quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Um aristotelismo integral

Escrito por Pinharanda Gomes








«... a escola Muçulmana estava formada desde o século IX; ora esta escola conhecia as obras do Estagirita; e Averroes, designadamente comentou e traduziu as obras de Aristóteles. As doutrinas destas escolas, estabelecidas em Córdova e Sevilha, atraíram a si estudantes de outras Nações, os quais não deixariam de levar aos seus países as doutrinas aprendidas. Ainda mais: os judeus foram outro meio de comunicação. Foram eles que, percorrendo a Europa em todas as direcções por causa do comércio, serviram de intermediário entre as Escolas Muçulmanas e as do Ocidente.

Um segundo modo de explicar a chegada dos livros restantes de Aristóteles é o império dos cruzados do Oriente. É sabido que Godofredo de Bouillon, chefe da primeira cruzada, tomou Jerusalém e aí estabeleceu um império, que ele governou com o título de Duque ou advogado do Santo Sepulcro. Este reino durou 88 anos; porque Saladino, rei da Síria e do Egipto, expulsou os cristãos em 1187. Ora neste espaço de 88 anos podia facilmente os livros das escolas Muçulmanas chegar ao conhecimento das escolas do Ocidente. As cruzadas são, pois, o segundo modo de explicar as relações das escolas do Oriente com as do Ocidente.

C. Jourdain expõe um terceiro alvitre. Diz este que é admissível a seguinte suposição. Os livros de Aristóteles, no tempo dos Romanos, vieram para o Ocidente e aí se conservaram até que no século XIII de novo foram descobertos e estudados. Todas estas explicações se podem admitir, e qualquer delas não exclui as outras».


Lopes Praça («História da Filosofia em Portugal»).


«Interpretamos toda a filosofia moderna como a demonstração de que o racionalismo medieval é insuficiente para elaborar um sistema filosófico. Kant, que estudou o ideal de razão pura nas obras dos Conimbricenses, completou essa demonstração. A não ser que se renuncie a filosofar, conforme propõe e impõe o positivismo, há que admitir verdades enunciadas em proposições de origem tradicional, revelada e sobrenatural, porque só elas tornam inteligível tudo o mais, só elas pacificam toda a ansiedade humana.

A reacção contra o racionalismo da Companhia de Jesus começou nos actos que tornaram possível a infiltração do iluminismo na cultura portuguesa, por essas associações secretas nomeadas academias e arcádias, obra começada no reinado de D. João V e facilitada pela reforma pombalina da Universidade de Coimbra».


Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).


«Sou servido abolir e desterrar, não somente da Universidade, mas de todas as escolas públicas e particulares, seculares e regulares de todos os meus reinos e domínios, a Filosofia Escolástica».


(Estatutos da Universidade de Coimbra, Livro II, parág 3).



Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra


«No primeiro ano da reforma matricularam-se [na Faculdade de Matemática] oito estudantes, dos quais faleceu um e desistiram dois; no segundo ano matricularam-se dois mas só um apareceu; e no terceiro, quarto e quinto anos, não se matriculou nenhum.

(...) Desde o princípio da sua criação [da Faculdade de Filosofia Natural] até agora [cinco anos depois da aplicação dos estatutos pombalinos] só quatro estudantes se têm matriculado como Ordinários [por alunos ordinários entendiam-se os que frequentavam as Faculdades para se formarem no respectivo curso, distinguindo-se assim dos obrigados, que ali andavam como condição obrigatória de ingresso noutros cursos]».


O reitor-reformador de Coimbra, D. Francisco de Lemos (in Rómulo de Carvalho, «História do Ensino em Portugal»).


«Nos fins do século XVIII, as ideias filosóficas estavam profundamente divididas. Portugal não se manteve alheio ao movimento intelectual geral. Foi nesta época que a língua portuguesa começou a substituir a língua latina nos tratados de filosofia. O tomismo, tal como era ensinado em Coimbra pela escola de Suarez, foi atacado por várias ordens religiosas, sobretudo pela Congregação do Oratório e pelos Cónegos de Santo Agostinho. A filosofia moderna fez a sua franca aparição em Portugal com o Padre João Baptista do Oratório, o arquidiácono Luís António Verney e o Padre Teodoro de Almeida. As obras escritas nesta época dão testemunho da infiltração do cartesianismo e do sensualismo».


Ferreira Deusdado («A Filosofia Tomista em Portugal»).



«Desde o século XIII até ao século XVI, o livro de ensino da lógica, ou arte de pensar, utilizado na generalidade das escolas da Europa foram as Sumas de Pedro Hispano, só substituídas, a partir do século XVI, pelas Institutiones Dialecticae, de Pedro da Fonseca, que, no tempo de Kant, ainda era o livro seguido no ensino da filosofia».


Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).




Pedro Hispano



«Leibniz estudou o curso conimbricense que, por vezes, andava junto com as Institutiones de Pedro da Fonseca, as quais constavam da biblioteca de seu pai. Segundo testemunho do seu biógrafo, Leibniz lia os tratados de Pedro da Fonseca como se fossem um romance de cavalaria e, com eles, decerto, alguns dos Conimbricenses, cujo realismo medianeiro ensinava a evitar os extremos, tanto do absoluto idealismo, como do absoluto nominalismo em que, já no século XVII, o pensamento tendia a cair, gerando, ou idealismos, ou materialismos radicais em posteriores épocas. As diferenças de Leibniz em ontologia e teodiceia não obliteram a presença e a incidência do realismo conimbricense na gestação da sua harmónica forma de pensar e de filosofar».


Pinharanda Gomes («Os Conimbricenses»).


«Aristóteles é o pensador sempre presente em todos os momentos do pensamento nacional».


Delfim Santos



«Notamos, por um lado, que a história não está por inteiro contada, propendemos, por outro lado, a admitir, e cada vez com mais implacável firmeza, que se a causa da verdadeira filosofia não foi assegurada por uma escolástica de inspiração divina e teológica, ela não é também assegurada pela nova escolástica de inspiração humanística e científica.

A causa da filosofia não é a daquele céu, mas não é também a desta terra. Importa apreendê-lo. A partir disso será compreendida e valorizada a filosofia que temos e tivemos».


José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).






UM ARISTOTELISMO INTEGRAL


Que primeiríssima causa determinou o primado da filosofia aristotélica na escolástica dos Conimbricenses? – A resposta de Manuel de Góis indica e explica essa causa: os filósofos que floresceram antes de Aristóteles escolheram, por via de regra, uma parte da Filosofia, ou Física, ou Ética, ou Metafísica, mas nem Sócrates nem Platão deixaram «um género de doutrina absolutamente perfeita com afirmação certa e constante» (1). Em fundo contraste, Aristóteles apresentava-se como o curso total: «Aristóteles… tratou não só da Lógica, como também da Física e de todas as outras faculdades. Conduzindo o corpo de doutrina desde os próprios princípios das cousas até ao fim (ab ipsis rerum primordiis ad finem usque perducta serie) com admirável elegância de ordem (mira ordinis elegantia) colocou cada ouvinte no seu género, para que se chame com toda a justiça pai das boas artes e lídia pérola dos Filósofos» (2). O ter feito uma universidade sapiencial, um estudo geral com todas as disciplinas, oferecendo uma realidade de pensamento (saber das cousas como são), uma finalidade objectiva (saber das cousas para que são), uma originalidade de causa (saber da primeira causa) e uma ordem metodológica assente num critério de lógica absoluta, eis as razões de Aristóteles ser escolhido como o «daemonium» dos Conimbricenses, o que dirige.


Aristóteles é o eixo do curso. Toda a doutrina dos Commentarii efectua as explanações e as resoluções mediante o «diligentíssimus observator Aristoteles» (3), «cum Aristotele» (4) em conformidade com o «Institutum Aristotelis) (5) e, enfim, com o sistema orgânico do Estagirita. Este integralismo não é, porém, rigorosamente feito letra a letra. Em primeiro lugar, abandonou-se o texto grego, preferindo-se a versão latina, segundo a tradução (ao que se admite, carecendo de ser confirmado) de J. Argiropulo. Em segundo lugar, os tratados de Aristóteles não foram todos dados na íntegra, o que só ocorre com os textos De Physicae, De Coelo, De Anima, e De Generatione et Corruptione. Os demais só parcialmente tiveram comentário.

Surge Aristóteles de modo espontâneo no Colégio das Artes? Não. A elevação de Aristóteles é o fim de um percurso, qual esse que deriva da utilização do impuro aristotelismo da medievalidade – impuro, ou porque estivesse prenhe de neoplatonismo, ou porque só parcialmente se conhecesse, ou porque o acesso a ele se fazia por isagoges parcelares, ou porque se apresentava de mistura com espiritualidades religiosas, ou porque as tendências mais nítidas quanto ao aristotelismo real, (aristotelismo averroísta, predominantemente em Itália, e aristotelismo alexandrinista, predominante em Bolonha), obturavam uma clara visão do corpus aristotelicum, que, na medievalidade, só a Escolástica árabe conhecia em plenitude. A identificação proposta no termo «dois aristotelismos» tem razão de ser, porque na época da definição dos Conimbricenses se defrontam um aristotelismo medieval, parcial e inseguro, quase só atento à Lógica, e um aristotelismo renascentista, sem dúvida provocado pelo conhecimento das obras de Averroes, que deseja um Aristóteles íntegro – todo o sistema lógico, físico e metafísico. Há, porém, outras paridades, sobretudo na esfera da Teologia, onde também se apõem o Augustinismo e o Tomismo, cada um com sua leitura aristotélica – a platonizante do augustinismo e a aristotelicizante do tomismo, sobretudo do chamado tomismo integral da Ordem dos Pregadores. O cânone aristotélico ainda se achava por dominar. As Sumula Logicales de Pedro Hispano continuavam a ser o compêndio mais utilizado nas escolas, mas não ia para além da lógica velha, por desconhecimento da totalidade do Organon. No entanto, em Coimbra, começaram a surgir novas experiências no âmbito universitário, que exorbitavam da Lógica e já tentavam a Física. Embora eleborara um Physices Compendium (1522) que alarga o magistério aristotélico às ciências da natureza. A fundação do Colégio das Artes propicia o aparecimento de novos tratados de matriz aristotélica.

Nicolau Grouchy imprimiu uma versão da Lógica Aristotelica (1549) em dois livros, muito seguida depois por Belchior Beleago. Diogo de Contreiras não fez obra original, mas anotou e publicou a Dialectica (1551) segundo a aula de Jorge de Trebisonda, George Trapezontij Dialectica. António Luís, «o Grego», nomeado para ler Medicina com Coimbra, atém-se, e só, ao original grego. Estando já em Coimbra, os Jesuítas imprimiram uma Lógica Aristotelis, um pouco ao geito do manualzinho de Belchior Beleago. E, por fim, em 1564 publicavam-se as Institutionum Dialecticarum, texto de absoluto aristotelismo (6).






Não obstante, o apuramento do aristotelismo para a Renascença ficara sendo obra de António de Gouveia, na sua polémica contra Pedro Ramo, constante do livro Pro Aristotele Responsio, adversus Petri Rami Calumnias (Paris, 1543). Gouveia estudava, desde 1541, o texto grego do filósofo, enquanto Pedro Ramo apenas o conhece através de Cícero. Pedro Ramo desvaloriza Aristóteles, enquanto António de Gouveia o valoriza. Ele não ama, decerto, o Aristóteles imperfeito da Escolástica, mas ama o «Aristóteles original». O problema que se põe aos Conimbricenses é realmente este: obter um Aristóteles original e, se possível, total. Esse não podia ser, nem o que procedia dos árabes, também impuro, já que seguiu o caminho da Grécia – Síria – Árabes, nem o que procedia dos romanos, ainda mais impuro e parcelar. Aliás, nos fins do século XIII já se tendia a pôr de lado as traduções velhas arábico-latinas (translatio vetus) preferindo-se a tradução do grego (translatio nova). O sentido decadente que se apodera da Escolástica medieval garante a muitos humanistas o desejo de sacudir o chamado «jugo de Aristóteles», mas, no século XVI, era necessário conciliar o valor real do aristotelismo com as novas exigências do humanismo. A polémica Gouveia/Ramo oferece esta conciliação, que, alfim, seria obtida na Segunda Escolástica e, diga-se, com origem no exercício do aristotelismo conimbricense, que permitiu a suficiente elasticidade de espírito para os renovados realismo, nominalismo e idealismo. Nem sempre se anotava que o anti-aristotelismo não abarcara todo o Aristóteles, mas sobretudo a Física porque, verificando-se novos achamentos, não fazia sentido manter válida a tese de Aristóteles. A oposição de Leonardo da Vinci, de Galileu Galilei e de Francisco Sanches a Aristóteles visa principalmente a Física, e, pois, a teimosia de, mesmo em causa nova, se dar prioridade ao magister dixit. Nos primeiros dias do instituto inaciano, Aristóteles não se punha em toda a extensão. Em Itália recomendava-se que era conveniente seguir Averroes a par dos seus comentadores. Em tempo, Inácio de Loyola procura orientar a Companhia para o seguimento de Aristóteles em Filosofia e de Santo Tomás de Aquino em Teologia, por lhe parecerem mestres seguros para uma atitude doutrinal perante a Europa reformista. Uma orientação clara data de 1563, devendo-se a Francisco de Borja, que mandou se seguisse Aristóteles levando o seu próprio texto para a aula, evitando-se desvios da doutrina magistral. A doutrina de Pedro da Fonseca confirma a orientação: «Todo o empenho devia ser colocado na explanação dos livros de Aristóteles» (7). Houve desvios?

Os eborenses queixavam-se a Roma, em 1567, de que na Companhia se ensinavam teses aleatórias. O Padre Ledesma redigia uma longa lista de opiniões e de teses que não deviam ser ensinadas nas aulas jesuítas. As teses acham-se em sete classes: 1. Sobre a Silogística, quatro teses. 2. Sobre a Metafísica, dez teses. 3. Sobre a criação, seis teses. 4. Sobre a acção e poder divino, quatro teses. 5. Sobre a alma, quinze teses. 6. Sobre as categorias, dez teses. 7. Sobre a parva naturalia, catorze teses, num total de sessenta teses (8). Trata-se de teses nominalistas, de elencos sofísticos, de proposições indefensáveis, quer do ponto de vista da lógica argumentária, quer do ponto de vista da doutrina da fé. Que significa ensinar, no contexto, uma vez que a estrutura dos Commentarii obriga à enumeração e explicação de todas as teses sobre cada questão? – Significa defender, postular, ou seja, os professores podiam e deviam informar os alunos dessas teses, mas não as podiam assumir como suas. A V Congregação Geral da Companhia exarou um cânone para que não houvesse desvios de Aristóteles em «questões de monta», salvo se isso contrariasse a ortodoxia. Que Averroes pudesse ser lido, desde que lhe corrigissem os erros e, enfim, que não se defendessem opiniões contrárias às do «saber comum» das escolas, mantendo-se a unidade da doutrina na Companhia. Na redacção de 1586 da Ratio Studiorum já se preconiza a adopção de Aristóteles em toda a sua pureza, mas a versão de 1599 faz o definitivo apuramento dessa pureza. Determinação «In Logica et Philosophia naturali et morali et Metaphysica, doctrina Aristotelis sequenta est» (9). Cada professor poria toda a sua diligência em interpretar bem o texto de Aristóteles. Todas estas normas seriam havidas como parâmetros na redacção dos projectados Commentarii, nos quais, embora chamadas à lição, as teses proibidas não são defendidas.



Estátua de Averroes



«Os professores do Colégio das Artes lutaram com denodo para levar a novo esplendor a doutrina aristotélica» (10), procurando substituir o nominalismo pelo realismo e o escotismo franciscano por um tomismo que não seria necessariamente o dominicano, alfim, o tomismo jesuíta. Após anos de elaboração mental e prática, os livros conimbricenses podiam trazer à luz o aristotelismo peculiar: o texto de Aristóteles na versão latina, os primeiros comentadores de Aristóteles, desde Porfírio a Averroes, e todos os comentadores medievais do aristotelismo, desde os greco-romanos aos árabo-medievais. Assim o entendeu a leitura de Bartolomeu de Saint-Hilaire: «Os Coimbrões querem estudar Aristóteles com o arsenal inteiro de todos os Comentadores que ele produziu» (11), o que constitui uma leitura diversa da bem modesta de Brucker, que apenas mencionou a «erudição peripatética» e as «subtilezas escolásticas».

«Nos Conimbricenses (o aristotelismo) atinge proporções mais generosas: abrange toda a filosofia greco-romana e árabo-medieval, não só nos seus valores mais representativos mas até em alguns bens obscuros» (12).

Aristóteles é o eixo, mas não a grade da prisão. Quer-se um sistema para um pensamento de direito pensar, mas também flexível para de caminhar. A ignorância crítica viu cegueira aristotélica nos Conimbricenses, aliás, quando esta ignorância crítica se refere aos Conimbricenses tem em mente apenas o Colégio das Artes, omitindo ou esquecendo o miolo, os próprios Conimbricenses. Ora, no cânone original, Aristóteles é o eixo mas as rodas rodam. Os autores umas vezes se afastam dele, outras procuram conciliá-lo com o mais conforme à fé (13) porque, só por uma meia dúzia de erros de facto não se devia alijar toda a estrutura.

A ossatura aristotélica cede espaço para as carnes e as adiposidades. Cabem aí as fontes autorais de que os Conimbricenses se servem. Teria grande utilidade o índice onomástico de autores dos Commentarii. A título meramente digestivo, eis alguns: humanistas, são citados em cópia, tanto antigos como modernos; dos filósofos, tanto se citam os escolásticos como os não-escolásticos, incluindo averroístas, renascentistas e aristotélico-humanistas; dos escolásticos tanto há lugar para os escotitas – Duns Escoto – como para os tomistas – Francisco de Victoria; cientistas como Leonardo da Vinci, Copérnico e Galileu têm lá o seu nome, por muito que seja para espantar, só, que, de acordo com a regula mentis, as suas teses eram ensinadas mas não defendidas; e cabalistas como João Pico de Mirandola e outros; e mostram dominar, com perfeição de leitura, a herança medieval, tomista, nominalista, escotista (14). E corrige-se.


São várias as correcções que os Commentarii introduzem no discurso aristotélico sobre as ciências, mormente na Geografia. v.g., que o Nilo nasce no Reino do Congo e que há um quarto continente, a América, com base nos contributos dos descobrimentos a que, todavia, não concedem todo o relevo, talvez porque, à data, ainda se não soubesse tudo às claras. Manuel de Góis apela para os contributos dos descobrimentos e introduz consideráveis modificações na Cosmografia.

As teses do De Revolutionibus (1545) de Copérnico deviam ser mencionados no curso de Física, mas quem as aceitava? Nem Francisco Bacon, nem Isaac Cardoso, ambos cosmopolitas de grandes urbes, se rendiam às hipóteses copernicianas. No Colégio de Coimbra havia um livro de Cristovão Clávio, o Comentário à Astronomia de Sacrobosco (1570), no qual Copérnico aparece citado como o mais sábio dos astrónomos mas, citando a sua teoria heliocêntrica, repele-a. O mesmo Pedro Nunes, quando aceitasse a hipótese, queria que ela fosse demonstrada como tese. Como podia um curso liceal assumir, para fins didácticos, uma hipótese ainda a comprovar como tese digna de aceitação? Por isso, as teses geocêntricas continuaram a considerar-se oficiais, enquanto o nó do problema não fosse desfeito. Importa apenas distinguir: os Conimbricenses eram enciclopédicos; se não sabiam tudo, sabiam quase tudo; mas, nas teses a defender, só jogavam nas testadas por certeza científica. O mestre ensina o discípulo, mas só lhe deve dar pão cozido.

Evitar a transmissão da ciência mediante alegorias, mitos e símbolos. Antepor o carácter definitório das cousas que são, e como são. Por isso, a pouca felicidade de Platão no curso, de onde o dizer-se, por vezes, que há um anti-platonismo nos Commentarii. Afirmação inócua. Platão, velho e novo, juntamente com os platónicos antigos e modernos – Proclo, Jâmblico, Nicolau de Cusa, Marsílio Ficino – e com os seus opositores, aparecem na lectio conimbricense, com suas virtudes, valores e teses, muitas vezes apuradas e defendidas. Com uma nota a mais: todos eles são ancilares da lição aristotélica, porque o eixo que move o carro se chama Aristóteles.






A opção demorou, mas, quando Manuel de Góis chegou à hora de confeccionar o primeiro tratado conimbricense, já não restavam dúvidas, e, a partir daí, o aristotelismo apurou-se, melhorou-se e amplificou-se em cada um dos sucessivos tratados, aspecto em que os cursistas acederam às razões tão funda e explicitamente invocadas por Pedro da Fonseca e pelos superiores da Companhia. A escolha fez-se com critério. Nunca se cedeu a um juízo priorístico. Quando Manuel de Góis chama Aristóteles «diligentissimus observator» (15) chegava mais a uma conclusão do que assumia um ponto de partida. No entanto, como vimos, sendo o eixo, Aristóteles nunca foi tido como grade de prisão: «Tratamos todas as questões com a máxima liberdade. Deixamos alguns autores, como deixamos o próprio Aristóteles» (16). Nada impede que a prática posterior haja contrariado a teoria inicial, mas, com autenticidade e com procura séria, os Conimbricenses quiseram todo o Aristóteles como garante da filosofia enquanto órgão da liberdade.

Liberdade, claro, limitada pela prudência e pelo senso do comum, expresso na via colegial (in Os Conimbricenses, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992, pp. 79-89).



Notas:

(1) M. de Góis, In Octo Libros Physicorum, Proemium, De Distribtione Philosophiae.

(2) Id., id.

(3) M. de Góis, De Coelo, initium.

(4) M. de Góis, De Parva Naturalia, de Somnium, initium.

(5) M. de Góis, De Generatione et Corruptione, Lib. II, initium.

(6) Cf. «Aristotelismo», in Dicionário da História da Igreja em Portugal, Vol. I, pp. 501-513. Com bibliografia atinente.

(7) Pedro da Fonseca, Institutionum Dialecticarum, 1564, pref.

(8) «P. Ledesmae Tratactis Brevis de Propositionibus Philosophicis et Theologicis Prohibitis», in Monumenta Pedagogica S.I., pp. 548-569; Lopes Praça, História da Filosofia em Portugal, 1974, pp. 187-194.

(9) Constituições da V Congregação Geral S.I., Decreto n.º 41.

(10) Cassiano dos Santos Abranches, in Revista Portuguesa de Filosofia, Vol. IX, 1953, p. 53.

(11) Lopes Praça, ob. cit., p. 152.

(12) Domingos Maurício, in Brotéria, Vol. XXI, 1935, p. 312.

(13) Pedro da Fonseca, Comm. Metaphy., I, p. 32.

(14) A.A de Andrade, Contributos…, p. 75 e ss e 98.

(15) M. de Góis, De Coelo, Lib. IV, Proémio.

(16) Pedro da Fonseca, Com. Met., I, Admonitio.



segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Princípios políticos de Fernando Pessoa

Escrito por Fernando Pessoa





Fernando Pessoa com o escritor Costa Brochado (Café Martinho da Arcada). 



«Hoje, é isto de este Governo socialista transferir, em grande cerimonial cívico, o sepulcro de Fernando Pessoa para os Jerónimos, ao lado de Camões e do Gama. É a maior homenagem material que os homens do poder político, sempre tão pobres em espírito, podem prestar a um poeta.

Acontece, porém, que um poeta é um homem de poemas e de ideias pois não há poesia sem verdade como se diz, citando alemães, na epígrafe das "Obras Completas" do homenageado. E acontece também que, que entre as ideias, ou verdades, de Fernando Pessoa a mais contrastante e de muitos modos expressa é a do repúdio do socialismo, doutrina que o poeta cientificamente refuta e visceralmente abomina.

Como se pode, então, homenagear Fernando Pessoa e continuar a ser socialista? Ou estes nossos socialistas são, além de suicidas, tolos e tontos ou vão anunciar-nos, já amanhã, que deixaram de ser socialistas. Não há outra hipótese possível».


Orlando Vitorino («O processo das Presidenciais 86»).






Princípios Políticos de Fernando Pessoa (comentário, ordenação e selecção de textos por António Quadros)


1 – Republicano e nacionalista, liberal e anti-totalitário


A «Nota Biográfica»


Numa segunda fase, a provocação cede o lugar à reconstrução teórica ou doutrinária. Fernando Pessoa, desinteressando-se da batalha das ideias a nível internacionalista, antes mergulha na organicidade interna e viva do seu país, tentando compreender o seu logismo e os seus ilogismos, a sua coerência e as suas incoerências, para depois enunciar e seriar os seus principais problemas. Não é que tenha tapado os ouvidos a tal batalha, mas ela apenas o interessou pelos reflexos internos que teriam sobre uma nação, a seu ver mais destinada a influenciar do que a ser influenciada.

Na
Nota Biográfica que elaborou como introdução ao poema À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais, o próprio Fernando Pessoa enunciou os seus princípios políticos:

Ideologia política:
considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes votaria, embora com pena, pela república. Conservador de estilo inglês, isto é, liberal, dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário.

Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação».

Posição social: Anticomunista e anti-socialista, o mais deduz-se do que vai dito acima.

Resumo destas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater sempre em toda a parte, os seus três assassinos – a Ignorância, o Fanatismo e a Intolerância».






Poderíamos sintetizar as grandes linhas do seu pensamento político da seguinte forma:

1. Republicano (partidário de uma «República Aristocrática»…).

2. Liberal (com inspiração nos Conservadores Ingleses).

3. Nacionalista místico (de espécie sebastianista).

4. Humanitarista («Tudo pela humanidade…»).

5. Adversário do reaccionarismo, do catolicismo romano, do internacionalismo, do estatismo totalitário, do comunismo, do socialismo, do obscurantismo, do fanatismo, da intolerância.

Muito embora estes elementos (de afirmação e de rejeição) não costumem andar juntos nos sistemas ou ideologias mais conhecidos, Fernando Pessoa sempre os perfilhou com coerência e até com persistente continuidade. Há sem dúvida todo um sistema político implícito no seu pensamento. Se o poeta não chegou a expô-lo em termos doutrinários e organizados, contudo deixou-nos muitos textos onde aqueles princípios surgem mais ou menos desenvolvidos. Eis alguns desses fragmentos, escolhidos de entre os mais significativos.


Nacionalismo e liberalismo


Uma dessas palavras é nacionalismo; liberalismo é outra. A tal ponto se desviaram, no uso e significação corrente, do uso e da significação que legitimamente lhes caberia, que passaram a ser tidas como significando coisas opostas, quando, visto que se reportam a coisas inteiramente díspares, não pode haver entre elas, ou o que significam, qualquer coisa que se pareça com oposição.

Por nacionalismo legitimamente se entende um patriotismo que, excedendo o simples patriotismo instintivo e natural de amar a terra onde se nasceu, e a defender por manifestações externas como a palavra e o combate, a procura defender intelectualmente contra a invasão de estrangeirismos que lhe pervertam a índole ou de internacionalismos que lhe diminuam a personalidade.

Por liberalismo legitimamente se entende aquele critério das relações sociais pelo qual cada homem é considerado como livre para pensar o que quiser e para o exprimir como quiser ou pôr em acção como entender, com o único limite de que essa acção não tolha directamente os iguais direitos dos outros à mesma liberdade.

Como é de ver, estes dois conceitos – nacionalismo e liberalismo – em nada se opõem, em nada se podem opor, um ao outro. O primeiro gira em torno do conceito de Nação – não, note-se bem, de Estado -; o segundo gira em torno do conceito de indivíduo – não, note-se bem, de cidadão. E assim é que o nacionalismo pode ser liberal ou anti-liberal, o liberalismo nacionalista ou anti-nacionalista.



Nação e Estado




Cumpre, chegados aqui, que façamos uma distinção clara e escrupulosa entre Nação e Estado. Se o pensar claramente fosse uma natural disposição humana, não haveria sequer que pensar em estabelecer tal distinção. Infelizmente a clareza do pensamento, assim como a perspicuidade na expressão dele, são, ao que parece, produtos de uma espécie aristocrática, embora, felizmente, não intransmissíveis ao amplo público.

A Nação é uma entidade natural, com raízes no passado, e, poder-se-ia acrescentar, em linguagem paradoxal mas justa, com raízes também no futuro. O Estado é fenómeno puramente do presente, tanto que se projecta em, e se consubstancia com, o Governo que esteja, no momento, de posse da actividade desse Estado. De posse da Nação ninguém pode estar, pois não há redes, ministeriais ou outras, com as quais se pesque o impalpável.

A valorização do Estado, longe de se reflectir em o indivíduo ou a nação, valorizando-os, reflecte-se neles somente para os diminuir.

A frase, ou bordão, de Mussolini, Tudo pelo Estado, nada contra o Estado tem a vantagem de ser perfeitamente clara. Diz o que diz. Com ela sabemos onde estamos, embora não queiramos lá estar. A frase portuguesa imitada, Tudo pela Nação, nada contra a Nação, ou quer dizer, velando-se, a mesma coisa que a frase de Mussolini; ou, se quer dizer outra coisa, não quer dizer coisa alguma. Está no mesmo caso a expressão civilização cristã, à que ninguém ainda conseguiu descobrir qualquer espécie de sentido.

O Estado é simplesmente a maneira de a Nação se administrar: rigorosamente, não é a mesma coisa, mas um processo. (…)

Apareceram recentemente à superfície da terra social uns animais chamados directrizes. Definindo mal e depressa, esta palavra quer dizer que qualquer de nós tem que pensar pela cabeça de outra pessoa. Tal intimação ou imposição não pode fazê-la senão o Estado ou quem nele manda, pois a Nação não se exprime através do Estado mas através dos indivíduos, e mormente através dos homens de génio, que são a concentração individual das forças íntimas da Nação. Ora os homens de génio não impõem directrizes: são-as.



O Comunismo


Ao contrário do catolicismo, o comunismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõem que ele a tem. O catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definido e compreensível, quer teologicamente, quer sociologicamente. O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema – o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e com ele se formar uma figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós.O comunismo não é uma doutrina porque é uma anti-doutrina, ou uma contra-doutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental – isto é de civilização e de cultura -, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem.


O fascismo


O tio Mussolini, como qualquer inglês com razão de queixa, escreveu uma carta ao Times. O duce não sabe inglês, nem, ao que parece, encontrou alguém que o soubesse responsavelmente entre os quarenta milhões que, pelo cômputo próprio, formam a sua pátria real.












A carta é notável, não pelas afirmações – que são do género das que poderia fazer o Sr. Lloyd George, ou o Sr. Briand, ou qualquer outro Afonso Costa -, mas pelo emprego saliente da palavra whereof, que quer dizer «de que». De relembrável nada mais diz o lictor.

O problema apresentado pelo fascismo é muito simples, e, na sua essência, não nos é, a nós portugueses, desconhecido. O povo italiano – que é de supor que o seja, e não fascista nem comunista – recebeu há anos, do lado direito da cara, a bofetada do comunismo. O fascismo, para o endireitar, deu-lhe uma bofetada, um pouco mais forte, do lado esquerdo. Não sabemos, nem temos meio de saber, se o povo italiano aprecia mais o ter ficado direito, ou neotorto, ou as desvantagens faciais do processo empregado. E resta sempre saber, nesta matéria – como cada nova bofetada é sempre mais forte que a anterior, para poder endireitar -, em que altura é que pára a terapêutica equilibradora, e em que estado fica o equilibrado quando o Destino, por fim, se cansa do tratamento.

Whereof…

2 – A «tripla camada de negativismos»



A Pátria portuguesa e o Estado


Mas o principal do pensamento político de Fernando Pessoa está directamente ligado à situação portuguesa. A grande crise, a seu ver, é a do conceito de Pátria, abusivamente substituído pela excessiva valorização do Estado. É o que afirma, num pequeno mas significativo texto, até há pouco inédito.

1. Considerar a Pátria Portuguesa como a coisa para nós mais existente, e o Estado Português como não existente.

Fazer, portanto, tudo pela Pátria e não pedir nada ao Estado.

2. Considerar que a Pátria Portuguesa existe toda ela dentro de cada indivíduo português.

Fazer, portanto, tudo para si mesmo como português, desenvolver-se a si mesmo no sentido português.

3. Considerar que a Pátria Portuguesa, como qualquer pátria, é apenas um meio de criar uma civilização.

Fazer tudo, portanto, para criar uma Pátria Portuguesa criadora de civilização.

4. Considerar que o conceito de Pátria é um conceito puramente místico, e que, portanto,

a) nenhum elemento de interesse deve entrar nele.

b) nenhum outro conceito místico deve coexistir com ele, a não ser que ele domine esse conceito e o integre em si.



A necessidade de um escol


Ao mesmo tempo, e dada a importância que Pessoa atribui ao indivíduo, é indispensável que se crie um escol…

A crise central da nacionalidade portuguesa deriva da sua impotência para formar escóis. Uma nação vale o que vale o seu escol.

As descobertas e as conquistas que se lhes seguiram, a emigração e as guerras que ambas motivaram, arrastavam consigo, como é natural, a parte mais forte, mais audaz, mais competente da nação. Assim se foi destruindo o escol.

O pior é que o escol se não renovou. Quer isto dizer que não tornaram a haver circunstâncias criadoras de um escol, ou, pelo menos, de um escol perfeito.

Quais são as circunstâncias criadoras de um escol; Um escol é tanto mais perfeito quanto mais: 1. diferente é do resto da população em grau de tudo; 2. quanto mais está unido a esse resto da população por um interesse nacional; 3. acção tem sobre esse resto da população.

O escol não quer dizer uma classe, mas uma série de indivíduos.








(…) É preciso criar um organismo cultural


Para que surja um escol e note-se como (Condições biológicas) Pessoa se demarca das teorias racistas e germânicas de intervenção em matéria biológica ou demótica, é no entanto preciso começar por criar um organismo que o propicie.

Em matéria cultural, o que se tem feito é quase nada. Quem há culto entre nós, a si próprio se cultiva, e as mais das vezes mal, quase sempre anti-nacionalmente. Em matéria de propaganda, a única instituição criada para esse fim, a inepta Sociedade de Propaganda de Portugal, nada faz porque, sendo uma espécie de escol de incompetentes, nada sabe fazer. E em matéria de consciência superior da nacionalidade, a maioria dos portugueses nem sequer sabem que isso existe.

É preciso criar um organismo cultural capaz de substituir o estado nestas funções. Escusa de ter aspecto de potência dentro da Pátria: basta que tenha a precisa noção superior dos seus fins.

Deve essa organização visar três fins: 1. A criação de uma atitude cultural nas classes médias, porque são elas as em que assenta a vida nacional, e entre os comerciantes sobretudo, porque, sobre serem eles a parte mais forte das classes médias, são a parte mais representativa delas, dado o carácter comercial da nossa época; 2. A criação de uma propaganda ordenada e científica de Portugal no estrangeiro; 3. A criação lenta e estudada de uma atitude donde derive uma noção de Portugal como pessoa espiritual.



A destruição da «tripla camada de negativismo»


Noutro texto, curto mas fundamental, Pessoa assinala a «tripla camada de negativismo» que cobre a Pátria, definindo três graus descendentes da nossa queda: decadência, desnacionalização e degenerescência.

A desorientação em que temos vivido, a decadência em que temos vegetado, deriva da acumulação de três factores, que em três épocas diferentes intervieram na vida nacional, e cuja influência infeliz permaneceu.

O primeiro factor – a decadência propriamente dita – data da jornada de Alcácer-Quibir, prolonga-se pelo domínio dos Filipes, e até hoje ainda não passou. Lampejos transitórios – a Restauração, o Marquês de Pombal [?], o Presidente Sidónio Pais – são apenas (salvo o último caso, de cujas consequências não podemos falar ainda) remissões da nossa doença colectiva.

O segundo factor – a desnacionalização – entrou com a vinda do sistema monárquico estrangeiro que, implantado primeiro em 1820, se arrastou, através de uma guerra civil constante, latente ou patente, até à sua fixação em 1851, e a corrupção definitiva dos nossos costumes políticos e administrativos, o abandono total do governo à portuguesa.

O terceiro factor, prolongamento desse segundo, surgiu plenamente em 1910, com a implantação da República. A desnacionalização tornou-se, nessa altura, degenerescência. Nem a degenerescência se limitava aos partidos que a República trouxe (não há estado social mórbido que seja pertença exclusiva de um partido), mas abrangeu também os velhos partidos monárquicos cuja obra a República, anarquizando mais, apenas continuou.

O problema português consiste na destruição da tripla camada de negativismo que assim cobre a Pátria
(in António Quadros, Fernando Pessoa, A Obra e o Homem, arcádia, Vol. II, 1982, pp. 229-238).




sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Nova Esquerda, Nova Direita

Escrito por Orlando Vitorino








O texto que ora se segue foi publicado pela primeira vez em 1977, no primeiro número da revista Escola Formal. Tratava-se, pois, de uma revista de pensamento em que a política não era nem devia ser confundida com qualquer ideologia, doutrina ou prática de conquista e exercício do poder. Por outras palavras, não era uma revista necessariamente política, se bem que não fugisse a encarar e a denunciar a infeliz situação em que os portugueses haviam caído na sequência da revolução comunista de 1974.

A revista Escola Formal defendia, antes de mais, a liberdade humana. Logo, demonstrando, nas suas parcíssimas laudas, que a esquerda é a maior inimiga da liberdade, situava-se numa direita doutrinária, ou, com mais propriedade, na nova direita. Escusado será então dizer que em Portugal foi a única revista que logrou pensar e sistematizar, de uma forma ampla e aberta, os princípios filosóficos do liberalismo económico, político e religioso. Mais: a revista Escola Formal, não obstante distinguir, em termos conceptuais, o conteúdo caracterizador da esquerda e da direita no contexto das vicissitudes e circunstâncias históricas relativamente recentes, teve sempre como horizonte superno o pensamento enquanto princípio garante e realizador da liberdade sempre volátil e fugaz. Posto isto, vamos ao que mais importa.




«Nós somos do século d'inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século d'inventar outra vez as palavras que já foram inventadas».

José de ALMADA-NEGREIROS



1. COMO SE INVERTERAM AS DESIGNAÇÕES


Se a direita usufrui de uma radicação na realidade que a esquerda não possui, a esquerda goza de um prestígio que falta à direita. Este prestígio - que explica a generalização do chamado "complexo de esquerda" - foi fabricado na primeira metade do século passado e preservado até a primeira guerra mundial, durante todo o período em que a esquerda representou o primado dos direitos individuais, a inviolabilidade da propriedade, o anticlericalismo, a liberdade de pensamento, de ensino e de expressão, enquanto a direita não era mais do que nostalgia do clericalismo do século XVIII, do absolutismo e do totalitarismo do século XVII e do feudalismo dos séculos anteriores. A partir da I Guerra Mundial, o comunismo adquiriu, ao instalar-se na Rússia, um instrumento eficaz para a propaganda marxista, até então cientificamente desdenhado e politicamente insignificante. Em nossos dias, o marxismo acabou por monopolizar a designação de "esquerda" de tal modo que as posições políticas se definem hoje como mais ou menos esquerdistas consoante estão mais próximas ou mais distantes do marxismo. Trata-se de uma definição irreversível e que é, portanto, inevitável, além de conveniente, aceitar, reconhecer e utilizar.






2. COMO A DIREITA É A ESQUERDA E A ESQUERDA É A DIREITA


Com a monopolização marxista da esquerda, as posições tradicionais de esquerda e de direita não só se alteraram como se trocaram. Aquelas que, não há meio século, eram ainda rigorosas posições de direita são hoje as posições características da esquerda e vice-versa. Com efeito:

O clericalismo - isto é: a intervenção da Igreja na política e na doutrinação das populações - que era uma atitude rigorosamente direitista, aparece nos nossos dias como uma exigência característica das facções católicas "progressistas" que gozam do apoio e do aplauso dos marxistas "abertos" ao diálogo com a Igreja;

A condenação do individualismo e a abominação do direito privado, que foram bandeiras da ultradireita, reaparecem em nossos dias na proclamação esquerdista do primado e soberania da colectividade, concretamente do Estado, sobre o indivíduo e a pessoa;

O condicionalismo dos meios de comunicação, isto é, da liberdade de informação e de expressão, pode equivaler - como aconteceu com as recentes decisões dos governos esquerdistas portugueses de taxar como produtos de luxo, primeiro, e, depois, de proibir a importação de livros e revistas estrangeiros - a uma "censura universal" esquerdista que deixa a perder de vista todo o conjunto das sectoriais censuras direitistas do Santo Ofício, de Pina Manique e de Salazar;

A liberdade do ensino vê-se suprimida na esquerda de hoje, tal como, concretamente, se verifica na vigente constituição esquerdista portuguesa, que só enquanto supletivo tolera o ensino livre (a que chama particular).

Finalmente, a planificação da economia leva a limitação da liberdade à existência quotidiana de toda a população e instala a mais perfeita actualização do servilismo feudal que é a prisão do homem aos meios de produção.


3. COMO SE FORMA A NOVA DIREITA






Se a esquerda tem, pois, o pensamento ou, pelo menos, a doutrina correspondente às suas posições, que é o marxismo, a direita continua a alimentar em si mesma um certo "complexo" inibitório que não é mais do que o medo de pensar as suas posições, medo que procura esconjurar com atitudes de hostilidade a todo o pensamento e com filáucias pragmatistas às quais a crítica fácil dos erros socialistas confere uma superioridade que, se é real, não é, todavia, fecunda. O que assim há, de um lado e do outro, equivale-se: tão pouco vale a recusa a pensar da direita como a atitude da esquerda em pensar dentro dos quadros do marxismo. Esta última atitude é, no entanto, a mais forte para a propaganda ideológica ou doutrinária até ao momento em que a direita, decidindo-se a pensar, facilmente refute os rudimentares chavões marxistas: planificação da economia, luta de classes, crítica das categorias económicas, primado da economia na existência social, exclusividade da produção pelo trabalho, abolição da propriedade, etc.

As vias que se abrem à direita para adquirir um pensamento próprio são, em primeiro lugar, as da reflexão dos momentos essenciais da filosofia política, desde Platão e Aristóteles, até Maquiavel, D. Duarte, Suarez, Hobbes ou Hegel. Residem elas, em segundo lugar, nos mesmos pensadores que, até à monopolização marxista, eram os característicos doutrinadores da esquerda: Locke, Hume, Rousseau, Stuart Mill. Estão, finalmente, nos críticos desse esquerdismo tradicional, cuja identificação com a possível "nova direita" é hoje a mesma evidência: Joseph de Maistre, Tocqueville, Donoso Cortês, e naqueles que, mais recentemente, viram como a velha e prestigiosa esquerda estava sendo a possível nova direita e conciliaram o pensamento de seus doutrinadores e seus opositores: Unamuno, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Ortega y Gasset. Em Portugal, ainda podemos contar com o autor da "Arte de Ser Português", Teixeira de Pascoaes, com Fernando Pessoa e, já nos nossos dias, com Álvaro Ribeiro. Todos eles são, enquanto pensadores políticos, pensadores da liberdade.

Deve entretanto registar-se que a "nova direita" tem, nos últimos anos, aberto caminho no domínio, precisamente, em que a esquerda marxista se julgava mais forte: na economia. Economistas como Ludwig von Mises e Frederico Hayek - para só citarmos os mais significativos - demonstraram à saciedade como a economia socialista, ao substituir as categorias económicas pela planificação económica, só conduz, irremediavelmente, à miséria dos povos e à servidão dos homens. O mais conhecido dos livros onde essa demonstração é feita intitula-se, precisamente, "O Caminho para a Servidão" (The Road to Serfdom, Frederico Hayek, London, 1976).






4. COMO SE FORMOU A NOVA ESQUERDA


À medida que a esquerda veio sendo monopolizada pelo marxismo, aqueles que não eram marxistas e que, considerando o carácter absolutista, totalitário e opressivo de todo o comunismo, eram da esquerda precisamente por serem antimarxistas, foram caindo numa situação de perplexidade e desequilíbrio. Fiéis à imagem, já moribunda, da velha esquerda libertária e individualista, fiéis também ao repúdio da velha imagem, essa já enterrada, de uma direita absolutista e reaccionária, foram ficando temerosos de terem de enfrentar a realidade, de terem de reconhecer que, monopolizada pelo marxismo, a esquerda trocara as suas posições com a direita.

Um grupo deles, os mais teimosos em confundir a antiga honestidade dos "homens de um só rosto" com a fidelidade aos emblemas, preferiu continuar a beber pela garrafa de velho rótulo o novo vinho do que beber o vinho velho pela garrafa de novo rótulo.

Outro grupo, mais citadino, mais filho-família, mais playboy, continuou a seguir a esquerda, seduzido pelo bem-pensantismo que a monopolização marxista ainda lhe não fizera perder e continuou a ver na direita um covil nauseabundo de jarretas reaccionários e ultrapassados.

Um terceiro grupo, dia-a-dia mais numeroso, veio cedendo à evidência e à realidade, não conseguiu deixar de beber o vinho velho, fossem embora novos os rótulos das garrafas, e acabou por descobrir e denunciar, com prazenteira bonomia, a caturrice teimosa dos "homens de um só rosto" e a vacuidade ridícula do bem-pensantismo na esquerda monopolizada.

Convém, finalmente, referir um último grupo, esse de origem clericalista que, defendendo a tradicional intervenção eclesiástica no Estado e sabendo claramente como essa intervenção é facilitada pelo absolutismo, aderiu francamente a uma esquerda, na qual o totalitarismo marxista é a actualização do absolutismo oitocentista; ao chamar, à esquerda marxista, a "nova esquerda", este grupo mostrou bem como a direita e a esquerda tinham trocado as posições.


Tal dissolução da antiga, séria e prestigiosa esquerda veio decorrendo durante os últimos trinta anos em que, depois da guerra, o socialismo se divulgou pela Europa como um equívoco. Dizemos "como um equívoco" no significado rigoroso do termo, pois o socialismo generalizou-se dando à mesma palavra dois sentidos contrários. Num sentido, o socialismo era a via para o comunismo, era o regime que, uma vez realizado em todas as suas consequências, constituiria o comunismo. Noutro sentido, o socialismo seria o regime que, por fazer certas concessões ao comunismo, constituiria a barreira eficaz ao seu avanço definitivo e nele caberiam, portanto, todas as posições da velha esquerda - o ensino livre, a imprensa livre, a propriedade livre, até o anticlericalismo - caso, evidentemente, todos concordássemos em aceitar a hipocrisia. E deste modo, por um ou outro sentido, a maioria dos esquerdistas portugueses, ao ter de optar democraticamente, aceitou, num primeiro momento, optar pelo socialismo. Em breve, porém, como em toda a Europa, o equívoco se veio desfazendo. Porque "socialismo há só um" e esse é, inevitavelmente, o que conduz ao comunismo. Dos vários grupos em que a esquerda se havia dividido, apenas um, o de origem clericalista, se mantém decididamente no socialismo, na esquerda marxista ou "nova esquerda". Os outros, sem ainda terem adoptado, ou terem podido adoptar, a "nova direita", procuram uma posição, que ainda conjecturam possível, de compromisso: primeiro, num socialismo democrático cuja versão social-democrata lhes é suspeita e, em prazo mais ou menos longo, os decepcionou já ou decepcionará; depois num centrismo cuja instabilidade geométrica a todo o instante se projecta na instabilidade política; por fim, num abstencionismo de expectativa.


5. DE QUE É QUE A DIREITA SE TEM DE LIBERTAR


Perante a esquerda monopolizada pelo marxismo, a direita, nem em Portugal nem na generalidade da Europa, conseguiu ainda definir-se nem, portanto, organizar-se. Começa por não conseguir desfazer os compromissos em que se deixou enlear com as formas nacionalistas - o nazismo, o fascismo, o salazarismo da última fase - que o socialismo adoptou nos vinte anos anteriores à guerra em que essas formas nacionalistas viriam a ser vencidas pelo socialismo internacionalista.

Também não conseguiu ainda a direita desfazer os compromissos com a plutocracia, capitalismo de empresa de que o capitalismo de Estado, ou comunismo leninista, é o natural sucedâneo. A plutocracia vê, com razão, na organização socialista dos trabalhadores o regime mais tranquilo para o exercício da sua actividade que tem, naturalmente, um carácter multinacional como o socialismo tem, naturalmente, um carácter internacional: a organização socialista entrega aos trabalhadores a definição do que eles entendem ser os seus direitos, cuja expressão económica - salários, etc. - tem um preço que a plutocracia deverá pagar, e paga, mas cujo valor - através da cotação da moeda, por exemplo - só a plutocracia tem o poder de determinar de acordo, evidentemente, com as suas conveniências.




Não conseguiu finalmente a direita desprender-se da velha obediência clericalista sem perceber que os próprios clérigos a não aceitam já; nem desprender-se de um tradicionalismo que vai até ao respeito (sem crítica) da realeza sem perceber que a realeza perdeu há muito o sentido da monarquia, regime constitucional que todos os grandes pensadores, desde Platão a Hegel, consideram o melhor dentre todos os possíveis; nem desprender-se do repúdio do sistema de partidos, com o qual identifica o liberalismo e tende a identificar a democracia, sem perceber que nem ao liberalismo nem à democracia é inerente, ou sequer convém, o sistema de partidos: o mais generoso doutrinador do liberalismo e da democracia moderna, Stuart Mill, foi o mais acérrimo adversário dos partidos políticos.

Em suma: inverteram-se, de facto, as posições de esquerda e de direita, mas enquanto a primeira, "nova esquerda" monopolizada pelo marxismo, tem a consciência, o saber e a doutrina equivalentes a essa inversão, a direita não consegue ter o pensamento daquilo que de facto ela mesma é hoje, não se desprende das posições que já não são as suas, não desfaz os compromissos em que, no trânsito daquela inversão, se deixou envolver, não pode por conseguinte organizar-se, não assume a forma, a eficácia e a actualidade de uma "nova direita".

Virtualmente, entre nós como na Europa, a direita tem por si a maioria das populações que vivem uma existência actuante, responsável, real e concreta. Não tem por ela as populações da existência abstracta, as do parasitismo urbano, burguês, filho-família, playboy, que vive na inveja do plutocrata, ou as do proletariado entregue à previdência social e, acorrentado aos contratos colectivos, que vive na inveja do burguês. Todos esses vêem a salvação para a insegurança de si, para a sua frustração quotidiana e para a má consciência da sua inutilidade, no aconchego dos planeamentos e na servidão da unidade característicos do socialismo. E não pode a direita dizer que não tem por si as "massas" que, vivendo uma existência concreta com um trabalho real e um salário quotidiano, se entregam a quem lhes paga, sobretudo a quem, com finalidades "revolucionárias", lhes paga melhor e lhes promete pagar mais. Em termos eleitorais, essas populações que, de facto, pertencem à "nova direita", ou dão, resignadas, o seu voto táctico a organizações partidárias nas quais se sabem logradas ou compõem o partido maioritário dos abstencionistas.

Serão susceptíveis, estas reflexões, de indicar a alguém o caminho? (in Manual de Teoria Política Aplicada, Edição Babel, 2010, pp. 123-130).






terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Direita e esquerda, origem e fim

Escrito por Olavo de Carvalho








Diário do Comércio, 10 de novembro de 2005

Proponho ao leitor, hoje, uma breve investigação de história das idéias. Ela pode ser um tanto trabalhosa no começo, mas renderá bons frutos para a compreensão de muitos fatos da vida presente.

A inconstância e a variedade dos discursos ideológicos da esquerda e da direita, para não mencionar suas freqüentes inversões e enxertos mútuos, tornam tão difícil apreender conceptualmente a diferença entre essas duas correntes políticas, que muitos estudiosos desistiram de fazê-lo e optaram por tomá-las como meros rótulos convencionais ou publicitários, sem qualquer conteúdo preciso.

Outros, vendo que a zona de indistinção entre elas se amplia com o tempo, concluíram que elas faziam sentido na origem, mas se tornaram progressivamente inutilizáveis como conceitos descritivos.

Apesar dessas objeções razoáveis, as denominações de esquerda e direita ainda servem a grupos políticos atuantes, que, não raro imanando-as com uma carga emocional poderosa, as utilizam não só como símbolos de auto-identificação mas, inversamente, como indicadores esquemáticos pelos quais desenham em imaginação a figura do seu adversário ideal e a projetam, historicamente, sobre este ou aquele grupo social.

Quando surge uma situação paradoxal desse tipo, isto é, quando conceitos demasiado fluidos ou mesmo vazios de conteúdo têm não obstante uma presença real como forças historicamente atuantes, é porque suas várias e conflitantes definições verbais são apenas tentativas parciais e falhadas de expressar um dado de realidade, uma verdade de experiência, cuja unidade de significado, obscuramente pressentida, permanece abaixo do limiar de consciência dos personagens envolvidos e só pode ser desencavada mediante a análise direta da experiência enquanto tal, isto é, tomada independentemente de suas formulações verbais historicamente registradas.

Dito de outro modo: a distinção de direita e esquerda existe objetivamente e é estável o bastante para ser objeto de um conceito científico, mas ela não consiste em nada do que a direita ou a esquerda dizem de si mesmas ou uma da outra. Consiste numa diferença entre duas percepções da realidade, diferença que permanece constante ao longo de todas as variações de significado dos termos respectivos e que, uma vez apreendida, permite elucidar a unidade por baixo dessas variações e explicar como elas se tornaram historicamente possíveis.

Anos atrás comecei a trabalhar numa solução para esse problema e de vez em quando volto a ela desde ângulos diversos, sempre notando que permanece válida.



Pedro e Paulo



A solução, em versão dramaticamente resumida, é a seguinte: direita e esquerda, muito antes de serem diferenças “ideológicas” ou de programa político, são duas maneiras diferentes de vivenciar o tempo histórico. Essas duas maneiras estão ambas arraigadas no mito fundador da nossa civilização, a narrativa bíblica, que vai de uma “origem” a um “fim”, do Gênesis ao Apocalipse. Note o leitor que a origem se localiza num passado tão remoto, anterior mesmo à contagem do tempo humano, que nem pode ser concebida historicamente. Começa num “pré-tempo”, ou “não-tempo”. Começa na eternidade. O final, por sua vez, também não pode ser contado como capítulo da seqüência temporal, pois é a cessação e a superação do transcurso histórico, o “fim dos tempos”, quando a sucessão dos momentos vividos se reabsorve na simultaneidade do eterno. A totalidade dos tempos, pois, transcorre “dentro” da eternidade, exatamente como qualquer quantidade, por imensa que seja, é um subconjunto do infinito. O Apóstolo Paulo expressa isso de maneira exemplar, dizendo: “ N'Ele [em Deus, no infinito, no eterno] vivemos, nos movemos e somos [agimos e existimos historicamente, isto é, no tempo].” Estar emoldurado pela eternidade é um elemento essencial da própria estrutura do tempo. Sem estar balizada pela simultaneidade, a sucessão seria impossível: a própria idéia de tempo se esfarelaria numa poeira de instantes inconexos. Não é, pois, de espantar que a consciência histórica se forme desde dentro do legado judaico-cristão como um de seus frutos mais típicos. Mas, quando entre os séculos XVIII e XIX essa consciência se consolida como domínio independente e floresce numa variedade de manifestações, entre as quais a “ciência histórica”, a “filosofia da história” e a voga das idéias de “progresso” e “evolução”, nesse mesmo instante a moldura eterna desaparece e a dimensão temporal passa a ocupar todo o campo de visão socialmente dominante.

Uma das primeiras conseqüências dessa restrição do horizonte é que as idéias de “origem” e “fim”, já não remetendo a uma dimensão supratemporal, passam a ser concebidas como meros capítulos “dentro” do tempo – uma incongruência quase cômica que infectará com o germe da irracionalidade muitas conquistas de uma ciência que se anunciava promissora. Entre as inúmeras manifestações da teratologia intelectual que desde então sugam as atenções de pessoas bem intencionadas destacam-se, por exemplo, as tentativas de datar o começo dos tempos a partir de uma suposta origem da matéria, como se as leis que determinam a formação da matéria não tivessem de preexistir-lhe eternamente; ou os esforços patéticos para abranger o conjunto do transcurso histórico num sistema de “leis” que presumidamente o levam a um determinado estágio final, como se o estágio final não fosse apenas mais um acontecimento de uma seqüência destinada a prosseguir sem término previsível.

Se nas esferas superiores do pensamento florescem então por toda parte concepções pueris que empolgam as atenções por umas décadas para depois ser atiradas à lata de lixo do esquecimento, o distúrbio geral da percepção do tempo não poderia deixar de se manifestar também, até com nitidez aumentada, em domínios mais grosseiros da atividade mental humana, como a política. E é aí que as balizas eternas do tempo, reduzidas a capítulos especiais da seqüência temporal, passam a ser vivenciadas como dois símbolos legitimadores da autoridade política.

De um lado, a mera antigüidade temporal do poder existente (que na realidade podia nem ser tão antigo assim, apenas mais velho que seus inimigos) parecia investi-lo de uma aura celeste. O famoso “direito divino dos reis”, que de fato não era uma instituição muito antiga, mas o resultado mais ou menos recente do corte do cordão umbilical que atava o poder real à autoridade da Igreja, não é senão a tradução em linguagem jurídico-teológica de uma vivência de tempo que identificava a antigüidade relativa com a origem absoluta.


O Juízo Final, de Michelangelo (Capela Sistina, Vaticano).


De outro lado, a perspectiva do Juízo Final, com o prêmio dos justos e o castigo dos maus quando da reabsorção do tempo na eternidade, era espremida para dentro da imagem futura de um reino terrestre de justiça e paz, de um regime político perfeito, que, paradoxalmente, seria ao mesmo tempo o fim da história e a continuação da história.

Tal é a origem respectiva dos “reacionários” ou “conservadores” e dos “revolucionários” ou “progressistas”. A direita e a esquerda modernas surgem de adaptações degradantes de símbolos mitológicos, roubados à eternidade, comprimidos na dimensão temporal e transfigurados em deuses de ocasião.

É evidente que, na estrutura do tempo real, não existe nem antigüidade sacra nem apocalipse terrestre – nem direito divino dos reis nem carisma do profeta revolucionário. São, um e outro, menos que mitos (pois uso o termo “mito” no sentido nobre de narrativa arquetípica, e não como oposto de “verdade”). O rei não é o poder de Deus e o revolucionário não é um profeta. São apenas dois sujeitos que se imaginam importantes, o primeiro porque toma a antiguidade da sua família como se fosse a origem dos tempos, o segundo porque atribui a seus projetos de governo a grandeza mítica do Juízo Final.

Direita e esquerda passaram por inúmeras variações e combinações ao longo dos últimos séculos. Mas, onde quer que se perfilem com força suficiente para hostilizar-se mutuamente no palco da política, essa distinção permanece no fundo dos seus discursos: direita é o que se legitima em nome da antigüidade, da experiência consolidada, do conhecimento adquirido, da segurança e da prudência, ainda quando, na prática, esqueça a experiência, despreze o conhecimento e, cometendo toda sorte de imprudências, ponha em risco a segurança geral; esquerda é o que se arroga no presente a autoridade e o prestígio de um belo mundo futuro de justiça, paz e liberdade, mesmo quando, na prática, espalhe a maldade e a injustiça em doses maiores do que tudo o que se acumulou no passado.

O fato de que tantas vezes os conteúdos dos discursos de direita e esquerda se mesclem e se confundam explica-se facilmente pela precariedade mesma de seus símbolos iniciais de referência – a antigüidade e o futuro -, os quais, não podendo dar conta da realidade concreta, exigem dialeticamente ser complementados pelos seus respectivos contrários, fazendo brotar, dentro de cada uma das duas regiões mentais em luta para distinguir-se e sobrepujar-se mutuamente, uma área que já não é antagônica à sua adversária, mas é a sua imitação. É assim que, por exemplo, a permanência conservadora pode ser projetada no futuro, numa espécie de utopia do existente, como as aventuras coloniais com que os reis prometiam a expansão da fé. E é assim que o hipotético mundo futuro do revolucionário busca revestir-se do prestígio das origens, apresentando-se como restauração de uma perdida idade de ouro, como na doutrina do “bom selvagem” de Rousseau ou no “comunismo primitivo” de Karl Marx. É inevitável, pois, que os conteúdos dos discursos respectivos por vezes se confundam, mas só retoricamente, pois, na esfera da ação prática, tanto o reacionário quanto o revolucionário se apegam firmemente às suas respectivas orientações no tempo.

Por meio dessa distinção é possível captar a unidade entre diferentes tipos históricos de direitismo e esquerdismo cuja variedade, de outra maneira, nos desorientaria. Um adepto do capitalismo liberal clássico, portanto, podia ser um esquerdista no século XVIII, porque apostava numa utopia de liberdade econômica da qual não tinha experiência concreta num universo de mercantilismo e estatismo monárquico. Mas é um conservador no século XXI porque fala em nome da experiência adquirida de dois séculos de capitalismo moderno e já não pretende chegar a um paraíso libertário e sim apenas conservar, prudentemente intactos, os meios de ação comprovadamente capazes de fomentar a prosperidade geral. Pode, no entanto, tornar-se um revolucionário no instante seguinte, quando aposta que a expansão geral da economia de mercado produzirá a utopia global de um mundo sem violência. Em cada etapa dessas transformações, o coeficiente de esquerdismo e direitismo de sua posição pode ser medido com precisão razoável.






É inevitável, também, que, pelo menos em certos momentos do processo, esquerdistas e direitistas se equivoquem profundamente no julgamento de si próprios ou de seus adversários. Da parte dos direitistas, tanto hoje como ao longo de todo o século XX, a grande ilusão é a da equivalência. Como estão acostumados à idéia de que direita e esquerda existem como dados mais ou menos estáveis da ordem democrática, acreditam que essa ordem pode ser preservada intacta e que para isso é possível “educar” os esquerdistas para que se afeiçoem às regras do jogo e não tentem mais destruir a ordem vigente. Pelo lado esquerdista, porém, essa acomodação é impossível. No mundo dos direitistas pode haver direitistas e esquerdistas, mas, no mundo dos esquerdistas, só esquerdistas têm o direito de existir: o advento do reino esquerdista consiste, essencialmente, na eliminação de todos os direitistas, na erradicação completa da autoridade do antigo. Foi por essas razões que os EUA retiraram pacificamente suas tropas dos países europeus ocupados depois da II Guerra Mundial, acreditando que os russos iam fazer o mesmo, quando os russos, ao contrário, tinham de ficar lá de qualquer modo, porque, na perspectiva da revolução, o fim de uma guerra era apenas o começo de outra e de outra e de outra, até à extinção final do capitalismo. A sucessão quase inacreditável de fracassos estratégicos da direita no mundo deve-se, no fundo, a uma limitação estrutural do direitismo: eliminar a esquerda completamente seria uma utopia, mas a direita não pode tornar-se utópica sem deixar de ser o que é e transformar-se ela própria em revolucionária, absorvendo valores e símbolos da esquerda ao ponto de destruir a própria ordem estabelecida que desejava preservar. O fascismo, como demonstrou Erik von Kuenhelt-Leddin no clássico “Leftism: From De Sade and Marx to Hitler and Marcuse” (1974), nasce da esquerda e arrebata a direita na ilusão suicida da revolução contra-revolucionária. Ser direitista é oscilar perpetuamente entre uma tolerância debilitante e acessos periódicos de ódio vingativo descontrolado e quase sempre vão. Mas a direita no Brasil está em decomposição há décadas e não tem graça nenhuma falar dela.

A esquerda, por sua vez, como se apóia integralmente na imagem móvel de um futuro hipotético, não pode julgar-se a si própria pelos padrões atualmente existentes, condenados “a priori” como resíduos de um passado abominável. Seu único compromisso é com o futuro, mas quem inventa esse futuro e o modifica conforme as necessidades estratégicas e táticas do presente é ela própria. Por fatalidade constitutiva do seu símbolo fundador, ela é sempre o legislador que, não tendo autoridade acima de si, legisla em causa própria, faz o que bem entende e, a seus olhos, tem razão em todas as circunstâncias, embriagando-se na contemplação vaidosa de uma imagem de pureza e santidade infinitas, mesmo quando chafurda num lamaçal de crimes e iniqüidades incomparavelmente superiores a todos os males passados que prometia eliminar. Ser esquerdista é viver num estado de desorientação moral profunda, estrutural e incurável. É mergulhar as mãos em sangue e fezes jurando que as banha nas águas lustrais de uma redenção divina.




Por isso não se deve estranhar que o partido mais ladrão, mais criminoso, mais perverso de toda a nossa História, o partido amigo de narcoguerrilheiros e ditadores genocidas, o partido que aplaudia a liquidação de dezenas de milhares de cubanos desarmados enquanto condenava com paroxismos de indignação a de trezentos terroristas brasileiros, o partido que condena os atentados a bomba quando acontecem na Espanha e aplaude os realizados no Brasil, o partido que instituiu o suborno e a propina como sistema de governo, seja também o partido que mais bate no peito alegando méritos e glórias excelsos.

Ser esquerdista é ser precisamente isso.

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Direita e esquerda são politizações de símbolos mitológicos cujo conteúdo originário se tornou inalcançável na experiência comum. Elas existirão enquanto permanecermos no ciclo moderno, cujo destino essencial, como bem viu Napoleão Bonaparte, é politizar tudo e ignorar o que esteja acima da política. Não existirão para sempre. Mas, quando cessarem de existir, a política terá perdido pelo menos boa parte do espaço que usurpou de outras dimensões da existência.