quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Viriato sabemos que se chama, / Destro na lança mais que no cajado

Escrito por Luís de Camões


[...]

Quem será estoutro cá, que o campo arrasa

De mortos, com presença furibunda?

Grandes batalhas tem desbaratadas,

Que as Águias nas bandeiras tem pintadas.


Assim o Gentio diz. Responde o Gama:

este que vês, pastor já foi de gado;

Viriato sabemos que se chama,

Destro na lança mais que no cajado.

Injuriada tem de Roma a fama,

Vencedor invencíbil, afamado.

Não tem com ele, não, nem ter puderam,

O primor que com Pirro já tiveram.


Com força não; com manha vergonhosa

A vida lhe tiraram que os espanta;

Que o grande aperto, em gente inda que honrosa,

às vezes, leis magnânimas quebranta.


Os Lusíadas (Canto VIII, 5, 6 e 7).




 

sábado, 15 de novembro de 2025

A morte de Viriato

Escrito por Raul Correia


«O ano de 140 a. C. foi, a diversos títulos, de importância crucial para as guerras hispânicas. Fábio Serviliano, governador da Ulterior, depois de ter saqueado diversas cidades fiéis a Viriato, na Andaluzia e, talvez, no Sul de Portugal, foi por ele vencido junto de Erisane (talvez Arce, na Andaluzia). Por outro lado, Quinto Pompeio falhou uma vez mais a tomada da Numância na frente da Citerior. Em face destes desaires, os Romanos decidem firmar a paz em ambas as zonas da guerra. Viriato, na Ulterior, recebeu o título de “amigo do povo romano” e aceitou uma trégua com o governador da província. Por seu turno, Pompeio estabeleceu a paz com Numância, impondo aos seus habitantes o pagamento de um tributo em prata.

Esta situação de paz deve entender-se no âmbito mais vasto da conjuntura política que então se vivia em Roma. Existia de há longa data no Senado romano um poderoso partido, que defendia a necessidade da expansão territorial na área mediterrânea. A família dos Cipiões constituía um dos seus elementos mais destacados. Graças aos seus esforços políticos, os Romanos tinham já dilatado extraordinariamente a sua área de influência. Tomaram e destruíram Cartago, em 146 a. C., após quatro anos de cerco, e estabeleceram uma província africana. Para oriente, ocuparam extensos territórios na Grécia e criaram uma nova província no antigo reino da Macedónia.

O enorme esforço de guerra, em diversas frentes, provocava um natural desgaste na população. Tomava corpo, com sucesso crescente, o partido dos que defendiam a paz. As guerras hispânicas traziam, para além do mais, não poucas consequências negativas. Por um lado, possuíam uma brutalidade invulgar: há numerosas referências aos horrores presenciados pelos soldados romanos nestes combates. Por outro, não proporcionavam grandes proventos: não se encontravam nas regiões periféricas das áreas já ocupadas riquezas comparáveis com as obtidas na conquista de Nova Cartago e da região mineira da sierra Morena, que tinham constituído poderoso estímulo durante a primeira fase da ocupação territorial. Por estas razões, a guerra hispânica era considerada extremamente perigosa e pouco compensadora. Não é de estranhar que, desde o ano de 152 a. C., se tenham sentido grandes dificuldades no recrutamento de tropas para as frentes peninsulares. Segundo diferentes fontes, os exércitos, uma vez em solo hispânico, evitavam frequentemente o confronto com os indígenas.

A paz alcançada no ano de 140 a. C. pode considerar-se, por isso, uma resposta aos anseios de boa parte da população de Roma. No Senado, porém, a força do partido belicista era demasiado importante. Pretendia-se a paz, é certo, mas se fosse estabelecida pela força das armas e trouxesse a rendição incondicional dos inimigos. Assim, no ano seguinte, o Senado rompe as tréguas e envia novos governadores para a Hispânia, com o objectivo de terminar a guerra, mas por uma vitória esmagadora.

Na Ulterior, Q. Servílio Cipião desencadeou uma ofensiva fulgurante, que obrigou Viriato a refugiar-se a norte do rio Tejo, num lugar denominado “monte de Vénus”, presumivelmente localizado algures entre Cáceres e Badajoz. As fontes referem, ainda, que teria atacado Lusitanos, Vetões e Galaicos, estes últimos mencionados pela primeira vez nos textos sobre as guerras hispânicas. O ataque aos Vetões é admissível, visto levar às proximidades do refúgio de Viriato. O confronto com os Galaicos afigura-se, porém, inverosímil, por implicar uma movimentação excêntrica em relação ao teatro das operações militares da época, por alargar excessivamente o âmbito geográfico da campanha e por se situar na retaguarda do exército de Viriato.

As fontes de períodos mais recentes mencionam duas localidades de aparente fundação romana que poderão relacionar-se com esta campanha. Uma é denominada “Castra Servília”, presumivelmente nas imediações de Cáceres, a outra, “Caepiana”, situava-se no território dos Célticos, em lugar indeterminado. Estas duas povoações marcavam, decerto, a rota por onde caminharam para norte as legiões de Servílio Cipião. Como desconhecemos em absoluto a verdadeira implantação da segunda, torna-se difícil a sua completa reconstituição. No entanto, a localização de Castra Servília, bem como a referência ao ataque contra os Vetões, sugere que tenha sido utilizada a velha via interior que punha em comunicação o sul e o norte peninsular, através das áreas ocidentais da meseta hispânica.

Face ao avanço do general romano, Viriato, em posição difícil, enviou três emissários para negociar a paz. Como é sabido, Cipião aliciou-os para, no regresso, assassinarem o seu chefe. O exército lusitano, chefiado por Tântalo, após a morte de Viriato, tentou ainda uma incursão contra os territórios do Sul, mas foi vencido.

Destroçado e exausto, o contingente lusitano negoceia a paz, recebendo territórios para se instalar. É bem provável que alguns dos lusitanos, que Estrabão situa no Sul do actual território português, ali se tenham fixado nesta época. Parece também evidente que o exército lusitano, nos anos de 140 a 139, se encontrava, de facto, no limite das suas capacidades. Compreendem-se os seus repetidos esforços para acordar tréguas com os governadores da Ulterior.

Após a morte de Viriato começou, de facto, a ocupação romana do extremo ocidental da Hispânia. Na Citerior, a paz tardou alguns anos ainda. Sucessivos governadores falharam a tomada de Numância, só o conseguindo em 134 a. C., sob o comando de Públio Cipião Emiliano, o conquistador de Cartago.»

(In «História de Portugal», Direcção de José Mattoso, Vol. I, Círculo de Leitores, 1992, pp. 216-217).

 

«Era noite velha, quando Ditálcon, Andaca e Minouro regressaram ao acampamento de Viriato. Demoraram-se mais tempo do que o cabecilha imaginara, revolvendo por vezes na mente que fortes motivos ou razões políticas se debatiam na barraca do general romano, para lá se deterem. De vez em quando ocorria-lhe a conjectura de que Cépio, não reconhecendo a inviolabilidade dos seus parlamentários, os teria mandado passar pelas armas, ou pelo menos os guardava como prisioneiros, como reféns para lhe impor condições de rendição. Nesta prolongada preocupação de espírito, e sob a pressão dos inesperados acontecimentos, que só poderiam ser contrabalançados pela energia e pela astúcia, Viriato caiu num sono profundo, como aquele em que se fica imerso antes de caminhar para a morte. Embora profundo, o sono era agitado, como em homem acostumado a estar alerta mesmo quando descansava; e nessa agitação, debatia-se Viriato com um pesadelo, um sonho, que sem diferença e por fatalidade coincidia com o que estava prestes a acontecer. Na agitação daquele sono dormido sobre a terra recalcada poucas horas antes pelos cavalos, Viriato sentia os passos dos seus três companheiros, que se aproximavam silenciosamente da barraca em que estava dormindo; um deles, Minouro, afastou o pano e entrou escondendo de trás das costas um punhal de dois gumes. Naquela ansiedade cataléptica, Viriato quis erguer-se, gritar, mas era impossível qualquer movimento; em seguida entrou Ditálcon, e Andaca ficou quase da parte de fora, mas era ainda visto claramente. Sob o terror do sonho que o oprimia, Viriato viu Minouro curvar-se sobre ele, e erguendo ao ar o braço com o punhal descarregar o golpe...

Nesse momento de extrema angústia acorda, e entre a ilusão e a realidade, sentiu um golpe vibrado fortemente no pescoço; antes que o sangue lhe embaraçasse a voz, Viriato, abrindo os olhos atónitos, pôde proferir as palavras:

– O meu maior amigo? Minouro...

Os borbotões de sangue que lhe encheram internamente o peito e respingaram pelos panos da barraca, não deixaram que pudesse mais exprimir-se, e ficou exânime, arquejando, até ao último alento, passando assim, horrorosamente, de um sonho tremendo, em que Viriato, pela sua lealdade, não ousaria acreditar, para a realidade trágica e afrontosa, que ia actuar como uma eterna calamidade sobre o futuro da Lusitânia.

1.ª Divisão provincial da Hispânia, 197 a. C.

2.ª Divisão provincial da Hispânia, de Augusto, 69 d. C.

3.ª Divisão provincial da Hispânia, de Diocleciano, 298 d. C.

A morte de Viriato fez-se com rapidez e segurança; os três companheiros da Trimarkísia saíram da barraca sem ruído, e simulando ordens recebidas de Viriato montaram nos seus cavalos e partiram à desfilada para o arraial romano. Cépio estava dormindo; um cavaleiro foi acordá-lo, e dizer-lhe:

– Morreu Viriato!

Quinto Servílio Cépio, voltando-se sobre o lado direito para continuar o sono, deu ordem ao cavaleiro:

– Que esses entes abjectos esperem lá fora, até que seja dia.»

 Teófilo Braga («Viriato – A Epopeia Lusitana»).

 

«É certamente o episódio mais conhecido, mais romanceado e mais representado pictograficamente da vida de Viriato. O choque da sua morte e as circunstâncias em que ocorreu levaram a que não só os Lusitanos se sentissem chocados, mas que os próprios Romanos não a aceitassem e que a tradição conservasse para sempre uma transmissão oral desta morte.

Temos dois relatos da morte de Viriato, um de Apiano e outro de Diodoro Sículo.

Vejamos, antes de mais, os dois relatos, primeiro o de Diodoro Sículo e depois o de Apiano:

Audax, Ditalco e Nicorontes, da cidade de Urso, parentes e amigos uns dos outros, dando-se conta de que a supremacia de Viriato estava a ser posta em perigo pelos Romanos, temendo por si próprios, decidiram prestar aos Romanos algum serviço que lhes angariasse segurança. Vendo que Viriato desejava pôr fim à guerra, ofereceram-se para persuadir Cipião a fazer um acordo de paz, se lhes fosse confiada a missão de negociar os acordos. O chefe acedeu de bom grado, e eles, apresentando-se prontamente junto de Cipião, convenceram-no sem dificuldades a garantir-lhes, a eles próprios, segurança sob a promessa de que assassinariam Viriato à traição. Dadas e recebidas garantidas a esse respeito, regressaram a toda a pressa ao acampamento. Dizendo que tinham convencido os Romanos a fazer a paz e procurando vivamente afastar do pensamento de Viriato a congeminação da verdade, levaram-no a alimentar grandes esperanças. Durante a noite, aproveitando-se da confiança que ele depositava na sua amizade, entraram às escondidas na tenda dele e, puxando as espadas, mataram Viriato com golpes certeiros. Fugindo imediatamente do acampamento através de uns atalhos da serra, puseram-se a salvo junto de Cipião. (Diodoro, XXXIII, 21).

Viriato enviou a Cipião os seus mais fiéis amigos, Audax, Ditalco e Minuro, para negociarem um tratado de paz. Estes, deixando-se corromper por Cipião com grandes presentes e muitas promessas, comprometeram-se a matar Viriato. E mataram-no da seguinte forma: Viriato, devido às suas preocupações e fadigas, dormia pouco e a maior parte das vezes repousava armado, para que, ao levantar-se subitamente, estivesse preparado para qualquer eventualidade. Por isso, era permitido aos amigos ir ter com ele, mesmo durante a noite. Segundo este costume, os cúmplices de Audax, que estavam de guarda, entraram na tenda quando ele começou a dormir, a pretexto de que havia algo de urgente, e apunhalaram-no na garganta, porque estava armado e não havia outra parte do corpo a descoberto. Sem que ninguém se apercebesse do sucedido, pois o golpe foi certeiro, fugiram para o acampamento de Cipião e reclamaram a sua recompensa. Cipião permitiu-lhes que conservassem o que já lhes tinha dado, mas quanto ao que lhe pediam remeteu-os para Roma. Ao raiar da madrugada, os serviçais de Viriato e todo o exército, convencidos que ainda dormia, estranharam que dormisse mais tempo que o habitual, até que alguns se deram conta de que jazia morto com as suas armas, imediatamente se espalhou por todo o acampamento um grande lamento e um grande clamor, chorando todos a sua morte e lamentando-se do seu próprio mal, considerando os perigos que os ameaçavam e o grande chefe que perdiam. O que mais lhes custava era não conseguirem encontrar os assassinos. (Apiano, 74).

A morte de Viriato, de José de Madrazo

Na descrição de Apiano tudo começa quando Viriato, querendo negociar com Cipião, envia os seus fiéis amigos Áudax, Ditalco e Minuro a negociar com Cipião. Estes deixam-se corromper pelos presentes materiais e promessas de Cipião e comprometem-se a assassinar Viriato.

A descrição de Diodoro difere desta nalguns pormenores, pois este diz que os amigos de Viriato “Áudax, Ditalco e Nicorontes, da cidade de Urso, parentes e amigos, dando-se conta de que a supremacia de Viriato estava a ser posta em perigo pelos Romanos...” Vemos que Minuro é substituído por Nicorontes e representam-se a si próprios e a outros e não são enviados por iniciativa de Viriato... Não se pode esquecer que o exército lusitano era constituído por Lusitanos propriamente ditos e depois haveria muitos outros combatentes de outras Nações Ibéricas que se iam juntando a Viriato à medida que ele ia conquistando terras e, neste caso concreto, estes três amigos seriam de Urso, cidade que ficava na Betúria. Nesta versão de Diodoro, vemos ainda que as gentes de Viriato começavam a descrer do seu poder contra Cipião e Popílio Lenate, havendo certamente revoltas que começavam a grassar e por isso Viriato aceita a mediação destes três que, segundo Diodoro, “decidiram prestar aos Romanos algum serviço que lhes angariasse segurança” e “vendo que Viriato desejava pôr fim à guerra, oferecerem-se para persuadir Cipião a fazer um tratado de paz”.

É certo que a versão de Apiano não contradiz totalmente esta versão de Diodoro, no entanto é substancialmente diferente porque, em Apiano, a iniciativa de enviar os três negociadores ao acampamento inimigo partiu de Viriato e em Diodoro são estes que tomam a iniciativa de propor a Viriato, tendo já como objectivo oferecerem-se aos Romanos para garantirem a sua segurança. Apiano demonstra uma maior simpatia por Viriato e pelos Lusitanos, pois eles são enviados por Viriato e deixam-se corromper pelos Romanos. Como diríamos hoje, há aqui corruptos e corruptor. Ora, em Diodoro, os Romanos aceitam os serviços que lhes são oferecidos, o que demonstra uma traição, não dos Romanos, mas dos homens de Viriato, versão que mostra ainda que Viriato já não dominava o seu exército e os combatentes só já queriam era libertar-se da guerra. Aqui, os Romanos deixam de ser corruptores para apenas aceitarem os serviços de elementos corruptos do exército lusitano.

Independentemente destas contradições insanáveis nos dois textos, ambos são concordes em que, regressados os três companheiros de Viriato ao acampamento lusitano, mataram este quando estava a dormir e tinha guarda montada à porta. A guarda, segundo Apiano era feita por homens da confiança de Áudax, o que mostra que este deveria ser um lugar-tenente de Viriato e deveria ter escolhido homens seus para poder introduzir-se na tenda, “às escondidas”, como diz Diodoro. Ali mesmo o mataram e fugiram para o acampamento romano, certamente com as mãos ainda manchadas do sangue de Viriato.

Recebidos por Cipião, este não lhes pagou nada do que lhes havia prometido e mandou-os ir a Roma procurar o produto das promessas que lhes havia feito. Verdadeira ou falsa, aqui tem origem a célebre expressão “Roma não paga a traidores”.

Assim morreu um dos maiores chefes militares de todos os tempos, iniciador de uma táctica de guerra que ainda hoje continua a ser usada, líder incontestado, chefe político e negociador exímio que a tradição, não confirmada pelas fontes, nos habituou a ver como um pastor que, nascido na serra se teria formado correndo atrás das suas ovelhas. Só a traição dos seus homens, instigados ou não pelos Romanos, pôs fim a este herói que os seus próprios inimigos mitificaram de imediato.»

João Luís Inês Vaz («Lusitanos – No Tempo de Viriato – Quotidiano e mito»).


 

«No arraial de Quinto Servílio Cépio a inesperada notícia da morte de Viriato propagou-se com uma rapidez inaudita; perguntavam entre si os legionários:

– Quem seria o valentão que se atreveu a ir atacar pessoalmente aquele colosso?

– Morreu em duelo Viriato!?

– Só por traição...

– Quem foi o romano astucioso?

– Quem teve essa glória?

– Não há glória em matar à traição.

– Não foi nenhum romano; foram lusitanos, e amigos de Viriato.

– Custa a crer.

– Eles estão aí junto da barraca de Cépio para receberem o prémio prometido.

– Então, foi Cépio que os comprou? Que os aliciou para a traição?

– Sim! Nada podendo pelas armas, alcançou pela astúcia o que nunca puderam conseguir Vetílio, Plâncio, Nigídio, Fábio, Quinccio e Serviliano. É velho o ditado, mas sempre verdadeiro: Quem não pode, trapaceia.

E nestas conversas entre os legionários, a curiosidade aguçava-se estimulando alguns deles para irem ver as caras dos três miseráveis que tinham, ao serviço de Cépio, assassinado o general que Roma tanto temia. Os legionários que passavam e encaravam com Ditálcon, Andaca e Minouro, iam dizendo entre dentes:

Ia jurar que aqueles homens não são lusitanos!

Viste aquele mais alto, e mais velho? Se não é um africano branco, berbere, mesmo ao pintar!

– E o outro? O loiro, parece celta.

– O da cara redonda é que se assemelha mais ao tipo luso; mas assim roliço, e puxando para a gordura... é com certeza ibero.

Afastaram-se à pressa, porque o cônsul Quinto Servílio Cépio aparecera à porta da sua barraca de campanha; alguns ouviram o som confuso das palavras trocadas entre ele e os três traidores, palavras atropeladas, e d’entre as frases destacando-se as que Cépio proferiu com acentuado e esmagador desdém:

– Roma não tem por costume dar prémio a soldados que estrangulam o seu general.

As trombetas abafaram o resto da frase, tocando à formatura das legiões e à parada geral do exército. Enquanto esteve o exército consular em forma, Cépio conferenciou com os centúrios, estabelecendo o plano a seguir depois da morte de Viriato:

“Primeiro intimar ao exército lusitano a rendição peremptória e incondicional; agora privado de chefe, é de todo impossível a resistência.

“E, depois, que Décio Júnio Bruto avance com uma parte do exército romano e penetre na região da Vetónia e vá ao encontro dos Callaicos, que tratam de prestar socorro ao exército, conforme o pedido que lhes fizera o caudilho”».

Teófilo Braga («Viriato – A Epopeia Lusitana»).





A Morte de Viriato


Um dos historiadores a quem nos amparamos nesta nossa tentativa de contar o passado – e que por seu turno se baseou noutros historiadores... e assim por aí fora, até chegarmos a Heródoto, Plínio e Estrabão, que também não foram testemunhas oculares da maioria dos factos que relatam, e portanto se ampararam em documentos nem sempre muito seguros ou na tradição oral, menos segura ainda – diz que Viriato se mostrou também um grande «político». Ora esta palavra, tão gasta pelo uso imoderado que dela se tem feito, pode levar a conclusões erradas os leitores, a quem nos esforçamos por apresentar personagens da História sob o ponto de vista «humano», isto é, personagens que viveram e de facto, com os condicionalismos da sua época, foram criaturas como nós.

Assim, que o leitor nos permita dar da palavra «político» a significação que lhe foi dada por Sócrates, um dos homens mais inteligentes de que a humanidade pode honrar-se... e que morreu há quase dois mil e quatrocentos anos. Vale a pena conhecer essa significação, embora ela nos afaste por momentos dos nossos Quadros da História de Portugal:

«O político ignora o homem, aquele homem que existe dentro de todos nós. Sabe fazer política, sabe como se faz, mas por mais extraordinário que possa parecer não sabe que coisa é verdadeiramente a política, nunca o perguntou a si próprio; considera obviamente que o sabe, visto que é um político e talvez um político famoso. Assim, empenhado em fazer prevalecer “esta” política sobre “aquela”, esquece a coisa mais importante, isto é, que a política não é uma colecção de astutos expedientes para atrair o favor das massas e tirá-lo aos adversários... mas sim a nobre arte de promover o bem de todos... a realização da vida de todos segundo uma unidade de formas “humanas”, justas e sábias.»

Que o leitor nos desculpe esta incursão por um passado ainda mais distante do que o dos nossos lusitanos, e por um país, a Grécia, que os romanos venceram e ocuparam, mas aonde foram buscar parte da sua civilização.

Voltemos portanto a Viriato, e às suas qualidades de político... que consistiram especialmente em aproveitar o entusiasmo dos celtiberos, os quais ajudaram com armas e dinheiro, e em procurar incitá-los à luta aberta contra o inimigo comum.

Roma decidiu então levar a cabo os últimos esforços para conseguir estabelecer solidamente o seu domínio sobre a Península Ibérica, e enviou novas legiões, comandadas pelos seus melhores generais.



Quinto Metelo parte em campanha contra os aguerridos celtiberos, e Serviliano marcha contra os não menos aguerridos e valorosos lusitanos.

Duas vezes derrotado, o cônsul romano, depois da segunda derrota, viu-se forçado a assinar um tratado pelo qual Roma reconhecia o poder de Viriato.

Mas Roma não ratifica o tratado e envia novo general, Servílio Cipião, o qual usara de toda a sua influência para impedir a ratificação.

Cipião renova os combates contra os lusitanos, comandados por Viriato, e alcança alguns triunfos que, no entanto, vem a pagar com sucessivos desastres.

Para sair da situação vergonhosa em que o colocara a sua ambição, e tendo chegado à conclusão de que nunca conseguiria vencer, em luta leal, o seu hábil e temerário inimigo, Cipião recorreu a um processo infame e vergonhoso: subornou três dos companheiros de Viriato, que assassinaram o grande chefe enquanto dormia.

Crime cobarde, e cobardemente praticado, o assassínio de Viriato deixou para sempre amarrados ao pelourinho da História o seu instigador, Servílio Cipião, e os seus três autores, Audas, Ditalco e Minuro...

Dos três assassinos nada mais se conhece... A História também tem os seus caixotes do lixo. Também pouco se sabe a respeito de Servílio Cipião... a não ser que, tendo conseguido finalmente derrotar os lusitanos depois da morte de Viriato, levou para Roma as palmas do triunfo... que devem ter desaparecido com ele nas águas lodosas do Tibre.

Depois de terem prestado as maiores honras fúnebres ao corpo de Viriato, que incineraram entre cânticos e jogos atléticos, os lusitanos continuaram a luta, mas novamente a sorte das armas os havia abandonado...



Assim pereceu Viriato, que foi na Lusitânia o que, alguns anos depois, seria Vercingétorix na Gália, embora a sorte do gaulês tivesse sido ainda pior. Aprisionado em Alésia, foi conduzido para Roma, acorrentado, arrastado atrás do cortejo triunfal de Júlio César... e executado ao cabo de seis anos de doloroso cativeiro.

Assim morreu Viriato, dizíamos, o herói que fora o pavor dos romanos. Mas, embora privados de chefe e abandonados pela sorte, os lusitanos continuaram ainda a combater para as suas montanhas quase inexpugnáveis, aonde as legiões romanas temiam atacá-los.

Mas a situação não podia prolongar-se indefinidamente, pois Roma dispunha de legiões inumeráveis e de uma organização militar incomparável na época.

Outros exércitos romanos, comandados pelo cônsul Décio Júnio Bruto, invadiram a região do Douro e atacaram os principais núcleos de resistência dos lusitanos, conseguindo pacificar a Lusitânia durante algum tempo.

Nessas operações militares, as legiões de Décio foram, ao que parece, auxiliadas por uma esquadra romana que singrava ao longo da costa, acompanhando-as e desembarcando reforços sempre que eram necessários.

Essa esquadra fortificou o porto de Olisipo, na foz do Tejo, e segundo se julga fundou, junto da foz do Douro, a povoação de Cale, da qual, mais tarde, derivaria o nome de Portugal.

Os territórios pacificados – isto é, submetidos – ao norte do Douro ficaram a partir de então na dependência de Cale, e os seus habitantes começaram a ser conhecidos por «calaicos».

Entretanto, o poder, tal como a miséria, senão mais, traz em si mesmo as origens da corrupção. O miserável – não é nossa intenção generalizar, pois sempre considerámos absurda a generalização excessiva – vende a sua consciência (conhecem-se casos, toda a gente os conhece) para ser menos miserável – quando em verdade passa a sê-lo mais – e o poderoso vende-se por um pouco mais de poder – quando em verdade passa a tê-lo menos, pois se coloca na dependência daquele a quem se vendeu.

Roma tinha o poder... e tinha a corrupção. Não tardaria muito tempo que as suas próprias lutas internas, originadas por ambições desencadeadas, a fizessem entrar na curva descendente da sua existência... e dessem novo fôlego àqueles que nunca se haviam submetido completamente ao seu jugo. Com todos os povos, em todos os casos (ou em quase todos), tem acontecido o mesmo desde que iniciam a curva descendente da sua força; por momentos, às vezes por anos, ou por séculos, continuam a subir até atingirem o ponto mais alto da curva... mas depois a descida é inevitável. Nenhum jugo é permanente, mas os mais efémeros são os que se baseiam na força.

Loba capitolina amamenta os gémeos Rómulo e Remo


Império Romano

A Península romana, séc. IV.

Maquete da Roma antiga durante o reinado de Constantino, o Grande (306-337).

Numa bela frase latina, Tácito resumiu isto mesmo, referindo-se exactamente aos romanos:

Ubi solitudine faciunt, pacem apellant…– o que exactamente significa: «onde fizeram um deserto, dizem que estabeleceram a paz...».

Apenas... na Lusitânia existiam ainda lusitanos...

(In Quadros da História de Portugal, texto de Raul Correia, Amigos do Livro, Lisboa, 1985, pp. 17-20).




“Enquanto comandou, foi mais amado

do que jamais alguém antes dele”. 

Diodoro da Sicília


terça-feira, 11 de novembro de 2025

Os Lusitanos

Escrito por Oliveira Martins



«Até hoje todas as sucessivas tentativas para descobrir a nossa raça têm falhado. Latinos, celtas, lusitanos e afinal moçárabes têm passado: ficam os portugueses cuja raça, se tal nome convém empregar, foi formada por sete séculos de história.»

Oliveira Martins («História de Portugal»).

 

«A tradição fez sempre coincidir a fronteira oriental da Lusitânia com a actual linha de fronteira entre Portugal e Espanha e portanto, a Lusitânia era Portugal e os Portugueses, os descendentes dos Lusitanos.

Não sabemos o que pensaram dos Lusitanos os povos que se seguiram aos Romanos na ocupação do território que antes tinha sido deles, mas a recordação manteve-se pois autores tardios nos falam dos Lusitanos e são mesmo preciosas fontes para o seu estudo.

Na Idade Média, a “Crónica Geral de Espanha”, de 1344 apresenta Viriato como um herói sem pátria definida, tanto podendo ser português como espanhol, mas resistente à ocupação ibérica e compara-o a Hércules, o mítico herói grego.

A Lusitânia é utilizada muitas vezes pelos cronistas e pelos reis portugueses como uma forma de justificar a independência de Portugal e os primeiros reis comparados a Viriato.

No Renascimento, com a redescoberta dos clássicos, os humanistas vão fazer a identificação dos heróis antigos com os vestígios e lugares de Portugal e curiosamente, um dos primeiros a fazer a identificação da Lusitânia com Portugal foi Gil Vicente em 1532. No seu Auto da Lusitânia, representado perante D. João III, por ocasião do nascimento do Príncipe D. Manuel, em 1532, os dois personagens principais chamam-se “Lusitânia” e “Portugal”. A “Lusitânia” é uma bela filha do Sol e de Lisibeia (Lisboa), de uma beleza estonteante e pela qual se apaixona um cavaleiro grego chamado “Portugal”, com quem vem a casar. Temos aqui a identificação perfeita de Portugal com a Lusitânia que, por esta época, já se começava a fazer cada vez com mais força. Outros personagens que aparecem neste auto são os demónios Belzebu e Dinato que são testemunhas do casamento e assistem a um diálogo curioso entre outros dois intervenientes que são “Todo o Mundo” e “Ninguém”. Todo o Mundo representa a arrogância, a prepotência, a vaidade, a cobiça e o amor às coisas materiais e Ninguém representa a pobreza, o desprendimento das coisas materiais, identificando-se com a maioria das pessoas e com uma pequena minoria, ou seja Todo o Mundo e Ninguém, respectivamente. Atendendo ao contexto de casamento em que estas personagens aparecem, de Portugal com a Lusitânia, representarão os principais intervenientes do casamento de Viriato, ou seja, o próprio Viriato, aqui representado por Ninguém e Astolpas, representado por Todo o Mundo.

É, no entanto, na obra Antiguidades da Lusitânia, de André de Resende que se marca o início da Arqueologia em Portugal e da identificação dos Portugueses com os Lusitanos e de Portugal com a Lusitânia. André de Resende foi o primeiro a fazer dos Portugueses os verdadeiros herdeiros dos Lusitanos, em linha directa e sequencial, apesar de reconhecer a falta de coincidência entre Portugal e o território lusitano. A Resende se devem ainda as inovações do termo lusíada e a duplicação do Monte Hermínio, contrapondo um Hermínio Maior a um Hermínio Menor, que seriam a Serra da Estrela e a Serra de S. Mamede, respectivamente. Começa-se aqui a forjar a identidade nacional lusitana que não mais iria abandonar a nossa historiografia.

Serra da Estrela

Escultura de Nossa Senhora da Boa Estrela esculpida na rocha granítica.


Poço do Inferno

Luís de Camões utiliza para a sua principal obra o neologismo introduzido por Resende, e dá-lhe o sugestivo título de Os Lusíadas, fazendo a plena identificação dos Portugueses com os Lusitanos e os seus chefes, nomeadamente Viriato. Acerca deste, escreve Luís de Camões, no Canto VIII, estrofes 5, 6 e 7.

(...) Antes, no Canto III, estrofes 22 e 23 já havia identificado Portugal com a Lusitânia...

Camões faze-se eco da tradição que corria sobre a vida de Viriato, apresentando-o como o esforçado pastor que se converteu pelas suas qualidades e pelo seu esforço, em condutor e pastor de gentes.

Frei Bernardo de Brito escreve a sua bem conhecida Monarquia Lusitana, tentando justificar a ideia da Pátria a partir da antiguidade e das personagens conhecidas de então. Não se deve esquecer que o primeiro volume é publicado em 1597, em plena ocupação espanhola e em que era importante e necessário alimentar a Alma portuguesa na sua resistência ao invasor.

Portugueses e Lusitanos eram um só povo e confundiam-se nas suas obras. Era o tempo da identificação de tudo com os clássicos e todos os actos da vida se pautavam pela imitação dos Gregos ou Romanos. Esta identificação tinha apenas como objectivo glorificar os Portugueses pois que, tal como os Lusitanos tinham sido os heróis da antiguidade e o povo que mais se opôs aos Romanos, assim deviam ser agora os Portugueses, seus verdadeiros herdeiros, que deveriam seguir o exemplo e libertar-se do jugo espanhol.

Nos finais do século XVII, publica-se o Viriato Trágico, poema heróico de Brás Garcia de Mascarenhas, o mais notável poema nacionalista escrito na altura do domínio espanhol em Portugal. Viriato é o herói deste poema épico, ressaltando as suas qualidades de estratega militar e de condutor de povos que, inclusive, recusa a luta quanto sente que a derrota é certa, pois

 



Não é melhor, antes que o mal suceda,

Não ir à luta que leva à queda?

Lute quem sabe, quem não sabe aprenda.

 

Logo depois diz que:

 

Não lhe negue a nação, porque merece

Ser collocado em seu eterno archivo

Todo foi portuguez no esforço e manha,

Sem ter mistura de nação estranha (...)

 

Nasceu naquella serra que chamada

Hermínia foi, hoje se chama Estrella.

 

Brás Garcia de Mascarenhas, como Bernardo de Brito, ao contrário de André de Resende, eram beirões de nascença, pois Mascarenhas nasceu em Avô, na Serra da Lousã e Bernardo de Brito em Almeida, dá a Viriato a nacionalidade portuguesa e como local de nascimento a Serra da Estrela.

(...) Brás Garcia de Mascarenhas vai mesmo mais longe e atribui a Viriato a construção da Cava de Viriato em Viseu... É mais uma identificação da Beira com Viriato e os Portugueses legitimamente considerados herdeiros dos Lusitanos enquanto os Espanhóis representavam os Romanos nesta verdadeira novela peninsular.

Esta ideia da identificação de Viriato com a Beira vai fazer com que se faça a sua reivindicação regional, como aconteceu com Viseu por estes séculos XVII e XVIII.



Cava de Viriato


Sendo os Portugueses descendentes directos dos Lusitanos, o território Português actual também era, em grande parte, o território lusitano. Viriato era originário da Serra da Estrela, o lendário Mons Herminius, as lutas de Viriato tinham-se desenrolado nas faldas da Serra e nas planícies ribatejanas e alentejanas, Évora tinha sido transformada por Sertório na Roma lusitana com uma administração à maneira romana. É a época da formação dos grandes mitos da nossa história com a ligação dos nomes antigos às povoações contemporâneas e às figuras da antiguidade entretanto descobertas ou inventadas.

Esta ideia, da identificação dos Portugueses com os Lusitanos, “estava fortemente radicada entre os escritores, que a haviam recebido sem exame, lisonjeados com o lustre que criam vinha à sua pátria deste parentesco”, como escreveu Herculano na sua História de Portugal. Estas palavras de Herculano soam, claramente, a um olhar crítico sobre essa identificação pois, nos séculos seguintes ao Renascimento, esta ideia manteve-se fortemente arreigada entre os intelectuais e deles passou ao povo que a adoptou como sua.

O século XIX é o século do aparecimento da crítica histórica e da ciência arqueológica, começando o arqueólogo a distanciar-se cada vez mais do antiquário imaginativo. As reformulações começam a fazer-se sentir e muitos dos mitos que se tinham criado na História de Portugal não resistem e Herculano é um dos espíritos mais lúcidos a esse respeito. Apesar das revisões críticas que são feitas, esta teoria que identificava os Portugueses com os Lusitanos vai, no entanto, resistir às análises mais objectivas do século e ainda hoje muitos continuam a afirmar essa identificação.

O poeta e nacionalista Almeida Garrett, em 1824, em plena Guerra Civil, na sua obra Flores sem Fruto, inclui um grande poema heróico a Viriato que intitula “A Caverna de Viriato”. Nela faz o panegírico de Viriato e compara os Lusitanos, Lusos lhes chama, com os Portugueses do seu tempo que se tornaram traidores uns dos outros e que vão destruir a Pátria.

(...) Antes, Almeida Garrett tinha-se já referido aos Montes Hermínios como o local de origem de Viriato, imbuído do “espírito da serra” onde se situava a sua caverna, e o lugar de onde ele vai descer para atormentar o mundo.

Os finais desse século XIX e os inícios do século XX são marcados por personalidades arqueológicas como Martins Sarmento e Leite de Vasconcelos e pela polémica questão da União Ibérica.


J. Leite de Vasconcelos


 

Francisco Martins Sarmento torna-se no grande estudioso dos castros do Norte e considerava os Lusitanos de origem lígure, originários portanto do Norte da Itália, e diz que a palavra Lusitani, provirá do nome que um ramo lígure possuía na língua original, Ligusitani. Afirma assim uma origem exterior à Península Ibérica, proveniente, portanto, da zona dos Alpes, não lhe reconhecendo qualquer origem céltica ou autóctone.

A influência céltica na Península Ibérica ter-se-ia ficado pelo noroeste e pelas terras hoje espanholas das nascentes do rio Douro e do rio Ebro.

Leite de Vasconcelos, pelo contrário, reagiu contra a sugestão da evolução linguística proposta por Martins Sarmento, mas concorda e tenta provar a ascendência lusitana dos Portugueses, “em alguns ramos da Ethnologia”. É o primeiro a tentar uma sistematização dos povos lusitanos, estudando as divindades do mundo que ele considerava lusitano e que verteu na clássica obra “Religiões da Lusitânia”. A Lusitânia, objecto do seu estudo, é essencialmente a província romana que ultrapassa em muito a Lusitânia que atrás definimos e para evitar confusões ele faz logo a advertência de que “começo naturalmente por explicar qual a acepção que lhe dou nesta obra”. Podemos dizer que toda a investigação de Leite de Vasconcelos teve como objectivo fundamental provar que havia uma relação directa entre Portugueses e Lusitanos, apesar da falta de coincidência entre os territórios, pelo menos numa grande área. Tentou ainda ir mais longe e provar que no território português vinham existindo, desde a Pré-História, culturas próprias que moldaram o homem lusitano e, consequentemente, o homem português.

Nos inícios do século XX, Mendes Correia foi uma das figuras mais acérrimas defensoras da ligação entre Portugueses e Lusitanos, contestando fortemente Alexandre Herculano. Atravessando toda a primeira metade do século XX, veio a ser uma das figuras de que o regime do Estado Novo se serviu para tornar essa teoria numa afirmação científica e na afirmação de uma raça portuguesa distinta das outras conhecidas, chegando mesmo a considerar um tipo de hominídeo próprio do território português, o “selvagem homo taganus” que teria vivido nas margens da Ribeira de Muge. Ora, o que hoje se sabe desta população dos finais do Neolítico/Mesolítico é que se alimentavam à base de moluscos de que nos deixaram imensos vestígios, os chamados concheiros e praticavam o enterramento colocando os corpos em posição fetal. As análises antropológicas nada revelam de diferente em relação a outros homens do mesmo período neo/mesolítico.

Teófilo Braga, intelectual e político, primeiro Presidente do Governo Provisório após a instauração da República Portuguesa escreveu, em 1904, um romance intitulado Viriatho em que faz a descrição do Lusitano combativo e atribuindo-lhe a construção da Cava de Viseu onde imagina que decorreram os seus funerais. Era português, sem dúvida e tinha sido um dos pais da Pátria portuguesa.




O alemão Adolfo Schulten escreveu, em 1926, uma bibliografia de Viriato e uma obra sobre a Hispania e aí refere que o nome Lusitanos provém do celta, considerando-os por isso como celtas. O nome tem a raiz lus- que entra na composição de outros nomes da Península. Apesar dos elementos linguísticos apontarem para uma origem celta dos Lusitanos, outros levam-no a concluir por uma origem ibérica. Conclui, pois, Schulten que se deve “portanto, admitir que nos Lusitanos foi celtisada uma população ibero-africana mais antiga pela emigração celta, principalmente quanto à língua”. Esta hesitação de Schulten em relação à origem celta dos Lusitanos ou a sua origem ibérica é uma questão que tem atravessado praticamente todos os tempos e historiadores e ainda hoje se mantém em aberto. O Viriato de Schulten tem sido a obra mais citada desde a sua publicação até aos anos noventa do século passado e ainda hoje continua a ser um clássico para o estudo desse período.

O Estado Novo fez da questão da raça uma ideia fundamental do orgulho nacional e por isso era importante manter e propagandear o mais possível esta ideia da relação umbilical com os Lusitanos. A História ensinada nas escolas primárias, Liceus e Escolas Industriais transmitia a ideia da formação da Pátria a partir da Lusitânia, enaltecia-se a bravura dos Lusitanos e apresentava-se a dedicação de Viriato à Pátria como um exemplo a seguir.

Em 1936, o corpo expedicionário português de voluntários enviado para combater na Guerra Civil Espanhola, ao lado das tropas de Franco, chamava-se Os Viriatos.

Damião Peres ao publicar o seu livro “Como Nasceu Portugal”, em 1944 foi demolidor desta teoria da ligação umbilical dos Portugueses com os Lusitanos e da ideia de ir buscar as raízes da Nação tão longe e, ao sustentar que a formação de Portugal se devia fundamentalmente à vontade política de D. Afonso Henriques, provocou a ira de Mendes Correia e do regime político. Para Damião Peres, Portugal era uma realidade medieval que nasceu fruto das circunstâncias em que a vontade do conde D. Henrique e D. Teresa e, depois do filho de ambos, D. Afonso Henriques, foram determinantes.»

João Luís Inês Vaz («Lusitanos – No Tempo de Viriato»).

 

«A situação geográfica da Espanha destinava-se a ser o campo de batalha onde viriam a encontrar-se as ondas de povos que do alto da Europa descessem em busca de novas presas, e as vagas que da África namorassem esse parayso de Dios que lhes ficava fronteiro.

Quaisquer que tivessem sido os embates de povos, anteriores aos de que a história nos dá notícia, é facto que na Espanha se encontram romanos e cartagineses, vindos, uns de além dos Pirenéus, outros da Mauritânia, continuar na Península as guerras púnicas. É também facto que, depois e da mesma forma, se encontram os visigodos e os árabes. Por duas vezes a Espanha representou para a Europa o papel que no Oriente mais tarde coube à Hungria: foi a atalaia avançada e como que o baluarte da sociedade europeia contra as invasões sarracenas.

(...) A geografia diz-nos, porém, que uma região geognosticamente constituída por formas tão diversas, dividida em bacias hidrográficas separadas entre si por cordilheiras elevadas e espessas, e cortadas de rios inavegáveis na maior parte do seu curso, favorece a formação de individualidades nacionais distintas; por isso que impedindo as comunicações fáceis entre as diferentes tribos localizadas em cada uma das zonas embaraça e demora a fusão ou penetração de umas pelas outras.



Nada se parece menos com o castelhano grave e indolente, observa um moderno historiador da Espanha, do que o andaluz fanfarrão e leviano.

Sob as mesmas condições físicas de posição e clima, vemos o catalão industrioso que esquadrinha todos os cantos do mundo em busca de fortuna, e o valenciano cabisbaixo e sedentário que não sai da sua viçosa huerta, desse torrão que seus avós já cultivaram. Vem depois o galego, paciente e laborioso, a oferecer por toda a parte o trabalho dos seus braços e os seus ombros possantes para a carga. Ao lado do aragonês, nobre e altivo nos seus farrapos, encontramos o biscainho, vivaz, sacudido, tão vaidoso dos seus fueros, quanto o de Aragão o é da sua antiga e atrevida advertência aos reis, si non, non! – E nós próprios portugueses, não somos tão diversos, os do Minho, praticamente laboriosos mas obtusos, cheios de teima e prosápias, que formámos sobre um chão de granito um prado, como uma Irlanda, a formigar de gente – dos do Sul, bizarros como castelhanos? dos do extremo Algarve, verdadeiros andaluzes.

Se a geografia é a nosso ver uma causa das graves diferenças que, segundo as regiões, distinguiram os espanhóis na história e os distinguem ainda hoje, mantendo visíveis caracteres etnológicos nem sempre fáceis de determinar nas suas afinidades, essa causa não basta para que, acima de tais diferenças, a história nos não mostre a existência de um pensamento ou génio peninsular, carácter fundamental da raça, principalmente afirmado, de um lado no entusiasmo religioso que pomos nas coisas da vida, do outro no heroísmo pessoal com que as realizamos. Daqui provém o facto de uma civilização particular, original e nobre.»

Oliveira Martins («História da Civilização Ibérica»).

 

«Oliveira Martins não é um historiador-filósofo, quer no sentido mais crítico e judicioso, quer no sentido mais sintético e integrativo do termo. A sua concepção veemente da história da pátria não se dirige de maneira singular ao espírito, mas dirige-se às almas: dirige-se ao subtil liame entre querer e ver, configurando-se na relação entre sentir e saber que vive e pervive na tão desdenhada imaginação evocativa ou vidente.

É um historiador de raiz tradicional realizando-se no seio da cultura adversa: historiador peninsular, ibérico, profundamente ligado, e por vínculo anterior a todo o estudo, à tradição activa e pragmática da pátria. Di-lo-íeis sob certo aspecto um espartano que, como podeis discernir neste mesmo livro sobre o Helenismo e a Civilização Cristã, louva e admira as maravilhas da poesia e da filosofia de Atenas, permanecendo afinal fiel ao ideário simples de quantos por vários modos recusam a grande aventura do espírito. No entanto, ele sabe, e o disse nas obras às quais primeiro lembrámos, que Portugal, vivendo, segundo a secreta vocação da sua alma, a grande aventura do mundo, ficou desde Alcácer Quibir ressentido, e não completou a aventura. Será, seria esta a aventura do espírito

José Marinho («Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo»).

 

«Não é de hoje, aliás, a refutação da filosofia da história em nome de uma pretensão científica. Numa carta escrita a Oliveira Martins em 1872, Alexandre Herculano chamava-lhe “género de romance impertinente”. No seu lugar, antevia a “fixação das leis gerais que, a posteriori, resultarem da identidade e universalidade dos factos políticos e sociais em identidade universal de circunstâncias, leis cujo conhecimento tornarão a história uma verdadeira ciência”. E depois de mais algumas considerações secundárias, Herculano concluía: "Fora disto, filosofias históricas, pura conversa!" [De Carta a Oliveira Martins (25-12-1872), cit. in Alexandre Herculano, biografia de António Borges Coelho, Ed. Presença, Lisboa, 1965.

Vale a pena citar este outro trecho da mesma carta, bem reveladora da posição incompreensiva de Herculano perante a filosofia da história: “Generalizações de factos que não se conhecem ou se conhecem imperfeitamente, fazem rir, e rir ainda mais quando se tomam por factos erros por vezes bem grosseiros. Quando as monografias das nações do globo estiverem feitas, o que há-de ser daqui a alguns centos de anos, então é possível a filosofia da história. Até lá, romance ou comédia.” Herculano “profetiza” afinal o que viria a ser muito mais tarde a recolha exaustiva de Toynbee, comparando 22 civilizações...].


Opunha-se Herculano, arrebatada e sarcasticamente, ao que considerava a influência nefasta da filosofia da história sobre o jovem Oliveira Martins. Mas pedia o impossível – a fixação de leis gerais, base de uma história científica – para minorizar a intuição de um dinamismo histórico, que Oliveira Martins, inspirado pelas teorias dos filósofos românticos alemães, traduzia em termos sociais. Evidentemente, a sociologia de Oliveira Martins foi contestadíssima, quer por António Sérgio, quer, mais recentemente, por António José Saraiva e Alberto Ferreira – e foi tanto mais contestada quanto pretendia fazer doutrina numa esfera que se afirmava ser totalmente racionalizável (Sérgio) e científica (A. J. Saraiva, A. Ferreira).

Oliveira Martins descobrira, no entanto, ao observar o passado, que o elemento social não era uma presença totalitária em todas as manifestações humanas, tendo de admitir, por conseguinte, uma margem superior ou menor de indeterminação, de liberdade, de criacionismo gratuito da parte de certos homens superiores ou de certas nações ou complexos civilizacionais, movidos por vagas de fundo míticas, religiosas ou psicológicas (daí a sua valoração, mais tarde considerada indevida pelos cientistas pragmáticos ou pelos cultores de uma Razão discursiva e imanente toda-poderosa – Eduardo Lourenço falaria, a propósito, do novo farisaísmo da Razão –, daí a sua valorização, dizíamos, de figuras consideradas arquetipais como as de Nuno Álvares Pereira ou de D. João II e de movimentos colectivos nacionais, como o sebastianismo). E descobrira, por outro lado, que fundar uma historiografia unicamente nos documentos paleográficos não passava de ilusão: os documentos omitem, os documentos mentem, os documentos representam, a par de um testemunho até certo ponto irrecusável, uma falsificação da realidade, por parte de observadores mal apetrechados, geralmente não independentes na sua transposição testemunhal, exprimindo fragmentária e aleatoriamente uma verdade estilhaçada, lacunar e descontínua que o historiador se esforça por tornar coerente e lógica. Mas como? Deixemos para os ingénuos ou para os mal-intencionados a pretensão de afirmarem que conseguiram a transposição científica de toda a zona enigmática para a verdade, é o ponto de vista de Oliveira Martins. Ele diz: “É quimérico, é absurdo até, imaginar construir cientificamente a história” e, aindam “ciência e história são termos que se excluem”. Só através da imaginação e da faculdade intuitiva, aliadas à razão conceptiva e à investigação, poderá o historiador reconstruir, “na sua totalidade indefinida ou caótica a realidade das coisas”. “A história não é, pois, uma ciência, mas uma arte” Uma arte narrativa, uma arte literária. A filosofia da história a pode interpretar, porque a filosofia convive com a liberdade; não a ciência da história, porque a ciência aponta à necessidade e à lei.»

António Quadros («Introdução à Filosofia da História»).

 


 

OS LUSITANOS


«O povo desde o qual os historiadores têm tecido a genealogia portuguesa está achado: é o dos lusitanos. Na opinião desses escritores, através de todas as fases políticas e sociais da Espanha durante mais de três mil anos, aquela raça de celtas soube sempre, como Anteu, erguer-se viva e forte; reproduzir-se, imortal na sua essência; e nós os portugueses do século XIX temos a honra de ser os seus legítimos herdeiros e representantes.»

Com esta ironia encoberta mas grave, fustigava Alexandre Herculano[1] os seus predecessores, historiógrafos nacionais, e, segurando com valor a férula magistral, castigava o povo culpado de acreditar numa tradição que tem para o erudito, além de outros defeitos, o de ser recente. Só desde o fim do XV século o nome de lusitani começa a substituir o de portucalenses, nos livros; mas essa inovação, perpetuando-se entre os eruditos, torna-se por fim uma crença nacional e quase popular.

Que valor merece a inovação? Nenhum, e por vários motivos: «Tudo falta: a conveniência de limites territoriais, a identidade da raça, a filiação da língua, para estabelecermos uma transição natural entre os povos bárbaros e nós.» Ora estes argumentos, decisivos para o sábio historiador, não nos parece a nós – perdoe-se-nos o atrevimento – que o sejam. Outro tanto sucede com todas as nações ou quase todas, desde que procuramos estabelecer a árvore genealógica, indo aos arcanos de um passado ignoto reconhecer a fisionomia dos mortos de muitos séculos e determinar de entre eles os primeiros avós de uma nação. Seria absurdo exigir conveniência de limites territoriais, ou por outra, identidade de fronteiras, entre a localização de uma tribo primitiva, e a de uma nação moderna: nem aos povos que hoje mais indiscutivelmente representam, pura, uma raça, poderia fazer-se tal exigência. Se há ou não identidade de raça, é exactamente o problema que deveria agitar-se; e, sem isso, negá-lo é proceder dogmática e não cientificamente.

Alega-se que são indecisas as noções de Estrabão com respeito às fronteiras dos lusitanos; diz-se mais que não coincidem com as que Augusto deu à província da Lusitânia[2]. O geógrafo antigo, ora parece incluir os calaicos nos lusitanos, estendendo as fronteiras destes últimos até à costa do norte da Península, ora os separa, dando-lhes o Douro como divisória. A demarcação de Augusto adoptou esta segunda versão. As fronteiras orientais estendiam-se, quer para o geógrafo, quer, depois, para a administração romana, muito além da raia portuguesa, incluindo Salamanca, e subindo quase até próximo de Toledo. Daí para o sul, e depois para o nascente, seguindo o curso angular do Guadiana, os lusitanos de Estrabão e a Lusitânia de Augusto tinham como limite este rio, quase desde as suas fontes, e até à sua foz, na costa do nosso Algarve.


Mapa da Lusitânia sob o domínio romano, indicando rios e povoações e a rede conjectural de vias de comunicação, segundo Hübner.

Se ligássemos, pois, um valor positivo às resenhas dos antigos geógrafos, e um alcance social-histórico à identidade das fronteiras primitivas e actuais, parece-nos que poucas nações poderiam com melhores motivos achar na etnologia dos antigos o fundamento da sua vida moderna. Alargue-se a fronteira do norte ao Minho (conquista da Lusitânia sobre a Galécia), retraia-se a fronteira de leste ao Douro (conquista da Tarraconense sobre a Lusitânia) e teremos feito coincidir os antigos com os actuais limites. Qual é, dos primitivos, o povo que no decurso da sua vida histórica deixou de conquistar e de ser conquistado? Qual é o que não ganhou ou não perdeu, de um lado ou de outro, sobre ou para os vizinhos?

Se a maneira porque, a partir do século XV ou XVI, os historiógrafos nacionais filiam o Portugal moderno na antiga Lusitânia justifica as fundadas ironias do nosso grande historiador, não nos parece que o processo por ele seguido para negar a doutrina seja conveniente, nem até verdadeira a opinião de que entre portugueses e lusitanos nada haja de comum. Quando hoje vimos renascer de um modo erudito, e daí afirmar-se no espírito popular, a tradição nacional germânica, a italiana e até a romana, que valor tem o facto da tradição lusitana ter estado obliterada por séculos, para só ressurgir numa época relativamente próxima e de um modo erudito? Se os portugueses da Idade-Média não sabiam de seus avós lusitanos, acaso saberiam de seus avós ítalos, romanos ou teutónicos os piemonteses, os valáquios ou os prussianos até o XVIII século? Acaso, também, ser-lhes-á mais possível do que a nós estabelecer uma transição natural e uma história ininterrupta desde as primeiras idades até às modernas? Não, decerto. Se a erudição pudesse demonstrar a unidade da raça ibérica, então os lusitanos baixariam à condição de uma variedade sem autonomia: facto é, porém, que pouco ou nada sabemos, nem de iberos em geral, nem de lusitanos em particular, e por isso as fábulas dos velhos antiquários não merecem a atenção moderna. Não haverá, porém, acaso outro caminho para atacar este problema? À falta de monumentos escritos, nada poderá valer-nos? Entre a fábula ingénua dos antiquários e as exigências secas e formais dos eruditos modernos, não estará outra via? Afigura-se-nos que sim[3].

Todos reconhecem hoje a indestrutível tenacidade das populações primitivas. Raízes profundas que nenhuma charrua destrói apesar de revolta a leiva pelo ferro das conquistas, depois de esmagados as folhas e troncos pelo tropear dos cavalos de guerra, depois de queimados e reduzidos a cinzas pelos incêndios das invasões: embora se lancem novas sementes à terra e nasçam vegetações novas, essas raízes profundas tornam a reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu, e afinal convertem ou esmagam, transformam ou exterminam, de um modo obscuro, lento, mas invencível, as plantas intrusas.

A permanência dos caracteres primitivos dos povos, facto hoje indiscutível, permite fazer – consinta-se-nos a expressão – a história ao inverso: julgar de hoje para ontem, inferir do actual para o passado. A questão da raça lusitana apresenta-se-nos pois nestes termos: há uma originalidade colectiva no povo português, em frente dos demais povos da Península. Cremos que a há circunscrita porém a traços secundários. Cremos que as diversas populações da Espanha, individualizadas sim, formam, contudo, no seu conjunto, um corpo etnológico dotado de carateres gerais comuns a todas. A unidade da história peninsular, apesar do dualismo político dos tempos modernos, é a prova mais patente desta opinião[4].


Povos da Península

Este dualismo, porém, leva-nos também a crer que entre as diversas tribos ibéricas, a lusitana era, senão a mais, uma das mais individualmente caracterizadas. Não esquecemos, decerto, a influência posterior dos sucessos da história particular portuguesa; mas eles, por si só, não bastam para explicar o feitio diverso com que coisas idênticas se representam no nosso espírito nacional. Há no génio português o que quer que é de vago e fugitivo, que contrasta com a terminante afirmativa do castelhano; há no heroísmo lusitano uma nobreza que difere da fúria dos nossos vizinhos; há nas nossas letras e no nosso pensamento uma nota profunda ou sentimental, irónica ou meiga, que em vão se buscaria na história da civilização castelhana, violenta sem profundidade, apaixonada mas sem entranhas, capaz de invectivas mas alheia a toda a ironia, amante sem meiguice, magnânima sem caridade, mais que humana muitas vezes, outra abaixo da craveira do homem, a entestar com as feras. Trágica e ardente sempre, a história espanhola difere da portuguesa, que é mais propriamente épica: e as diferenças da história traduzem as dissemelhanças do carácter.

Poderemos regressar ao passado, e perguntar-lhe a causa primária deste fenómeno? Decerto não. Ou sombras impenetráveis o encobrem, ou a escassez do nosso saber nos não deixou ainda desvendá-lo. Como hipótese – e do nosso atrevimento será escusa a nossa modéstia – somos levados a crer que a individualidade do carácter dos lusitanos (quer neles incluamos os calaicos, quer não) provém de uma dose maior de sangue céltico ou celta (questionou-se outrora sobre isto) que gira em nossas veias, de mistura com o nosso sangue ibérico. Os nomes próprios de lugares, os nomes de pessoas e divindades, tirados das inscrições latinas da Lusitânia e da Tarraconense, que constituem o nosso Portugal, provam a preponderância de um elemento céltico. As vagas indicações dos antigos falam-nos nos celtas das margens do Guadiana, e dão-no-los na costa ocidental da Península. Vale porém mais do que isso a analogia evidente entre as manifestações particulares dos lusitanos e dos galegos, e aquela fisionomia que os estudos eruditos sobre os celtas da França e da Irlanda têm determinado a estes últimos[5]. Tentámos há pouco esboçar a nossa fisionomia diferencial: escusado é tornar agora ao assunto.

Se a ideia de uma filiação dos lusitanos foi expressa de um modo ridículo pelos antiquários clássicos, a ideia de uma filiação céltica ou celta teve já a mesma sorte quando, quase em nossos dias, houve quem pretendesse filiar directamente o português na língua dos bardos. Paz do esquecimento a todas as quimeras!

(In Oliveira Martins, História de Portugal, Guimarães Editores, Lisboa, 2007, pp. 27-30).






[1] V. o seu retrato em Portugal Contemporâneo, III, O. C., pp. 155 a 164.

[2] V. História da Civilização Ibérica, O. C., pp. 47 e 48.

[3] V. acerca dos lusitanos As Raças Humanas, O. C., I, pp. 268 a 284, e II, pp. 209 nota.

[4] V. História da Civilização Ibérica, O. C., pp. 23 a 322.

[5] V. As Raças Humanas, O. C., II, v. p. 7.