sexta-feira, 19 de setembro de 2025

A nossa não lusitanidade íntima...

Escrito por Fernando Pessoa




Capelas Imperfeitas (Mosteiro da Batalha).


A nossa ruína cultural, a nossa não lusitanidade íntima, esse é o mal que nos mina; todos os outros, por graves que sejam, podem passar, podem ter solução. Mas para aquilo que, continuado, é a morte mesma, não há solução.

(In António Quadros, Fernando Pessoa – A Obra e o Homem, II Vol., Arcádia, 1.º edição, 1982, p. 301).



segunda-feira, 15 de setembro de 2025

De Santo Agostinho a Paulo Orósio

Escrito por António Quadros




«A Providência, que é boa, justa e piedosa, faz agir o mundo e o homem.»

Paulo Orósio

 

«É verdade muito certa

Este sonho que sonhei.»

Bandarra

 

«É este mundo um teatro; os homens, as figuras que nele representam, e a história verdadeira dos seus sucessos uma comédia de Deus, traçada e disposta maravilhosamente, pela providência.»

António Vieira

 

«Se a história não é um passatempo vão; se, como toda a ciência humana, deve ter uma causa final objectiva...».

Alexandre Herculano

 

«A suma total, a síntese da existência da humanidade são com efeito um progresso que tem por objecto a liberdade absoluta do espírito. Essa é a filosofia que encerra em si o conjunto de factos incoerentes, contraditórios, progressivos, repressivos, da história dos diferentes povos.»

Oliveira Martins

 

«... pelo lento desenvolvimento das ciências experimentais o homem chega ao conhecimento da invariabilidade das leis físicas, primeiro grau de positividade, e por uma demolição sucessiva das antigas concepções chega a uma emancipação da consciência, que se exerce na crítica dos factos sociais que lhe aparecem sem prestígio na sua extrema variabilidade ou relativismo. É no conhecimento desta natureza do fenómeno social que está o futuro da liberdade humana.»

Teófilo Braga

 

«Eis porque seja que o movimento resulte o facto irredutível, característico do mundo. O movimento é o início e o fundamento de tudo, porque seja o avanço na série das formas evolutivas, com o fito final do regresso ao espírito homogéneo. Esta, a única finalidade natural; eis o fragmento de verdade que se contém no conceito teleológico...».

Sampaio Bruno

 

«O tempo é obra das mónadas e ele será a virtude e o progresso da liberdade. Não é a uma absorpção em Deus que as almas aspiram, mas a uma vida social ideal, de justiça e fraternidade perfeitas.»

Leonardo Coimbra (Ver aqui e aqui).

 

«Devo à Providência a graça de ser pobre...».

Oliveira Salazar («O meu Depoimento»).

 




«Os limites  do sebastianismo estão em obstinar-se no mero plano histórico-político, em não ascender àquele sentido de redenção que consiste em amor e lúcida compreensão, fraternidade e paz.»

José Marinho

 

«Não somos estátuas, não somos estantes, não fixamos estados, e, sabendo que viajamos com maior ou menor velocidade, interrogamo-nos quanto à finalidade e ao fim da viagem. A definição teleológica será portanto, mais valiosa do que a definição substancialista.»

Álvaro Ribeiro

 

«A filosofia da história é o produto lógico da síntese espontânea entre a observação defeituosa do sido e a observação existencial do sendo que o historiador representa e que é o seu verdadeiro foco de iluminação das imagens caóticas, fragmentárias e mortas dos factos; e é o produto lógico do encontro entre uma concepção do mundo e do homem que tem raízes na sua relação com a vida, com o ser e com o espírito – e um acervo plural de dados que, sem a sua integração num todo coerente, não seriam sequer história. E quanto mais consciente for este ajuste entre o filósofo e o investigador, quanto mais filósofo for o investigador, mais probabilidade haverá, não só de adequar a história à verdade (de que sempre exprime um afastamento) mas também de ultrapassar o próprio historicismo, conferindo-lhe o lugar que lhe compete no quadro do conhecimento.»

António Quadros

 

«Perante o desastre de Alcácer Quibir, Tomé de Jesus premune o povo para uma visão: há bens que são males, há males que são por bem (Trabalhos de Jesus, I, VII) como se até o mal – causa deficiente, ausência de bem – houvesse uma função escatológica e tivesse, a seu modo, uma mediação de contraponto que, através do contraste, concitasse a humana atenção para o seu oposto. A visão por Tomé de Jesus apresentada ao povo tem por fim ensinar que no projecto divino nada é em vão, e que mesmo a dor, o sofrimento e a derrota, servem de pré-texto ao escopo do decreto eterno sobre o destino do homem e do mundo. Neste caso, e segundo uma leitura aristotélico-tomista, o mal não constitui uma pura negação do bem, antes é a privação do bem, sendo este bem o destino eterno do homem e do universo, desde a sua criação. Qual o mecanismo lógico e axiomático que serve de premissa maior a esta visão? É a ideia de providência, em torno da qual se formulam uma filosofia e uma teologia da história, o providencialismo.

De acordo com o sistematizador da doutrina escolástica, a providência é o plano do universo eternamente presente e actuante no divino intelecto (Tomás de Aquino, S. T., I, q. 22 a 1) ou o plano eterno de Deus sobre o destino da criação, que só a vontade do criador realizará. A ideia tem matriz teofânica, qual essa que os judeus substanciam na invocação “Pai, que o (mundo) governais” (Livro da Sabedoria, 14, 3) mas a elaboração filosófica prende-se com a relação que Aristóteles propõe do acto puro para a causa final que garante, na dedução lógica, o encaminhamento das coisas para a sua razão de ser, que é o fim pelo qual as coisas são, pois tudo é para algum telos, nada sendo vão. O finalismo de Aristóteles prende-se com a noção de pronóia que Platão aduziu (O Timeu, 44 c), e que a latinidade traduziu as mais das vezes por providentia. Em todo o caso pronóia parece equivaler mais à noção de presciência do que à noção de providência, já que, por esta, Deus intervém na história e, por aquela, Deus apenas tem uma ciência de anterioridade lógica em relação às coisas criadas, sem que envolva uma vontade de intervenção. O providencialismo enlaça a pronoiologia platónica e a teleologia aristotélica, por modo a que o providencialismo vem a ser teoria dos princípios e do finalismo postulador do bem como o último fim do homem, apesar dos males que a existência lhe aporta, ou que ele aporta à existência.


A Consagração de Santo Agostinho, por Jaume Huguet

Na sua forma católica, o providencialismo radica na teologia de Santo Agostinho sobre a história humana, sendo elaborado um ambiente prenhe de maniqueísmo. Enquanto a leitura histórica do maniqueísmo propõe o bem e o mal como valores contrários, que se negam um ao outro, Santo Agostinho tende a aduzir uma oposição, pela qual o bem é, apesar do mal, e o mal está, apesar do bem. Nos dias da queda do Império, os Romanos tendem a um judicativismo maniqueísta: o Império é o bem que vive a ruína provocada pelo mal, consubstanciado numa Igreja que ascende e derruba o poder imperial. Agostinho reinterpreta: a cidade demoníaca opõe-se mas não nega a soberania da cidade de Deus. Os males que o homem vive na cidade terrestre são procurso da cidade celeste; não obstante os males presentes há um plano divino, eterno e infalível, que orienta a história humana, através dos males, para o fim de perfeição necessariamente próprio da suma Bondade, que é Deus. Sendo Bondade perfeita, Deus só pode querer o bem e, por isso, através do procursus na malignidade e na deficiência, o homem encaminha-se para o finis debitii, a civitate Dei, anunciada por uma cristandade que ascende, através de um Império que rui. Misericórdia, Justiça e Providência, Deus cria e ama o Mundo, julga os actos e providencia aos fins, à luz de tais infalíveis atributos. A doutrina levanta problemáticas várias, quais as relativas à predestinação e à liberdade, uma vez que o mundo e o homem se acham inelutavelmente sujeitos ao governo divino do mundo. Estas problemáticas estão no cerne da filosofia e de toda a antropologia fundamentada, constituindo a causa das doutrinas, já do tomismo, sobre o governo providencial através das causas segundas, já da ciência média, já do extremo predestinacionismo de Malebranche, que formula o ocasionalismo, em que Deus chega ao ponto de regular os acontecimentos na ocasião.

O providencialismo é uma teofania da história, e a própria história surge como milagre divino, em que a inteligência criativa e a vontade operativa divinas intervêm, ou directamente, ou através de mensageiros, por isso que a teofania propõe também uma marionofania, uma angelofania e, até, uma hierofania, qual a dos heróis e a dos santos, que são agentes e tenentes da vontade divina, entendíveis como significantes de causas segundas, através das quais a vontade divina providencia o finalismo da história e da natureza.

A demonstração lógica dialéctica carece, para mais eficaz compreensão didáctica e paidêutica, de um suplemento de prova. Santo Agostinho elaborou a doutrina providencialista, partindo dos pressupostos existenciais, lógicos e písticos, mas não curou de aduzir uma dedução em particular. Ora, para deduzir, a partir da história para a filosofia, que a providência faz agir o mundo e o homem, Agostinho recorreu ao presbítero bracarense Paulo Orósio, que, nos sete livros da Historiarum adversus Paganos, narra a história universal segundo a teofania augustiniana, efectuando uma transliteração do sentido veterotestamentário para toda a humanidade. No Antigo Testamento, Israel é a história do homem segundo a providência divina; na História de Orósio a Humanidade é a história do homem segundo a vontade divina revelada e encarnada, em vista da redenção, por Jesus Cristo, que se torna prova da tese providencial. Os livros de Orósio, lidos qual iniciação às moléstias do mundo, interpretados como via de transição da desgraça histórica para a graça celeste, deram à medievalidade a única perspectiva salvífica que aquela conheceu. O providencialismo, segundo a filosofia de Agostinho e segundo a história de Orósio, destinou-se ao triunfo no quadro das teologias da história e tornou-se doutrina preferencial, de tal modo que, exceptuando os historiadores deterministas, fatalistas e materialistas, a generalidade dos historiadores portugueses intelige a história segundo um critério providencialista, que utiliza, já nos momentos de abjecção, já nos instantes de glória. Quase prescinde de prova casuística a asserção de que o providencialismo permanece como a doutrina preferida da nossa filosofia da história até Alexandre Herculano, visto que, mesmo a Academia Real de História, ao tornar de maior rigor positivo a leitura do passado, não obrigou os académicos ao abandono da visão providencialista, permitindo o recurso aos documentos sagrados, despidos de intencionalidade historiográfica.

O milagre de Ourique tende a concretizar num momento de manifestação e de provação, a leitura providencialista que, radicada em Agostinho-Orósio, prossegue em Idácio de Chaves, cujo Chronicon, continuado por Isidoro de Sevilha, efectua o contraste do pessimismo do povo face à invasão bárbara com o optimismo eclesial, que vê o rebanho em vias de aumento. O bem futuro é visível através da opacidade do mal presente, tal como se intelige na visão apocalíptica joanina; igual juízo é exarável acerca do Chronicon, de Isidoro Pacense, e do comentário do Apríngio de Beja, que, através do pessimismo milenarista intelige a época de “redenção universal”, ou de “transformação do homem decaído” – temas que foram objecto da meditação teoantropológica de Álvaro Ribeiro, cuja obra raro omite o oriente histórico do finalismo e do providencialismo, por vezes aferido, como em Agostinho da Silva e Jaime Cortesão, à ideia de Espírito Santo, o último fim da história, enquanto hipóstase do amor.


Agostinho da Silva


Há muitos exemplos de história providencialista, todavia, a vantagem dinástica quase sempre se atribui, por malícia, a Bernardo de Brito. Como Bernardo de Brito cuidou pouco da hermenêutica documental – dando como facto histórico o que parece não exceder a lenda – a historiografia positivista prevalece-se do defeito técnico para envolver o posicionamento filosófico do cisterciense. Bernardo de Brito leva a teofania aos limites da cristofania, ordenando a história em torno de um Cristo encarnado na história (há fecundas analogias entre o Cristo histórico cêntrico de Brito e o Cristo cósmico de Chardin!) e inteligindo um “epílogo geral das cousas do mundo” (Mon. Lu., I, pról.) que se verá num esplendor de triunfo, depois da humanidade purgante. A catástrofe do terramoto de 1755 terá constituído um dos derradeiros momentos da catárse providencialista quando, às explicações naturalista, mecanista e geológica, Bernardino de Santa Rosa, Francisco de Pina e Melo e, até, os parenetas das comunas judaicas exiladas, opuseram a leitura providencialista, inferindo que o fenómeno viera como divino acto de justiça para rectificação da justiça portuguesa. A oficialização da história positiva, pela qual se julga incerta a causa final (Joaquim Veríssimo Serrão, ob. cit., pág. 190, assim a considera) levou a uma ocultação do providencialismo que, apesar disso, prevalece na filosofia portuguesa como visão da história. O homem é um cooperador do sobrenatural na redenção universal segundo o plano eterno da criação. Como querem Bruno, Leonardo Coimbra e José Marinho, cuja teoria da cisão envolve a visão unívoca.

Pinharanda Gomes («Providencialismo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa).

  

De Santo Agostinho a Paulo Orósio

 

Quando Aristóteles disse que «a poesia é mais filosófica do que a história», referia-se à história do seu tempo, à história de Heródoto, e não a uma história que absorvesse a sua teorização da causa final. Quando assim sucedesse, estaria fundada a história filosófica, isto é, uma história não já apenas do particular mas do universal, história capaz de interpretar os acontecimentos, não como emergências existenciais e cíclicas de um mito não existencial e eterno, nem tão-pouco como séries de factos encadeados uns aos outros pela exclusiva relação de consequente e antecedente, mas sim pela sua adunação universal, pela sua adunação versus unum, necessariamente finalista.

Tal história filosófica viria a surgir dez séculos depois de Aristóteles com a filosofia cristã, para a qual todos os acontecimentos se ordenam providencialmente, segundo uma teleologia e, mais que uma teleologia, uma escatologia, pois o telos do bem de Aristóteles é ampliado para o eschaton da Parúsia. O seu doutrinador é Santo Agostinho, que distingue entre a cidade terrestre e a cidade de Deus. Os herdeiros de Caim, marcados pelo mal e pela impiedade, estão em permanente conflito com os herdeiros de Abel, filhos da luz e da verdade, componentes e representantes da Igreja de Cristo. Mas para além deste conflito escatológico, uma realidade se impõe, realidade profética que ilumina os verdadeiros fins da história e confere sentido e significação à massa caótica dos factos e dos eventos. Santo Agostinho descreve-a desta maneira, quase a terminar o livro X de A Cidade de Deus e referindo-se à revelação através dos grandes profetas: «Mas havia outros factos, verdadeiramente grandes e divinos, e cuja realização futura eles anunciavam, lendo, tanto quanto lhes era dado, na vontade de Deus: a vinda de Cristo na sua carne com todas as maravilhas que surgiram na sua pessoa ou foram realizadas em seu nome, o arrependimento dos homens e a conversão das suas vontades a Deus, a remissão dos pecados, a graça que justifica, a fé dos santos e por toda a terra essa multidão de homens que acreditam na verdadeira divindade, a subversão do culto dos ídolos e dos demónios, como as provas sofridas pelos fiéis, a purificação daqueles que progridem e a sua Libertação de todo o mal, o dia do Juízo, a eterna danação da sociedade dos ímpios e o reino eterno da muito gloriosa cidade de Deus no gozo imortal da sua presença visível, eis o que foi predito e prometido nos escritos sagrados desta via, e nós vemos cumpridas tantas destas promessas, que, inspirados por uma recta piedade, temos a convicção de que outras o serão».[1]

Este finalismo escatológico, que exige a teologia, a profecia e, num terceiro grau, a história – para confirmação factológica, garantia da causa final através da causa eficiente, comprovação do cumprimento das promessas – é já precursor da filosofia da história. Mas Santo Agostinho, preocupado em refutar doutrinariamente a tese, muito divulgada depois da tomada de Roma por Alarico, de que o cristianismo, desacreditando o paganismo, trouxera a ruína do Império e da civilização, foi muito mais teólogo do que historiador. Abriu caminho à filosofia da história, mas não a realizou ainda assim, como também não realizou a história filosófica, implícita no pensamento de Aristóteles e que aliás anunciava nas últimas linhas de A Cidade de Deus, sem ter podido encetá-la: «Vou pois agora, como prometi no primeiro livro, e na medida em que for ajudado de cima, expor o que me parece dever ser dito acerca das duas cidades que, já o dissemos, se interpenetram e se interinfluenciam reciprocamente no século actual, falar da sua origem, da sua história e dos fins que as esperam».[2]

Sé Catedral de Braga






Quem levou a cabo esta empresa arriscada foi o seu discípulo Paulo Orósio, o famoso presbítero da Sé de Braga que, pelos Sete Livros de História contra os Pagãos[3], merece pois ser considerado como o pai da história filosófica, tanto como Heródoto é considerado o pai da história (não filosófica) e Santo Agostinho, o precursor da filosofia da história.

Orósio é, de facto, o primeiro a escrever, sistemática e coerentemente, uma autêntica história filosófica, garantida por um lado na especulação metafísica de signo aristotélico e por outro lado na concepção agostiniana da história, cujo providencialismo, afirmando embora a omnipresença divina no princípio, no meio e no fim da história, não descurou o circunstancialismo propriamente humano da cidade terrena.

É certo que o objectivo apologético da missão de que Santo Agostinho incumbiu Orósio – demonstrar que o cristianismo, longe de fazer retrogradar a civilização, a fez progredir –, terá prejudicado esta primeira tentativa de uma história filosófica.

Sob o ponto de vista das exigências postas por Aristóteles, não há dúvida de que Orósio se houve com extraordinária argúcia e frescura. Realmente, não apenas soube harmonizar as causalidades eficiente e final, igualmente presentes nos acontecimentos históricos evocados, como desenvolveu, antes de qualquer outro, uma teoria da relatividade histórica de acordo com a crítica de Aristóteles a Heródoto. Este fora acusado de fazer história particular: e eis agora que Orósio se opunha francamente à particularização histórica, nacional ou outra, afirmando decididamente a relatividade dos juízos históricos.

Não se limita efectivamente Orósio a narrar a história de uma nação, mas procura estabelecer nexos comparativos entre várias evoluções nacionais, pondo em dúvida a valoração que os nacionais fazem das suas próprias histórias. «Os romanos, e Alexandre anteriormente, arrasaram com as suas guerras povos que, posteriormente, receberam nos seus impérios e governaram por suas leis. Os godos, como inimigos, originaram agora desastres nas terras que, se lograssem conquistar (Deus não o permita) tentariam governar pelas suas próprias leis. A posteridade chama poderosos reis àqueles que nós consideramos agora os nossos mais ferozes inimigos.»[4]

Em última análise, o juízo sobre as nações e os homens pertence a Deus. Nós podemos analisar, comparar, interpretar, arriscar teses e até fundamentar teologicamente a apologia do cristianismo na história. Permanecerá sempre, todavia, um elemento misterioso, que nos inibe de pronunciar juízos dogmáticos ou inteiramente objectivos. Ao ajuizar, afirmamos uma perspectiva, mas não representamos o absoluto. Devemos caminhar no sentido de nos libertarmos cada vez mais da perspectiva, mas só na medida em que dela tivermos consciência é que lograremos amplificar a nossa visão. Foi esta a intuição genial de Orósio, o contributo filosófico que deu à filosofia da história do seu mestre – já que o contributo propriamente histórico foi imenso.[5]

Fenómeno notável é decerto a herança de Orósio no pensamento historiográfico português. Bem sabemos que a sua obra, aprovada oficialmente por bula papal em 494, foi o cânone histórico da escolástica até ao século XII, tendo pois sido estudada nos conventos e escolas monacais. Bem sabemos, por outro lado, que o nome e a figura deste discípulo de Santo Agostinho e amigo de S. Jerónimo, que nasceu ou pelo menos ensinou e exerceu o seu múnus no território que viria a ser português, deixou à nossa cultura medieval uma grande tradição. Mas nem por isso é menos surpreendente o facto de podermos detectar a sua influência (juntamente com a de Santo Agostinho) ao longo de seis séculos de adesão portuguesa ao providencialismo histórico, tal como o interpretou.





Este providencialismo é patente na obra de um João de Barros, de um Frei Bernardo de Brito, de um António Vieira, de um Cunha Seixas, de um Sampaio Bruno, de um Jaime Cortesão, de um Agostinho da Silva, para citar apenas aqueles que melhor o consciencializaram em termos teleológicos, mas não deixa de ser transparente na obra de muitos que, nem por o traduzirem em termos afirmativamente imanentistas, deixaram de o representar. Pensamos especialmente em Herculano, em Oliveira Martins e em Teófilo Braga, os quais, por intermédio de uma metodologia positivista ou sociológica, defenderam, num ou noutro plano, a teleologia da história portuguesa.

E que dizer do que podemos considerar um neoprovidencialismo social? Este último já não afirma uma teleologia providencial de escopo escatológico, mas uma teleologia providencial de escopo socialista. Que toda a história se desenvolva em ordem à realização final da cidade de Deus, ou, com idêntica lógica (mas muito mais necessitarismo ainda), em ordem à realização final da Justiça através de uma dialéctica social classista, em que o proletariado exerce a função da Igreja, ou do Corpo Místico, o processo mental e psicológico é muito semelhante. E nós vemos inclusivamente um Vitorino Magalhães Godinho, na exposição das suas teses mercantilistas[6], procurar insistentemente o relativismo histórico que Orósio apresentara já no século V. Teremos de distinguir, simplesmente, entre um providencialismo pleno (que no entanto não é estático, pois caminha a par e passo com a maturação gnoseológica e antropológica que vai abrindo novos horizontes à imagem do homem) e um providencialismo parcelar, que explora unicamente um dos valores da metafísica judeo-cristã (a justiça, catolicamente concebida) ou uma das virtudes teologais (a caridade, sociologicamente considerada).

(In António Quadros, Introdução à Filosofia da História, Editorial Verbo, Lisboa, 1982, pp. 29-34).



[1] Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Tomo II, Livro X, Cap. XXXII, trad. francesa, Librarie Garnier, Paris.

[2] Ob. cit.

[3] Testemunha bem da indiferença ou do automatismo das nossas instituições de cultura, o facto de a obra de Paulo Orósio (sem a qual não se entende a historiografia teleológica dos Portugueses ou de outros europeus), Historiarum Libri, VII Adversus Pagans, obra fundamental, traduzida para inglês e estudada pelos grandes filósofos da história, como, há poucos anos, Karl Löwith, não só não estar traduzida para a nossa língua, como, o que é ainda mais grave, não existir qualquer exemplar na Biblioteca Nacional ou na Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa, onde se ministram os cursos de História e de Filosofia. Nesta última, depois de recorrer aos catálogos, apenas deparámos com um dos sete livros, no texto latino... Esta pesquisa foi realizada em 1966. No entanto, está actualmente (1982) em preparação uma edição portuguesa.

[4] De Os Sete Livros de História contra os Pagãos.

[5] V. os excelentes capítulos sobre Paulo Orósio e a sua teoria da história nos livros Correntes da Filosofia em Braga, de Mário Martins, S. J., e El Sentido de la História, de Karl Löwith.

[6] Vitorino de Magalhães Godinho, «Introdução» da obra Os Descobrimentos e a Economia Mundial, Ed. Arcádia, Lisboa, 1963.



quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Já antes da fundação da Universidade se ensinava Filosofia entre nós

Escrito por Lopes Praça




«O carácter englobante atribuído ao substantivo augustinismo (ou agostinismo) importa à distinção do que nele se considera: primeiro, o augustinismo propriamente dito, derivado do substantivo, que é o sistema de filosofia e de teologia de Santo Agostinho; segundo, o augustinianismo, derivado do adjectivo, que é o património espiritual formulado, já pelo augustinismo, já pelas correntes que nele se inspiram. A distinção nem sempre se efectua, pelo que, de um modo geral, o termo se utiliza para englobar o augustinianismo, o que é augustiniano, sem ser necessariamente de Agostinho. O ideário e a doutrina do bispo de Hipona constituem, durante séculos, e, pelo menos, até ao achamento dos livros aristotélicos – que provocou a reforma dos estudos filosóficos no Ocidente – a raiz e o alicerce de todo o magistério escolástico, na síntese de várias filosofias “sob a armadura externa do platonismo e o impulso interior do cristianismo” (A. A. de Pina, Pressupostos do Pensamento de Santo Agostinho, 1958, pág. 9) que constroem uma doutrina humanista, teocêntrica e interiorista. A referência a esta doutrina atinge as raias do exclusivismo, a pontos de Pedro Lombardo, no Livro das Sentenças, apoiar as suas deduções mais de mil vezes no magistério de Santo Agostinho, que modelou o cristianismo ocidental na lealdade à revelação, e definiu um modelo de vida para as comunidades de fé, como se acha atestado na adesão que múltiplas comunidades (incluindo os cabidos catedralíceos) dera à Regra de Santo Agostinho que, por isso, padronizou os modos de vivência ética, moral e ascética de todos quantos, alguma vez, se propuseram ser fermento segundo o entendimento agostinho da prática da vida cristã.

A filosofia surge, no augustinismo, como um prolegómeno da teologia e da virtude religiosa. O conhecimento é possível – há mesmo uma íntima aliança da fé e da razão – entender para crer, crer para entender (Serm. 43, 79) e só o sábio é feliz. Contudo, o sábio é o que alcança ver a verdade, não com os olhos do corpo, mas com “a mente purificada e toda a alma aderindo a ela” (De Civitate Dei, VIII, 6). A sabedoria é a vivência prática das virtudes cardeais e teologais. O valor da percepção imediata – crer somente pela certeza do que aparece – não se exaure aí; pelo contrário, ela institui-se como degrau para o entendimento mediato, sob pena, ou de um pietismo, ou de um racionalismo extremes, que não conduzem ao conhecimento da experiência interna, onde a plena metafísica da luz ilumina a alma em sua derradeira adesão ao espírito da sabedoria. A metafísica da luz, ou da iluminação, torna Santo Agostinho simpático aos olhos dos místicos judeus e muçulmanos, pois também estes, orientados pela intelecção platónica, tendem a essa metafísica, como ocorre em Avicena e em Gabirol. O combate ao maniqueísmo permite uma revisão e um esclarecimento das aporias ontológicas e cosmológicas suscitadas pelo helenismo, e conclui por uma ideia de mundo como criatura divina, se bem que decaída por humana fragilidade, mas destinado a suportar a promessa da cidade celeste.

O magistério agostinista ecoou cedo na Lusitânia. No século IV, o magistério do Hiponense já era entendido, nem de outro modo se explica que, jovem ainda, o bracarense Paulo Orósio se decidisse a sair do eido natal para efectuar consultas junto do santo, em Hipona, do qual obteve uma epístola contra as doutrinas priscilianistas e origenistas (P. L., 42, págs. 669-684). Foi na abordagem à problemática da redenção e às dificuldades históricas da libertação, que Santo Agostinho tocou a espiritualidade lusitana. Não importa muito saber se o providencialismo de Agostinho depende de Orósio, ou se Orósio se limitou a aduzir um suplemento de prova ao providencialismo; certo é que a teoria providencialista, destinada a grande radicação no saber da humanidade, se formulou neste encontro entre o bispo africano e o presbítero lusitano. Depois disso, o pensamento de Agostinho é tido como referencial, como o prisma por onde a patrística e a escolástica portuguesas, já antes, já depois da instauração da nacionalidade, inteligem a revelação. O hiato das invasões muçulmanas, ao perder alguma memória das obras de Agostinho, abre as portas a uma literatura espiritual augustiniana – os apócrifos – que, ao atingir elevado clímax, passa muito bem como se do santo fosse. A profusão de escritos augustinistas e augustinianos nas livrarias medievais portuguesas é sensível, orientando os escolares das principais casas de estudos: Alcobaça, Santa Cruz de Coimbra, Braga, Évora, São Vicente de Fora. A frequente citação de trechos augustinistas e augustinianos nos escritos dos nossos mais considerados escritores medievais, nem sempre supõe a distinção da clara autoria de uns e de outros, como se prova pelo muito citado Livro do Solilóquio (B. N. Lx.ª, cód. Alc. CCLXXIII/198), obra apócrifa (tradução de um escrito intitulado Soliloquia animae ad Deum, datado do século XIII, mas onde o espírito do augustinismo prevalece através das incidências do augustinianismo de Hugo de S. Victor), que o padre Sena Freitas ainda atribuía ao bispo de Hipona quando (1897), traduziu de novo aquela obra para a língua portuguesa.

O influxo do augustinismo, a princípio tão presente em filosofia como em teologia, tendeu a dispor de maior presença na teologia, depois que, no século XIII, Aristóteles obteve o primado na escolástica ocidental.»

Pinharanda Gomes («Augustinismo», in Dicionário de Filosofia Portuguesa).


 


«Sim, [Alberto, Tomás, Boaventura e Duns Scot] eram monges, intrusos na comunidade universitária! Como poderiam ser típicos da corporação que rejeitava sua presença? Longe de ser produtos característicos da universidade da época, como o acredita o sr. Pinheiro, esses monges severos e devotos, provindo de um meio social diferente, com hábitos e valores contrastantes, se sobrepunham de tal modo àquele ambiente que só a duras penas puderam ali sobreviver e, às vezes postumamente, triunfar. A magnitude de suas realizações intelectuais deve-se menos à atmosfera universitária do que à força de suas personalidades majestosamente centradas, firmadas na fé e na integridade de propósitos, em contraste com a sofisticada tagarelice de seus colegas, muitas vezes tecnicamente admirável, mas com tanta freqüência inspirada em motivos fúteis e na sedução das novidades heréticas. Quando hoje enxergamos a universidade medieval como um momento luminoso na história da educação, é em grande parte porque os melhores homens que ela rejeitou projetam retroativamente sobre ela o brilho da sua glória, e não ao inverso. E essa glória, sem dúvida, vem mais das ordens monásticas que os formaram, que do meio social onde ingressaram já adultos, fortes o bastante para desafiá-lo e, a longo prazo, vencê-lo.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).

 


«A UNIVERSIDADE é a instituição de cultura que pretende dar ao homem mais elevado grau de consciência. Inclui, portanto, as escolas de alto estilo onde se ministra o ensino da arte, da filosofia e da religião. Esquecê-las ou excluí-las, pelo facto de ultrapassarem o nível politécnico da economia nacional, corresponderia a sancionar uma total subversão de valores.

A unidade teorética do sistema de cultura só pode ser encontrada na relação do pensamento humano com a realidade absoluta; problemático é apenas o fundamento da opção por um determinado modo de vida espiritual.

Quem tiver do Universo uma visão teocêntrica e considerar a religião como a mais alta actividade espiritual, dará justamente a preferência à Faculdade de Teologia. No nosso país, à Faculdade de Teologia Católica.

Mas se é certo que a teologia católica é incompatível com algumas doutrinas filosóficas, verifica-se também que ela não é obrigada à adopção de um sistema previamente elaborado: respeita a diversidade mental dos homens e dos povos, permite a formação de filosofias nacionais. De tal ponto de vista não parece diminuído o campo de acção da Faculdade de Filosofia.

A Faculdade de Teologia tem os seus privativos estudos filosóficos, entre os quais avulta o aprofundamento do tomismo, de harmonia com o que aconselha a autoridade eclesiástica; pode realizar trabalho idêntico ao de muitas escolas superiores que na Europa deram ao pensamento católico um brilho talvez desconhecido entre nós; tem a missão especial de prestar ao alto clero uma cultura superior, indispensável ao prestígio da religião junto das actividades laicas; e do ponto de vista pedagógico como do ponto de vista político, pode manter com a Faculdade de Filosofia uma relação concordante.

A Faculdade de Teologia depende, porém, total ou parcialmente, da jurisdição eclesiástica; encontra-se, de certa maneira, afastada do Estado; não lhe compete exercer uma função central no sistema do ensino público. A honra do clero depende da isenção perante as actividades profanas incompatíveis com a hierática função sacerdotal; não deve o clero intervir no ensino prático, que relaciona a economia com a cultura, o trabalho profissional com a vida espiritual, os meios com os fins.

À Faculdade de Filosofia melhor compete a centralização das experiências pedagógicas e das investigações filosóficas que, pelas suas características perturbadoras, afectam a normalidade das outras escolas; nela se refletirá, dinâmica e vivente, a unidade da cultura nacional. Assim se determina o lugar desta escola no plano da Universidade

Álvaro Ribeiro («O Problema da Filosofia Portuguesa»).

 




«Nem a Filosofia Portuguesa se defende como uma coisa, embora seja atacada quase sempre como tal. Defender a existência e originalidade da Filosofia Portuguesa é defender, para portugueses, a autonomia do pensar e do falar. É essa autonomia que a Universidade dos Professores não pode ou não quer defender.

(...) Da relação mestre-discípulo conheço, apenas um caso, de resto tão significativo que chegou a dar forma nova à própria instituição e seu regime, ao mesmo tempo que individualizou um grupo de pensadores, continuadores das constantes dum pensamento comum, embora muito diferenciado nas suas posições doutrinárias. Refiro-me a Leonardo Coimbra.

(...) Um dos seus discípulos mais próximos, José Marinho, escreve no livro de "testemunhos dos seus contemporâneos": "Leonardo Coimbra surge, pois, como um Mestre no mais nobre sentido da palavra. Isto quer dizer que jamais transmitiu saber feito, nem método para o alcançar". Esta afirmação só se entende, fundamentadamente, em paralelo com a realidade patente no nosso actual ensino universitário – em que o saber transmitido aos alunos não possui qualquer relação de existência, nem no espírito do que o transmite, nem na alma daquele a quem se destina, é um saber feito, isto é, acabado, morto. Daí, o facto evidente de se preferir, nas nossas “Faculdades de Filosofia”, sobretudo as disciplinas da história do pensamento e se ensinarem os métodos científicos do conhecimento como fundamentos do próprio saber.

(...) Assim como a via da relação mestre-discípulo excede os limites normais da Universidade a ponto de, quando se verifica, chegar a romper as normas estatutárias, a via da cultura fica aquém da natureza e missão próprias da instituição medieva. A via da cultura é (…) a que está mais próxima do conhecimento e mais afastada do saber. A cultura é, sob certo aspecto, saber objectivado e permite, portanto, que as relações concretas da elaboração de pensamento derivem e se integrem no esquema exterior e abstracto do acto geral do conhecimento, nas relações menores de sujeito-objecto.

(…) o estudante que não encontre durante o curso um mestre, vivo em si próprio, ou nas suas obras, não completou a sua formação embora leve consigo a garantia da sua formatura.»

Afonso Botelho («O Drama do Universitário»).

 


«Não vamos historiar a evolução da universidade portuguesa desde [os] tempos [medievais] em que era formada, institucionalmente pela corporação dos estudantes, e culturalmente pela tradição aristotélica. O seu processo de transformação terá principiado com a fundação do Colégio das Artes, e com a difusão entre nós do espírito humanista que impregnava a Renascença italiana. Mas foi sem dúvida a entrada em Portugal, em períodos de menor consciência dos valores nacionais, de duas correntes filosóficas francesas, que lhe deu um rumo diferente da sua primitiva e tradicional substância. Rumo na verdade tão diferente, que dir-se-ia outra instituição, com certeza divergente e até antagónica desse rótulo amplo, ousado e de longo alcance que é a designação de universidade.

Na verdade, foram as reformas do Marquês de Pombal, convertendo a universidade portuguesa às novas ideias do iluminismo e do enciclopedismo, e a do Curso Superior de Letras de Lisboa, em 1870, amoldado por influência de Teófilo Braga ao positivismo de Augusto Comte, que conduziram a instituição universitária ao seu condicionalismo actual.

Proclamada a República em 1910, constituíram-se as Universidades de Lisboa e do Porto, que, sob o influxo da mesma orientação positivista, foram factores de muita importância nesta degenerescência do espírito universitário.»

António Quadros («A Angústia do nosso Tempo e a Crise da Universidade»).

 

«Tanto no que respeita à personalidade, como no que respeita à Sociedade, a instituição universitária, pelo menos a partir da reforma do Marquês de Pombal, opõe-se ao livre desenvolvimento do princípio de individuação, que na comunidade política, se designa por nobilitação.

(...) Com a perda da tradição aristotélica na Filosofia, perdeu-se também o princípio fundamental da educação da nobreza, daquela nova nobreza que justificou a maior evolução e dilatação da Pátria.»

Afonso Botelho («O Drama do Universitário»).

 

«Sob a influência, por um lado, da crescente complexidade da vida contemporânea, exigindo uma cada vez mais intensa especialização profissional, e por outro lado, das ideias positivistas, proclamando a redução da filosofia ao saber fragmentado e desunido das ciências particulares, isto é, do saber espiritual ao saber material, a universidade tornou-se, pura e simplesmente, num aglomerado de escolas técnicas.

Estas escolas técnicas, visando quase exclusivamente a preparar o aluno para a profissão, realizam assim apenas uma das instâncias da educação do homem, a que nos referimos há pouco: a instância do interesse individual, independente de qualquer outra finalidade, princípio ou ideia. Quanto à segunda instância, a do interesse universal, em vão a podemos procurar na universidade profissionalista de hoje. Ela está ausente – e esta ausência dir-se-ia não ser reconhecida pela maioria dos professores que, emparedados no seu especialismo, não sentem a inquietação espiritual das gerações de estudantes que lhes passam sob a cátedra. Inquietação espiritual que o liceu, com o seu enciclopedismo dispersivo, e que a idade liceal, menos dada à reflexão do que aos jogos e aos anseios da adolescência, não souberam ou não puderam resolver ou encaminhar. A chamada crise da universidade corresponde acima de tudo, quanto a mim, ao vazio deixado pelo desaparecimento das antigas funções culturais que lhe competiam. A Universidade abandonou a Verdade para servir a Utilidade.»

António Quadros («A Angústia do nosso Tempo e a Crise da Universidade»).



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«(…) todo o português é, hoje, por estado normal, um examinando. O exame estendeu as suas raízes muito para além dos limites da escola e (…) se seguíssemos a sua sombra, caminharíamos por regiões insuspeitas e insuspeitáveis. Talvez chegássemos à mais alta hierarquia temporal e até religiosa. Quero com isto dizer que o ambiente de prova de exame, acalenta o estado anímico do português, em todas as suas manifestações, quer profissionais, quer políticas, quer religiosas. Talvez não seja difícil sustentar a tese de que o próprio Deus é hoje mais usualmente crido e sentido como Supremo Examinador do que como Deus de Amor

Afonso Botelho («O Drama do Universitário»).

 

«O fundador da lógica, Aristóteles estruturou o Organon como uma analítica, uma gramática analítica, pela qual se aprende a operar com o pensamento, para se atingir o conhecimento e descobrir a verdade. A lógica formal estrutura-se no conhecimento das palavras, das locuções, dos juízos e das proposições, da mecânica relacional dos tópicos e analíticos. A disciplina não é toda a ciência; como Aristóteles supõe, a analítica (lógica) é o orgão ou instrumento epistemológico, a arte de pensar. O propósito consiste em saber inteligir por demonstração, e a demonstração é função do silogismo (P. da Fonseca, Commentariorum Metaphysicorum, III, 17). É da lógica formal – sistema de regras a que o pensamento deve obedecer para não errar e atingir a verdade – que descolam as lógicas simbólica e material, ainda que o conceito de lógica simbólica (logística) se ache de algum modo anunciado na aritmética de Platão (Cármides, 165 e). Orgão da filosofia, a lógica não entrou na escolástica de uma única vez. A herança do Liceu aristotélico só parcialmente foi compendiada por Porfírio e Boécio, que retiveram os prolegómenos do Organon (Categorias e Periermeneias) os quais, sob a genérica designação de logica vetus, ou de logica antiqua, foram a lógica dialéctica conhecida pela escolástica até ao século XIII. A logica nova, abrangendo os demais livros orgânicos (Analíticos, Tópicos e Elencos) foi um achado da filosofia árabe, cujo aristotelismo transitou para o ocidente cristão através das traduções toledanas e se reformulou no aristotelismo parisiense do século XIII. O acesso à lógica orgânica não significa que em todas as escolas o texto aristotélico fosse estudado directamente. Pelo contrário, inaugura-se uma época apelidável de “lógica compendiária”. Os mestres e os escolastas elaboram compêndios que, fundados nas regras de Aristóteles, demandam outros exemplos, outros suplementos de prova, e modos cristalinos de transmitir a docência da fonte, pois se considerava que a redacção do texto aristotélico não é de fácil inteligência, dado o esquematismo das lições. A lógica compendiária continua o processo isagógico de Porfírio, ampliado aos outros livros orgânicos. Serve para iniciação na dialéctica, coroa do trívio, e há comunidade de opinião de que a tradição compendiarística foi iniciada por Pedro Hispano, com as Summulae Logicales, em doze livros, objecto de inúmeras edições e cópias, e de interpretações, como se de texto principal se tratasse. As Súmulas Logicais circularam nas escolas europeias, foram vertidas para grego e para hebraico e só foram suplantadas, já o século XVI ia alto, pela nova lógica compendiarística de Pedro da Fonseca. A escolástica renascentista tende a controverter o lugar da lógica aristotélico-peripatética no curso filosófico, de tal forma que, num centro humanístico como Paris, Pedro Ramo declara forte oposição crítica ao método analítico tradicional. A defesa de Aristóteles foi tomada por António de Gouveia, que, no Pro Aristotelis (1543), contra Pedro Ramo, se orienta para um aristotelismo genuíno, capacitado do conhecimento directo do texto original. O aristotelismo renascentista não perde o carácter isagógico, e são isagoges os tratados de Belchior Beleago (Logica Aristotelis, 1548) muito dependente de Porfírio, de Nicolau Grouchio (Aristotelis de Demonstratione, 1549) e de Jorge Trapezuntio (Dialectica, 1551) que preparam a lógica conimbricense, da qual se constituiria matriz o Colégio das Artes, através do Curso Conimbricense. Dentro do Curso, a lógica em compêndio sofreu vária demora, de tal forma que a isagoge respectiva, In Universam Dialecticam, de Sebastião do Couto, só foi impressa em 1604, sem prejuízo de, nos cursos, a lógica ocupar os três primeiros anos, em que o primeiro discorria em torno de Porfírio; a lógica nova estudava-se nos anos seguintes, e decerto que, na escola, havia, pelo menos, um texto de referência. A lógica conimbricense, e sem prejuízo do valor didáctico do tratado de Sebastião do Couto, acha os frutos de rigor na obra lógica de Pedro da Fonseca, que a elaborou à luz dos pressupostos do método conimbricense. Fonseca é um lógico; e, quando se considera que a metafísica é uma metalógica, somos compelidos a sugerir que Fonseca é o lógico, e que esse carácter se continua nos Comentários à Metafísica. Não obstante, a identificação de Fonseca como lógico faz-se pela Isagoge Philosophica (1591, trad. port. de J. Ferreira Gomes, 1965) que visa substituir Porfírio na iniciação à lógica, e pelos oito livros das Institutionum Dialecticarum (1564, trad. port. de J. Ferreira Gomes, 1964). Ambas as obras correram mundo, servindo nas escolas europeias quase até aos fins do século XVII, contando-se 53 edições da Dialéctica até 1625, além de muitas outras da Isagoge. Ambos os livros serviram de compêndios a sucessivas gerações de estudantes portugueses, europeus e ultramarinos, estando a sua magistralidade professada em livros de alguns dos principais filósofos do século XVII europeu. O método disputativo conimbricense, atento à demonstração lógica, mas considerante dos factos experimentais, tornou-se método intelectual, se bem que, em tempo, solicitasse uma revisão. A lógica antiaristotélica (ela já se enunciara na disputa longínqua dos Universais) persistiu ao ponto de, no século XVIII, se considerar vencedora da lógica aristotélica. A vitória é tema que suscita distinguo, porquanto, mesmo quando se minorou a lógica formal, a metodologia básica transitou para as novas lógicas. As figuras silogísticas da lógica aristotélica permanecem matematicamente válidas. Um dos defeitos do septívio foi o de não se efectuar uma iniciação simultânea em gramática e em matemática, por forma a que o aprendiz de filosofia obtivesse uma simultânea iniciação em lógica formal e em lógica matemática. Em Portugal, e no resto da Europa, o enterramento da lógica formal não foi fácil, nem resultou, ainda quando o juízo tivesse sido afectado por efeito da paranóia alógica. A lógica é o remédio do perfeito juízo.»

Pinharanda Gomes («Lógica», in Dicionário de Filosofia Portuguesa).

 



Já antes da fundação da Universidade se ensinava Filosofia entre nós

Como nas outras nações da Europa, a Universidade Portuguesa tem a sua origem nas escolas das catedrais e dos mosteiros, no entusiasmo pelas letras, que os sábios, vindos de Constantinopla, aumentaram no continente europeu, e nas indefectíveis aspirações da inteligência humana.

Logo depois da expulsão dos Mouros, segundo refere o nosso cronista Fr. António Brandão, o Bispo D. Paterno «com recado del-Rei[1] e do cônsul[2] se veio a Coimbra e tomou posse de todo o Bispado e Diocese, e juntamente com o conde deu ordem a um seminário de moços, na própria Sé Episcopal e Igreja de Santa Maria da mesma cidade, a estes doutrinou e foi dispondo para receberem o grau de Presbítero».

Um outro documento, igualmente pouco preciso, mas de não somenos valia é o testemunho de Resende na vida de S. Fr. Gil, cujo nascimento, ou fosse em 1155 como agrada a uns, ou em 1190 como seguem outros, foi em todo o caso anterior ao estabelecimento da nossa Universidade. O lugar a que aludimos diz assim: «Beatus Aegidius magistros coepit frequentare à prima statim pueritia Conimbrigae, in qua urbe, utpote ea tempestate Lusitanorum Regum sedes, litterarum studia tunc vigebant». É de crer que na expressão litterarum studia se compreendesse o estudo da Lógica.

Mais preciso que o de Resende é já o testemunho de Fr. Luís de Sousa.[3] «Era de Coimbra, diz o eminente Escritor, assento da Corte, e juntamente havia nela mestres de boas artes e ciências, porque El-Rei D. Sancho (o primeiro), como recebeu de seu pai o Reino pacífico e rico, procurou ilustrá-lo e acrescentá-lo por muitas vias, e não lhe esquecendo a das letras, que é a que mais lustre dá aos homens e às províncias». Desta citação podemos já concluir para a época em que, talvez primeiro, se estabeleceram entre nós escolas públicas de boas artes e ciências; e tudo nos induz a crer que nestas expressões se inclui o estudo e ensino público da Lógica. Mas continuemos.

Antigamente o nome de Gramático não se dava tão somente aos homens versados na inteligência das línguas, mas aplicava-se também aos que se entregavam a outros ramos do conhecimento humano. Bluteau, falando com respeito à palavra Gramático, diz no seu Vocabulário, entre outras coisas, a seguinte: «João Filipono, famoso Filósofo, que floresceu no tempo de Justiniano, ainda que cientíssimo em outras matérias (como consta da Biblioteca de Fócio) foi chamado Gramático».

Se quiséssemos dar semelhante noção à palavra Gramático, teríamos de concordar em que já antes da fundação da Universidade se ensinava Filosofia entre nós; porque Fr. Francisco Brandão afirma[4] que já: «no tempo antecedente à fundação da Universidade se ensinava nas Catedrais do Reino Gramática: na Sé de Lisboa a estudou Santo António, como escreve S. Bernardino em sua vida; e ainda em toda a Espanha, antes que houvesse Universidade nela, se faziam livrarias nas Sés Catedrais e Igrejas Paroquiais, para estudarem os que se ocupavam nas letras, de que há muitos exemplos na História deste Reino». Este testemunho pode ser reforçado com outro, de Nicolau de Santa Maria na Crónica dos Cónegos Regrantes[5].

Mais precioso do que os anteriores é o testemunho de Fr. Manuel dos Santos[6] que, falando de Fr. Estêvão Martins, Abade de Alcobaça até 1276, diz assim: «ordenou que se lesse para sempre na casa, Gramática, Lógica e Teologia». A primeira lição pública leu-se em 11 de Janeiro de 1269, sendo rei D. Afonso III. A frequência, porém, e o ardor destes estudos diminuiu com a fundação da Universidade.


D. Afonso, o Bolonhês, pai de D. Dinis, trouxera de França grande gosto pelas letras e pelo argumento de nossos estudos. Escolheu para mestre de seu filho a D. Américo, varão de boas partes e de muitas letras, o qual foi gratificado com a nomeação para Bispo de Coimbra.

A vigilância e cuidados, de que cercaram a infância do Rei Lavrador, não caíram em terreno sáfaro e estéril. Dentro em pouco nasceram muitos frutos, que chegaram ao seu perfeito estado de madurez. No reinado de D. Dinis fundou-se em Lisboa a nossa Universidade. Sobre a data da sua fundação oiçamos as Memórias Ms. de Figueiroa: «Não consta do tempo certo, em que el-Rei D. Dinis fundou a Universidade, porém, sem dúvida que ao menos alguns meses antes, do em que se passou a Bula de Nicolau IV, estava já fundada não tanto no material como no formal; por quanto na dita Bula se declara que el-Rei D. Dinis já a tinha plantado em Lisboa, e a mesma Bula se dirige à Universidade, o que é argumento de que já a havia ainda também de que a mesma lhe suplicou as graças e os privilégios que o Papa lhe concede». Apesar disto, ninguém duvida de que já pelos fins do século XIII, existisse a Universidade. E também devemos observar que não foi a Universidade Portuguesa das últimas, que se estabeleceram nas Nações cristãs da Europa; pois que, segundo o padre Francisco de Santa Maria, foi a Universidade Portuguesa a mais antiga, confirmado por Breves Apostólicos, exceptuando a de Paris, Oxónio e Bolonha.

Ainda mesmo que prescindamos dos Estatutos[7] dados por D. Dinis à Universidade, poderemos facilmente elevar-nos ao conhecimento da sua organização científica; não só porque, Francisco Brandão, mencionando dos lentes para cujo honorário contribuíam os comendadores de Soure e Pombal, nos dá elementos para isso; mas também porque é explícita a este respeito a Provisão de D. Dinis de 1309.

Por esta Provisão era a Universidade mudada de Lisboa para Coimbra e dela nos consta ter-se estabelecido desde o princípio o estudo da Dialéctica. A provisão é expressa: «Item in Facultatibus Dialectica et Gramaticae doctores esse volumus...». Este ponto está portanto superior a toda a hesitação.

Que Dialéctica fosse ali ensinada não achámos outro meio de o especificar, a não ser o processo indirecto, de que, quase sempre, teremos de lançar mão em todas as investigações posteriores, pertencentes a este primeiro período da nossa História Filosófica.

E na verdade, sendo comum aos principais estabelecimentos científicos da Europa a mesma tendência e o mesmo movimento, e como todos eles se desenvolviam debaixo do impulso romano, estudada a questão com relação ao centro literário mais notável, não será difícil acomodar em seguida as ideias apresentadas ao ponto de que aqui se trata.

Antes, porém, de encetarmos o processo indirecto de que prometemos lançar mão, havemos de expor sempre todos os documentos ou indícios directos, que estiverem ao nosso alcance. Neste ponto ditaremos, unicamente, um testemunho de Francisco Brandão, que vem no tomo V da Monarquia Lusitana. Falando dos homens notáveis que concorreram no reinado de D. Dinis acrescenta ele: «Estes e outros semelhantes sujeitos ensinaram a Medicina; e o mesmo fazia o Papa João vigésimo primeiro no tempo que assistiu no Reino, por nos constar que foi ele o que primeiro compôs Lógica, que se lia em Hespanha em todas as Escolas, sobre ser Médico eminentíssimo...». É certo, como já observámos na primeira secção, que as Súmulas de Lógica de João XXI foram adoptadas em muitas escolas, que assim o atestam muitos dos historiadores de Filosofia. Qual porém fosse a professada por Pedro Julião naquele livro, lá o dissemos também.






Posto isto vejamos o que sucedia em Paris.

(...) Antes de dominar em Paris a Dialéctica de Aristóteles, era ensinada uma outra, muito acreditada na meia idade, e atribuída a S. Agostinho. O próprio Santo, no livro primeiro, capítulo sexto das suas Retractações, nos adverte de que escrevera uma Gramática e uma Dialéctica. Suspeita-se, porém, que o lugar citado fora ali interpolado por mão estranha; porque a Dialéctica que lhe era atribuída se ressente das doutrinas dos Estóicos, a que o Santo Padre não era muito afeiçoado[8].

Para curar esta suspeita disseram outros que a Dialéctica em questão fora feita por um escritor do tempo de Santo Agostinho e que, para dar crédito ao livro, se valera daquele alónimo. O que é certo, porém, é que no tempo da fundação da nossa Universidade se lia já em Paris a Dialéctica de Aristóteles[9].

É verdade que Launnoy reuniu os testemunhos de trinta e sete Padres contrários às doutrinas de Aristóteles, sem ainda contar as opiniões autorizadas de S. Bernardo, de Victorino, de Roberto Corceão, e de João Tritémio[10]; ainda mais: é verdade que em 1209 o concílio de Paris tinha proibido as obras do fundador do Liceu; no entretanto, nessas mesmas condenações se tinham asserenado as iras e disposto os ânimos para o triunfo do Estagirita. Para confirmação do que deixámos dito, sobejam-nos os documentos; e se não, leiam-se algumas cláusulas do que em 1215 estatuía Roberto, Legado da Sé Apostólica e encarregado da reforma da Academia Parisiense: «Leiam, diz o Legado, os livros de Aristóteles da Dialéctica, tanto da antiga como da nova – ad usum scholae». Um pouco depois acrescenta: «Não leiam os livros de Aristóteles da Metafísica e da Filosofia Natural, nem sumas dos mesmos, nem os livros do mestre David Dinant, ou do herege Almarico, ou de Maurício Hispano». É, pois, claro que em 1215 já se recomendava, ou melhor, já se estatuía em Paris a leitura da Dialéctica de Aristóteles.

Posteriormente Gregório IX, em 1231, mandou que os Livros Naturais, condenados no sínodo provincial de Paris, não fossem lidos: – quosque  examinati fuerint et ab omni errorum suspicione purgati. Em sendo, portanto, expurgados de erros os livros de Aristóteles, ainda os de Física e Metafísica podiam ser ensinados publicamente nas escolas. Daqui à aprovação completa das obras de Aristóteles não vai muito.

Não obstante estas disposições de Gregório IX, tão favoráveis ao Filósofo Grego, a reforma operada em 1255 por Simão, Legado da Sé Apostólica, no tempo de Clemente IV, torna a pôr em vigor as disposições feitas, pelo citado Roberto, em 1215, isto é, proibiram-se os livros de Física e Metafísica de Aristóteles, e recomendou-se a sua Dialéctica.

Esta é a última reforma, que pudemos alegar até 1325, ano em que morreu D. Dinis (...). Agora, confrontando as disposições do concílio provincial de Paris com a reforma ultimamente apontada, fácil nos será avaliar o favor que as obras de Aristóteles iam recebendo das escolas de Paris. É certo que em 1255 só a dialéctica do Fundador do Liceu era admitida e recomendada; mas não nos devemos esquecer do que Rigordo deixou escrito, referindo-se aos princípios do século décimo terceiro: «Naqueles tempos», diz ele, «liam-se em Paris alguns livros, que se diziam compostos por Aristóteles, os quais tratavam da Metafísica, e, transportados de Constantinopla, tinham sido vertidos para latim. Estes livros foram queimados a título de darem ocasião de heresias» – et, continua, o mesmo autor, sub poena excommunicationis cautum est in eodem concilio (1209), nequis eos de cetero scribere et legere praesumeret, vel quocumque modo habere».




O facto de Alberto o Grande, e S. Tomás de Aquino, terem comentado Aristóteles deu muito que fazer aos eruditos, que se empenhavam em conciliar o procedimento de tão ilustres escritores com o respeito devido à Santa Sé. Com efeito, Alberto o Grande, nascido em 1193, traduziu, completou e comentou Aristóteles pelo meado do século treze, quando era ainda proibida a leitura da Metafísica e dos livros da Filosofia Natural do Estagirita; e S. Tomás de Aquino, nascido em 1255, seguiu a mesma direcção, e empregou todos os esforços do seu admirável talento para conciliar Aristóteles com o Evangelho.

Esta antinomia entre as ordens mais terminantes da Igreja e os actos dos seus filhos mais predilectos tem dado, como dissemos, muito que pensar aos eruditos. Muitas das explicações dadas são inadmissíveis. Não é provável que os dois ilustres escritores desconhecessem as disposições do concílio, nem as determinações do Papa. Também não é crível que eles vissem naquelas proibições, um preceito local, meramente aplicável às escolas de Paris. Menos inaceitável é a concessão de uma licença especial, com quanto não tenhamos notícia da petição de semelhante licença, nem da sua concessão. Escritores há que explicaram a contradição aparente de um modo, se não verdadeiro, ao menos mui atendível. Segundo estes, os Dominicanos e Franciscanos tinham dado à Igreja provas veementes da sua dedicação. A maior liberdade do ensino naquelas ordens, devia, por isso, parecer menos perigosa à Mestra do Cristianismo. Sucedendo assim, os dois Dominicanos quiseram mostrar que as heresias espalhadas em Paris não provinham das doutrinas de Aristóteles; mas sim dos comentadores árabes. Por esta forma os seus esforços, longe de serem condenáveis, miravam ao fim das disposições da Igreja, com as quais, só aparentemente, pareciam estar em contradição.

Isto posto, apressemo-nos a tirar as consequências.

Admitindo que o ano de 1290 fosse o primeiro da nossa Universidade, é de crer que a doutrina adoptada na escola de Dialéctica, ali, como vimos, estabelecida desde o princípio, fosse a Aristotélica.

Levam-nos a isto, não só as relações existentes entre o nosso País e a França[11], mas também a preponderância das escolas de Paris sobre as dos outros países. Acresce a estas razões a suma influência que a Sé de Roma exercia naquele tempo sobre as Universidades Cristãs. Ora sendo isto assim, e sabendo nós que desde 1215 foi a Dialéctica de Aristóteles mandada estudar em Paris, nenhuma dúvida podemos ter em admitir como sumamente provável a efectiva adopção da Dialéctica Aristotélica ou de Sumas das mesma Dialéctica, nas escolas da nossa Universidade.

Muito nossa vizinha está a Espanha. Mas a Espanha foi um dos canais por onde as obras de Aristóteles penetraram no Ocidente, e o nome de Aristóteles foi mais devidamente aclamado nas escolas de Sevilha e Córdova, do que nas restantes do ocidente da Europa; porque, ainda apenas era conhecido o Organon na Universidade de Paris e já as versões das outras obras de Aristóteles eram examinadas, estudadas e comentadas nas escolas de Espanha. De modo que, ainda por este lado, somos obrigados a aceitar a mesma consequência.

Mesquita de Córdova

Enfim é um axioma a seguinte proposição – nihil operatur per saltum. Ora aplicando este princípio ao primeiro período, compreendido nestes estudos, com a observação constante do que for aparecendo, poderemos, com a devida discrição ir avaliando as conjecturas aplicáveis aos anos anteriores.

(In Lopes Praça, História da Filosofia em Portugal, Guimarães Editores, Lisboa, 3.ª Edição revista, 1988, pp. 99-106).


[1] De Afonso VI de Leão.

[2] D. Sisnando.

[3] Hist. de S. Dom., Parte 1.ª, L.1-2, cap. 13.

[4] Monarq. Lusit, Part. V, L.16, cap. 72.

[5] Part. II, L.7, cap. 72.

[6] Alcobaça Ilustrada, pág. 100, 101 e 102.

[7] Os primeiros Estatutos da Universidade encontram-se na Monarquia Lusitana, tom. 5.º, p. 531. Dizem estes Estatutos: Ítem in facultatibus Dialecticae et Grammticae ibidem Doctores esse volumus, et Magistros, ut per alterum debitum fundamentum, et per....... acutiorem recipiant intellectum, quid ad majores scientias desideraverit». Sobre a data destes Estatutos leiam-se as páginas 378 a 380 das Memórias Cronológicas da Universidade, por Francisco Leitão Ferreira.

[8] Vossio, De nat. et const. Log., c.8, § 24, p. 38.

[9] Tratando do século XII, no tomo II da História crítica de Filosofia, escreve Brucker, a página 678, o seguinte: «Porém assim como no século antecedente (XI) só se liam a dialéctica de Santo Agostinho e os escritos de Aristóteles, vertidos para latim por Boécio e Victorino; assim também neste século não se conheciam outras fontes de erudição dialéctica».

[10] Launnoy, De arria Arist. in Acad. Paris, fortuna, cap. III.

[11] Na Crónica, de D. Nicolau de S. Maria, na segunda parte, a página 58, vem o texto de uma doação que tem aqui lugar. Diz assim: «Em nome de Cristo saibam todos os que esta carta de doação ouvirem ler; que eu D. Sancho, Rei de Portugal e do Algarve, de minha própria vontade dou e concedo ao mosteiro de Santa Cruz quatrocentos morabitinos da minha fazenda, para sustentação dos Cónegos do dito Mosteiro, que estudam em partes de França. Foi feita esta carta a 14 de Setembro de 1199». No lugar citado lê-se também a mesma doação em latim.

Bastaria, além disso, a certeza que temos de que muitos dos nossos lá iam estudar.


Mosteiro de Santa Cruz (Coimbra).