segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

George Orwell: 1984 ou a verdade ao alcance das mãos

Escrito por Álvaro Ribeiro












« (…) O poder autêntico, o poder pelo qual temos de lutar noite e dia, não é o poder sobre as coisas, mas sobre os homens. - Calou-se, voltando a assumir por instantes o semblante de mestre-escola a interrogar um aluno promissor.

- Como é que um homem afirma o seu poder sobre outro, Winston?

Winston reflectiu.

- Fazendo-o sofrer - disse.

- Exactamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como posso eu ter a certeza de que obedeceu à minha vontade e não à dele? O poder consiste em infligir dor e humilhação. O poder consiste em desagregar a mente humana para a reconstituir sob uma forma nova, sob a forma que entendermos dar-lhe. Começas agora a ver que tipo de mundo estamos a criar? Precisamente o oposto das estúpidas utopias hedonistas que os antigos reformadores imaginaram. Um mundo de medo, traição e tortura, mundo onde se pisa e se é pisado, mundo que se tornará mais impiedoso, e não menos, à medida que se for aperfeiçoando. O progresso, neste nosso mundo, será um progresso no sentido de cada vez maior sofrimento. As antigas civilizações afirmavam basear-se no amor ou na justiça. A nossa baseia-se no ódio. Não haverá lugar para outras emoções além do medo, da raiva, da humilhação e do triunfo. Tudo o mais será por nós destruído. Tudo! Já hoje estamos a liquidar hábitos mentais que sobreviveram dos tempos anteriores à Revolução. Cortámos os laços entre filhos e pais, entre homem e homem, entre homem e mulher. Já ninguém se atreve a confiar na própria mulher, no filho ou nos amigos. E no futuro suprimiremos esposas e amigos. Os filhos serão tirados às mães à nascença, como se tiram os ovos às galinhas. O instinto sexual também será suprimido. A procriação transformar-se-á numa formalidade anual, como a renovação dos cartões de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Os neurologistas já estão a estudar o assunto. Não restará lealdade, senão a lealdade ao Partido. Nem amor, senão o amor ao Grande Irmão. Nem riso, senão o riso da vitória sobre um inimigo aniquilado. Nem arte, literatura ou ciência. Desaparecerá a distinção entre beleza e fealdade. Não haverá curiosidade, nem o gozo de viver. Todos os prazeres que possam fazer concorrência ao Partido serão destruídos. Mas haverá sempre (nunca te esqueças disto, Winston), haverá sempre a embriaguez do poder, cada vez mais intensa, cada vez mais subtil. Sempre, a todo o momento, a emoção da vitória, a sensação de esmagar um inimigo indefeso. Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota a pisar um rosto humano. Para sempre. 

Fez uma pausa, como se esperasse de Winston alguma reacção. Winston tentava de novo enterrar-se mais na cama. Não conseguia dizer nada, tinha o coração gelado. O'Brien prosseguiu: 

- E não te esqueças de que isto é para sempre. Há-de lá estar sempre esse rosto pisado. O herege, o inimigo da sociedade, estará sempre presente, para ser de novo derrotado e humilhado. Tudo aquilo por que passaste desde que caíste nas nossas mãos, tudo isso vai continuar, vai tornar-se ainda pior. A vigilância policial, as traições, as prisões, as execuções e os desaparecimentos nunca acabarão. Será um mundo tanto de terror como de triunfo. Quanto mais poderoso o Partido, menos tolerante há-de ser; quanto mais ténue a oposição, mais cerrado o despotismo. A peça de teatro que para ti representei durante sete anos há-de ser representada vezes sem conta, geração após geração, sob formas cada vez mais subtis. Havemos de ter sempre o herege aqui à nossa mercê, gritando de dor, arrasado, desprezível... e por fim completamente arrependido, salvo de si próprio, rojando-se aos nossos pés de livre vontade. É esse o mundo que estamos a preparar, Winston. Um mundo de vitórias sobre vitórias, triunfos sobre triunfos: assédio constante, constante, constante, ao âmago do poder. Vejo que começas a perceber como será esse mundo. Mas por último não te limitarás a perceber. Aceitá-lo-ás, saudá-lo-ás, passarás a fazer parte dele.

Winston recompusera-se o suficiente para conseguir falar:

- Não podem! - disse debilmente.

- Que queres dizer com esse comentário, Winston?

- Não podem criar um mundo como o que acabas de descrever. É um sonho. É impossível.

- Porquê?

- É impossível fundar uma civilização sobre o medo, o ódio e a crueldade. Nunca poderia durar.

- Porque não?

- Não teria vitalidade. Desintegrar-se-ia. Suicidar-se-ia.

- Que disparate. Estás convencido de que o ódio é mais esgotante do que o amor. Porque havia de ser assim? E se fosse, que diferença faria? Imagina só que decidimos consumir-nos mais depressa. Imagina que aceleramos o ritmo da vida humana a pontos de os homens ficarem senis aos trinta anos. Mesmo isso, que diferença faria? Não percebes que a morte do indivíduo não é a morte? O Partido é imortal.

Como de costume, aquela voz reduziria Winston à impotência. Além disso, ele receava que, ao persistir naquela discordância, O'Brien tornasse a puxar a alavanca. Contudo, não conseguiu ficar calado. Debilmente, sem argumentos, sem nada a que se apoiasse senão o horror indistinto pelo que O'Brien acabava de dizer, voltou ao ataque.

- Não sei... não me interessa. Vocês hão-de falhar. Alguma coisa irá acontecer-vos. A vida há-de vencer-vos.

- Nós controlamos a vida, Winston, a todos os níveis. Tu imaginas que existe uma coisa chamada natureza humana que vai ficar indignada com o que fazemos, virando-se contra nós. Mas nós criamos a natureza humana. Os homens são infinitamente maleáveis. Se voltaste à tua antiga ideia de que os proletários ou os escravos se hão-de erguer para nos derrubar, tira daí o sentido. Eles estão impotentes, como animais. A humanidade é o Partido. Os outros situam-se fora... são irrelevantes.

- Não me interessa. Hão-de acabar por vos vencer. Tarde ou cedo vão ver o que vocês realmente são e hão-de acabar convosco.

- Vês algum indício de que isso possa acontecer? Ou razão para que aconteça?

- Não. Acredito que vai ser assim. Sei que vocês vão fracassar. Qualquer coisa no Universo… não sei, um espírito, um princípio… invencível.

- Acreditas em Deus, Winston?

- Não.

Então qual é esse princípio que nos derrotará?

- Não sei. O espírito do Homem.

- E tu consideras-te um homem?

- Sim.

Se és homem, Winston, serás o último. A tua raça extinguiu-se; somos nós os herdeiros. Já percebeste que estás sozinho? Fora da História, inexistente...».

George Orwell («1984»).









GEORGE ORWELL


1984


OU A VERDADE AO ALCANCE DAS MÃOS


Este livro tem por fim apresentar ao leitor o romance de Winston Smith. É um romance, exactamente porque narra a mutação sentimental de um carácter humano; mas é também uma tragédia, porque descreve a frustração da liberdade em luta inglória com o destino. Se o leitor simpatiza, logo às primeiras páginas, com o protagonista, a breve trecho com o mesmo se identifica, para sofrer com ele os efeitos fascinantes de uma obra de arte.

A narrativa desenrola-se num ambiente de ficção, quer dizer, de artifício estranho à realidade, que lembra por vezes o processo clássico das utopias e das ucronias. Não é, porém, este livro uma utopia, porque o autor determina o local da acção: a cidade de Londres. Não é também uma ucronia, porque o autor define a data dos acontecimentos: o ano de 1984. O artifício é tal que quase parece uma antecipação da sociedade futura. Interroga-se, perplexo, o leitor sobre se os postulados erróneos da sociologia contemporânea hão-de conduzir os homens e os povos àquela alienação mental que o romancista descreve como termo duma dedução necessária, e nessa perplexidade o leitor pergunta se há que rever, discutir e desprezar os preconceitos e os sofismas que há quase dois séculos militam contra a liberdade.

Ante o poderio das máquinas, dos aparelhos e dos utensílios, que parece aumentar indefinidamente de século para século, a consciência humana vê-se inerte e hesita agora, sabendo que os mesmos meios podem igualmente servir contrários fins. Num estulto encómio perante os inventos, confundindo técnica e ciência, confundindo ciência e metafísica, em vez de distinguir a gradação, difundiram os homens cultos, e até os doutos, uma série de equívocos de que tardiamente se libertam com melancólica apologia. Os esperados benefícios da técnica, a que chamavam progresso material, surgem e geram novos malefícios, que não tardam a revelar-se, e contra os quais ainda não há esperança de protecção metafísica, científica e técnica. A esta sucessiva deslocação do sofrimento humano, a esta agonia sem fim, clamante como a verdade, nada vale opor a mentira artificial de um narcótico, de um ópio, de uma ilusão.

A invenção da imprensa dá-nos um exemplo típico. Uma indústria que parecia de bem para a liberdade do pensamento humano e para a difusão dos valores culturais transforma-se em arma de calúnia, de injúria e de insulto nas épocas mais conturbadas da opinião pública, ou subverte a ordem dos valores sociais, adormecendo a mentalidade do vulgo por habilidosas campanhas publicitárias. Tão certo é que os mesmos meios de expressão do pensamento podem servir contrários fins de lealdade ou de mentira.

A mecanização, que parecia libertar o trabalho humano daquele excesso de fadiga que vai até ao extremo da dor, substituiu o flagelo do cansaço pelo do aborrecimento. O homem, que de bom grado abraça o trabalho quando este corresponde a uma expressão da sua personalidade, e que vence a fadiga com a alternação rítmica de períodos de esforço e de períodos de repouso, olha com aborrecimento e com desânimo a laboração contínua de uma empresa em que não está interessado. Trabalhar com a convicção de que o trabalho será, afinal, inútil; que o trabalho não está ordenado a um fim superior; que o trabalho não será produtivo - é tormento que não desampara a consciência esclarecida. Enquanto o desgaste muscular pode ser compensado por providências conhecidas pelos higienistas, o aborrecimento, estudado pelos psicanalistas nas suas manifestações nervosas, oprime e deprime os seres humanos, com efeitos rebeldes a várias formas de terapêutica.

A mecanização do trabalho impossibilita a organização, sabido que o mecânico se opõe ao orgânico, como a justaposição se opõe à compenetração, como o exterior se opõe ao interior. A falsa organização, ou a falsa corporação das actividades sociais, torna fictícia a coordenação mental da monarquia, remota a autoridade e explica-se por delegação descendente dos mandos que impessoalizam o Poder até à máxima gravidade. Entre os elos da corrente não passam as iniciativas pessoais, aquelas que dariam ao trabalho o colorido jubiloso da criação. A atitude desumana de cada chefe para com os seus subordinados imediatos, dentro de limitados ambientes de trabalho, exprime-se em várias formas de frieza impersonalista, contra a qual não há apelo no regulamento aprovado pelos superiores desconhecidos.

Não será, pois, de estranhar que em vez de optimistas utopias e ucronias, a ficção hodierna nos ministre avisos de antecipação e sinais de alarme, já que a humanidade tanto mais se aproxima do abismo quanto mais pretende revogar as leis naturais e as leis divinas. A lição a extrair dos livros de ficção como este de George Orwell é de ordem problemática, e todo o problema consiste na dificuldade de restabelecer incessantemente a verdadeira hierarquia dos poderes humanos, segundo a qual a técnica se subordina à ciência e a ciência à metafísica. A dificuldade será tanto maior quanto mais veloz for a transformação social, porque hão-de sempre parecer obsoletos os pensamentos hierarquizados. Aquele problema é, intransferível; quer dizer, há-de ser pensado por cada um de nós em cada fase variável do respectivo enunciado.


















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Sabemos que ao longo do século XIX os técnicos, na qualidade de especialistas, ditaram as suas exigências aos sábios, considerados homens de cultura geral; sabemos que os cientistas demitiram das suas funções os metafísicos, cujas doutrinas e disciplinas se perdiam entre expressões vagas. Clamaram pela liberdade e proclamaram a liberdade dos povos mais ansiosos de felicidade terrestre. A liberdade ficou, consequentemente, inscrita nas constituições políticas. Visto, porém, que a liberdade não é um princípio organizador, tendeu-se a fortalecer no princípio contratual o estatuto das relações humanas, esquecido ou ignorado o princípio associativo. O contrato, dependente da vontade ou da noluntade, do quero ou não quero, do aceito ou rejeito, ascendeu a modelo da vida jurídica e foi perdendo a maleabilidade comercial até atingir a rigidez escrita e impressa que parecia estruturar as instituições. Do contrato ao regulamento há como que uma metamorfose visível em vários estádios da legislação, na sucessão dos quais se acentua o predomínio do espírito contabilístico e estatístico, a ambição de medir até o imensurável. Esvaziadas, assim, da diversidade psicológica, todas as relações jurídicas haveriam de postular a igualdade entre os homens. Este esquema bilateral das vontades em contrato, ou em conflito, contaminou a cultura humanista em detrimento do princípio associativo, conciliador da fraternidade com a liberdade.

Não é possível conceber uma política independente da ética, nem uma ética independente de um sistema de filosofia. É certo que muitas vezes os escritores políticos não confessam o sistema filosófico a que se encontram necessariamente submetidos, mas o facto não vale de argumento. George Orwell apresenta-nos a caricatura da filosofia alemã na medida em que eleva ao exagero de 1984 as consequências terríveis do comunismo e do nazismo. Convém, pois, não esquecer que a filosofia alemã, através dos seus intérpretes nacionais e estrangeiros, conseguiu dominar o pensamento europeu dos séculos XIX e XX. Em Kant vemos subordinada a razão teórica à razão estética e a razão estética à razão prática, o que tem por corolário inevitável o predomínio social dos técnicos. A vontade, com o seu dualismo de potência e resistência, assume em Fichte a representação dialéctica. Karl Marx propõe o mito da luta de duas classes (mito no qual será possível converter todas as representações dinâmicas da sociedade), para descrever a evolução em termos de materialismo histórico.

Vemos a caricatura da dialéctica no esforço dos dicionaristas da nova língua artificial para eliminarem as gradações semânticas, para reduzirem os adjectivos a pares de opostos, para exprimirem a contrariedade mediante o prefixo de negação. Vemos a caricatura do materialismo histórico na adaptação incessante dos velhos documentos aos novos acontecimentos, para que o passado não contradiga o presente nem o futuro. Há uma parte de verdade nesta caricatura, que descreve os elementos que hão-de paralisar de vez a filosofia alemã.

Na progressiva tensão da vontade, que vai ao extremo da violência, a consciência embriaga-se com a ideia do dever, do que deve ser. A razão da violência esquece, ou ignora, a natureza da razão. Na presunção de contrariar, ou de anular, os instintos e os afectos humanos, o utopista recorre à técnica, à ciência e à metafísica; mas porque não sabe que cada uma tem diferente critério de verdade, não pode reconhecer que os efeitos imediatos não adiantam nem retardam o processo de evolução. Todo o engenho despendido no combate à astúcia individual, que se revela em imprevistos modos de desistência, fraude e resistência, não logra mais do que complicar a regulamentação, a proibição e a repressão, demonstrando assim que a complexidade está na razão inversa da normatividade. A vontade é simplista, deseja proceder segundo linhas nítidas e sóbrias; repugna-lhe por vezes respeitar as distinções da legalidade; mas a nova simplificação, que se tornou necessária, actua como catástrofe, permitindo restabelecer a vigência das leis naturais e das leis divinas.

Todas as utopias, bem analisadas, nos deixam ver que o homem não é um animal social, e que estão errados os sistemas de sociologia cujos conceitos aparecem definidos e determinados depois da abstracção da liberdade individual. A sociologia é um prolongamento da zoologia, e, se pudermos falar de sociedades animais, já não poderemos sem equívoco falar de sociedade humanas. O homem é livre, e associa-se, num plano superior ao da animalidade, acima do campo de observação e experimentação, no domínio do invisível.

Ao longo do romance de George Orwell surgem de vez em quando leves referências a uma autêntica sociedade secreta, secreta porque não tem sede, nem corpos gerentes, nem estatutos, nem registo de filiados. A lendária Fraternidade, de que todos duvidam, não é uma corporação, não tem corpo, não é natural. Nem sequer é uma ideologia que se desarticule em frases susceptíveis de sucumbirem aos golpes de dialéctica. É algo de inefável que, para além da natureza em pecado, representa a sublimidade da graça. Sendo o elemento de redenção pelo qual esperam os homens que sentem diminuída a liberdade, na esperança configura a misticidade do Evangelho.

A tese central deste livro é, pois, a de que a humanidade, enredada pelos erros da sua metafísica, da sua ciência e da sua técnica, não se salva a si própria, apesar das utopias devidas ao intelecto e à vontade dos homens superiores. A expressão trágica dessa tese está garantida apenas pelo ateísmo que convém postular nesta espécie de obras de ficção. O artifício, neste caso, é contrário à arte. Quando o leitor, interessado no romance de Winston Smith, fecha o livro para despertar de um pesadelo, logo verifica a constância dos instintos e dos afectos na natureza humana, logo vê horizontes de evolução para a glória. Todo o proveito da leitura consiste em obter a demonstração de que seria absurdo e, porque absurdo, cruel, um mundo regulado e regulamentado por homens destituídos das virtudes teologais.

A obra de ficção seria ininteligível se não contivesse suficiente analogia com a realidade. Vale ela exactamente porque nos representa em algumas personagens o paradigma desumano para que tendem as personalidades inferiores, com boa ou má consciência da sua inferioridade. O homem superior qualifica-se, como dizemos, pela plenitude das virtudes teologais. Esquecido, porém, o significado da monarquia, pluraliza-se o Poder, que desce em escala até aos agentes ínfimos, e estes, mais do que os outros, cobrem de soberba a falta de autoridade. Os subordinados que se envaidecem com as suas respectivas situações de chefes ignoram muitas vezes que chefe é aquele que pensa e não aquele que manda. Nos ambientes de trabalho são quase sempre as personalidades inferiores aquelas que mais abusam de um poder que recebem por delegação. A má consciência acusa-as, porém, de não serem livres, e perante a injustiça claramente demonstrada mal sabem defender-se, transferindo para outrem a verdadeira responsabilidade.

Aos leitores portugueses, habituados à brandura dos nossos costumes e à reacção da consciência moral contra todos os procedimentos de violência, há-de parecer estranho, longínquo e inverosímil muito do que George Orwell prevê para 1984. Não será inútil a advertência quando alguns dos espíritos mais lúcidos parecem contaminados de preconceitos e sofismas oriundos de culturas alheias. Se, fiéis às nossas tradições, conservamos a verdadeira doutrina das relações da natureza com a graça, continuaremos a ver que a liberdade humana é solidária com a existência de Deus. (Prefácio a 1984, de George Orwell, tradução portuguesa de Paulo Santa Rita. Lisboa, Editora Ulisseia, 1955, pp. 7-14).













A "realidade" do mundo pós-orwelliano tal qual vista pelo actual presidente da república comuno-socialista em Portugal.



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sábado, 29 de dezembro de 2018

Perigos de dentro

Escrito por António Correia de Oliveira



Mosteiro da Batalha


Filhos, sabei: O Inimigo 
Que vos leva à perdição, 
Passou fronteiras e portas: 
Entrou-vos no coração! 

Entrou nas almas, sedentas 
De vão prazer, mando e orgulho, 
Como, na fruta, as lagartas, 
Ou, no celeiro, o gorgulho… 

Viriato Lusitano 



Falcata


terça-feira, 25 de dezembro de 2018

«O James Dean dos olhos rasgados»

Da última entrevista a Bruce Lee












A entrevista que se segue, a última que Bruce Lee concedera pouco tempo antes do seu passamento (20 de Julho de 1973), fora realizada por Myre Plane com o exótico título acima indicado. Inserta na revista Bruce Lee (Editorial Hegeo, S. A., Ano I, n.º 1, 1986), foi, para o presente efeito, traduzida do castelhano para a língua de Camões. 

- A fama tem os seus prós e contras. Qual é, para si, a maior desvantagem resultante do êxito? 

- É, antes de mais, a perda da privacidade. E a ironia está em que, depois de nos esmerarmos para obter riqueza e fama, vemos que, alcançado esse objectivo, nem tudo é um mar de rosas.

Há apenas um lugar em Hong Kong onde posso ir sem ser perseguido ou interpelado para dar um autógrafo.

Essa é uma das razões por que passo tanto tempo em casa a treinar e a fazer tranquilamente o meu trabalho.

- A fama incomoda-o? 

- Sim. Uma vez, por exemplo, fui ao cinema e a ‘arrumadora’, apontando a lanterna ao meu rosto, pediu-me um autógrafo. Depois disso levantou-se um reboliço, de modo que passei todo o filme a dar autógrafos.

Assim se explica e compreende porque estrelas como Steve McQueen e Big Lewis (Kareem-Jabbar) evitam os lugares públicos. De início não me incomodava com a publicidade ao meu redor, mas, com o tempo, tornou-se uma dor de cabeça ter de responder sempre às mesmas perguntas, ou posar para os fotógrafos com um sorriso sardónico.

- Parece-me que pensa voltar a viver na América. 

- Sim. Aqui encontro paz e sou livre. Na América passo despercebido e posso ir a qualquer parte sem ser incomodado. Gostaria de regressar e construir uma nova casa. [Três anos haviam decorrido sobre a venda da sua casa na América para ir viver para Hong Kong].

- Entrou no mundo do cinema por via de um acaso circunstancial? 

- Entrei ocasionalmente quando me contrataram para actuar em O Besouro Verde. Não tinha então nenhuma experiência como actor.

- Consta que o contrataram devido a uma demonstração de Kung-Fu feita em Long Beach?

- Exacto. Uma noite recebi no hotel em que estava hospedado um telefonema para fazer uma audição.

Na manhã seguinte, fui muito cedo até ao estúdio da 20th Century Fox, onde fui contratado para desempenhar o papel do novo filho número um de Charlie Chan.

Quando já então frequentava um curso dramático de um mês, o produtor mudou de ideias e decidiu atribuir-me o papel de Kato.

- Em Hong Kong viu-se transformado num mito. Isso ficou a dever-se ao facto de ser ali o único actor internacional? 

- Efectivamente, creio que sou a única pessoa que se aventurou a sair de Hong Kong e a converter-se num actor. Para a maioria das pessoas que ali vivem, sobretudo actores e atrizes, Hollywood é um mundo mágico que está fora do alcance de qualquer um. De sorte que, quando eu próprio o alcancei, acharam que tinha conseguido um feito notável. No entanto, se o meu êxito fosse apenas o resultado desse feito, então por é que O Besouro Verde foi um sucesso de bilheteira em Singapura, nas Filipinas e noutros tantos países que nem sequer visitei?

































Van Williams e Bruce Lee














































- Ficou surpreendido com a fama que tinha em Hong Kong assim que regressou em 1968? 

- Isso foi desde logo uma experiência incrível. Apareci na maioria das estações de rádio e televisão. Toda a gente me cercava onde quer que fosse. Fiquei realmente surpreendido pelo desconhecimento do meu êxito ali alcançado.

- A sua experiência obtida na indústria cinematográfica americana foi útil para abrir caminho em Hong Kong? 

- Muitíssimo. Quando assinei contrato para rodar O Implacável tive a última palavra. De facto, tinha uma certa experiência com a técnica cinematográfica americana, bastante mais sofisticada que a praticada em Hong Kong. De modo que, com a minha experiência, fui uma mais valia, especialmente no que respeita à coreografia das cenas de luta.

- Que importância teve aquele filme na sua carreira cinematográfica? 

- Foi um filme crucial para mim por ter sido, pela primeira vez, o protagonista. Consegui fazer um trabalho ainda melhor do que o realizado em O Besouro Verde, o que me deu a necessária confiança para além da experiência adquirida na série televisiva recentemente concluída: Longstreet.

Não esperava que o filme batesse o record de bilheteira, embora soubesse que seria um êxito comercial. Dei-me conta disso na ante-estreia.

- Com o seu segundo filme (O Invencível), converteu-se na estrela mais famosa do Oriente. Como se sente perante um tal êxito? 

- Foi, na realidade, um problema o êxito resultante desse filme. Fiquei perplexo e comecei a suspeitar de toda a gente. Não sabia em quem confiar e até suspeitava dos meus melhores amigos. Foi, na verdade, um período em que não sabia quem tencionava aproveitar-se de mim.

- Foi então que se associou a Raymond Chow para rodar A Fúria do Dragão

- Sem dúvida. Escrevi o guião, protagonizei o filme, dirigi e produzi. Trabalhei infatigavelmente durante dias e perdi peso. Fi-lo porque era algo que jamais fizera e agora tinha a oportunidade de fazê-lo.

Fiz-me acompanhar de uma dezena de livros sobre produção cinematográfica e mergulhei a fundo nisso. Todavia, os três primeiros filmes que fiz não eram destinados a um público americano, mas tão-só a um público-alvo estritamente oriental.

Não pude orientar os dois primeiros filmes, que estavam a milhas da mentalidade americana. E, no entanto, quedei deveras surpreendido que tivessem dado tanto dinheiro aos distribuidores.

- O último filme (O Dragão Ataca) resultou de uma co-produção com a Warner Bros. Crê que este filme o lançará como estrela internacional? 

- Creio que sim. Trata-se de um filme do qual estou orgulhoso porque está direccionado para a América, a Europa e o Oriente.

Este é, definitivamente, o filme mais importante que eu jamais fiz.

Estou bastante emocionado e expectante. Creio que pode vir a arrecadar muito facilmente os vinte milhões de dólares nos Estados Unidos.







































































































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