Um segundo modo de explicar a chegada dos livros restantes de Aristóteles é o império dos cruzados do Oriente. É sabido que Godofredo de Bouillon, chefe da primeira cruzada, tomou Jerusalém e aí estabeleceu um império, que ele governou com o título de Duque ou advogado do Santo Sepulcro. Este reino durou 88 anos; porque Saladino, rei da Síria e do Egipto, expulsou os cristãos em 1187. Ora neste espaço de 88 anos podia facilmente os livros das escolas Muçulmanas chegar ao conhecimento das escolas do Ocidente. As cruzadas são, pois, o segundo modo de explicar as relações das escolas do Oriente com as do Ocidente.
C. Jourdain expõe um terceiro alvitre. Diz este que é admissível a seguinte suposição. Os livros de Aristóteles, no tempo dos Romanos, vieram para o Ocidente e aí se conservaram até que no século XIII de novo foram descobertos e estudados. Todas estas explicações se podem admitir, e qualquer delas não exclui as outras».
Lopes Praça («História da Filosofia em Portugal»).
«Interpretamos toda a filosofia moderna como a demonstração de que o racionalismo medieval é insuficiente para elaborar um sistema filosófico. Kant, que estudou o ideal de razão pura nas obras dos Conimbricenses, completou essa demonstração. A não ser que se renuncie a filosofar, conforme propõe e impõe o positivismo, há que admitir verdades enunciadas em proposições de origem tradicional, revelada e sobrenatural, porque só elas tornam inteligível tudo o mais, só elas pacificam toda a ansiedade humana.
A reacção contra o racionalismo da Companhia de Jesus começou nos actos que tornaram possível a infiltração do iluminismo na cultura portuguesa, por essas associações secretas nomeadas academias e arcádias, obra começada no reinado de D. João V e facilitada pela reforma pombalina da Universidade de Coimbra».
Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).
«Sou servido abolir e desterrar, não somente da Universidade, mas de todas as escolas públicas e particulares, seculares e regulares de todos os meus reinos e domínios, a Filosofia Escolástica».
(Estatutos da Universidade de Coimbra, Livro II, parág 3).
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra |
«No primeiro ano da reforma matricularam-se [na Faculdade de Matemática] oito estudantes, dos quais faleceu um e desistiram dois; no segundo ano matricularam-se dois mas só um apareceu; e no terceiro, quarto e quinto anos, não se matriculou nenhum.
(...) Desde o princípio da sua criação [da Faculdade de Filosofia Natural] até agora [cinco anos depois da aplicação dos estatutos pombalinos] só quatro estudantes se têm matriculado como Ordinários [por alunos ordinários entendiam-se os que frequentavam as Faculdades para se formarem no respectivo curso, distinguindo-se assim dos obrigados, que ali andavam como condição obrigatória de ingresso noutros cursos]».
O reitor-reformador de Coimbra, D. Francisco de Lemos (in Rómulo de Carvalho, «História do Ensino em Portugal»).
«Nos fins do século XVIII, as ideias filosóficas estavam profundamente divididas. Portugal não se manteve alheio ao movimento intelectual geral. Foi nesta época que a língua portuguesa começou a substituir a língua latina nos tratados de filosofia. O tomismo, tal como era ensinado em Coimbra pela escola de Suarez, foi atacado por várias ordens religiosas, sobretudo pela Congregação do Oratório e pelos Cónegos de Santo Agostinho. A filosofia moderna fez a sua franca aparição em Portugal com o Padre João Baptista do Oratório, o arquidiácono Luís António Verney e o Padre Teodoro de Almeida. As obras escritas nesta época dão testemunho da infiltração do cartesianismo e do sensualismo».
Ferreira Deusdado («A Filosofia Tomista em Portugal»).
«Desde o século XIII até ao século XVI, o livro de ensino da lógica, ou arte de pensar, utilizado na generalidade das escolas da Europa foram as Sumas de Pedro Hispano, só substituídas, a partir do século XVI, pelas Institutiones Dialecticae, de Pedro da Fonseca, que, no tempo de Kant, ainda era o livro seguido no ensino da filosofia».
Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).
Pedro Hispano |
«Leibniz estudou o curso conimbricense que, por vezes, andava junto com as Institutiones de Pedro da Fonseca, as quais constavam da biblioteca de seu pai. Segundo testemunho do seu biógrafo, Leibniz lia os tratados de Pedro da Fonseca como se fossem um romance de cavalaria e, com eles, decerto, alguns dos Conimbricenses, cujo realismo medianeiro ensinava a evitar os extremos, tanto do absoluto idealismo, como do absoluto nominalismo em que, já no século XVII, o pensamento tendia a cair, gerando, ou idealismos, ou materialismos radicais em posteriores épocas. As diferenças de Leibniz em ontologia e teodiceia não obliteram a presença e a incidência do realismo conimbricense na gestação da sua harmónica forma de pensar e de filosofar».
Pinharanda Gomes («Os Conimbricenses»).
«Aristóteles é o pensador sempre presente em todos os momentos do pensamento nacional».
Delfim Santos
«Notamos, por um lado, que a história não está por inteiro contada, propendemos, por outro lado, a admitir, e cada vez com mais implacável firmeza, que se a causa da verdadeira filosofia não foi assegurada por uma escolástica de inspiração divina e teológica, ela não é também assegurada pela nova escolástica de inspiração humanística e científica.
A causa da filosofia não é a daquele céu, mas não é também a desta terra. Importa apreendê-lo. A partir disso será compreendida e valorizada a filosofia que temos e tivemos».
José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).
UM ARISTOTELISMO INTEGRAL
Que primeiríssima causa determinou o primado da filosofia aristotélica na escolástica dos Conimbricenses? – A resposta de Manuel de Góis indica e explica essa causa: os filósofos que floresceram antes de Aristóteles escolheram, por via de regra, uma parte da Filosofia, ou Física, ou Ética, ou Metafísica, mas nem Sócrates nem Platão deixaram «um género de doutrina absolutamente perfeita com afirmação certa e constante» (1). Em fundo contraste, Aristóteles apresentava-se como o curso total: «Aristóteles… tratou não só da Lógica, como também da Física e de todas as outras faculdades. Conduzindo o corpo de doutrina desde os próprios princípios das cousas até ao fim (ab ipsis rerum primordiis ad finem usque perducta serie) com admirável elegância de ordem (mira ordinis elegantia) colocou cada ouvinte no seu género, para que se chame com toda a justiça pai das boas artes e lídia pérola dos Filósofos» (2). O ter feito uma universidade sapiencial, um estudo geral com todas as disciplinas, oferecendo uma realidade de pensamento (saber das cousas como são), uma finalidade objectiva (saber das cousas para que são), uma originalidade de causa (saber da primeira causa) e uma ordem metodológica assente num critério de lógica absoluta, eis as razões de Aristóteles ser escolhido como o «daemonium» dos Conimbricenses, o que dirige.Aristóteles é o eixo do curso. Toda a doutrina dos Commentarii efectua as explanações e as resoluções mediante o «diligentíssimus observator Aristoteles» (3), «cum Aristotele» (4) em conformidade com o «Institutum Aristotelis) (5) e, enfim, com o sistema orgânico do Estagirita. Este integralismo não é, porém, rigorosamente feito letra a letra. Em primeiro lugar, abandonou-se o texto grego, preferindo-se a versão latina, segundo a tradução (ao que se admite, carecendo de ser confirmado) de J. Argiropulo. Em segundo lugar, os tratados de Aristóteles não foram todos dados na íntegra, o que só ocorre com os textos De Physicae, De Coelo, De Anima, e De Generatione et Corruptione. Os demais só parcialmente tiveram comentário.
Surge Aristóteles de modo espontâneo no Colégio das Artes? Não. A elevação de Aristóteles é o fim de um percurso, qual esse que deriva da utilização do impuro aristotelismo da medievalidade – impuro, ou porque estivesse prenhe de neoplatonismo, ou porque só parcialmente se conhecesse, ou porque o acesso a ele se fazia por isagoges parcelares, ou porque se apresentava de mistura com espiritualidades religiosas, ou porque as tendências mais nítidas quanto ao aristotelismo real, (aristotelismo averroísta, predominantemente em Itália, e aristotelismo alexandrinista, predominante em Bolonha), obturavam uma clara visão do corpus aristotelicum, que, na medievalidade, só a Escolástica árabe conhecia em plenitude. A identificação proposta no termo «dois aristotelismos» tem razão de ser, porque na época da definição dos Conimbricenses se defrontam um aristotelismo medieval, parcial e inseguro, quase só atento à Lógica, e um aristotelismo renascentista, sem dúvida provocado pelo conhecimento das obras de Averroes, que deseja um Aristóteles íntegro – todo o sistema lógico, físico e metafísico. Há, porém, outras paridades, sobretudo na esfera da Teologia, onde também se apõem o Augustinismo e o Tomismo, cada um com sua leitura aristotélica – a platonizante do augustinismo e a aristotelicizante do tomismo, sobretudo do chamado tomismo integral da Ordem dos Pregadores. O cânone aristotélico ainda se achava por dominar. As Sumula Logicales de Pedro Hispano continuavam a ser o compêndio mais utilizado nas escolas, mas não ia para além da lógica velha, por desconhecimento da totalidade do Organon. No entanto, em Coimbra, começaram a surgir novas experiências no âmbito universitário, que exorbitavam da Lógica e já tentavam a Física. Embora eleborara um Physices Compendium (1522) que alarga o magistério aristotélico às ciências da natureza. A fundação do Colégio das Artes propicia o aparecimento de novos tratados de matriz aristotélica.
Nicolau Grouchy imprimiu uma versão da Lógica Aristotelica (1549) em dois livros, muito seguida depois por Belchior Beleago. Diogo de Contreiras não fez obra original, mas anotou e publicou a Dialectica (1551) segundo a aula de Jorge de Trebisonda, George Trapezontij Dialectica. António Luís, «o Grego», nomeado para ler Medicina com Coimbra, atém-se, e só, ao original grego. Estando já em Coimbra, os Jesuítas imprimiram uma Lógica Aristotelis, um pouco ao geito do manualzinho de Belchior Beleago. E, por fim, em 1564 publicavam-se as Institutionum Dialecticarum, texto de absoluto aristotelismo (6).
Não obstante, o apuramento do aristotelismo para a Renascença ficara sendo obra de António de Gouveia, na sua polémica contra Pedro Ramo, constante do livro Pro Aristotele Responsio, adversus Petri Rami Calumnias (Paris, 1543). Gouveia estudava, desde 1541, o texto grego do filósofo, enquanto Pedro Ramo apenas o conhece através de Cícero. Pedro Ramo desvaloriza Aristóteles, enquanto António de Gouveia o valoriza. Ele não ama, decerto, o Aristóteles imperfeito da Escolástica, mas ama o «Aristóteles original». O problema que se põe aos Conimbricenses é realmente este: obter um Aristóteles original e, se possível, total. Esse não podia ser, nem o que procedia dos árabes, também impuro, já que seguiu o caminho da Grécia – Síria – Árabes, nem o que procedia dos romanos, ainda mais impuro e parcelar. Aliás, nos fins do século XIII já se tendia a pôr de lado as traduções velhas arábico-latinas (translatio vetus) preferindo-se a tradução do grego (translatio nova). O sentido decadente que se apodera da Escolástica medieval garante a muitos humanistas o desejo de sacudir o chamado «jugo de Aristóteles», mas, no século XVI, era necessário conciliar o valor real do aristotelismo com as novas exigências do humanismo. A polémica Gouveia/Ramo oferece esta conciliação, que, alfim, seria obtida na Segunda Escolástica e, diga-se, com origem no exercício do aristotelismo conimbricense, que permitiu a suficiente elasticidade de espírito para os renovados realismo, nominalismo e idealismo. Nem sempre se anotava que o anti-aristotelismo não abarcara todo o Aristóteles, mas sobretudo a Física porque, verificando-se novos achamentos, não fazia sentido manter válida a tese de Aristóteles. A oposição de Leonardo da Vinci, de Galileu Galilei e de Francisco Sanches a Aristóteles visa principalmente a Física, e, pois, a teimosia de, mesmo em causa nova, se dar prioridade ao magister dixit. Nos primeiros dias do instituto inaciano, Aristóteles não se punha em toda a extensão. Em Itália recomendava-se que era conveniente seguir Averroes a par dos seus comentadores. Em tempo, Inácio de Loyola procura orientar a Companhia para o seguimento de Aristóteles em Filosofia e de Santo Tomás de Aquino em Teologia, por lhe parecerem mestres seguros para uma atitude doutrinal perante a Europa reformista. Uma orientação clara data de 1563, devendo-se a Francisco de Borja, que mandou se seguisse Aristóteles levando o seu próprio texto para a aula, evitando-se desvios da doutrina magistral. A doutrina de Pedro da Fonseca confirma a orientação: «Todo o empenho devia ser colocado na explanação dos livros de Aristóteles» (7). Houve desvios?
Os eborenses queixavam-se a Roma, em 1567, de que na Companhia se ensinavam teses aleatórias. O Padre Ledesma redigia uma longa lista de opiniões e de teses que não deviam ser ensinadas nas aulas jesuítas. As teses acham-se em sete classes: 1. Sobre a Silogística, quatro teses. 2. Sobre a Metafísica, dez teses. 3. Sobre a criação, seis teses. 4. Sobre a acção e poder divino, quatro teses. 5. Sobre a alma, quinze teses. 6. Sobre as categorias, dez teses. 7. Sobre a parva naturalia, catorze teses, num total de sessenta teses (8). Trata-se de teses nominalistas, de elencos sofísticos, de proposições indefensáveis, quer do ponto de vista da lógica argumentária, quer do ponto de vista da doutrina da fé. Que significa ensinar, no contexto, uma vez que a estrutura dos Commentarii obriga à enumeração e explicação de todas as teses sobre cada questão? – Significa defender, postular, ou seja, os professores podiam e deviam informar os alunos dessas teses, mas não as podiam assumir como suas. A V Congregação Geral da Companhia exarou um cânone para que não houvesse desvios de Aristóteles em «questões de monta», salvo se isso contrariasse a ortodoxia. Que Averroes pudesse ser lido, desde que lhe corrigissem os erros e, enfim, que não se defendessem opiniões contrárias às do «saber comum» das escolas, mantendo-se a unidade da doutrina na Companhia. Na redacção de 1586 da Ratio Studiorum já se preconiza a adopção de Aristóteles em toda a sua pureza, mas a versão de 1599 faz o definitivo apuramento dessa pureza. Determinação «In Logica et Philosophia naturali et morali et Metaphysica, doctrina Aristotelis sequenta est» (9). Cada professor poria toda a sua diligência em interpretar bem o texto de Aristóteles. Todas estas normas seriam havidas como parâmetros na redacção dos projectados Commentarii, nos quais, embora chamadas à lição, as teses proibidas não são defendidas.
Estátua de Averroes |
«Os professores do Colégio das Artes lutaram com denodo para levar a novo esplendor a doutrina aristotélica» (10), procurando substituir o nominalismo pelo realismo e o escotismo franciscano por um tomismo que não seria necessariamente o dominicano, alfim, o tomismo jesuíta. Após anos de elaboração mental e prática, os livros conimbricenses podiam trazer à luz o aristotelismo peculiar: o texto de Aristóteles na versão latina, os primeiros comentadores de Aristóteles, desde Porfírio a Averroes, e todos os comentadores medievais do aristotelismo, desde os greco-romanos aos árabo-medievais. Assim o entendeu a leitura de Bartolomeu de Saint-Hilaire: «Os Coimbrões querem estudar Aristóteles com o arsenal inteiro de todos os Comentadores que ele produziu» (11), o que constitui uma leitura diversa da bem modesta de Brucker, que apenas mencionou a «erudição peripatética» e as «subtilezas escolásticas».
«Nos Conimbricenses (o aristotelismo) atinge proporções mais generosas: abrange toda a filosofia greco-romana e árabo-medieval, não só nos seus valores mais representativos mas até em alguns bens obscuros» (12).
Aristóteles é o eixo, mas não a grade da prisão. Quer-se um sistema para um pensamento de direito pensar, mas também flexível para de caminhar. A ignorância crítica viu cegueira aristotélica nos Conimbricenses, aliás, quando esta ignorância crítica se refere aos Conimbricenses tem em mente apenas o Colégio das Artes, omitindo ou esquecendo o miolo, os próprios Conimbricenses. Ora, no cânone original, Aristóteles é o eixo mas as rodas rodam. Os autores umas vezes se afastam dele, outras procuram conciliá-lo com o mais conforme à fé (13) porque, só por uma meia dúzia de erros de facto não se devia alijar toda a estrutura.
A ossatura aristotélica cede espaço para as carnes e as adiposidades. Cabem aí as fontes autorais de que os Conimbricenses se servem. Teria grande utilidade o índice onomástico de autores dos Commentarii. A título meramente digestivo, eis alguns: humanistas, são citados em cópia, tanto antigos como modernos; dos filósofos, tanto se citam os escolásticos como os não-escolásticos, incluindo averroístas, renascentistas e aristotélico-humanistas; dos escolásticos tanto há lugar para os escotitas – Duns Escoto – como para os tomistas – Francisco de Victoria; cientistas como Leonardo da Vinci, Copérnico e Galileu têm lá o seu nome, por muito que seja para espantar, só, que, de acordo com a regula mentis, as suas teses eram ensinadas mas não defendidas; e cabalistas como João Pico de Mirandola e outros; e mostram dominar, com perfeição de leitura, a herança medieval, tomista, nominalista, escotista (14). E corrige-se.
São várias as correcções que os Commentarii introduzem no discurso aristotélico sobre as ciências, mormente na Geografia. v.g., que o Nilo nasce no Reino do Congo e que há um quarto continente, a América, com base nos contributos dos descobrimentos a que, todavia, não concedem todo o relevo, talvez porque, à data, ainda se não soubesse tudo às claras. Manuel de Góis apela para os contributos dos descobrimentos e introduz consideráveis modificações na Cosmografia.
As teses do De Revolutionibus (1545) de Copérnico deviam ser mencionados no curso de Física, mas quem as aceitava? Nem Francisco Bacon, nem Isaac Cardoso, ambos cosmopolitas de grandes urbes, se rendiam às hipóteses copernicianas. No Colégio de Coimbra havia um livro de Cristovão Clávio, o Comentário à Astronomia de Sacrobosco (1570), no qual Copérnico aparece citado como o mais sábio dos astrónomos mas, citando a sua teoria heliocêntrica, repele-a. O mesmo Pedro Nunes, quando aceitasse a hipótese, queria que ela fosse demonstrada como tese. Como podia um curso liceal assumir, para fins didácticos, uma hipótese ainda a comprovar como tese digna de aceitação? Por isso, as teses geocêntricas continuaram a considerar-se oficiais, enquanto o nó do problema não fosse desfeito. Importa apenas distinguir: os Conimbricenses eram enciclopédicos; se não sabiam tudo, sabiam quase tudo; mas, nas teses a defender, só jogavam nas testadas por certeza científica. O mestre ensina o discípulo, mas só lhe deve dar pão cozido.
Evitar a transmissão da ciência mediante alegorias, mitos e símbolos. Antepor o carácter definitório das cousas que são, e como são. Por isso, a pouca felicidade de Platão no curso, de onde o dizer-se, por vezes, que há um anti-platonismo nos Commentarii. Afirmação inócua. Platão, velho e novo, juntamente com os platónicos antigos e modernos – Proclo, Jâmblico, Nicolau de Cusa, Marsílio Ficino – e com os seus opositores, aparecem na lectio conimbricense, com suas virtudes, valores e teses, muitas vezes apuradas e defendidas. Com uma nota a mais: todos eles são ancilares da lição aristotélica, porque o eixo que move o carro se chama Aristóteles.
A opção demorou, mas, quando Manuel de Góis chegou à hora de confeccionar o primeiro tratado conimbricense, já não restavam dúvidas, e, a partir daí, o aristotelismo apurou-se, melhorou-se e amplificou-se em cada um dos sucessivos tratados, aspecto em que os cursistas acederam às razões tão funda e explicitamente invocadas por Pedro da Fonseca e pelos superiores da Companhia. A escolha fez-se com critério. Nunca se cedeu a um juízo priorístico. Quando Manuel de Góis chama Aristóteles «diligentissimus observator» (15) chegava mais a uma conclusão do que assumia um ponto de partida. No entanto, como vimos, sendo o eixo, Aristóteles nunca foi tido como grade de prisão: «Tratamos todas as questões com a máxima liberdade. Deixamos alguns autores, como deixamos o próprio Aristóteles» (16). Nada impede que a prática posterior haja contrariado a teoria inicial, mas, com autenticidade e com procura séria, os Conimbricenses quiseram todo o Aristóteles como garante da filosofia enquanto órgão da liberdade.
Liberdade, claro, limitada pela prudência e pelo senso do comum, expresso na via colegial (in Os Conimbricenses, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992, pp. 79-89).
Notas:
(1) M. de Góis, In Octo Libros Physicorum, Proemium, De Distribtione Philosophiae.
(2) Id., id.
(3) M. de Góis, De Coelo, initium.
(4) M. de Góis, De Parva Naturalia, de Somnium, initium.
(5) M. de Góis, De Generatione et Corruptione, Lib. II, initium.
(6) Cf. «Aristotelismo», in Dicionário da História da Igreja em Portugal, Vol. I, pp. 501-513. Com bibliografia atinente.
(7) Pedro da Fonseca, Institutionum Dialecticarum, 1564, pref.
(8) «P. Ledesmae Tratactis Brevis de Propositionibus Philosophicis et Theologicis Prohibitis», in Monumenta Pedagogica S.I., pp. 548-569; Lopes Praça, História da Filosofia em Portugal, 1974, pp. 187-194.
(9) Constituições da V Congregação Geral S.I., Decreto n.º 41.
(10) Cassiano dos Santos Abranches, in Revista Portuguesa de Filosofia, Vol. IX, 1953, p. 53.
(11) Lopes Praça, ob. cit., p. 152.
(12) Domingos Maurício, in Brotéria, Vol. XXI, 1935, p. 312.
(13) Pedro da Fonseca, Comm. Metaphy., I, p. 32.
(14) A.A de Andrade, Contributos…, p. 75 e ss e 98.
(15) M. de Góis, De Coelo, Lib. IV, Proémio.
(16) Pedro da Fonseca, Com. Met., I, Admonitio.