quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Semântica

Escrito por Álvaro Ribeiro








A etimologia, que outrora significou o estudo do falar étimo, do bom uso das palavras, é hoje considerada pela linguística positivista como investigação própria para determinar a história, a genealogia e a origem de cada vocábulo. Ao longo deste estudo, deveras interessante, vai o empirista classificando os vários processos de enriquecimento do vocabulário, e tornando mais conhecidas a derivação, mediante prefixos e sufixos, a composição, assinalada ou não pelo hífen, a enálage, ou mudança de categoria gramatical, e, por fim, a adopção de palavras estrangeiras. Observando, também, que muitas palavras mudam de som, de grafia e de significado em períodos determinados por documentos paleográficos, e que tais alterações nem sempre obedecem ao que se poderia chamar «leis da gramática clássica», o etimologista reconhecerá ser-lhe indispensável estudar psicologia e etnologia se escrever a história da língua.

A tendência dos etimologistas para recorrerem às explicações de tipo sociológico - as quais, aliás, despertam e avivam a imaginação dos estudantes -, bem como o preceito de não investigar para além do que está escrito, visto que sem documentos não se faz história, conferem àquela disciplina linguística um carácter de positividade que a torna incompatível com a tradição. Quando, porém, a diferença entre duas formas do mesmo vocábulo não pode ser documentada, os etimologistas aventam hipóteses e conjunturas para restabelecer a continuidade evolutiva da língua humana. Nuns casos recorrem às leis fonéticas, que foram estabelecidas empiricamente por indução, à custa de muitos exemplos, mas que consideram necessárias e infalíveis, como se houvessem sido estabelecidas por dedução, para postularem o terceiro termo do raciocínio numa forma intermediária que, por ser hipotética, assinalam com um asterisco; noutros casos explicam a anomalia pelo fenómeno social da analogia, dando a esta palavra não um conceito rigoroso mas o de semelhança com o vocábulo que mais convier à fantasia do historiador.

Queremos, assim, esclarecer que nem os positivistas se contentam com os documentos escritos ou gravados, visto que também eles, nas horas difíceis, solicitam um terceiro termo para o raciocínio - uma hipótese - e ficam por ela obrigados a conceder aos que não são positivistas o direito de admitir a tradição. Na linguística, como em outras disciplinas, a exigência de hipóteses obriga a transitar da técnica para a ciência, e da ciência para a metafísica, se o estudioso quiser atingir as portas da verdade. A própria doutrina positiva, ao trasformar-se de positivismo fáctico em positivismo lógico, proclama que o combate decisivo à liberdade de pensamento há-de ser travado no campo da semântica.

A semântica é geralmente estudada como capítulo da linguística, ou como ciência auxiliar da linguística. A semântica analisa a significação das palavras, mas discute também as terminologias, as nomenclaturas, as cifras. Na medida em que for qualificado o movimento ascendente ou descendente da palavra através destas três classes, poderá a semântica fundir-se com a taxonomia para adquirir mais verdadeiro aspecto científico.





Tomando por modelo a nomenclatura das ciências, e das ciências aquela que está mais afastada do homem, a ciência que pode ser esculpida, gravada, desenhada ou escrita em sinais inequívocos, pretenderam muitos escritores engenhosos inventar uma linguagem capaz de ser aplicada a todas as disciplinas que obedeçam a um rigoroso determinismo. Na ambição de estenderem este método à psicologia, e portanto à manifestação da liberdade na consciência humana, os positivistas lógicos nem sequer consideram quanto escapam ao determinismo e à terminologia da razão os fenómenos volitivos e os fenómenos emotivos. O pensador atento resiste a essa coacção externa, atribuindo a cada palavra, e realizando, um significado livre de condicionalismo científico.

A dissociação, que o positivismo lógico pretende exigir, entre pensamento e linguagem, imediatamente repugna a todos os povos que tenham consciência das suas tradições culturais. Assim se explica que as reformas propostas pelos positivistas, por muito razoáveis ou razoadas que se apresentem, não logram completa ou duradoura efectivação. Elas actuam como influências perturbadoras da continuidade étnica e histórica, quer dizer, perturbadoras das íntimas, naturais e verdadeiras leis da nacionalidade (1).

Entende-se, perfeitamente, qual foi o intento dos positivistas quando procederam à separação matemática entre os estudos filológicos e os estudos filosóficos nos cursos universitários. Verificamos efectivamente que só os filósofos sem preparação filológica podem aceitar de bom grado os absurdos das utopias positivistas, absurdos que a linguística, na medida em que exprime as tendências da alma humana, reprova, desmente e contradiz. Visto, porém, que a projecção das utopias positivistas se dá nos três planos da razão, quer dizer, afecta tanto a razão teórica, como a razão estética e como a razão prática, poderemos calcular sem erro as nefastas consequências que a didáctica positivista projecta nas actividades sociais.

Sucessivamente discutidas as várias doutrinas da língua universal, da gramática e da lógica universal, que pretendiam subordinar todos os povos a uma sociologia abstracta, foi pelo pensamento nacionalista redescoberta, verificada e confirmada a associação da filologia com a filosofia, o que fora aliás lucidamente previsto por quem instituiu em Lisboa o Curso Superior de Letras. A filologia consiste na investigação dos factos, das leis e dos princípios de um certo idioma, ou de um grupo de idiomas, enquanto que o estudo do filósofo incide directamente sobre os problemas humanos, os segredos naturais e os mistérios divinos. A arte de filosofar desenvolve-se na mediação idiomática, exerce-se pelas categorias gramaticais e pelas categorias lógicas que o pensador aprendeu entre a infância e a adolescência, não se aperfeiçoa pelo colóquio em língua estrangeira, perde originalidade e a liberdade ao substituir a tradição pela tradução.

Cada homem exprime o seu pensamento através das significações e das estruturas de um idioma determinado, mas antes de exprimir teve de entender, interpretar e compreender a fluência discursiva do falar alheio. Se a fenomenologia da expressão interessa muito mais ao filólogo, dado a estudos de linguística, estilística e literatura, a gnosiologia da compreensão, por assim dizer, interessa muito mais ao filósofo, dado a estudos de semântica, hermenêutica e lógica. A alma humana, que está sempre em actividade, e que por isso mesmo padece no estado passivo de substância, reage significativamente, segundo as suas condições peculiares, a cada fonema directa ou indirectamente percebido.

Escola de Atenas, de Rafael


Consta já dos escritos aristotélicos o preceito benéfico de estudar a semântica para evitar equívocos, paralogismos e sofismas. Estava reconhecido no Organon o princípio da subjectividade, ainda que Aristóteles pretendesse limitá-lo ou corrigi-lo em proveito da objectividade linguística e da razão social. Nada há que altere a verdade de que a palavra corresponde muito mais a um conceito do que a um sentido ou a uma ideia.

Quando a palavra designa um objecto sensível, isto é, quando a palavra tem um sentido, pode estabelecer-se-lhe rigorosamente o significado, e anular o equívoco que talvez resulte do seu uso fictício ou metafísico. Se não houver o recurso de colocar o objecto ao alcance das mãos, ou ao alcance dos olhos, haverá pelo menos a possibilidade de representá-lo figurativamente. Para além do que os gramáticos chamam substantivo concreto cessa o domínio da verificação sensível, e levanta-se o problema de instaurar, para as outras partes do discurso, categorias lexicais, ou classes de palavras, novos critérios de estabelecer e verificar os respectivos significados (2).

Grande parte da obscuridade notável nos livros técnicos, científicos e metafísicos é proveniente da inexacta situação dos termos relativos, recíprocos e concomitantes. São relativos os contrários, os polares e os opostos. Os contrários afastam-se do eixo de simetria, como os números positivos e negativos; os polares tendem a encontrar-se no equador; os opostos estão separados por um diâmetro significativo do obstáculo que os equilibra.

Convirá que o escritor não substitua inconscientemente os contrários pelos polares, ou os polares pelos opostos. Reflectindo sobre o que significam a contrariedade, a polaridade e a oposição claramente designará os adequados nexos dos termos. Relacionar é, como a palavra diz, estabelecer novo laço entre termos conexos.

Entre dois pontos de referência pensamos o movimento, e a cada uma das espécies de movimento classificadas por Aristóteles corresponde uma ciência. Erram os que confundem a contrariedade com a contradição, mais ainda se enganam aqueles que chamam contraditórias às proposições complementares. A lei mental da enantodromia, formulada por Heraclito, afirma a complementaridade do real.

A precisão semântica dos termos é indispensável ao bom entendimento das relações. A relação é categoria superior à quantidade e à qualidade, conforme se observa no quadro de Kant, mas é ainda inferior à modalidade. A meditação sobre a modalidade reconduz o movimento ao pensamento, restaurando assim a lógica de Aristóteles (3).

Manuel Kant


Nem sempre há termos fixos que sejam garantia de firme relação, isto é, de afirmação, e ante o fenómeno da enálage, muito frequente em português, os linguistas afirmam que a classificação de partes do discurso, estabelecida já pelos velhos filólogos de Alexandria, não pode ser admitida com todo o rigor. Palavras há que podem exercer uma função diferente daquela que corresponde à classe a que pertenciam segundo um critério lexical. Este facto, reconhecido pelos gramáticos, não foi ainda considerado na análise sintáctica, exactamente porque é próprio da análise considerar menos as funções do que as substâncias.

No estudo do substantivo, ou da substância, dá-se a colisão entre a gramática e a semântica. Há a tendência para considerar substância a parte do discurso que na oração serve de sujeito, pois só assim se entende o haver classes de substantivos que, por não designarem objectos permanentes no espaço, estão muito longe das noções de estância e de substância. Esta categoria, que na lógica aristotélica era inferior, atingiu na ciência «moderna» um primado explicável pela subordinação do movimento ao espaço e ao tempo, seus abstractos, pela mensuração das distâncias, pelo progresso das matemáticas.

O estudo do ser imóvel, que é a máquina, foi anteposto ao estudo do movimento e do motor. A física aristotélica foi expulsa das escolas por verbalista e animista, enquanto a mecânica pretendia apoiar-se numa metafísica materialista. As doutrinas científicas do século XIX, repudiando gradualmente os esquemas atomistas, mecanistas e materialistas, tornavam possível o rejuvenescimento da física de Aristóteles.

Todo o conhecimento do mundo sensível, por muito importante que seja para a técnica, para a ciência e até para a metafísica, representa apenas uma parte, a menor parte, do que verdadeiramente interessa ao homem. O homem transcende esses limites, está muito mais atento às actividades insensíveis do que às substâncias sensíveis, porque pretende inserir a sua liberdade na realização de um destino.

Será, no entanto, conveniente notar, de passagem para outro assunto, o curioso problema dos géneros dos substantivos, isto é, da classificação em sexos diferentes de objectos que estão fora da biologia, fora da fenomenologia do nascer e do morrer. Se o positivismo fosse lógico, como pretende ser, não atribuiria desinência sexual às palavras que designam seres inanimados. A gramática usual persevera, porém, a exigir sem lógica a concordância em género (sexo) e em número.






Curiosa é a transferência de géneros, ou sexos, da biologia para a cosmologia, e a tão difícil problema dedicou Grimm, que além de filólogo era etnólogo e mitólogo, um estudo de merecida celebridade. O problema continua, porém, insoluto, pois não sabemos qual a razão de atribuir género gramatical a entes sem características anímicas, a entes que nem sequer por alegoria podem merecer atributos de masculinidade ou de feminilidade. Se soubermos ler, com a devida atenção, os poemas célebres de Dante, Camões e Goethe, conseguiremos talvez discernir as razões pelas quais são femininas quase todas as palavras abstractas que designam ideias, ou actividades mentais, como a filosofia (in A Razão Animada, INCM, pp. 99-105).


Notas:

(1) Sobre as vicissitudes do positivismo lógico na Alemanha e na Inglaterra poderá ler-se com proveito o livro de Delfim Santos, Situação Valorativa do Positivismo, Berlim, 1935. Este livro muito contribuiu para a refutação e a ilustração de todos os ensaios de positivismo lógico em Portugal. Pode hoje sem receio dizer-se que o positivismo lógico passou à história.

(2) Alfred Korzybski, Science and Sanity: An Introduction to Non-Aristotelian Systems and General Semantics, 1933.

(3) Léon Brunschvicg, La Modalité du Jugement, Paris, 1897.


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