quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Semântica

Escrito por Álvaro Ribeiro








A etimologia, que outrora significou o estudo do falar étimo, do bom uso das palavras, é hoje considerada pela linguística positivista como investigação própria para determinar a história, a genealogia e a origem de cada vocábulo. Ao longo deste estudo, deveras interessante, vai o empirista classificando os vários processos de enriquecimento do vocabulário, e tornando mais conhecidas a derivação, mediante prefixos e sufixos, a composição, assinalada ou não pelo hífen, a enálage, ou mudança de categoria gramatical, e, por fim, a adopção de palavras estrangeiras. Observando, também, que muitas palavras mudam de som, de grafia e de significado em períodos determinados por documentos paleográficos, e que tais alterações nem sempre obedecem ao que se poderia chamar «leis da gramática clássica», o etimologista reconhecerá ser-lhe indispensável estudar psicologia e etnologia se escrever a história da língua.

A tendência dos etimologistas para recorrerem às explicações de tipo sociológico - as quais, aliás, despertam e avivam a imaginação dos estudantes -, bem como o preceito de não investigar para além do que está escrito, visto que sem documentos não se faz história, conferem àquela disciplina linguística um carácter de positividade que a torna incompatível com a tradição. Quando, porém, a diferença entre duas formas do mesmo vocábulo não pode ser documentada, os etimologistas aventam hipóteses e conjunturas para restabelecer a continuidade evolutiva da língua humana. Nuns casos recorrem às leis fonéticas, que foram estabelecidas empiricamente por indução, à custa de muitos exemplos, mas que consideram necessárias e infalíveis, como se houvessem sido estabelecidas por dedução, para postularem o terceiro termo do raciocínio numa forma intermediária que, por ser hipotética, assinalam com um asterisco; noutros casos explicam a anomalia pelo fenómeno social da analogia, dando a esta palavra não um conceito rigoroso mas o de semelhança com o vocábulo que mais convier à fantasia do historiador.

Queremos, assim, esclarecer que nem os positivistas se contentam com os documentos escritos ou gravados, visto que também eles, nas horas difíceis, solicitam um terceiro termo para o raciocínio - uma hipótese - e ficam por ela obrigados a conceder aos que não são positivistas o direito de admitir a tradição. Na linguística, como em outras disciplinas, a exigência de hipóteses obriga a transitar da técnica para a ciência, e da ciência para a metafísica, se o estudioso quiser atingir as portas da verdade. A própria doutrina positiva, ao trasformar-se de positivismo fáctico em positivismo lógico, proclama que o combate decisivo à liberdade de pensamento há-de ser travado no campo da semântica.

A semântica é geralmente estudada como capítulo da linguística, ou como ciência auxiliar da linguística. A semântica analisa a significação das palavras, mas discute também as terminologias, as nomenclaturas, as cifras. Na medida em que for qualificado o movimento ascendente ou descendente da palavra através destas três classes, poderá a semântica fundir-se com a taxonomia para adquirir mais verdadeiro aspecto científico.





Tomando por modelo a nomenclatura das ciências, e das ciências aquela que está mais afastada do homem, a ciência que pode ser esculpida, gravada, desenhada ou escrita em sinais inequívocos, pretenderam muitos escritores engenhosos inventar uma linguagem capaz de ser aplicada a todas as disciplinas que obedeçam a um rigoroso determinismo. Na ambição de estenderem este método à psicologia, e portanto à manifestação da liberdade na consciência humana, os positivistas lógicos nem sequer consideram quanto escapam ao determinismo e à terminologia da razão os fenómenos volitivos e os fenómenos emotivos. O pensador atento resiste a essa coacção externa, atribuindo a cada palavra, e realizando, um significado livre de condicionalismo científico.

A dissociação, que o positivismo lógico pretende exigir, entre pensamento e linguagem, imediatamente repugna a todos os povos que tenham consciência das suas tradições culturais. Assim se explica que as reformas propostas pelos positivistas, por muito razoáveis ou razoadas que se apresentem, não logram completa ou duradoura efectivação. Elas actuam como influências perturbadoras da continuidade étnica e histórica, quer dizer, perturbadoras das íntimas, naturais e verdadeiras leis da nacionalidade (1).

Entende-se, perfeitamente, qual foi o intento dos positivistas quando procederam à separação matemática entre os estudos filológicos e os estudos filosóficos nos cursos universitários. Verificamos efectivamente que só os filósofos sem preparação filológica podem aceitar de bom grado os absurdos das utopias positivistas, absurdos que a linguística, na medida em que exprime as tendências da alma humana, reprova, desmente e contradiz. Visto, porém, que a projecção das utopias positivistas se dá nos três planos da razão, quer dizer, afecta tanto a razão teórica, como a razão estética e como a razão prática, poderemos calcular sem erro as nefastas consequências que a didáctica positivista projecta nas actividades sociais.

Sucessivamente discutidas as várias doutrinas da língua universal, da gramática e da lógica universal, que pretendiam subordinar todos os povos a uma sociologia abstracta, foi pelo pensamento nacionalista redescoberta, verificada e confirmada a associação da filologia com a filosofia, o que fora aliás lucidamente previsto por quem instituiu em Lisboa o Curso Superior de Letras. A filologia consiste na investigação dos factos, das leis e dos princípios de um certo idioma, ou de um grupo de idiomas, enquanto que o estudo do filósofo incide directamente sobre os problemas humanos, os segredos naturais e os mistérios divinos. A arte de filosofar desenvolve-se na mediação idiomática, exerce-se pelas categorias gramaticais e pelas categorias lógicas que o pensador aprendeu entre a infância e a adolescência, não se aperfeiçoa pelo colóquio em língua estrangeira, perde originalidade e a liberdade ao substituir a tradição pela tradução.

Cada homem exprime o seu pensamento através das significações e das estruturas de um idioma determinado, mas antes de exprimir teve de entender, interpretar e compreender a fluência discursiva do falar alheio. Se a fenomenologia da expressão interessa muito mais ao filólogo, dado a estudos de linguística, estilística e literatura, a gnosiologia da compreensão, por assim dizer, interessa muito mais ao filósofo, dado a estudos de semântica, hermenêutica e lógica. A alma humana, que está sempre em actividade, e que por isso mesmo padece no estado passivo de substância, reage significativamente, segundo as suas condições peculiares, a cada fonema directa ou indirectamente percebido.

Escola de Atenas, de Rafael


Consta já dos escritos aristotélicos o preceito benéfico de estudar a semântica para evitar equívocos, paralogismos e sofismas. Estava reconhecido no Organon o princípio da subjectividade, ainda que Aristóteles pretendesse limitá-lo ou corrigi-lo em proveito da objectividade linguística e da razão social. Nada há que altere a verdade de que a palavra corresponde muito mais a um conceito do que a um sentido ou a uma ideia.

Quando a palavra designa um objecto sensível, isto é, quando a palavra tem um sentido, pode estabelecer-se-lhe rigorosamente o significado, e anular o equívoco que talvez resulte do seu uso fictício ou metafísico. Se não houver o recurso de colocar o objecto ao alcance das mãos, ou ao alcance dos olhos, haverá pelo menos a possibilidade de representá-lo figurativamente. Para além do que os gramáticos chamam substantivo concreto cessa o domínio da verificação sensível, e levanta-se o problema de instaurar, para as outras partes do discurso, categorias lexicais, ou classes de palavras, novos critérios de estabelecer e verificar os respectivos significados (2).

Grande parte da obscuridade notável nos livros técnicos, científicos e metafísicos é proveniente da inexacta situação dos termos relativos, recíprocos e concomitantes. São relativos os contrários, os polares e os opostos. Os contrários afastam-se do eixo de simetria, como os números positivos e negativos; os polares tendem a encontrar-se no equador; os opostos estão separados por um diâmetro significativo do obstáculo que os equilibra.

Convirá que o escritor não substitua inconscientemente os contrários pelos polares, ou os polares pelos opostos. Reflectindo sobre o que significam a contrariedade, a polaridade e a oposição claramente designará os adequados nexos dos termos. Relacionar é, como a palavra diz, estabelecer novo laço entre termos conexos.

Entre dois pontos de referência pensamos o movimento, e a cada uma das espécies de movimento classificadas por Aristóteles corresponde uma ciência. Erram os que confundem a contrariedade com a contradição, mais ainda se enganam aqueles que chamam contraditórias às proposições complementares. A lei mental da enantodromia, formulada por Heraclito, afirma a complementaridade do real.

A precisão semântica dos termos é indispensável ao bom entendimento das relações. A relação é categoria superior à quantidade e à qualidade, conforme se observa no quadro de Kant, mas é ainda inferior à modalidade. A meditação sobre a modalidade reconduz o movimento ao pensamento, restaurando assim a lógica de Aristóteles (3).

Manuel Kant


Nem sempre há termos fixos que sejam garantia de firme relação, isto é, de afirmação, e ante o fenómeno da enálage, muito frequente em português, os linguistas afirmam que a classificação de partes do discurso, estabelecida já pelos velhos filólogos de Alexandria, não pode ser admitida com todo o rigor. Palavras há que podem exercer uma função diferente daquela que corresponde à classe a que pertenciam segundo um critério lexical. Este facto, reconhecido pelos gramáticos, não foi ainda considerado na análise sintáctica, exactamente porque é próprio da análise considerar menos as funções do que as substâncias.

No estudo do substantivo, ou da substância, dá-se a colisão entre a gramática e a semântica. Há a tendência para considerar substância a parte do discurso que na oração serve de sujeito, pois só assim se entende o haver classes de substantivos que, por não designarem objectos permanentes no espaço, estão muito longe das noções de estância e de substância. Esta categoria, que na lógica aristotélica era inferior, atingiu na ciência «moderna» um primado explicável pela subordinação do movimento ao espaço e ao tempo, seus abstractos, pela mensuração das distâncias, pelo progresso das matemáticas.

O estudo do ser imóvel, que é a máquina, foi anteposto ao estudo do movimento e do motor. A física aristotélica foi expulsa das escolas por verbalista e animista, enquanto a mecânica pretendia apoiar-se numa metafísica materialista. As doutrinas científicas do século XIX, repudiando gradualmente os esquemas atomistas, mecanistas e materialistas, tornavam possível o rejuvenescimento da física de Aristóteles.

Todo o conhecimento do mundo sensível, por muito importante que seja para a técnica, para a ciência e até para a metafísica, representa apenas uma parte, a menor parte, do que verdadeiramente interessa ao homem. O homem transcende esses limites, está muito mais atento às actividades insensíveis do que às substâncias sensíveis, porque pretende inserir a sua liberdade na realização de um destino.

Será, no entanto, conveniente notar, de passagem para outro assunto, o curioso problema dos géneros dos substantivos, isto é, da classificação em sexos diferentes de objectos que estão fora da biologia, fora da fenomenologia do nascer e do morrer. Se o positivismo fosse lógico, como pretende ser, não atribuiria desinência sexual às palavras que designam seres inanimados. A gramática usual persevera, porém, a exigir sem lógica a concordância em género (sexo) e em número.






Curiosa é a transferência de géneros, ou sexos, da biologia para a cosmologia, e a tão difícil problema dedicou Grimm, que além de filólogo era etnólogo e mitólogo, um estudo de merecida celebridade. O problema continua, porém, insoluto, pois não sabemos qual a razão de atribuir género gramatical a entes sem características anímicas, a entes que nem sequer por alegoria podem merecer atributos de masculinidade ou de feminilidade. Se soubermos ler, com a devida atenção, os poemas célebres de Dante, Camões e Goethe, conseguiremos talvez discernir as razões pelas quais são femininas quase todas as palavras abstractas que designam ideias, ou actividades mentais, como a filosofia (in A Razão Animada, INCM, pp. 99-105).


Notas:

(1) Sobre as vicissitudes do positivismo lógico na Alemanha e na Inglaterra poderá ler-se com proveito o livro de Delfim Santos, Situação Valorativa do Positivismo, Berlim, 1935. Este livro muito contribuiu para a refutação e a ilustração de todos os ensaios de positivismo lógico em Portugal. Pode hoje sem receio dizer-se que o positivismo lógico passou à história.

(2) Alfred Korzybski, Science and Sanity: An Introduction to Non-Aristotelian Systems and General Semantics, 1933.

(3) Léon Brunschvicg, La Modalité du Jugement, Paris, 1897.


terça-feira, 10 de agosto de 2010

Categorias de Aristóteles (i)

Escrito por Aristóteles




Pórtico


Silvestre Pinheiro Ferreira viveu numa época em que o idealismo alemão e o ecletismo francês já impregnavam os cursos universitários à revelia da tradição aristotélica pátria. Assim, durante duas centúrias coubera aos Conimbres a restituição de uma remota tradição até serem expulsos do Reino por um «déspota esclarecido» que abominava Aristóteles e os mestres encarregues de o perpetuarem segundo o magistério da escolástica católica. De modo que, num ambiente saturado de anti-aristotelismo, Pinheiro Ferreira, indo para o Brasil (1809), instala-se no Rio de Janeiro, onde, mercê de dificuldades materiais, torna-se conselheiro do Monarca, e, no mais, regente de um curso áulico de filosofia cujas lições surdiam sob o título de «Prelecções Filosóficas». Ora, é entre a nona e a décima terceira lição que Pinheiro Ferreira trata do estudo aristotélico das «Categorias», posto Aristóteles, a par dos filósofos antigos e modernos, ser o primeiro de todos eles.

Demais, convém citar o elogio que Pinheiro Ferreira, a propósito das suas «Prelecções Filosóficas», tributa ao próprio Aristóteles:


«Seria impróprio deste lugar o aplicar-me a demonstrar-vos que Aristóteles, pela vastidão do plano, e sublimidade da execução, que se fazem admirar nas suas Obras, assim como é incomparavelmente superior a todos os Filósofos, cujos escritos nos são conhecidos, assim também deve ser o primeiro que figure nesta espécie de Biblioteca Filosófica, com que iremos acompanhando o Curso destas Prelecções. Só depois de havermos analisado os Tratados, que nos restam daquele grande Filósofo, e os termos comparado com o que depois dele até agora sobre os mesmos objectos se tem escrito; é que de um rápido golpe de vista poderei convencer-vos da justiça, com que acabo de tributar-lhe as homenagens, que o nosso século amigo das luzes lhe não teria negado, se a estulta idolatria dos Escolásticos dos dois séculos precedentes não tivesse indisposto os ânimos até mesmo contra o nome de Aristóteles, como aquele em cujas Obras eles protestavam haverem copiado os delírios das suas desvairadas fantasias» («Prelecções Filosóficas», Rio de Janeiro, 1813).


No lance, cabe, pois, ao Liceu transcrever, passo a passo, o tratado das «Categorias», no qual figura o trívio (equívocos, unívocos e cognominados), assim como noções capitais relativas à ousia, ao género e à espécie, à qualidade e ao atributo, à quantidade discreta e à quantidade contínua, como ainda aos relativos, contrários, conexos e demais formas de oposição lógico-dialéctica seguidas das seis espécies de movimento segundo Aristóteles.


De resto, em todos os casos relativos ao trivial, isto é, aos equívocos ou homónimos, aos unívocos ou sinónimos, bem como aos cognominados ou parónimos, é caso para dizer que a tradução de Pinheiro Ferreira visara as formas alatinadas por contraponto às formas gregas do texto aristotélico. Daí ter traduzido por razão o que Aristóteles, atendendo ao logos, invocara para cada nome em virtude da homonímia, da sinonímia e da paronímia.


No mais, convém não esquecer que o intento silvestrino era, à época, evitar uma tradução que satisfizesse eruditos, posto que especialmente dirigida à mocidade do seu tempo. Aliás, a Pinharanda Gomes coubera igualmente a iniciativa de, mais tarde, readaptar uma tal tradução à nossa contemporaneidade. Ora, entre os aspectos revistos por P. Gomes ressaltam, além da divisão do texto em duas partes não correspondentes à topografia original, os seguintes: 1. A actualização ortográfica; 2. A melhoria, «para efeitos de leitura visual, de uma pontuação, ao que se julga estabelecida para leitura auditiva, ou áulica»; 3. O «adicionar certas (poucas!) notas de leitura à tradução» destinadas ao leitor não-erudito.





Em suma: «Em face deste leque de possibilidades, decerto não se argumentará contra a funcionalidade da obra, melhor, do processo tradutorial de Pinheiro Ferreira, que tanto endereçamos aos portugueses como aos brasileiros, em cujas terras a tradução foi primeiramente feita e publicada, o que, de resto, constitui título de honra para um Brasil que, formulado na fidelidade ao aristotelismo, se havia de render às sinuosas seduções do positivismo, como tão bem viu o Portuense Bruno» (in apresentação de Pinharanda Gomes à tradução de Silvestre Pinheiro Ferreira às «Categorias» de Aristóteles, Guimarães Editores, 1982).

Miguel Bruno Duarte





Homonímia, sinonímia e paronímia


1. Equívocos dizem-se os que têm somente o nome comum, mas a razão desse nome diferente.

Exemplo: Animal tanto o é o homem, como aquele nome escrito. Entretanto não têm de comum senão o nome, mas a razão desse nome é diferente para cada um deles. Porquanto, se alguém houver de dar razão de se aplicar o nome de animal a cada um deles, para cada um há-de dar uma razão particular.

2. Unívocos dizem-se os que não somente têm o nome comum, mas também a razão desse nome idêntica.

Exemplo: Animal tanto o é o homem, como o boi, porque ambos eles se designam pelo nome comum de animal. E até mesmo a razão desse nome é idêntica para ambos. Porquanto, se alguém houver de dar a razão, porque qualquer deles é animal, deve dar uma e a mesma razão.

3. E cognominados dizem-se os que, tendo a terminação diferente, têm contudo as atribuições que esse nome designa, idênticas.

Exemplo: de Gramática, Gramático, de Valor, Valoroso (ob. cit., pp. 37 e 55).


domingo, 8 de agosto de 2010

Sejamos contemporâneos de Aristóteles

Escrito por Eudoro de Sousa






É inegável que têm havido algumas tentativas de aperfeiçoamento dos estudos clássicos em Portugal.

O Decreto-Lei n.º 36 507, de 17 de Setembro de 1947, introduziu no 3.º ciclo liceal o ensino do grego, obrigatório para os candidatos à licenciatura em Filologia Clássica, e o Decreto n.º 37 112, de 22 de Outubro de 1948, fixou o respectivo programa; de modo que, a par e passo do estudo da língua e da literatura latinas, alguns estudantes portugueses beneficiam hoje de uma disciplina, cujo propósito é a «interpretação dos autores gregos» e a «crítica da lição que a sua experiência documenta».

Se, ao cabo dos dois últimos anos do liceu, soletrar um verso de Homero, de Eurípides ou de Aristófanes, uma frase de Platão ou de Demóstenes; se souber classificar os vocábulos nas categorias morfológicas; se puder usar o dicionário de maneira a obter, quando mais não seja, uma versão literal do verso ou da frase de mediana dificuldade sintáctica – o aluno está apto a frequentar com aproveitamento a cadeira de Grego Elementar professada nas Faculdades de Letras. Louvemos, portanto, o intuito do legislador: é óbvio que a reforma facilita singularmente a tarefa do professor universitário. Perante alunos que no liceu adquiriram as primeiras noções de grego, o mestre há-de lembrar os anos em que a necessidade de coordenar os mais elementares conhecimentos práticos de uma língua, com o estudo de difíceis problemas de gramática histórica e comparativa, o forçara a arrostar com o desinteresse consequente da inaptidão.

Menos louvável se nos afigura a sanção legal que a reforma não deixa de conceder às seculares directrizes positivistas do ensino superior da Filosofia nas nossas Faculdades de Letras.

Banida de Psicologia sem alma e da Lógica sem espírito, a Filosofia teve que procurar assento nas cadeiras de História, donde o professor consciente da sua missão, ainda poderia reger a leitura meditada e comentada das obras mais significativas dos grandes pensadores. Por isso avaliamos a mágoa do regente da cadeira de História da Filosofia Antiga, que é predominantemente História da Filosofia Grega, ao verificar que, não prescrevendo a obrigatoriedade do grego aos candidatos à licenciatura em ciências filosóficas, a reforma do ensino secundário lhe não deixava esperança de exercer magistério mais proficiente, no sentido de uma exegese esclarecida dos documentos que nos legou a tradição escolar. Chegamos a compreender o sentimento, e a desculpar ressentimentos, quando pensamos que no mesmo instituto funciona um curso de História de Filosofia Medieval, frequentado por alunos que aprenderam latim.



São Tomás de Aquino




A disparidade nos recursos docentes, resulta em disformidade na cultura de estudantes.

Enquanto o mestre de Filosofia Medieval pode comentar nas suas aulas as lições exemplares dos grandes filósofos da Cristandade, de Scoto, Santo Tomás ou S. Boaventura – o professor de Filosofia Antiga, por lapso do legislador, permanece irremediavelmente sujeito à mera repetição de «resumos» e «manuais», à leitura de colectâneas de textos, traduzidos, para maior inglória da Universidade portuguesa, em idiomas estrangeiros.

Por paradoxal que pareça devemos dizê-lo: o ensino superior, além ou aquém de tudo quanto se possa supor que seja, é também o ensino do aprender, numa Faculdade de Letras, do aprender a ler e a escrever.

A boa leitura é uma arte difícil; exige demorada iniciação. Iniciar o leitor, consiste em aproximá-lo, tanto quanto possível, do escritor: a contemporaneidade seria a perfeição. No limiar da História da Filosofia, o estudante tem que se desvestir dos prejuízos culturais do seu tempo, se quiser compreender a lição autêntica dos grandes pensadores de todos os tempos. A não ser que só pretenda julgar os sistemas antigos e advogar a causa dos modernos... Mas, nem a Filosofia é a advocacia do presente, nem a História o tribunal do passado.

No ensino universitário, o recurso à «fontes» é, pois, mister urgente, e os textos originais são insubstituíveis.

A Filosofia também se escreve com palavras. E surpreende-nos que levianamente se negue ao filosofema, o que reflectidamente se concede ao poema: que o tradutor corrompa a expressão da verdade. Porque a vida do pensamento filosófico não se exprime adequadamente por fórmulas algébricas, de idêntico significado em todas as línguas. Que o conceito tem origem nas mais obscuras regiões da alma de um povo, e que até ao ponto mais alto do próprio desenvolvimento mantém o sinal da íntima origem, sabem-no todos os estudiosos que alguma vez quedaram perplexos ante a dificuldade de entender versões em que, por exemplo, «Natureza» representava a physis, «princípio» a arché, «Mundo» ou «Universo» o cosmos, etc. É que à palavra adere um complexo de representações, afectado de certa tonalidade de sentimentos, e seria absurdo que não se alterasse a harmonia coetânea de sentimentos, representações e conceitos, a vinte séculos de distância. Se não, concordemos em que o tempo não passa... Mas o tempo passa; e a physis ou o cosmos do passado despertavam a alma dos gregos para a contemplação de realidades hoje vedadas pelos nossos conceitos de Natureza e de Universo.

Eis por que não deve o professor limitar o ensino da Filosofia antiga pelas linhas esquemáticas da vulgarização, traçadas à mercê de uma história destinada a ilustrar a opinião dos compendiadores; eis por que o uso de traduções, que bem ou mal desempenham o papel que se lhes distribui em qualquer plano de divulgação de uma cultura medíocre – vulgarmente denominada de cultura geral –, não pode manter-se na Universidade, senão com o propósito de auxiliar a mais rigorosa interpretação dos originais.

A óptima mediação dessa contemporaneidade no mundo das representações e dos sentimentos, que condiciona a mais perfeita compreensão do sistema, dá-se através do próprio idioma do filósofo. Não esqueçamos que a filosofia de Aristóteles ou de Platão nasce da convivência com a poesia, a religião, a política, a retórica, do seu tempo.

Sejamos contemporâneos de Aristóteles, pelo menos nos claustros da Universidade, e compreenderemos a sua mensagem para todos os tempos (in Origem da Poesia e da Mitologia, INCM, 2000, pp. 101-103).



terça-feira, 3 de agosto de 2010

Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica (iii)

Escrito por Álvaro Ribeiro




Teófilo Braga


Com efeito, em 1910 foram eliminadas da vida pública instituições tais como a realeza, a nobreza e as ordens religiosas, em voluntária obediência à lei dos três estados. O positivismo jurídico, doutrina segundo a qual o direito humano não está subordinado à justiça divina, é oficialmente proclamado pela lei de separação da Igreja e do Estado. Privados do espírito adunativo, unitivo ou filosófico, não souberam, não puderam ou não quiseram os novos políticos agrupar as instituições segundo aquele tipo de coexistência, coerência e consistência jurídica que se denomina constituição, e abriram campo às lutas divergentes e dissolventes.

Compulsando os livros e os jornais então publicados pelos próprios republicanos teremos a possibilidade de averiguar que todos os políticos se encontravam em situação de crítica e de polémica às leis vigentes e às consequências que dessas leis resultavam. Esta não é a República que nós sonhámos!... O positivismo eliminara a filosofia, isto é, a relação da metafísica com a teologia, ou, pior: subordinara a filosofia à política, realizara a subversão intelectual.

A crise na problemática das relações entre o Estado e a Igreja, que corresponde, aliás, à problemática das relações entre a filosofia e a teologia, deu novo alento aos pensadores que haviam propugnado pelo regresso à Escolástica. Verdade é que a encíclica de Leão XIII, se foi lida, observada e cumprida nos seminários diocesanos e na Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra, não alcançou êxito filosófico nos ambientes culturais do País. Multiplicaram-se, sem eficiência, as traduções dos livros de Jaime Balmes. As publicações periódicas e não-periódicas de que nos deu notícia Fortunato de Almeida na sua História da Igreja em Portugal não alteraram o andamento normal dos estudos superiores. Só depois de proclamada a República Positivista começaram a ser divulgadas entre nós as publicações do Instituto Filosófico de Lovaina e do Instituto Católico de Paris. A propaganda neotomista de Jacques Maritain, muito conhecida pelos leitores da Action Française, chegou a merecer atenção popular entre os estudantes universitários portugueses, o que hoje parece estar explicado e justificado pelas afinidades de interpretação com a melhor tradição nacional. O segredo de tal êxito não está só na intenção anticartesiana ou antimoderna da polémica medievalista, mas também no facto de Jacques Maritain haver estudado profundamente a obra latina de Fr. João de S. Tomás, conforme nos informa o Dr. António Manuel Gonçalves. Lembremos os nomes de Alfredo Pimenta, João Ameal e Correia de Barros entre os melhores divulgadores da filosofia neotomista, antes de fazer devida referência à obra apologética de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, intitulada A Igreja e o Pensamento Contemporâneo.

Mercê de circunstâncias favoráveis, entre as quais avulta a nova solução jurídica das relações entre o Estado e a Igreja, conhecida pela Concordata de 1940, nota-se hoje melhor revivescência da filosofia escolástica, sem compromissos já com a interpretação positivista. Justo é mencionar o esforço capital da cidade de Braga, onde a Província Portuguesa da Companhia de Jesus fundou o Instituto Miguel de Carvalho, depois transformado em Faculdade Pontifícia de Filosofia. Nas suas publicações de carácter histórico, aquele instituto procede a uma revisão e a uma revalorização dos escolásticos portugueses, o que virá a contribuir para anular o espírito de subserviência perante os escritores estrangeiros, quer dizer, o espírito da geração negativista de 1870. Conseguiram desse modo os padres jesuítas pôr termo à desconfiança que os católicos portugueses, eivados de positivismo, opunham à filosofia, apodando-a de filosofismo. De desejar seria também que aquela instituição cultural propugnasse pelo cultivo filosófico da psicanálise, da psicologia e da parapsicologia, a fim de combater o triste preconceito de que as ciências psíquicas são necessariamente empirismo, o que está refutado pela doutrina e pela acção de alguns ilustres membros da Companhia de Jesus.

Salazar e o Núncio Apostólico Ciriacci aquando da ratificação da Concordata e do Acordo Missionário (1940).







A parapsicologia faculta os melhores argumentos de uma apologética baseada na verdade central do Cristianismo que é a doutrina da imortalidade da alma, ou, melhor, da imortalidade do homem. As bem-aventuranças do Sermão da Montanha aludem a outro mundo, o da graça que completa a natureza, o da liberdade que completa a lei, mundo novo que só pode ter verdadeiro sentido pela remissão dos efeitos do pecado, e até do próprio pecado (20). Se a apologética não estiver centrada nesta crença e nos respectivos artigos de fé, a teologia contemporânea será incapaz de compreender, assimilando e vencendo, as doutrinas de Marx e de Freud no que elas substituem, pelas teses de alienação e superestrutura, como pelas teses de transferência e sublimação, as verdades cristãs da liberdade e da graça.

Vai sendo afirmado, dentro das instituições que renovam o cultivo da filosofia escolástica, algum espírito de independência na interpretação do tomismo, que tende a deixar de ser positivista para ser existencialista, interpretação distante da verdade aristotélica, mais fiel às tradições culturais do povo português. Do ponto de vista filosófico mais nos interessa o regresso a Aristóteles do que à consequente interpretação da obra de S. Tomás de Aquino. Em 1960 já é possível reler a encíclica de 1950 sem receio de que ela afecte a pluralidade e a liberdade dos modos nacionais de filosofar.

A tendência para fazer do tomismo, e de uma só escola tomista, ou de uma só interpretação do tomismo, a filosofia católica, tem ido sempre esbarrar com os ditames da experiência e do bom senso. Étienne Gilson, em um dos seus mais divulgados livros, não deixa de remeter irónicas censuras àqueles escritores católicos, para os quais:

«...Idade Média quer dizer escolástica, e escolástica significa verdade, eterna filosofia, delimitação rigorosa de um domínio dentro do qual tudo é verdade, fora do qual tudo é erro. Nestas condições, os grandes sistemas escolásticos serão expostos de modo tal que pareçam conter a solução antecipada de todos os problemas filosóficos e a refutação de todos os erros. Assim nos surgem essas exposições da doutrina tomista onde vemos um S. Tomás refutar antes de tempo os erros de Locke, Kant, Spencer e Bergson» (21).






Verificando, porém, que na ordem apostólica é indispensável conciliar a verdade una com a expressão múltipla para que a doutrina flexível se adapte às circunstâncias e às oportunidades, visto que também na ordem do Mundo não deixam de ser o espaço e o tempo, factores de afastamento, diferenciação e diversidade, foi pelo Magistério Eclesiástico sendo consentida melhor interpretação da filosofia escolástica. Exigir a obediência de uma fidelidade literal aos escritos de S. Tomás seria exigência contraditória, porque o próprio Doutor Angélico nunca foi homem de um só livro (unius libri), antes procurava com erudição em vários autores, comentadores, compiladores e escritores a solução preferida de cada problema determinado, não deixando de invocar também a divina assistência do Espírito Santo. Admitiu o Magistério Eclesiástico que normalmente se eliminasse o que na obra de S. Tomás existe de doutrina contrária à que tenha sido definida pela Igreja na posteridade dos séculos, mas além disso aconselhou a incorporação na filosofia escolástica de todos os resultados de que a cultura vem beneficiando desde o século XIII ao nosso tempo.

Consequentemente, aquelas ordens religiosas que, durante séculos, seguiram tendências teológicas e filosóficas que divergiam do método, da doutrina e dos princípios de S. Tomás se viram obrigadas a solicitar do Magistério Eclesiástico uma margem de liberdade indispensável à sua específica missão apologética e apostólica.

É notável, neste caso, o exemplo da Ordem dos Frades Menores não só porque durante muitos séculos preferiu o ensinamento de S. Boaventura ao de S. Tomás de Aquino, mas também porque foi dentro dela que surgiu a obra de Duns Escoto, o qual remodelou profundamente a filosofia escolástica. As constituições gerais da Ordem dos Frades Menores prescreviam, com maior ou menor força, a obrigação de seguir no ensino filosófico e teológico a doutrina do Doutor Subtil. Estes documentos eram submetidos à aprovação do Papa, sendo de notar o breve Ad Eximius de 31 de Outubro de 1634, pelo qual Urbano VIII aprovou até ordenações mais rigorosas do Capítulo de Toledo (22).

Formaram-se também dentro da escolástica albertino-tomista escolas que se designam ou tendem a designar-se pelos respectivos centros universitários; entre nós tornaram-se célebres os conimbricenses, os eborenses e os bracarenses. Na escolástica do século vinte também se distinguem os centros de Lovaina, de Milão e de Genebra, ao lado de outros menos importantes como o Instituto Católico de Paris. A aceitação do tomismo há-de ser imediatamente seguida de pensamento que o interprete, mas de muitas interpretações surgem necessariamente as divergências e as deturpações. Convém, a propósito, dizer algumas palavras sobre a notável discussão havida em torno das 24 teses tomistas, aprovadas pela Sagrada Congregação dos Estudos em 27 de Julho de 1914.

Reconduzir o tomismo a vinte e quatro teses, quer figurem ou não ao longo da extensa obra do Anjo da Escola, pareceu a vários autores como obra arbitrária, de critério difícil de aceitar, e portanto de consequências temerárias. Como entre as teses escolhidas algumas havia que contradiziam ou contrariavam o ensino tradicional das outras ordens escolásticas, logo surgiram reparos dos teólogos e filósofos que seguiam os ensinamentos de Duns Escoto ou de Francisco Suárez. Consultada aquela congregação sobre o alcance doutrinário e disciplinar das referidas teses, foi em 1916 esclarecido que representavam apenas normas directivas para o ensino eclesiástico. Assim se entendeu que não havia razão para excluir do ensino eclesiástico as teses contrárias de Escoto ou de Suárez, que costumavam ser ensinadas respectivamente pela Ordem dos Frades Menores e pela Companhia de Jesus. O Papa Bento XV, em carta datada de 19 de Março de 1917 e dirigida ao padre Ledochowski, Geral da Companhia de Jesus, significou uma quebra do rigorismo tomista (23).

Cúpula da Basílica de S. Pedro (Vaticano).


Também a encíclica Studiorum ducem, do Papa Pio XI, inclui textos que permitem uma interpretação mais liberal da filosofia escolástica. O ponto mais litigioso das 24 teses tomistas estava na distinção entre essência e existência, considerado por alguns teólogos o fundamento da filosofia cristã. As discussões escolásticas sobre tal distinção, que segundo os intérpretes pode ser lógica, modal ou ôntica, influíram certamente na efervescência de doutrinas que mais tarde seriam agrupadas no capítulo da filosofia existentiva, existencial ou existencialista (24).

Na encíclica Humani Generis foram especialmente mencionados o idealismo, o imanentismo, o pragmatismo, o evolucionismo e o existencialismo. Sabido é, porém, que a Igreja Católica não condena palavras, mas apenas teses ou proposições que se verifique serem contrárias à fé ou à moral. A prova está na liberdade concedida ao existencialismo cristão que os fiéis continuam a discutir. A condenação incide, pois, em determinadas teses que se encontram implícitas nos sistemas filosóficos designados pelas palavras mencionadas. Afinal de contas verifica-se serem teses condenadas pelos concílios ou por decisões eclesiásticas, aquelas que abrem o caminho que vai das heterodoxias para as heresias. A cosmologia escolástica parece ameaçada por aquele tipo de hipótese que nega a realidade das espécies substanciais e que consequentemente reduz ou anula as virtudes dos sacramentos, mediante os quais se exerce a acção transítica do mundo visível para o mundo invisível, quer dizer, a mais alta missão do sacerdócio e, consequentemente, a missão da Igreja. Efectivamente só a física aristotélica, perseguida ou repelida pela tecnologia moderna, permite atribuir à distinção entre a natureza e a graça aquele valor indispensável para a acção religiosa. Assim, a filosofia será uma arte, nunca uma ciência, e muito menos um sistema. A gnoseologia activista de um Maurice Blondel torna-se atraente a quantos duvidam daquele preceito parmenidiano segundo o qual a verdade surge na adequação do pensar ao ser. O ser, conforme ensina Aristóteles, é susceptível de acepções, categorias e modos que possibilitam a mobilidade do pensamento, e que portanto repugnam à sua quietação. Os sistemas condenados pela Humani Generis permitiam dúvidas sobre a aptidão da inteligência para atingir a verdade una, certa e imutável, enquanto a filosofia escolástica, se apresenta como um método seguro de exposição das verdades atingidas, ou um sistema coerente de todas as teses compostas para harmonizar a razão com a fé.

Tão insistente referência a um pensador do século XIII, considerado assim no cume, na cúpula ou no cabo da Escolástica, é facto que, ao ser historicamente explicado, tem dado motivo a diversas interpretações. A proeminência atribuída à obra e à doutrina de S. Tomás, considerado doutor comum da Igreja, tinha em vista garantir a perenidade de certos princípios da metafísica - os princípios de razão suficiente, de causalidade, de finalidade -, senão a unidade doutrinal da própria filosofia. Esta é a explicação mais frequentemente dada de se recomendar o regresso à escolástica na formação cultural dos futuros sacerdotes.




Dir-se-ia que a escolástica medieval, elaborada em latim, língua do culto e da cultura, subordinada à razão, ainda precavê como nenhuma outra os fiéis de incorrerem no perigo dos erros filosóficos e teológicos que ameaçam o cristianismo. É, aliás, perfeitamente compreensível e admissível que o Magistério Eclesiástico não quebre o zelo de avisar os fiéis quanto aos erros dos sistemas filosóficos, e assim tem procedido ao longo dos séculos, como se pode ler nos respectivos compêndios de história. A sucessão de tantos e tão variados sistemas de heterodoxia não impressionará, porém, o estudioso que souber qual é a causa da ilusão, ou do prestígio, dos caleidoscópios. Cada novo sistema filosófico, garantido pelo talento literário do seu autor, apresenta-se como agrupamento ou composição de novos argumentos em torno de um reduzido número de teses antiquadas. Compete à crítica examinar a validade desses argumentos e discernir as teses que ressurgem com uma tenacidade explicável pela condição humana. Enquanto houver quatro tipos humanos, ou temperamentos, classificáveis pela caracterologia, haverá também um reduzido mas irredutível número de atitudes ou reacções para com a verdade. A classificação e a esquematização facilitam o discernimento. Assim, no que do ponto de vista escolástico mais importa conhecer, convém atender a que os sistemas variam pela actualização dos argumentos às circunstâncias e às oportunidades, mas classificam-se essencialmente em torno dos problemas singulares das relações da razão com a fé, da filosofia com a teologia e do Estado com a Igreja.

Seria piedosa mentira, mas por isso mesmo seria faltar à verdade, dizer-se que nunca houve heresias e heterodoxias no território que teve outrora o nome de Portugal. Omitir o nome de hereges célebres e de célebres heresiarcas, para manter a ilusão de que o povo português foi sempre e totalmente fidelíssimo à Igreja Católica, seria proceder ao contrário do que a história exige quando se propõe explicar as razões implícitas nos eventos. Merece, por isso, perpétua gratidão dos estudiosos admirados esse célebre monumento de erudição que é a Historia de los Heterodoxos Españoles, escrito por Marcelino Menendez y Pelayo. A religiosidade dos povos ibéricos é minuciosamente analisada nesse livro que inclui documentação útil sobre a heterodoxia. Trabalho análogo, mas de resultados dispersos por publicações efémeras, realizou-o Sampaio Bruno quando pretendeu demonstrar que a convergência das tradições hebraica, cristã e islâmica se configura no culto do Espírito Santo.

Tem sido muito acentuada pelos historiadores religiosos a predilecção dos Portugueses pelo culto mariano, ainda que dos factos verificados não hajam extraído conclusões que esclareçam o correspondente problema doutrinal. Explicou Sampaio Bruno que em Terra de Santa Maria a propagação do protestantismo não teria condições naturais, pelo que são inválidos os argumentos colhidos na acção regressiva das doutrinas da Contra-Reforma. A heterodoxia portuguesa não cinge o mistério da encarnação. Só em pleno século XIV, ou já perto de 1870, começa a generalizar-se entre nós a iconografia francesa, segundo a qual a Virgem Maria aparece representada sem a companhia de Jesus. A heterodoxia portuguesa, se alguma sistematização exige, contorna o mistério da redenção, e o respectivo misticismo, até realizar a comunicação pensante entre a teologia e a filosofia, transgredindo assim os preceitos normativos dos tomistas de estrita obediência.



Sampaio Bruno



Anotou Sampaio Bruno que uma das características da cultura portuguesa é ser aristotélica, mas o aristotelismo não contém uma teodiceia, nem resolve satisfatoriamente o problema do mal. Será, portanto, lícito admitir que no povo português demorou sempre a esperança pelo advento do Messias e a confiança nos respectivos profetas. Durante longa meditação sobre documentos selados e cifrados, desde os cancioneiros medievais até aos contemporâneos folhetos de cordel, o historiador português foi perseguindo os vestígios de uma doutrina religiosa que, por demasiado transcendente, seria contrária à cristologia ortodoxa da Igreja Católica. A vinda de «um novo Cristo», do Paracleto anunciado no Evangelho de S. João, é para o autor de A Ideia de Deus, artigo de fé a interpretar à luz da ciência contemporânea. Na intenção de abonar a tese acreditada, socorre-se Sampaio Bruno de imensa documentação histórica, desde o Evangelho Eterno, pregado pelo franciscano Joaquim de Floris, até ao messianismo de Wronski, Ballanche e Joséphin Péladan. Entende-se, portanto, a solidariedade do messianismo com a teoria da existência de Deus. Se a existência é o ser no tempo e no espaço, pelo que se distingue da essência metafísica, o problema de Deus apela pelo problema de Cristo, ou seja, pelo problema da filosofia cristã. É de notar que, em livro que teve o seu período de celebridade, o Padre Del Prado, tomista convicto, afirmou que a distinção real entre a essência e a existência é a verdade fundamental da filosofia cristã. A filosofia portuguesa, de estrutura aristotélica, admite a transcensão, pelo que se opõe tanto ao existencialismo condenado pela encíclica Humani Generis, como a qualquer sistema de dedução cronológica, francês, inglês ou alemão.

Durante o pontificado de Pio XI, ou seja, entre a primeira e a segunda Guerra Mundial, esteve a teologia católica sujeita a críticas dos escritores de cultura latina e de línguas românicas, críticas que retomavam e aprofundavam a temática alemã do século XIX. Nas mãos dos estudantes universitários corria, como bom compêndio de história das religiões, o célebre Orpheus, de Salomão Reinach. Cessaram as heresias e as heterodoxias, que significavam interpretações divergentes do mesmo depósito doutrinal, para surgirem declaradas correntes anticatólicas e até anticristãs, que não interessa por agora designar. A escolástica da primeira metade do século não estava habilitada a responder com novos argumentos às novas objecções, confiada no erro de que a imutabilidade da doutrina verdadeira poderia ser sempre defendida com os mesmos argumentos de uma inalterada apologética. A actualização da apologética havia de depender de novo recurso à filosofia. Entre os episódios mais significativos da perturbação espiritual dos nossos tempos parece-nos notabilíssimo aquele que ficou celebrado pela querela da filosofia cristã. O historiador Emílio Bréhier resolveu o problema escolástico das relações da razão com a fé ao recolocar o problema, tantas vezes debatido, das relações entre o helenismo e o cristianismo. Em três conferências proferidas em Bruxelas no ano de 1928, propôs aos ouvintes a seguinte questão: Haverá uma filosofia cristã? Deste modo enunciada, a pergunta sugere resposta negativa, a qual é a de que não há filosofias adjectivadas, excepto se for dito que a filosofia é universal. O problema haveria de ter repercussões na teologia de S. Paulo. o debate foi, pouco tempo depois, transferido para Paris. A conferência, publicada no número de Abril-Junho de 1931 da Revue de Métaphysique et de Morale provocou não só uma discussão oral na Société Française de Philosophie, mas também uma série incessante de livros, opúsculos e artigos (25).

Não estava em causa a eficácia do sacramento do baptismo, cuja discussão não pode ser estabelecida entre crentes e descrentes. Estava, porém, em litígio a eficiência da doutrina religiosa e da respectiva prática nos primeiros anos da vida do cristão, no seu modo de pensar e de actuar, e na sobrevivência, consciente ou inconsciente, do mesmo espírito em quem declara ter perdido a fé. Desde que não se admitam compartimentos estanques na memória humana, e muito menos a separação habitual entre teologia e filosofia, estabelece-se a certeza de que o homem baptizado e catequizado há-de para sempre pensar na qualidade de cristão.



Henrique Bergson



Consistia, porém, problema para os filósofos parisienses em perguntar se além da «métaphysique naturelle d'intelligence humaine», desdenhada pelo autor de L'Évolution Créatrice, haveria realmente «une méthaphysique surnaturelle», infundida no espírito humano pela revelação cristã. Tanto equivale a perguntar se a filosofia é uma ciência ou uma arte, tanto equivale a perguntar se o cristianismo fora efectivamente um factor de evolução da humanidade, alterando-a e aperfeiçoando-a pelo surto das três virtudes teologais, e, consequentemente, das respectivas faculdades gnósicas. O infinito no espírito ou na alma, abriria maiores horizontes à transcendência religiosa, e superaria qualquer esquema estático ou dinâmico, de estrutura do ser humano. A discussão parecia interessar principalmente aqueles pensadores que já estavam mais inclinados para as tendências agostinianas do que para as tendências tomistas, numa época em que ainda vigorava a oposição entre platónicos e aristotélicos, contraditória das tendências modernas que pretendiam libertar as inteligências da subordinação milenária aos esquemas de qualquer filosofia greco-romana. A patrística e a escolástica, apoiadas nas filosofias de Platão, Aristóteles e Plotino, reduziam a esquemas uma doutrina que as excedia pelo factor sobrenatural da revelação.

Se é útil notar que o problema da filosofia cristã não produziu apreciável bibliografia em Portugal, mais curioso será interpretar essa atitude, sem recorrer à explicação simplista da deficiência de cultura filosófica e teológica do clero. Não nos é possível julgar, sem prévio estudo histórico do ensino ministrado nos seminários diocesanos e sem interpretação doutrinal das instruções prelatícias acerca do ensino eclesiástico. Há que fazer apelo a razões de ordem superior. A cristologia implícita no pensamento português, parece estar mais de acordo com o ensinamento franscicano do que com o ensinamento dominicano na resposta dada ao problema Cur Deus Homo, segundo a expressão de Santo Anselmo. A liberdade docente das duas escolas cristológicas, admitida até agora pelo Magistério Eclesiástico, suscita utilíssimo estímulo para o desenvolvimento da teologia, com as quais seria lícito relacionar a questão do molinismo, motivada pela obra de um professor da Universidade de Évora.

Muitas vezes tem sido repetido que a humanidade se encontra cansada de esperar pelas promessas de Cristo. Os homens desejariam que a redenção estivesse já cumprida, isto é, que se verificasse no mundo o desaparecimento do mal. Não entendem, por isso, que a redenção da humanidade tivesse sido confiada por Cristo aos Apóstolos e à sua Igreja, nem acreditam na eficácia dos sacramentos e da oração. Inclinam-se, portanto, para uma de duas doutrinas necessitaristas, isto é, negadoras da contingência e da liberdade. Uns adoptam o necessitarismo progressista, segundo o qual a humanidade assistirá, no futuro, apesar de todas as vicissitudes, à vitória inevitável do Bem. Outros adoptam o necessitarismo niilista, segundo o qual a humanidade, por mais que trabalhe e lute, será vencida pelas forças do Mal. A escolha feita perante um dualismo, aparentemente livre, significa, todavia, que não foi pensada e liberdade. Falta no mundo nosso contemporâneo uma filosofia da liberdade que explique o verdadeiro significado da Redenção.



Álvaro Ribeiro



Entre nós, Portugueses, não se apresenta com carácter de profunda autenticidade o problema de optar por um dos termos daquela díade. Em todas as gerações de escritores surgem representantes da doutrina mais séria que profetiza o fim do Mal pelo advento do Messias. Variante é a qualidade do profetismo e do messianismo, que ora se apresenta em termos patrióticos de nacionalidade, ora em termos religiosos de humanidade, ora ainda em termos abstractos de ciência, técnica ou sociológica. Em vez do necessitarismo filosófico de qualquer dedução cronológica, admitem os Portugueses ser contingente, e portanto dependente da iniciativa e do esforço humanos, o exercício da liberdade e o cumprimento da redenção. A filosofia portuguesa tem sido, até agora, uma reflexão sucessiva sobre autores, acções e actos nacionais, preocupada como esteve de relacionar o pensar com o agir, em vez do pensar com o ser. Não é um sistema, nem uma ciência, mas uma arte. Falta, porém, a esta atitude de sempre, uma doutrina adequada ao tempo presente.


Notas:

(20) Leonardo Coimbra, A Luta pela Imortalidade, Porto, 1918.

(21) Étienne Gilson, La Philosophie au Moyen Age, Paris, 1922, I, 6.

(22) Efrem Bettoni, Duns Scoto, Bréscia, 1946.

(23) Louis Rougier, La Scolastique et le Tomisme, Paris, 1925.

(24) Jacques Maritain, Court Traité de l'Existence et de l'Existant, Paris, 1947.

(25) Maurice Nédoncelle, Existe-t-il une Philosophie Chrétienne?, Paris, 1958.


domingo, 1 de agosto de 2010

Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica (ii)

Escrito por Álvaro Ribeiro



Dante Alighieri


Seria extremamente útil escrever a história do aristotelismo em Portugal, começando pela recensão de todos os textos em que Aristóteles é citado. É de crer, porém, que as obras de Dante foram, efectivamente, aquelas que mais influíram no aristotelismo português. A assimilação do pensamento dantesco transparece até mesmo nos escritos daqueles que não o citam. Aludimos, sem dúvida, às obras de D. Duarte e do Infante D. Pedro (11).

O pensamento medieval foi fortemente aristotelizado, muito antes de se realizar a oposição entre Platão e Aristóteles, ou entre agostinianos e dominicanos. Durante muitos anos os estudos teológicos foram confiados a estas duas ordens religiosas, visto que só em 1400, no reinado de D, João I, há notícia de ter sido estabelecida a cadeira de Teologia na Universidade de Coimbra (12).

É de admitir, portanto, que a preparação arábica do aristotelismo português explique a facilidade com que, depois da Reforma e da Contra-Reforma, fosse adoptada a síntese albertino-tomista no ensinamento da Companhia de Jesus. As teses fundamentais desta doutrina, como a de o conhecimento humano ser fundado sobre a experiência sensível, as provas da existência de Deus extraídas da contemplação do mundo exterior, a indemonstrabilidade da criação do mundo no tempo, e a impossibilidade da prova ontológica, parecem conciliar~se com as tendências de um povo, cuja fé assentava no preceito de ver para crer, como S. Tomé.

Está, aliás, explicada também a natural, ou nacional, animadversão pelo protestantismo, nas tendências próprias da religiosidade portuguesa, a qual tem por características, entre outras, o culto de Santa Maria, sempre figurada em companhia de Jesus, menino, adolescente, ou adulto, e assim a iconografia nos aparece como modo de ver, para um modo de crer num cristianismo evolutivo, de criança e de criação, que progride para o advento do Espírito Santo, enfim, de uma razão que ainda está em progresso para a fé (13).

Pietà de Michelangelo


Enquanto outros povos menos fiéis a Roma, viviam já o pensamento moderno, o povo português permanecia nos quadros do pensamento medieval. Se é difícil, mas possível, estabelecer a distinção rigorosa entre a teologia e a filosofia, já não é lícito separar radicalmente entre a fé e a razão. Todos os homens da Idade Média eram religiosos: uns fortaleceram a sua alma com a sua fé judaica, cristã ou islâmica; outros viviam numa religiosidade que poderemos dizer panteísta, politeísta ou pagã; outros mantinham-se fiéis a práticas e doutrinas que hoje consideramos supersticiosas; raro seria o homem que não pensasse a sua relação com o mundo natural e sobrenatural, porque a atitude ateísta só surge na Idade Moderna, precedendo e preparando a atitude antiteísta, que é o flagelo da Idade Contemporânea.

Tardiamente se afirmou entre nós a nítida separação entre a razão e a fé, na transição do ensino franciscano para a adopção da síntese albertino-tomista. Os próprios dominicanos estão longe de admitir um racionalismo tal como se formulou na Companhia de Jesus. O racionalismo medieval, ensinado nas universidades europeias pelos compêndios dos escolásticos portugueses, aperfeiçoa-se no racionalismo moderno, principalmente depois da difusão da obra de Descartes.

Interpretamos toda a filosofia moderna como a demonstração de que o racionalismo medieval é insuficiente para elaborar um sistema filosófico. Kant, que estudou o ideal de razão pura nas obras dos Conimbricenses, completou essa demonstração. A não ser que se renuncie a filosofar, conforme propõe e impõe o positivismo, há que admitir verdades enunciadas em proposições de origem tradicional, revelada e sobrenatural, porque só elas tornam inteligível tudo o mais, só elas pacificam a ansiedade humana.

A reacção contra o racionalismo da Companhia de Jesus começou nos actos que tornaram possível a infiltração do iluminismo na cultura portuguesa, por essas associações secretas nomeadas academias ou arcádias, obra começada no reinado de D. João V e facilitada pela reforma pombalina da Universidade de Coimbra (14).

São de notar as três fases desta decadência. A expulsão da Companhia de Jesus foi seguida da eliminação de Aristóteles, a eliminação de Aristóteles teve como consequência a refutação da filosofia, e o ensino superior deixou de ser universitário.

Do ponto de vista português, a Escolástica está mais referida a Aristóteles do que a S. Tomás de Aquino. A má interpretação da encíclica Aeterni Patris alterou esta perspectiva histórica, permitindo substituir a filosofia helénica pelo positivismo francês, ou belga.






A Escolástica caracteriza-se filosoficamente por aceitar a tese entre as leis do pensar e as leis do ser, tese da qual se infere a possibilidade humana de conhecer absolutamente a verdade. A esta tese está ligado o merecido atributo de lógica, porque relacionado com o logos, referido que seja a Heraclito, o Obscuro, ou a S. João, o Evangelista. Nem a gramática, nem a retórica, nem a dialéctica nos oferecem mais do que as leis do escrever e do falar, porque o pensar excede-as por imanência e transcendência.

A aceitação da lógica de Aristóteles, superior à de Platão e à de Plotino, corresponde a um momento de mais lúcida visão do propósito da filosofia escolástica. Toda a filosofia helénica poderá ser interpretada como uma variação de doutrinas sobre a irrealidade do mundo sensível. Não aludiremos apenas ao cepticismo grego que por demais se compadece com o pessimismo trágico, segundo a interpretação de Burckhardt, Nietzsche e H. S. Chamberlain. Referimo-nos a toda a linha de oposição dialéctica entre o sensível e o inteligível tendente para a desvaloração do homem, do mundo e de Deus. A tradição semítica, pelo contrário, admitindo a criação divina e a criatura humana, marcava acento valorativo sobre o carácter espectacular do mundo sensível, embora induzisse os pensadores religiosos nos erros que resultam de má interpretação das relações entre a imanência e a transcendência.

A lógica aristotélica daria expressão, comunicação e demonstração a três tradições religiosas que conviria unificar. Antes do aristotelismo de Santo Alberto Magno já a Escolástica estava habilitada a resolver o problema da solidariedade da teologia cristã com a filologia latina e com a filosofia grega, num corpo doutrinal capaz de flutuar sobre as correntes que dissolvem as relações da razão com a fé. Efectivamente a fé define-se, nos dizeres de S. Paulo, como a relação do visível com o invisível (15). Esta relação só é apreensível por símbolos, mas como o símbolo se presta a uma pluralidade de interpretações que faculta o trânsito da heterodoxia para a heresia, tiveram os Santos Padres e os concílios o cuidado de procurar fórmulas inequívocas, para o que recorreram aos termos da filosofia grega e da eloquência romana (16). Os doutores escolásticos não só continuaram a missão dos concílios, que na definição da fé procede da flutuação simbólica para a fixação dogmática, mas quiseram também fazer a dedução cronológica dos dogmas, que não é arbitrária ou artificial porque deve reflectir o plano divino segundo as sistematizações teológicas, ou sumas. Os séculos XII e XIII são os séculos das sumas, entre as quais se distinguem as de Hugo de S. Vítor, a de Pedro Lombardo, a de Alexandre de Halles e a de S. Tomás. Ora os autores dessas sumas quiseram também fixar a argumentação probante de cada um desses dogmas. O ideal seria de com tais encadeamentos de raciocínios querer forçar a convicção dos leigos, dos gentios e dos infiéis.

Explica-se assim a formação do racionalismo medieval, precursor do racionalismo moderno. A partir dele vai sendo cada vez mais condicionada, e depois restringida, a liberdade de interpretar os símbolos, os mistérios e os sacramentos, agora definidos numa rigorosa sequência de palavras, em fórmulas que se denominam dogmas. Maior liberdade é concedida às artes plásticas que exprimem pensamentos vedados às artes da palavra. Estas ficam perfeitamente limitadas nos colégios, nos mosteiros e nas Universidades. Além da rigorosa disciplina do trívio, a constituição das Universidades consolida o predomínio da filosofia grega e do direito romano, doutrinas estas que hão-de estruturar a própria Igreja Católica. Depois de fortes lutas contra a teologia, que ainda defende a fé em termos de S. Paulo, e que ainda defende a tradição, a revelação e o sobrenatural, procuram os escolastas tornar independentes a filosofia jurídica e a filosofia natural, segundo um racionalismo que constituirá sem dificuldade o direito, a sociologia e a tecnologia.

Conversão de S. Paulo

Vem a Escolástica reforçar a tese, já anunciada por Santo Agostinho e aperfeiçoada por Santo Alberto Magno, de que os redactores da Bíblia tiveram intenção de ensinar a primeira verdade religiosa, mas não se propuseram dizer a última palavra na ciência. Esta tese deve ser interpretada para bem da liberdade de pensamento. Merece, efectivamente, demorada atenção o problema delicadíssimo de expor em termos figurativos, e portanto obtidos por analogia das imagens do mundo sensível, a transcendente doutrina da criação do mundo e do homem, segundo a tradição do Génesis. Incorrem muitas vezes os redactores de livros escolares nos mais grosseiros e mais ridículos erros de anacronismo e antropormofismo, geralmente agravados por más ilustrações devidas a artistas plásticos. A transladação livre e a paráfrase profana da narrativa bíblica decaem por vezes em termos impiedosos para com a doutrina sagrada, sem que valha a desculpa de qualquer utilidade para a didáctica ou de vantagem para a propagação da fé. Nada obsta, antes a prudência aconselha, que o dogma seja formulado em expressões sublimes que o libertem de noções comprometedoras com as limitações do tempo e do espaço.

A distinção escolástica entre a Bíblia e a Física, entre a revelação e a cosmologia, veda aos teólogos abusiva intromissão no campo científico dos estudos sobre a Natureza. Acto decisivo para a realização de uma obra que muitos julgam de racionalização, mas que foi essencialmente de defesa da fé, a introdução da obra de Aristóteles no sistema escolástico deve ser justamente interpretada por quantos admiram o génio de Santo Alberto Magno. A Física de Aristóteles caracteriza-se pela sua límpida doutrina do movimento, pela sua útil doutrina da acção e da paixão, pela sua admirável doutrina da produção, numa sistematização científica de todos os fenómenos visíveis que se completa pela relação dos lugares naturais com o lugar comum. Sucessivamente comentada pelos escolásticos e aproveitada pelos modernos, a Física de Aristóteles resistiu gloriosamente até à época em que os conceitos cosmológicos foram substituídos pelos conceitos tecnológicos, por mais próximos da experiência humana. O descrédito da física aristotélica não favoreceu contudo os pensadores que operam na legítima intenção de destrinçar na Bíblia o que é de razão e o que é de fé. A exegese bíblica tem sofrido embates de diversa ordem, e com tristeza verificamos ainda hoje que os teólogos autorizados se mostram pressurosos de realizar obra perfeita, apesar dos expressos incitamentos das encíclicas Providentissimus Deus e Divino Afflante Spiritu (17).





A formação medieval do racionalismo moderno nem sempre aparece claramente descrita pelos historiadores da filosofia. Ela está, porém, patente na obra de Étienne Gilson, que considera a libertação da razão humana e a consequente laicização da sociedade concluídas no século XIII. No dizer do ilustre escritor, seria S. Tomás de Aquino o primeiro dos filósofos modernos e Renato Descartes o último dos filósofos escolásticos. Esta afirmação, que a uns parecerá paradoxal e a outros surpreendente, merece ser meditada por quantos julgam que a história do pensamento europeu deve ser estudada a partir da história da filosofia grega. Depois da expulsão da Companhia de Jesus, um tipo de escolástica não-aristotélica foi precariamente esboçado pelas ordens religiosas de tradição medievalista ou moderna. Com o advento do liberalismo tudo se modificou, a ponto de a Escolástica ser considerada anacrónica sobrevivência de tenebrosa história política e eclesiástica.

Está ainda por descrever o quadro histórico da nossa filosofia no século XIX. Será, para isso, indispensável coligir toda a bibliografia dispersa, tendo em atenção não só os livros estrangeiros para português traduzidos, mas também a produção nacional dispersa em opúsculos, folhetos e jornais. Só assim podemos determinar o que foi lido entre nós, já que a simples conjectura de um paralelismo franco-português não convém à fase actual das investigações históricas. No entanto podemos dizer que entre 1830 e 1870 predominou na cultura católica o tradicionalismo, como processo de reacção contra o racionalismo escolástico, cartesiano, kantista (18). Em Portugal o movimento tradicionalista deixou vestígios entre os leitores de Maistre, Bonnald e Lamennais, mas principalmente nos admiradores do Padre Joachim Ventura di Raulica, como se infere do livro de Amorim Viana, significativamente intitulado Defesa do Racionalismo e Análise da Fé. O facto poderá ser talvez explicado pela convergência dos aspectos teológico, filosófico e político da doutrina tradicionalista que exprimia reacção legitimista ao liberalismo dominante. Seja como for, a verdade é que em todo o século XIX se acentua nas escolas religiosas uma revivescência do iluminismo de Santo Agostinho e de S. Boaventura, tal como nas escolas profanas se nota uma tendência para aceitar o predomínio da intuição sensível, ou da intuição intelectual, sobre os processos lentos e laboriosos da razão humana.

A iluminação interior, propiciada pelo ensino escolar, assegura a verdadeira liberdade humana, a qual não é constituída pelo livre arbítrio da vontade animal, mas pela participação na ciência de origem divina. Se estudarmos as manifestações espontâneas do pensamento expresso nas obras da literatura romântica e da política liberal, se atendermos à sucessão das escolas e à sequência dos partidos, para extrairmos a filosofia implícita, tenderemos a ver como o predomínio do iluminismo cristão se compadece e compatibiliza com o iluminismo judaico e islâmico.

Sócrates

O iluminismo, doutrinal da luz interior, é de tipo oriental. Segundo o iluminismo, a verdade não resulta da prática docente; descobre-se na alma humana, afastando os obstáculos corporais, passionais e intelectuais, segundo um procedimento de que ainda há eco em Sócrates. A alma humana tem de ser libertada da doutrina que estabelece a distinção entre o Criador e a Criatura, do princípio de individuação natural, para que se realize a adunação mística ou búdica.

Dentro da ortodoxia católica o iluminismo teve como altos representantes Santo Agostinho e S. Boaventura, em cuja doutrina predominam os termos de contemplação, intuição e visão beatífica, posto que o objecto da filosofia e o fim superior do homem é o amor de Deus. O iluminismo propende, porém, para a heterodoxia, como no caso do quietismo de Madame Guyon, ressalvado por Fénelon, para o abandono dos sacramentos e da doutrina que os justifica, num mundo aberto à acção do homem.

Esta dilatação da fé, dilatação da luz, e consequentemente da liberdade, tendia a impelir para o domínio da teologia, ortodoxa ou heterodoxa, tudo quanto não pode ser demonstrado pela razão natural. Este alargamento da fé, por adesão a objectos intelectuais que não são dados da Revelação, nem estão contidos na Sagrada Escritura, tendia para o fideísmo, doutrina da subjectividade infinita que na Alemanha haveria de obter grande número de adeptos.

O iluminismo foi cultivado nas sociedades secretas que prepararam o advento do liberalismo. Em política, o iluminismo defendia o segredo de Estado contra a razão de Estado. Ele foi, por isso, a filosofia oculta que, doutrinando a nova nobreza, sustentou durante um século as instituições monárquicas. O liberalismo britânico não pode ser entendido senão em função dos estudos filosóficos de Locke, Berkeley e Hume sobre a essência do espírito humano. Kant resolveu o problema iluminista pela formulação do pensamento categorial, ou categórico, e sem receio de erro poderemos verificar que ao longo do século XIX predomina a discussão das categorias.

Durante a vigência da monarquia liberal vão sendo as funções da Nobreza transferidas para o Funcionalismo público, recrutado por um processo individualista que não atende a exigências de genealogia. A escolha dos melhores, formativa da nova aristocracia, depende de vários critérios, mas é legalizada por quem assume as funções superiores de julgar do bem e do mal. Vigora o regime das provas públicas, tanto no concurso determinado segundo condições regulamentares, como na eleição e no leilão. Um júri examina quem compra por preço mais elevado, quem fornece por mais barato custo, quem escreve melhor tese de doutoramento, quem responde precisamente a um questionário, enfim, qual dos elegíveis deve ser eleito. Em vez do acesso orgânico, consagrativo de longa experiência do ofício, faz-se o recrutamento entre os desconhecidos que inesperadamente surgem a reclamar os seus direitos. É indispensável observar esta decadência do iluminismo para entender as relações da filosofia com a política do século XIX. Deixando de ser uma doutrina secreta e orgânica, própria de espíritos superiores, para passar a doutrina pública e mecânica acessível a toda a gente, o pensamento categorial contribuiu para a corrupção da Nobreza pela dissolução da Família. Desvalorizada a educação de pai para filho, com o estabelecimento de escolas públicas e particulares, negando o poder da hereditariedade e a influência do hábito familiar, deixou de ser entendida a vantagem de transmitir ao primogénito, àquele que mais cedo e por mais tempo beneficia de um ensino incomparável, os direitos e os deveres do ofício a que estava ligado um nome honrado e respeitável. Atacada a Família nos seus privilégios de projecção social, e consequentemente a Nobreza, não tardaria o momento de a mesma doutrina atingir «o duro ofício de reinar».



Manuel Kant



A doutrina estática do quadro das categorias sofreu depois a sobreposição das tríades dinâmicas, propiciatórias dos movimentos messianistas ou messiânicos. A tríade dos sucessores de Kant, a tese, antítese e síntese de Fichte, Schelling e Hegel não obteve vigência notável na Península Ibérica. Na sua conferência intitulada «O Idealismo Alemão e a Filosofia do Direito em Portugal», o Prof. Dr. Luís Cabral de Moncada precisou a influência de Karl Friedrich Krause nas correntes do ensino universitário (19). É de crer, porém, que mais ampla projecção das doutrinas krausistas venha a ser verificada pela análise literária de vários escritos oitocentistas.

Krause distingue-se de Hegel por não estender sobre a linha crónica a dedução das três teses, ou dos três conceitos, do pensamento em devir. Em vez da dedução cronológica, adequada ao espírito messiânico, admitia a ordenação sobre o espaço e o tempo. A tríade de Krause é constituída pelos termos Unidade, Variedade e Harmonia, triângulo cuja significação política parece adequado à monarquia liberal e ao regime parlamentarista. Aquela tríade alemã é, sem dúvida, superior à tríade do rito francês, não só pela real dignidade filosófica, mas também pela isenção moral ante ressentimentos que naturalmente surgem da perpétua antinomia entre a Liberdade e a Igualdade, dos conflitos morais e das subversões políticas, numa dialéctica insuperável pela Fraternidade católica ou universal.

Discípulo independente de Krause, o inditoso filósofo português José Maria da Cunha Seixas foi, sem dúvida, a personalidade mais representativa do iluminismo liberal. A sua oposição ao positivismo ainda não foi suficientemente valorizada pelo que significa na história das relações entre a filosofia e a política. O nosso doutrinador do panteísmo previu lucidamente os perigos do messianismo que se ocultava na tríade de Augusto Comte, ou lei dos três estados, dominadora não já de um quadro das categorias, mas de uma classificação das ciências. A dedução cronológica realizava o efeito psicodinâmico de preparar o advento do terceiro estado, do Estado positivo, denominado com a palavra República, contrária todos os mistérios divinos, a todos os segredos metafísicos e a todos os problemas pessoais.

O êxito inegável que o positivismo obteve, a ponto de passar de doutrina de escol para corrente de opinião, explica-se pela acção inteligente e astuciosa de Teófilo Braga, que, no Curso Superior de Letras, propagou aos professores uma filosofia de dedução cronológica mais acessível aos povos latinos do que as suas congéneres de Hegel e de Spencer.

Destituída da indispensável referência a Aristóteles, a cultura filosófica do século XIX não defendeu convenientemente o iluminismo e não garantiu, portanto, os fundamentos intelectuais do liberalismo económico, político e religioso. Em vez da doutrina aristotélica dominava a dialéctica jornalística, e, por insubordinação da política à filosofia, necessariamente haveria de surgir o descrédito ideológico do regime da «Carta Constitucional». Cerca de 1870 começam a gozar os favores da opinião pública todos quantos escrevem na intenção de defender teses contrárias à nossa autonomia cultural e à nossa independência política. Recai o descrédito sobre a intenção patriótica dos artistas do romantismo e dos políticos do liberalismo. Cobrem-se de ridículo os ideais culturais da Idade Média, na intenção de revogar as tradições que caracterizam o espírito nacional. Oliveira Martins no Portugal Contemporâneo completa a acção destruidora das Farpas escritas por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Facilita-se, assim, o caminho dos positivistas que, já devidamente agrupados, se dedicam à missão especial de anunciar o advento do Estado positivo, e, mais ainda, de «preparar o povo para a República». O positivismo trazia consigo o antídoto do liberalismo: a promessa de libertar os homens da obrigação de pensar, isto é, da difícil escolha entre as várias opiniões. Em vez da opinião livre, dominaria a ciência necessária (ob. cit., pp. 244-252).




Notas:

(11) João de Castro Osório, Ínclita Geração, Lisboa, 1945.

(12) Teófilo Braga, História da Literatura Portuguesa, Idade Média, Porto, 1909.

(13) Estudos de Alberto Pimentel, Agostinho da Silva e Jaime Cortesão.

(14) José Sebastião da Silva Dias, Portugal e a Cultura Europeia, Coimbra, 1953.

(15) S. Paulo, Epístola aos Hebreus, XI, 1, «A fé é o fundamento das coisas que se esperam, e uma demonstração das coisas que se não vêem».

(16) Mgr. Bernard Bartmann, Précis de Theologie Dogmatique, traduction de l'allemand par l«abbé Marcel Gautier, Moulhouse, 1947-51, tome I, parág. 12, «Le Progrès Dogmatique», p. 78.

(17) Luís Arnaldich, A Origem do Mundo e do Homem, tradução de José Ervedosa, Lisboa, 1958.

(18) Edgar Hocedez, S. J., Histoire de la Théologie au XIXème Siècle, Paris, 1947-1952.

(19) Luís Cabral de Moncada, Estudos Filosóficos e Históricos, Coimbra, 1958.

Continua