ou um Papa igual a si, tal como também Deus Trindade não poderia constituir outro Deus superior ou igual a si. […]

Portanto, se o Papa permanecesse incorrigível em heresia já notoriamente condenada, e, podendo, não quisesse renunciar ao Papado […], então os cardeais poderiam e deveriam afastar-se dele e escolher outro, porque foi privado por sentença de direito […].

Note-se também que o Papa herético é inferior a qualquer católico, caso em que eu creria que o sínodo universal, que é a cabeça da Igreja em lugar de Deus, visto que a Igreja nunca fica de tal modo vaga que não tenha cabeça, Cristo […] o poderia condenar, assim como o Papa católico pode condenar o Papa não católico […]. E até nesse caso não é necessária sentença, porque a primeira heresia pertinaz priva pelo próprio direito qualquer um do benefício; sim, é privado pelo direito, como acabo de dizer e está expresso nas decretais do livro 6º De Haereticis, cap. VI commissi, § Priuandi, onde diz «[concedemos a faculdade] de privar ou declarar privados das dignidades e outros benefícios eclesiásticos», e no § Sunt autem, onde diz «declarar privados».


[…] E que o Papa tem jurisdição universal em todo o mundo, não só nas coisas espirituais, mas também nas temporais. No entanto, deve exercer a execução do gládio e jurisdição temporal por meio do seu filho o imperador legítimo, quando o haja, como advogado e defensor da Igreja, e por meio de outros reis e príncipes do mundo, como acontece no património da Igreja […], e noutras terras da Igreja por meio de seus governadores. Porque, assim como há um só Cristo, sacerdote e rei, senhor de todas as coisas, assim também há um só vigário-geral seu na terra e em tudo. Para isto, Jeremias, I: «Eis que te constituí hoje sobre os povos e sobre os reinos…», etc. Ora, Jeremias sacerdote foi a figura do Papa, como argumenta Inocêncio III, decretais, De maioritate et obedientia, cap. Solitae, §. Nos autem, onde diz: «para mostrar como alheio ao seu ovil aquele que não reconhecesse como mestres e pastores a Pedro e seus sucessores». Os pastores são tomados por Cristo como senhores das ovelhas. […] Item, invocando o nome do Senhor, Samuel, que, embora não seja sacerdote, figura o Papa, julgou e governou o povo de Israel em todos os seus dias […]. Item, Melquisedech, sacerdote de Deus Altíssimo, foi rei de Salém, isto é, de Jerusalém […], e teve a figura de Cristo […], e, assim, do Papa, vigário de Cristo […]. Item Moisés sacerdote […] representou a pessoa de Cristo […], e governou em toda a sua vida o povo de Israel. […]

Item, o gládio de Pedro é gládio temporal. Mateus, XXVI, diz: «Mete a tua espada na bainha», e causa XXIII, q., I, § I. Item, na família de Cristo, havia dois gládios. Lucas, XXII: «Eis aqui duas espadas», nas quais, segundo o doutores, se entende a dupla jurisdição […]. A favor disto fazem a dist. X, cap. Suscipitis, onde diz «a lei de Cristo submete-vos ao poder sacerdotal e sujeita-vos a estes tribunais» a causa I, q. IV, cap. Quia praesulatus: «Porque o magistério do nosso governo, que, bem sabeis, deve ser solícito, não só com os interesses dos sacerdotes, mas também com os dos seculares». Dist. XXII, cap. Omnes: «o qual (Cristo) confiou ao santo clavígero da vida eterna os direitos do império terreno e os do império celeste simultaneamente» quando disse «Apascenta as minhas ovelhas» […], palavras estas com que Cristo fez a Pedro pastor e prelado do mundo […], não distinguindo nessas palavras entre estas e outras ovelhas, clérigos ou seculares.

Item, o Papa priva os reis dos seus reinos e o imperador do seu império […].

Item, o imperador presta juramento de fidelidade ao Papa […].

Item, o Papa intromete-se na herança temporal […].

Item, como as almas são mais preciosas que os corpos, e as coisas espirituais mais dignas que as temporais […], àquele a quem foram confinadas as almas e as coisas espirituais, muito mais se devem confiar os corpos e as coisas materiais […].

Item, Cristo usou os dois gládios, como se lê e nota na dist. X, cap. Quoniam. Ora, Cristo, constituindo Pedro seu vigário, não lhe dividiu a jurisdição que tinha; entende-se que lha concedeu completamente como a tinha […].

Item, o Papa é vigário não dum puro homem, mas de Deus […]; logo, também pertencem ao Papa a terra e a sua plenitude.

Item, assim como há um só Deus, uma só fé, como acima se disse, um só vigário de Deus, assim também há uma só jurisdição.

Item, os imperadores pagãos e idólatras nunca possuíram justamente, tomando-se a justiça no sentido teológico ou divino […], porque quem não está verdadeiramente com Deus Senhor de tudo, mas contra ele por idolatria ou heresia, nada pode verdadeiramente possuir sob Ele […]; logo, os reinos dos idólatras e pagãos que não prestam verdadeiro culto a Deus, embora por eles ocupados, voltaram com razão para a Igreja, à qual, aliás, antes pertenciam, conforme se lê na causa XXIII, q., cap. I, onde diz «segundo o direito divino pelo qual todas as coisas são dos justos» e abaixo, «por isso falsamente chamais vossas às coisas que não possuís justamente», e depois «já que ledes que está escrito: Os justos comerão os trabalhos dos ímpios». E no predito cap. Si de rebus: «Para todos os ímpios e iníquos vale aquela voz do Senhor: Ser-vos-á tirado o reino de Deus e dado a um povo que faça justiça (Mateus, XXI, no fim)». Eclesiástico, X: «Um reino é transferido dum povo para outro por causa das diversas injustiças, violências, ultrajes e enganos»; e abaixo: «Deus destruiu os tronos dos príncipes soberbos e em seu lugar fez sentar os humildes». Item, no cap. Si de rebus: «Os justos comerão os trabalhos dos ímpios»; e abaixo, no V, Aliquim: «Aliás, também os próprios Judeus, a quem foi, segundo as palavras do Senhor em Mateus, XI, tirado o reino e dado a um povo que faz justiça, podem objectar com a concupiscência da coisa alheia, visto que a Igreja de Cristo possui os lugares onde antes reinavam os perseguidores de Cristo.» […]

Item, uma razão de João [André] pela qual o imperador não pode revogar a doação feita à Igreja pelos seus predecessores é a de que ele deu à Igreja coisas que antes eram dela […].



São Pedro



Item, observa Lourenço à dist. X, cap. Quoniam, que o Papa tem ambos os gládios, e que se faz mister conceder que nenhum imperador, se não recebeu o gládio das mãos da Igreja Romana, o aplicou ilegitimamente, sobretudo depois que Cristo concedeu os direitos dos dois poderes a S. Pedro. Foi por entender assim que Constantino, na resignação das insígnias reais, entregou o gládio a S. Silvestre, mostrando desta maneira que não usara legitimamente do poder da espada, nem legitimamente o possuíra, visto não o ter recebido da Igreja, conforme vem nas crónicas […].

Item, sustenta o Ostiense que, embora as jurisdições sejam distintas quanto à execução, todavia o imperador transferiu o império dos Gregos para os Germanos por concessão da Igreja Romana na pessoa de Carlos Magno, e o Papa confirma, unge, coroa, aprova, reprova e depõe o imperador, como está patente no cap. Venerabilem, § Verum, V, Praesertim, visto tal direito e poder terem ido da Sé Apostólica para eles. […] Além de que, vagando o império, sucede-lhe a Igreja […].

Item, afirma o Ostiense que, quando o Senhor disse a Pedro «Dar-te-ei as chaves do reino dos céus», não disse a chave, mas as chaves, isto é, duas, uma para fechar e abrir, e ligar e absolver quanto às coisas espirituais, e outra para usar quanto às coisas temporais […]. De facto, sendo nós um só corpo e um só espírito em Cristo, e uma só esperança da nossa vocação, e havendo um só Senhor e uma só fé, um só baptismo, e um só Deus […], seria monstruoso que tivéssemos duas cabeças […].

Item, em Mateus, últ., diz Cristo: «Foi-me dado todo o poder no céu e na terra»; ora o Papa, ainda que seja vigário do verdadeiro Deus na terra […], não tem, todavia, senão a vigararia de Deus homem, porque Cristo, enquanto Deus, está sempre na terra, pois Deus enche todas as coisas […], e não precisava de vigário; mas, enquanto verdadeiro homem que havia de subir ao Pai, deixou a Pedro e seus sucessores o cuidado do seu rebanho, para não o deixar sem pastor […]. Porém, nas preditas palavras «Foi-me dado, etc…» o Filho de Deus fala como verdadeiro homem, porque, enquanto Deus, teve sempre o mesmo poder que o Pai. Daí Atanásio dizer: «Omnipotente é o Pai, omnipotente é o Filho, etc…» […]. Item, diz todo; portanto, não exceptua nada […]. Item, diz na terra; poder que Cristo teve, não só como verdadeiro Deus, mas também como verdadeiro homem. […] Com efeito, o Papa é, nisto, o sucessor do primeiro homem, Adão, pois antonomástica e tipicamente Deus Filho formou o Papa seu vigário à sua imagem e semelhança (Gén., I). De facto, o Papa representa verdadeiramente Cristo na terra, por forma que aquele que o vê com olhos contemplativos e fiéis vê também a Cristo. […]

Item, Cristo, mesmo enquanto homem, foi rei. Assim, de facto, foi dito a seu respeito (Zacarias, IX): «Eis o teu rei, etc…», e assim se vê em Mateus, XXI e XXVII, em Lucas, XXIV, e no título de rei posto por Pilatos «Jesus Nazareno, rei dos Judeus» (João, XIX). Salmos, LXXI: «Ó Deus, dá a tua equidade ao rei». Lucas, I: «e reinará na casa de Jacob». Daniel, II, para o fim: «Nos dias, porém, daqueles reinos suscitará o Deus do céu um reino, etc…». Ora, o imperador deste reino universal não é vigário de Cristo, visto que não há dois vigários, como mais acima se provou; logo, o Papa é vigário, porque não há outro vigário e o reino do mundo não existe sem vigário de Deus.

Esta verdade de que o Papa tem ambos os poderes, embora seja obrigado a cometer a outrem a execução do gládio temporal, é sustentada, como comum, na glosa ordinária às decretais, Qui filii sint legitimi, cap. Causam quae II, e De iudiciis, cap. Nouit (Estado e Pranto da Igreja, in Álvaro Pais, Editorial Verbo, 2001, pp. 89-92; 96-101).


Sé Catedral de Silves


sexta-feira, 26 de agosto de 2011

El-Rey-Menino

Escrito por António Nobre 






Anda tudo tão triste em Portugal! 
Que é dos sonhos de glória e ambição? 
Quantas flores do nosso laranjal 
Eu irei ver cahidas pelo chão! 

Meus irmãos Portuguezes, fazeis mal 
Em ter ainda no peito um coração. 
Talvez só eu! (Amôr ai tu m'entendes!) 
Possa ainda ter a paz que já não tendes. 

Talvez só eu irmãos! mas é que a mim 
Deve o Senhor as flores com que s´enfeita 
A mocidade!... que é d'elle o meu jardim! 
Dizei-me vós irmãos, na vida estreita 
Toda a desgraça não terá um fim? 
Se a ventura não pode ser perfeita 
Tenho agora a Pátria em sepultura! 
Que mais quereis da taça d'amargura? 

Virá, um dia, carregado de oiros, 
Marfins e pratas que do céu herdou, 
O Rei menino que se foi aos moiros, 
Que foi aos moiros e ainda não voltou. 

Tem olhos verdes e cabellos loiros, 
Ah não se enganem, (e ainda não chegou) 
Virá El-Rey-Menino do Estrangeiro, 
N'uma certa manhã de nevoeiro...
Tem loiros os cabelos, e é criança, 
Tem olhos verdes de luar nocturno:

Olhos verdes, são olhos de esperança! 
Olhos verdes, são luas de Saturno! 
Veio da África mais a sua lança 
Vae p'lomundo, rezando taciturno. 
Tão pobrezinho, olhae! estende a mão: 
«Quem dá esmola a D. Sebastião?» 

Esperae, esperae, ó Portuguezes! 
Que elle há-de vir, um dia! Esperae. 
Para os mortos os séculos são mezes, 
Ou menos que isso, nem um dia, ai. 
Tende paciência! finarão revezes; 
E até lá, Portuguezes! Trabalhae. 
Que El-Rey-Menino não tarda a surgir, 
Que elle há-de vir, há-de vir, há-de vir!





quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Palmas para Keynes

Escrito por Olavo de Carvalho







Época, 16 de setembro de 2000

Ele fez do capitalismo o regime mais confortável para a esquerda

Cresci ouvindo dizer que Lord Keynes fora o salvador do capitalismo. Precisei de uma vida inteira para descobrir que o desgraçado protegera o círculo de espiões soviéticos em Cambridge, que a aplicação de suas teorias nos Estados Unidos dera a maior zebra e só a guerra conseguira resgatar do naufrágio o New Deal inspirado por ele.

A mágica besta da economia keynesiana consistia em fazer do Estado o maior dos capitalistas, colocando-o à frente de grandes projetos industriais. De imediato, tinha um efeito formidável, porque gerava empregos. À objeção de que a longo prazo isso resultaria numa inflação dos diabos, os impostos subiriam até o céu, os operários seriam pagos com papel pintado e teriam de se matar de trabalhar para sustentar uma burocracia cada vez mais voraz, Keynes respondeu com a célebre evasiva: “A longo prazo, estaremos todos mortos”. Keynes, de fato, morreu em 1946, mas a maioria dos americanos ainda viveu para carregar o Estado keynesiano nas costas até que Ronald Reagan cortasse os impostos em 1981, iniciando a recuperação econômica de que os EUA se beneficiam até hoje.

De onde vinha então o prestígio de Keynes? Vinha da esquerda. A roda de milionários, estrelas de Hollywood e intelectuais mundanos que nos anos 30 personificavam a moda do stalinismo chique – tal era, em substância, a platéia de seu show. Os fios juntavam-se. Stálin havia determinado que o Partido Comunista dos EUA não cuidaria de organizar o proletariado, mas só de arregimentar o beautiful people para subsidiar o comunismo europeu e dar-lhe o respaldo moral de celebridades com aparência de independentes. Daí a profusão de espiões comunistas e “companheiros de viagem” nos altos círculos da Era Roosevelt. A ampliação da burocracia estatal era de interesse direto para essa gente. Quando, na década de 60, a difusão das obras de Antonio Gramsci ensinou aos esquerdistas que para tomar o poder eles não precisariam fazer uma insurreição, bastaria que dominassem o aparelho de Estado pouco a pouco e de dentro, gramscismo e keynesianismo descobriram que tinham sido feitos um para o outro. De seu matrimônio espontâneo nasceu a esquerda atual. A base dela já não está no proletariado, soberbamente conservador, mas na burocracia administrativa e judiciária, nos organismos internacionais, nas ONGs, na imprensa, nas universidades – e, de outro lado, no variado leque de “minorias”, as quais, recrutadas segundo os critérios mais desencontrados (sexuais, etários, raciais, regionais), não têm em comum senão o ressentimento sem objeto e a dependência da tutela do Estado, o que faz delas a massa de manobra ideal para keynesianos e gramscianos.

Essa esquerda ocupa os melhores postos, come a parte mais nutritiva das verbas do orçamento, faz as leis, impera sobre a mídia e, ao mesmo tempo, fala em nome dos revoltados contra o establishment – os quais, precisamente, não sabem que ela é o establishment.

Lord Keynes não salvou o capitalismo. Se o fizesse, seria odiado pela esquerda. O que ele fez foi tornar o capitalismo o mais confortável dos regimes para a elite esquerdista, criando a base econômica da “longa marcha para dentro do aparelho de Estado” planejada por Gramsci. Eu também o aplaudiria, se meu sonho na vida fosse ser um comunista chique.






segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Teoria do dinheiro (ii)

Escrito por Orlando Vitorino 








O mercado do dinheiro designa-se por banca e reúne aquelas instituições, os bancos, que emitem e vendem dinheiro (8).

Quando o Estado chamou a si o exclusivo da emissão do papel-moeda, instituiu um banco próprio, geralmente designado por «banco central», para através dele proceder àquela emissão. Aos outros bancos coube a função de distribuir, vendendo-o, o dinheiro emitido pelo banco central, e viram-se eles limitados a só emitirem «substitutos do dinheiro»: certificados de crédito e meios fiduciários. Os primeiros são documentos que certificam que o seu possuidor dispõe de um depósito em dinheiro equivalente ao inscrito nesses documentos (o papel-moeda é um certificado de crédito emitido pelo banco central); os segundos são documentos a que é atribuído um determinado poder aquisitivo, cujo reconhecimento ou aceitação depende da confiança, ou fidúcia, de quem recebe tais documentos em que quem lhos entrega os pode converter em dinheiro.

O abandono ou o simples afastamento do padrão-ouro faz que o papel-moeda passe de certificado de crédito a meio fiduciário, pois, nessas condições, o Estado acaba sempre por libertar o banco central da obrigação de o converter na moeda que nele está inscrita. As populações vêem-se, então, obrigadas a confiar que o papel-moeda tem o poder aquisitivo que lhe é atribuído pelo Estado embora na realidade o não possua por não corresponder nem à quantidade de mercadorias existentes no país nem a uma mercadoria - no caso, a de uma reserva de ouro - em que seja convertível. A sua aceitação e circulação só perduram graças a uma convenção social. O papel-moeda, não o dinheiro como pretendia A. Smith, é o «sinal convencionado».

A convenção social é necessariamente tácita, pois no momento em que se tornasse expressa logo ficaria desfeita. Expressando-a, as populações teriam de saber e reconhecer que o papel-moeda não possui garantia, a base de confiança que o sustenta seria substituída pela desconfiança universal e o Estado, responsável por toda esta situação, não poderia sequer restabelecer a confiança perdida. Preservada a convenção social pela taciturnidade, o Estado procura ainda fortalecê-la pelo segredo, evitando e impedindo que se saiba, com um saber manifesto e fundamentado, como o papel-moeda não é dinheiro nem convertível em dinheiro, como não é um «certificado de crédito», como não é mais do que um «meio fiduciário». Mas uma ameaça fica a todo o momento suspensa sobre a convenção social: reside ela no câmbio entre as diferentes moedas nacionais.

A determinação do poder aquisitivo da moeda, que passara da relação entre o dinheiro e o ouro à relação entre a quantidade da moeda e a quantidade das mercadorias, passa agora à relação de cada moeda com as outras moedas nacionais. Com efeito, quando se compra moeda de um país é para a utilizar adquirindo mercadorias existentes nesse país. Se, aí, a quantidade de mercadorias não corresponde à quantidade da respectiva moeda, arrisca-se o comprador a não encontrar mercadorias a adquirir, arrisca-se a que seja nenhum o poder aquisitivo da moeda que comprou. Nestas condições, tal moeda só obtém novo comprador desde que o seu preço desça até ao ponto de compensar aquele risco. O câmbio constitui, deste modo, a última defesa das populações contra as arbitrariedades do Estado, pondo a descoberto o que, na circulação da moeda dentro das fronteiras do país de origem, pode permanecer oculto graças à tácita convenção social existente e ao segredo com que o respectivo Estado a resguarda.

Frederico Hayek e Ludwig von Mises


Todos igualmente sujeitos a esta denúncia das suas arbitrariedades, os Estados procuram entender-se para assegurar o segredo no âmbito internacional, para o largar ao câmbio entre as moedas. Criam, então, os institutos de divisas para os quais transferem a função, antes atribuída aos bancos centrais, de determinar o poder aquisitivo da moeda, que reside agora na relação cambial, e do qual a posse de divisas, isto é, de dinheiro estrangeiro, passou a ser a garantia ou o padrão. É que os bancos centrais, como bancos que são, ainda têm de obedecer a algumas regras do mercado, uma das quais os obriga a apresentar aos seus clientes, que são toda a população do país, balanços periódicos da suas contas. Aquela transferência corresponde à transferência da garantia dada pelo ouro e, depois, pela quantidade das mercadorias para a garantia dada pela correspondência entre as diversas moedas nacionais. Os bancos centrais ficam, então, reduzidos a instrumentos de emissão e venda, no mercado interno, do papel-moeda com um poder aquisitivo que lhe é atribuído pelas divisas de que aqueles institutos detêm a posse, a negociação e o segredo. Von Mises resume assim as características desses institutos: são secretas as suas transacções de divisas, o segredo permite-lhes favorecer as entidades gratas ao Governo e desfavorecer as que o não são, a paridade não se fixa e estabelece-se a pura arbitrariedade burocrática (9).

Instrumento deste novo segredo é a chamada «paridade flexível» que se veio a instalar na generalidade dos países. Consiste ela em atribuir à transacção entre as moedas uma taxa variável, ou seja, a correspondência que os governantes entenderem conveniente (10).

Nada haverá, então de seguro, e as populações ficam de mãos atadas perante o Estado: o valor do que possuem, do que cada um e todos possuem, depende, como os escravos dependem do senhor, daquilo que os governantes, entre si e em segredo, decidam que ele tenha.

Estas deduções de von Mises encontram hoje uma eloquente confirmação no colapso do «sistema monetário internacional» resultante do Acordo de Bretton Woods. Vale a pena contar a história, socorrendo-nos do insuspeitável testemunho do economista inglês Paul Bareau que participou nas negociações daquele Acordo como membro da delegação britânica e foi director do Banco Mundial e do FMI (11).

As deduções de von Mises foram publicadas, em seus termos mais sistemáticos, em 1942, e a situação já então existente confirmava-os plenamente. Em 1946, terminada a guerra mundial, realizou-se o Acordo de B. Woods e até 1971, durante vinte e cinco anos, viveu-se um período de «crescimento económico sem precedentes» que justificou deixarem-se esquecidas as sombrias perspectivas do teorizador austríaco.










O Acordo conservava a referência das moedas ao padrão-ouro, mas tratava-se de uma referência ameaçada e, na realidade, já destruída pela política económica adoptada por F. D. Roosevelt a partir de 1933 quando proibiu o entesouramento do ouro e estabeleceu a obrigação de todos, incluindo os bancos, o entregarem ao Estado a um preço que era fixado todos os dias pelo próprio Presidente dos EUA da forma mais arbitrária e leviana. Reside aqui mais um exemplo da indiferença dos Governos pelos interesses da economia e das populações. Transcrevendo uma página do «Diário», de H. Morgenthau, na época secretário do Tesouro ou ministro das Finanças, dos EUA, Paul Bareau conta-nos que «numa ocasião, quando Morgenthau e o presidente estavam estudando o preço do ouro para esse dia, Roosevelt propôs um aumento de 21%, justificando-o assim: é um número de sorte, três vezes sete...». As consequências de tanta leviandade levaram o Congresso ou o Parlamento americano a retirar ao Presidente o poder de alterar o preço do ouro e a fixá-lo por lei em 35 dólares a onça. Tratava-se, igualmente, de uma prepotência do Estado, pois só o mercado está em condições de determinar o preço das mercadorias. Fixado pelo Estado, o preço do ouro não podia corresponder à mobilidade das transacções. Era, porém, um acto político que consagrava orgulhosamente a «inviolabilidade do dólar» e já reflectia a opinião keynesiana de que o padrão-ouro é «remanescente de uma era de barbárie». Criou-se deste modo a anarquia financeira, em grande parte responsável pela Segunda Guerra Mundial, e foi em tais condições de falsificação do preço da moeda que, terminada a guerra, o Acordo de Bretton Woods se propôs estabelecer uma certa ordem criando o «sistema monetário internacional» ainda hoje existente. O FMI que, com o Banco Mundial e o GATT, saiu daquele Acordo, destinava-se a constituir com as quotas dos diversos países nele reunidos, um fundo financeiro para ocorrer às exigências do comércio internacional. Ora aconteceu que aquelas quotas se mostraram inferiores aos recursos necessários e as reservas que elas constituíam tiveram de ser reforçadas com suplementos que foram, quase exclusivamente, de dólares americanos. «Quase sem disso se aperceber - escreve P. Bareau - o mundo transitou do padrão-ouro ao padrão-dólar». Aproveitando tal situação e movidos por imperativos nacionalistas, os EUA emitiram tais quantidades de moeda que o dólar deixou de ser escasso, deixou de ser estável e deixou de merecer confiança. Mas como ainda se mantinha, em parte, convertível em ouro e como os EUA detinham a maior reserva de ouro do mundo, conseguia ir concitando, para ele e para o sistema de B. Woods, uma certa confiança. Ora, em 1971, o Presidente Richard Nixon «suspendia até essa restrita e parcial convertibilidade que restava», numa decisão que acompanhou de uma exclamação decerto abusiva, ai dele!, a Milton Friedman: «Agora sim, agora é que somos todos keynesianos!». Paul Bareau comenta: «Aqui desceu o pano sobre o Acordo de Bretton Woods».


Entrou-se, então, decididamente no período do câmbio flutuante e logo se gerou uma tal confusão que, apenas cinco anos depois, em 1976, se reconheceu a necessidade de rever o sistema monetário. Nesse ano, os países membros do FMI reuniram-se na cálida Jamaica para procederem a emendas ao Acordo, mas quando se esperava o estabelecimento de uma paridade fixa entre as moedas, o que de lá saiu foi o contrário: «a flutuação tornou-se uma norma reconhecida». A esta decisão já gravíssima, uma outra, ainda mais grave, se acrescentou. Foi a «substituição do ouro pelos DES - Direitos Especiais de Saque, unidades inteiramente fictícias, meros truques de contabilidade - que seriam criados, emitidos, recolhidos e cancelados ao sabor da suprema sabedoria do FMI que actuaria com a autoridade supranacional de um banco central mundial». Ora essa suprema sabedoria determinou que o valor dos DES se basearia na média de um grupo de dezasseis, mais tarde reduzidas a cinco, moedas nacionais. «O princípio implícito em todo esse processo que vai do padrão-ouro para um papel-moeda colectivo é o que já se denominou por estatização do dinheiro». E depois de descrever as consequências de tal estatização - entre as quais se conta «a criação de sedutores e perigosos privilégios» - Bareau conclui que «a garantia contra tanto abuso do poder é a convertibilidade das moedas num padrão-mercadoria» e recomenda: «em meu entender, esse padrão-mercadoria deve ser o ouro».

Assim termina nos nossos dias em abuso do poder pelos governantes, em indiferença e desdém pelos interesses das populações, em inflação e instabilidade da economia, a última tentativa, realizada por Acordo entre numerosos países, para prolongar um sistema que veio descendendo do abandono do padrão-ouro ao abandono da correspondência entre a quantidade da moeda e a quantidade das mercadorias e deste ao estabelecimento da paridade flexível, decidido em segredo pelos Governos, das diversas moedas nacionais.

Com o abandono do padrão-ouro perdeu-se aquela simplicidade que fazia do dinheiro um instrumento da justiça; com o abandono da correspondência entre a quantidade da moeda e a quantidade das mercadorias, perdeu-se o que fazia do dinheiro um instrumento da liberdade; com a paridade flexível, perde-se agora a projecção na economia da existência das pátrias.

Perde-se a projecção na economia da existência das pátrias, dizemos, e perde-se a imediata evidência que a economia dá a cada um da necessidade dessa existência. Trata-se de uma realidade essencial mas a que os teorizadores da ciência económica, estranhamente, nunca atenderam, antes vendo na existência de diferentes repúblicas um obstáculo ao perfeito funcionamento do sistema da economia. O próprio von Mises é um exemplo desta estranha atitude. Muitas vezes utiliza ele, para fazer valer os seus argumentos ou apenas os explicitar, a hipótese de uma república mundial que acompanha de declarações atribuindo à existência das nações, à divisão do mundo em diferentes entidades nacionais e ao nacionalismo, a causa dos clamorosos erros que denuncia na economia contemporânea, como seja o ódio - a expressão é dele - ao padrão-ouro. É possível explicar esta atitude do grande teorizador pelas perturbações da época em que viveu e o sujeitaram a muitas espécies de atribulações e sofrimentos não apenas vividos - o exílio e a pobreza, por exemplo - mas também intelectuais. Era em nome do nacionalismo alemão ou aurindo suas forças no nacionalismo russo, que via instaurar-se o intervencionismo socialista.


De certo modo, esta posição de von Mises corresponde à imagem também mundialista que Adam Smith formava do dinheiro e do comércio, ele que via a economia como um sistema que sucedera ao da agricultura. Diz, por exemplo, que o «ouro circula entre os países comerciantes como a moeda circula dentro de cada país: pode considerar-se a moeda da grande república mundial do comércio» (12).

Tais posições têm, por sua vez, equivalência na banalizada convicção popular de que «o dinheiro não tem pátria».

Ora a verdade é que de nada, como do dinheiro, se pode com mais razões afirmar que tem pátria. Sem a variedade das moedas nacionais, não haveria troca e mercado do dinheiro, e desapareceria o último e mais resistente instrumento, que é o câmbio, para, abandonados os outros padrões, conhecer ou apreciar o poder aquisitivo da moeda e defender as populações das arbitrariedades, então definitivamente instaladas no intervencionismo, dos sucessivos e sempre ocasionais governantes (13).

Dissemos também que se perdeu, com o abandono do padrão-ouro, a simplicidade que fazia do dinheiro um instrumento da justiça. Com efeito, ligada ao ouro e identificada com a mercadoria que o ouro é, a apreciação ou o preço da moeda torna-se patente e imediatamente acessível a todos os homens, desde os que se encontram no mais recôndito rincão do globo até aos mais envolvidos no turbilhão das grandes metrópoles, desde os mais incultos até aos mais doutos. Todos eles igualmente sabem estabelecer a relação das mercadorias que cada um possui com a mercadoria universal presente no dinheiro e, através dela, com todas as mercadorias existentes. Cada um sabe, pois, o que possui ou lhe pertence, e a justiça consiste, como já vimos e conforme Platão estabeleceu, em reconhecer o que pertence a cada um. Ao mesmo tempo, dando a cada coisa privada uma dimensão universal, estabelecendo a correspondência entre a propriedade, o trabalho e a produção de todos os indivíduos, o dinheiro é, conforme disse já Hegel, a real e concreta expressão da solidariedade universal dos homens.

Sem o padrão-ouro, uma complexidade inextricável veio substituir a simplicidade que ele representava e tornar possível multiplicar até ao infinito das abstracções intelectuais, as propostas, as combinações e os cálculos que transformaram a ciência económica num areal estéril onde os contabilistas encontram o seu paraíso vazio e se entretêm a traçar fugazes caminhos que levam a nenhures. A justiça fica separada da vida real das populações e da existência quotidiana dos indivíduos e a economia torna-se um labirinto de crises permanentes que ninguém consegue decifrar.

Dissemos, finalmente, que, com o abandono da correspondência entre a quantidade da moeda e a quantidade das mercadorias, se perde o que, depois de abandonado o padrão-ouro, fazia do dinheiro um instrumento da liberdade. Com efeito, abandonada aquela correspondência, o dinheiro deixa de oferecer à escolha dos homens, consoante as suas carências, seus interesses e seus desejos, a totalidade das mercadorias existentes. Trata-se, aqui, da liberdade de escolher que é, decerto, uma forma inferior da liberdade, embora seja aquela que, indispensável a todos os homens, a maioria deles unicamente conhece. Mas outra forma de liberdade o dinheiro oferece: a de tornar possível o ócio, quer dizer, o estado propício ao pensamento que é onde reside a insofismável liberdade.






Na categoria do dinheiro se torna, pois, presente o fim da economia. Não é esse fim, como pretenderam os que fizeram merecer à ciência económica a designação de «melancólica ciência», administrar a escassez das coisas, contabilizar o que sempre será escasso para satisfazer as carências dos homens quando por carências se entenderem as veleidades sem desígnio, os desejos sem conteúdo e as ambições sem limite. O fim da economia é alcançar, no dinheiro, o instrumento da liberdade. E porque este fim só se alcança no termo de cada ciclo de articulação das categorias, porque cada ciclo é composto de trânsito e de retorno, da categoria do dinheiro reverte a liberdade para todos os momentos, fases e categorias dos sucessivos ciclos que, sem cessar, a actividade económica transcorre e recorre (in ob. cit., pp. 135-144).


Notas:

(8) O rigor destas designações não deixará de ser discutível, sobretudo para os contabilistas. Dirão, por exemplo, que os bancos não são as únicas instituições que emitem e vendem dinheiro; mas essas outras não são mais do que variantes ou prolongamentos, mais ou menos ocasionais, da banca. Dirão ainda que a banca não se limita a emitir e vender dinheiro, pois também o compra, é certo, mas só em certas condições o compra e sempre o compra para logo o vender. Na banca, o dinheiro não tem finalidade de uso (entendendo por uso do dinheiro a compra de bens, por exemplo, ou o investimento) mas apenas de troca.

(9) Ob. cit., p. 572.

(10) Von Mises observa que os governantes utilizam a taxa flexível para desvalorizar a moeda e apresentam a desvalorização como tendo por finalidade «combater um suposto desequilíbrio estrutural entre o nível dos preços nacionais e o nível dos preços internacionais». O certo é, porém, que os verdadeiros objectivos da desvalorização são os seguintes:


- manter os salários nominais enquanto os reais descem;
- incrementar os preços em termos de moeda nacional;
- favorecer os devedores à custa dos credores;
- fomentar as exportações e diminuir as importações;
- atrair o turismo e tornar mais difíceis as deslocações dos naturais ao estrangeiro.


Von Mises acrescenta: «São tão confusos e contraditórios os argumentos em favor da desvalorização da moeda que não merecem ser objecto de crítica». E utilizando o exemplo da grande depressão de 1929, afirma: «O que as autoridades na verdade fizeram foi capitular perante os chefes sindicalistas, os quais, para salvarem o prestígio, resistiam a reconhecer que a política salarial que preconizavam tinha fracassado, provocando o maior desemprego conhecido na história. Foi um recurso desesperado a que deitaram mão estadistas débeis e ineptos mas desejosos de se manterem no poder a todo o custo» - ob. cit., pp. 949 e 950.

(11) O testemunho de P. Bareau foi expresso numa conferência, «Desordem do Sistema Monetário Internacional: de B. Woods aos DES», depois publicada pelo Instituto de Assuntos Económicos, de Londres, e transcrita no n.º 49, de 6 de Dezembro de 1982, da revista brasileira «Visão». É desta versão brasileira que nos socorremos.




(12) Adam Smith, «A Riqueza das Nações», ed. cit., Liv. IV, Cap. I, p. 34.

(13) Tornam-se mais críveis as raízes emocionais da posição mundialista de von Mises, quando observamos como ele descreve as consequências antinacionais da paridade flexível. Diz ele:

«Quando, no sistema padrão flexível, a descida da paridade é mais acentuada, costuma falar-se de desvalorização da moeda (...). A desvalorização, seja ela mais ou menos acentuada, apresenta como um dos seus principais objectivos o de restabelecer o normal desenvolvimento do comércio externo. Ora os efeitos que a manipulação da moeda tem no comércio externo vedam às pequenas nações interferir nos câmbios da sua divisa numa posição de independência perante a actuação dos países com os quais mantêm relações comerciais mais intensas. Têm de se sujeitar ao rumo que lhes é marcado pela política monetária estrangeira. Convertem-se em voluntários satélites de outra potência. O desejo de manterem uma paridade rígida entre a sua moeda e a da correspondente potência soberana, obriga-as a alterar-lhe o valor de acordo com as alterações que, em relação ao ouro e restantes divisas, registe a moeda dessa potência. As nações pequenas ficam, deste modo, adstritas a zonas monetárias e incorporadas em certas áreas» - ob. cit., pp. 947/48.


sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Teoria do dinheiro (i)

Escrito por Orlando Vitorino 



O que por ora se segue constitui o Capítulo IV da Segunda Parte da Exaltação da Filosofia Derrotada, de Orlando Vitorino. Esta obra fora, pois, publicada em 1983, numa altura em que Portugal não fazia ainda parte da Comunidade Económica Europeia. Por conseguinte, Portugal conservaria a sua moeda até princípios de 2002, data em que o escudo português, na sequência da taxa de conversão estabelecida em 31 de Dezembro de 1998, fora preterido pelo euro.

Ora, uma vez que Portugal perdia assim um instrumento de liberdade, é natural que o câmbio até então operante entre as diferentes moedas recuasse perante o novo sistema monetário europeu. Todavia, Orlando Vitorino chegara a descrever e a sistematizar todo um processo que, anterior à moeda única europeia, permite evidenciar o papel essencial das várias entidades nacionais para o livre funcionamento do sistema da economia. E é precisamente neste ponto, ignorado, senão mesmo desprezado pela maioria dos teorizadores da
ciência económica, que o dinheiro ganha um outro significado se especialmente compreendido na qualidade de mercadoria entre as demais.

Daí a questão fundamental do
padrão-ouro tão ostensivamente descurada pelos economistas catedráticos de renome, como Miguel Beleza, Braga de Macedo e Pina Moura. O primeiro deles chegou mesmo a minorar, em debate televisivo recente, a importância e a virtude do padrão-ouro no sistema monetário internacional, escudando-se em Keynes que via no ouro o «remanescente de uma era de barbárie». E note-se ainda que Miguel Beleza fora um dos principais responsáveis pelo processo de adesão de Portugal à União Económica e Monetária.

Outro facto é a total ou parcial incapacidade de jornalistas, politólogos e economistas para seriamente verem, de uma vez por todas, que Portugal se encontra totalmente dependente de organizações internacionais, e, por isso mesmo, sem nenhuma margem de manobra para actuar, livre e soberanamente, no plano político, financeiro e económico. Aliás, Pina Moura, que também teve a sua quota-parte de responsabilidade no já longo processo de desagregação nacional, disse mesmo na televisão que a nossa soberania só é susceptível de ser entendida na forma de uma «soberania partilhada». Enfim, esta geração foi, juntamente com a anterior, uma das piores gerações que Portugal já teve ao longo da sua História.


Miguel Bruno Duarte
 





Teoria do dinheiro


Observação prévia: Tal como acontece com o mercado, também o conhecimento científico do dinheiro é já de tal modo exaustivo que equivale a uma determinação categórica, embora, também como ao conhecimento do mercado, lhe falte o pensamento propriamente categorial e a consequente articulação sistematizadora. É a obtenção desse conhecimento obra, quase exclusiva, dos teorizadores do segundo período, o contemporâneo, da ciência económica, com relevo para Ludwig von Mises que não deixou, todavia, de reconhecer as raízes que toda a teoria do dinheiro, tem, primeiro, em Aristóteles, depois nos economistas italianos e ibéricos da Renascença e, mais recentemente, em David Hume. Também aqui nos limitamos a sintetizar, sem atender às suas projecções contabilísticas, as noções essenciais da teoria.






A teoria do dinheiro depende da compreensão de como o dinheiro é uma mercadoria. Em dois sentidos o é.

O primeiro sentido, que foi estabelecido por Aristóteles, indica que o dinheiro tem de ser uma mercadoria escolhida como meio de troca de todas as outras mercadorias. Seja essa, o ouro, como parece sempre ter sido, embora só a partir de certa época de modo exclusivo (1).

Utilizado como dinheiro, o ouro não deixa por isso de ser uma mercadoria entre as outras. Continua a ser, como elas, uma, digamos, mercadoria particular que se continua a poder trocar, segundo os acordos do mercado, por outra mercadoria particular. Continua a ter um preço e em momento algum deve deixar de o ter. Mas investido do carácter de dinheiro, passa a ser a mercadoria universal, pois passa a poder trocar-se, em qualquer momento e em qualquer lugar, por outra qualquer mercadoria. Este poder universal de troca chama-se poder aquisitivo que a generalidade dos economistas confundem com valor, errada designação que transitou à linguagem vulgar.

Temos, deste modo, dois sentidos em que se diz que o dinheiro é uma mercadoria: o sentido de mercadoria particular e o sentido de mercadoria universal. Há, porém, um terceiro sentido. É o que o poder aquisitivo é, por sua vez, mercantilizável, tem, por si mesmo, um preço e este preço acrescenta-se, sempre segundo as leis do mercado, ao preço da mercadoria particular que foi escolhida para dinheiro. Foi este terceiro sentido que perturbou e iludiu muitos economistas e teorizadores levando-os a considerar contraditório ou, pelo menos, dispensável que o dinheiro tenha de ser uma mercadoria particular uma vez que pode ter, como quase sempre tem, um preço diferente do da mercadoria escolhida. Concluíram, então, que o dinheiro é apenas um mediador, se destina apenas a facilitar ou a possibilitar as trocas. Nenhuma necessidade haverá, disseram, em ligar o dinheiro a uma mercadoria pois, funcionando apenas como mediador, não é mais do que um sinal convencional.

Como já sabemos, foi Adam Smith quem primeiro expôs, em termos científicos, esta concepção e, seguido de perto por Ricardo, justificou e advogou a adopção do papel-moeda que, aliás, começara a generalizar-se no Séc. XVIII, provocando o eloquente protesto do poeta alemão Goethe, que via nele uma invenção diabólica destinada a sujeitar os homens à mais negra das servidões.

Paralisados por esta concepção, que se tornou cada vez mais dominante, os teorizadores clássicos viram-se inibidos de meditar e sistematizar a categoria do dinheiro, embora tivessem vivido na época em que o padrão-ouro foi universalizado e «graças a ele - como diz von Mises - o Ocidente pôde levar a civilização até aos mais recônditos lugares da terra» (2).

E é também von Mises quem nos diz: «A teoria do dinheiro foi abandonada apesar de a obra gloriosamente iniciada por David Hume ainda se ter prolongado na escola monetária inglesa, em Stuart Mill e em Cairnes» (3).

A crítica e refutação da concepção do dinheiro como sinal convencional faz-se por duas vias: a da demonstração de que o dinheiro não pode deixar de ser uma mercadoria e a da demonstração pelo absurdo, descrevendo o processo e os resultados a que ela conduz.

A primeira demonstração, repetidamente a fez von Mises (4).








Resistiu ela a todas as críticas e pode sintetizar-se no seguinte:

A procura da coisa como dinheiro depende da procura da mesma coisa como mercadoria. Disseram os críticos que esta tese constitui um círculo vicioso: explica o poder aquisitivo do dinheiro pela procura que ele tem e explica a procura que tem pelo seu poder aquisitivo. Mostra, porém, von Mises que se trata de dois poderes aquisitivos diferentes: o que o dinheiro tem no momento em que se procura e o que terá, segunda a previsão de quem o procura, num momento futuro. Os críticos argumentam então: se assim for, se o poder aquisitivo que o dinheiro tem hoje se determina pelo que teve ontem, também o de ontem se determina pelo que teve anteontem e assim se vai até ao infinito. Não se vai até ao infinito - responde von Mises - mas só até àquele momento em que a coisa ainda não é dinheiro mas apenas uma mercadoria entre as outras. Trata-se então - replicam os críticos - de um problema histórico. Não. É que, desde que o dinheiro seja uma mercadoria, qualquer momento é o momento em que a coisa passou a ser dinheiro. Em qualquer momento se pode comparar o preço que tem como mercadoria e o preço que tem como dinheiro. É, pois, necessário que o dinheiro seja uma mercadoria.

O segundo modo de refutar a concepção do dinheiro como sinal convencional, o da demonstração pelo absurdo, consiste em descrever o que inevitavelmente acontece quando se considera que o dinheiro não é uma mercadoria, ou seja, quando a coisa não tem no mercado um preço independente de ela ser ou não ser dinheiro. Se o dinheiro não estiver ligado a uma mercadoria, quem determina o seu poder aquisitivo (ou o seu preço ou, na linguagem vulgar, o seu valor)? Só o Estado o pode fazer. Ora, como também já vimos, o Estado não é uma entidade abstracta. É um instrumento que está nas mãos do Governo ou dos governantes e estes estão, por sua vez, sujeitos a toda a espécie de grupos de pressão, desde os das ideologias políticas até aos dos interesses plutocráticos. Tal situação é assim sintetizada por von Mises: «Com o padrão-ouro, o poder aquisitivo do dinheiro fica independente das variáveis pretensões e doutrinas dos partidos políticos e dos grupos de pressão (...). O sistema do padrão-ouro subtrai à política a determinação, mediante alterações de índole monetária, do poder aquisitivo do dinheiro. A comum aceitação do sistema implica o prévio reconhecimento daquela verdade segundo a qual não é possível, com a mera impressão de notas de banco, enriquecer toda a comunidade. O ódio ao padrão-ouro provém da crendice de que o Estado omnipotente pode criar riqueza com o simples gesto de lançar no mercado uns tantos pedaços de papel» (5).

Resultou esta «crendice» de um processo histórico que convém descrever. Começou ele num acto decerto legítimo e justificado. O possuidor de ouro, ou de moeda, inscrevia num documento em papel o compromisso de o trocar pela porção de ouro nele indicada logo que tal lhe fosse exigido, e fazia-o circular no mercado em lugar da moeda. Documentos deste género correspondiam àquilo que se viria a chamar papel-moeda. A partir do Séc. XVII, os Estados chamaram a si o exclusivo da emissão de papel-moeda como, até então, detinham o exclusivo da cunhagem de moeda ou de amoedação dos metais preciosos. Impondo aos seus súbditos que confiassem neles, os Estados fizeram desaparecer, primeiro de facto depois de jure, a convertibilidade imediata e incondicional do papel-moeda no ouro que ele representava e substituía. A seguir, em vez de representar uma existência real de ouro, o papel-moeda passou a representar apenas uma parte da porção de ouro nele inscrita e, mais tarde, a referir-se apenas ao ouro como uma medida ou padrão. Por fim, já nos nossos dias, até esta referência foi abolida e o papel-moeda ficou a ter, por única garantia, a palavra do Estado que não é uma entidade moral nem, como a história ensina, tem palavra. A quantidade de moeda que pode ser emitida tornou-se ilimitada e incontrolada, o que constitui uma ameaça de tal modo grave que teorizadores como F. Hayek e M. Friedman consideram imperioso inscrever nas Constituições Políticas um limite para tal quantidade, coisa a que os governantes natualmente se opõem para não verem diminuídos os seus poderes, custem eles o que custarem às populações.


Entretanto, um critério teve de se estabelecer para evitar que a moeda, ou o dinheiro, perdesse toda a eficácia, e mais uma vez se recorreu a uma regra definida por Adam Smith: a de que «a quantidade de dinheiro em circulação num país deve corresponder à quantidade de mercadorias existentes nesse país». A palavra do Estado consistirá, então, nisso: em garantir que quem possuir todo o dinheiro de um país o pode trocar por todas as mercadorias nele existentes ou, o que é o mesmo, que qualquer porção de dinheiro de um país encontra sempre nele mercadorias a adquirir.

Há neste critério um erro de raciocínio e, simultaneamente, de facto.

Em primeiro lugar, não tem ele em conta que os possuidores de dinheiro não o destinam a trocá-lo por uma qualquer mercadoria mas sim por aquela mercadoria de que carecem ou que desejam. Não será, pois, apenas a quantidade mas também a variedade de mercadorias existentes que deve garantir a moeda. Com efeito, nenhum interesse me desperta a moeda de um país que não desejo visitar e que não me oferece mercadorias que eu deseje adquirir, por maior que seja a quantidade que ele disponha de outras. Ora nenhum país possui a variedade de produtos correspondente a toda a gama de carências e desejos dos homens, e é isso que torna inevitável o câmbio das diferentes moedas nacionais, a troca e a relação entre as moedas dos diferentes países. E o câmbio das moedas, com a variedade das mercadorias que lhe dá origem, torna-se um decisivo condicionante da quantidade de papel-moeda a emitir. Ora a variedade de mercadorias é indeterminável, tão indeterminável como a variedade de carências e desejos dos homens, e, então, o câmbio aparece, ao condicionar a quantidade da emissão de papel-moeda, como o que há de mais contingente, ocasional, incerto e inseguro, constituindo um factor de graves perturbações na economia. Só quando o dinheiro é, ele mesmo, uma mercadoria, o câmbio pode dispor de um padrão que o torna, tanto quanto possível, definido e seguro.

Em segundo lugar, o erro reside na impossibilidade, também intransponível, de determinar a quantidade das mercadorias existentes. Na ilusão de que tal quantidade se pode tornar possível, e mesmo assim apenas formalmente, os Estados consideram necessário estabelecer o total controlo da produção e do comércio. Como tal quantidade não é, nem pode ser, constante, a esse controlo terão de acrescentar a planificação. Mas à planificação sempre é inevitável que escape a contribuição decisiva, mas imprevisível, incalculável e incontabilizável, que a natureza dá à produção. E os indivíduos ficarão impedidos de introduzir na actividade económica qualquer orientação ou iniciativa próprias, o que, necessariamente, fará diminuir a produção e o comércio de, pelo menos, aquela parte composta, não tanto pelo trabalho como pelo engenho, a imaginação e a inventiva de que são feitas as iniciativas pessoais. A quantidade das mercadorias sobre a qual, ainda que com honestidade e segundo um cálculo meramente aproximativo, o Estado baseou a garantia do papel-moeda emitido, em breve entrará em constante diminuição e o papel-moeda depressa não será mais do que moeda falsa.

É este o absurdo a que conduz a correspondência entre a quantidade do dinheiro e a quantidade das mercadorias. Mas não é uma descrição como a que acabamos de fazer que von Mises utiliza para demonstrar o erro da regra de Adam Smith a que recorrem os políticos e os economistas ao seu serviço (6).


Utiliza, antes, o argumento de que a maior ou menor quantidade de dinheiro não tem qualquer significado económico. Expõe assim o seu argumento, o qual supõe naturalmente que o dinheiro seja uma mercadoria:

«Os serviços que o dinheiro presta são resultantes do seu poder aquisitivo. Não há ninguém que o que pretenda é ser dono de uma certa quantidade de moedas. O que cada um pretende é, com essas moedas, dispor de uma certa quantidade do poder aquisitivo. E com é a mecânica do mercado que fixa o poder aquisitivo do dinheiro naquele nível em que a oferta e a procura se igualam, nunca pode haver nem excesso nem falta de dinheiro. Seja grande ou pequena a total quantidade de dinheiro existente, todas e cada uma das pessoas desfrutam plenamente das vantagens que a troca indirecta e a existência do dinheiro oferecem» (7).

Por mais estranho que tal se afigure aos já elucidados, o absurdo que acabamos de descrever é a situação em que se encontram mergulhadas, sobretudo a partir dos anos 30, as sociedades contemporâneas. Para avaliarmos a amplitude desta situação e vermos até onde podem conduzir as consequências de uma errada e não categorial concepção ou teoria do dinheiro, importa agora atender ao preço do dinheiro.

Sendo uma mercadoria, o dinheiro tem um preço. E como é, simultaneamente, uma mercadoria particular e a mercadoria universal, em dois sentidos se pode dizer que tem um preço. Um sentido é o do preço da mercadoria particular: exprime-se como o de qualquer outra mercadoria, aprecia-se pelas coisas pelas quais pode ser trocada e é este preço que determina o poder aquisitivo da mercadoria universal. O outro sentido é o da mercadoria universal, pois esta não se destina a apenas adquirir, destina-se também a ser adquirida, não compra apenas, também se vende. Neste sentido, o preço do dinheiro é a soma do seu preço como mercadoria particular e do juro. O juro, tal como todos os preços, é determinado pelo mercado. Ora é aqui que se manifestam as consequências da concepção do dinheiro como sinal convencional e sem identificação com nenhuma mercadoria (in Exaltação da Filosofia Derrotada, Guimarães Editores, 1983, pp. 127-135).


Notas:

(1) Qualquer história do dinheiro, caso seja possível haver do dinheiro uma história, informa como foram diversas, através dos milénios, as mercadorias escolhidas para dinheiro. Ao dizermos «escolhidas», estamos longe de querer significar que alguém, dotado de um poder político, administrativo ou jurídico, tenho feito a escolha. Ela resulta, pelo contrário, de um processo em que convergem, de modo que se pode dizer espontâneo, embora sempre movido pelos interesses de cada um, todos os agentes económicos ou, para pensarmos com mais rigor, mercantis. A escolha fixou-se, por fim, nos metais preciosos, isto é, que têm preço: o ouro e a prata. (A utilização de outros metais, sobretudo o cobre, limitou-se a moedas de troco que são mais um substituto monetário do dinheiro do que dinheiro). A partir do Séc. XVII, deu-se a última fase do processo para fixar o ouro como mercadoria escolhida para dinheiro. Deve-se ele a certas intervenções dos Estados, começando pelo inglês, para imporem, entre o ouro e a prata, uma paridade que não correspondia às respectivas trocas mercantis dos dois metais. Tal imposição destinava-se a facilitar e até assegurar uma mais continuada intervenção do Estado na economia, com a fixação dde preços, salários, juros e demais variantes, que a sempre variável relação mercantil entre o ouro e a prata impedia. Numa acção espontânea e automática de defesa, mas resultante das regras do mercado, as populações abandonaram a utilização da prata e a mercadoria a escolher foi o ouro. Os propósitos dos Governos viram-se assim logrados.



(2) L. von Mises, «La Acción Humana - Tratado de Economia», Ed. Sopec, Madrid, 1968, p. 585.

(3) L. von Mises, ob. cit., p. 264/265. Deve notar-se que a referência à escola monetária, a S. Mill e a Cairnes, não equivale a um aplauso correspondente ao que é feito à «obra gloriosa de D. Hume». Pelo contrário, von Mises assinala, em vários pontos, os seus limites. Deve ainda notar-se que, no mesmo capítulo do texto transcrito, o grande teorizador descreve alguns aspectos institucionais do abandono da teoria do dinheiro. Diz ele: «Ao longo do Séc. XIX e grande parte do Séc. XX, as questões da moeda e do dinheiro foram desatendidas. Havia tratados de economia que só incidentalmente as referiam, nas universidades anglo-saxónicas separaram-se cadeiras de economia das cadeiras de finanças e, nas alemãs, os problemas monetários não eram sequer abordados».

(4) Uma primeira exposição fê-la von Mises no livro «Teoria do Dinheiro e do Crédito», publicado em 1912. Dentre as críticas a que, a seguir, aludimos, o próprio von Mises distingue as de A. M. Anderson em «The Value of Money» (1917) e de H. Ellis em «Germany Monetary Theory» (1934). É já incluindo a crítica destas críticas que von Mises faz a segunda exposição da sua teoria nos capítulos sobre «O Câmbio Indirecto», «O Intervencionismo Monetário e Creditício» e «A Taxa do Juro», do seu tratado «A Acção Humana».

(5) Ob. cit., p. 587.

(6) Não deixa de ser curioso como, apesar das responsabilidades que lhe cabem em todo este processo, o próprio Adam Smith tenha declarado com certa ironia: «Não há domínio onde a acção do Estado seja tão inutilmente exercida como em vigiar a conservação e o aumento da quantidade de dinheiro existente no país» - ob. cit., Liv. IV, Cap. I, p. 19.

(7) L. von Mises, ob. cit., p. 526.


Continua