Entrevista a Álvaro Ribeiro
«Todos os homens desejam por natureza conhecer.»
Aristóteles («Metafísica», tradução de Carlos Humberto Gomes).
«As principais críticas
de Aristóteles a todas as doutrinas da imobilidade encontram-se agrupadas nos
livros da Metafísica, e com razão vemos
incluída nessa miscelânea literária uma das mais belas obras de pura teologia. Só Deus é verdadeiramente imóvel, segundo a
doutrina de Aristóteles. A Física é um desenvolvido tratado do movimento e do
repouso, da quietação e da inquietação. Erro lamentável foi sempre o de confundir
com a física a ciência da natureza, limitada esta aos entes que vivem sob as leis
do nascer e do morrer, quer dizer, ao tempo. Erram os tradutores quando
escrevem naturalmente por fisicamente, como na primeira frase do
primeiro livro da Metafísica. Tudo
está em movimento; imóvel, só Deus; impiedosas, efémeras ou falsas serão quaisquer
representações da imobilidade.
A filosofia de Aristóteles, é, pois, a
defesa do movimento; na parte trivial, demonstrando contra os cépticos a
verdade do discurso, ela segue as vicissitudes do sujeito, segundo os modos de
ser, ou das acepções do ser, que lhe são conferidos pelos categoremas e pelas
categorias; na segunda parte, ou quadrivial, ela segue o movimento das substâncias
naturais, considerando principalmente o que existe por arte e por acaso. Pensar
é inferir para aferir. Neste preceito
aristotélico está a condenação do princípio kantista segundo o qual pensar é julgar. Aférese e diérese.»
Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).
«Ao publicar, em 1943, o seu primeiro
livro "O Problema da Filosofia Portuguesa", Álvaro Ribeiro já tinha atrás de si
uma longa carreira intelectual, sobretudo a de discípulo de Leonardo Coimbra,
mas ainda assim só manifesta na literatura e na política. Na literatura, através
de inumeráveis artigos, a maior parte deles não assinados, que publicara em
todo o género de revistas e jornais, muitos deles provincianos ou marginais,
como o mensário fadista "A Voz de Portugal". Na política, fora ele, com Pedro
Veiga, o fundador e doutrinador da "Renovação Democrática", a única afirmação
superior que o "esquerdismo" teve em Portugal mas que, naturalmente, os
vulgares e triunfantes esquerdistas não querem nem podem atender; a ela
pertenceram personalidades como Domingos Monteiro, Delfim Santos, Casais
Monteiro, Eduardo Salgueiro ou António Alvim que, na maior parte, vieram a
abandonar o "esquerdismo" para se distinguirem entre os nomes mais significativos
da nossa vida literária.
Os anos que decorreram entre 1930 e 1943
foram, para Álvaro Ribeiro, anos de grandes dificuldades financeiras, de funda
pobreza e até miséria. Licenciado, quando já estava decretada a sua extinção,
pela Faculdade de Letras do Porto onde Leonardo Coimbra chegara a reservar-lhe
um lugar docente, recusou-se a seguir, como a maior parte dos discípulos do
grande filósofo, a carreira de professor liceal e veio para Lisboa à procura de
um emprego que não encontrou. Trabalhava em "biscates", sobretudo em redacções
dos jornais onde apurou um estilo noticioso e insinuante que conservou em
muitas páginas, não as menos eloquentes, dos seus livros. Assim pobre, tinha
ainda a seu cargo a mãe e uma criança do triste prédio onde vivia que, ficando
de súbito orfã, ele adoptara. Mas nesse tempo podia aliar-se, a uma vida de licenciado
desempregado, uma certa boémia lisboeta de clubes nocturnos e casas fadistas da
qual, os que ainda a conheceram, falam com uma saudade deslumbrada. A pobreza e
o desemprego têm a vantagem de deixar o tempo livre. Álvaro Ribeiro podia
meditar demoradamente e ler muito. José Marinho disse-me um dia: “O Álvaro
pensa como um coração pulsa: sem cessar”.
Em seus anos de juventude, no Porto, lera até à exaustão as obras platónicas e sobre elas preparou ainda uma tese de doutoramento. Vindo para Lisboa, trocou Platão por Aristóteles, destruiu os escritos que fizera sobre o primeiro, passou até, e para sempre, a falar dele com certo desencanto. Mas nunca mais deixou de ler e estudar o segundo.»
Orlando Vitorino («Um filósofo singular: Álvaro Ribeiro»).
«Artista superior e homem
inquieto, Aristóteles não se limitou a compendiar ensinamentos de gramática,
retórica e dialéctica, em obras analíticas, mas realizou a superação da doutrina
antiga, ao constituir o organon, ou o
orgão, do pensamento discursivo, reflexivo e especulativo. Nos doze livros
encadernados por Andrónico de Rodes sob o título de Metafísica encontram-se vários apontamentos da lógica aristotélica,
os quais permitem interpretar a física e todas as doutrinas acroáticas, segundo
o critério de adequação do pensamento humano à visão especulativa de mais alta
realidade. Do movimento ao pensamento vai uma analogia a que Aristóteles foi
sempre fiel, e sobre esse esquema lógico assentam as críticas às substantivações
e substancializações da tendência fixista e do pendor técnico que ia a pouco e
pouco revogando a sabedoria antiga acerca da irrealidade do mundo sensível ou
da falsidade da sensação.
O substantivo, indispensável nas artes triviais, vai declinando numa lógica atenta à Natureza, isto é, ao nascer e ao morrer, à geração e à corrupção, enfim, às aparências e aos fenómenos do mundo sublunar. A aplicação dos predicados, dos predicamentos e das categorias aos substantivos realiza um processo que dissolve a opinião para consolidar a ciência, sem contudo anular a substância, não já sensível mas inteligível, que há-de ser postulada pela doutrina do movimento. Depois a modalidade dos verbos, com seu exemplo claro de distinção entre a potência e o acto, completará a lógica aristotélica, representativa da inquietação humana em difícil demanda do essencial.
Termo de quietação ao qual o inquieto ser do homem aspira, na vivência dolorosa que se pacifica pela anestesia, sem prazer, ou na inteligência persuasiva que repousa na memória, já sem querer, é termo solicitado ou postulado pelo intelecto no seu anseio de adequação à realidade. O intelecto suporta o termo interpretativo do movimento exterior e interior. O termo eidético, ideal ou essencial que o pensador tem em mente não provém de lugar exterior, determinado no espaço. A essência nominada, reconhecida pela palavra, ou inominada, concebida pelo pensador, é o terceiro termo elementar de um raciocínio completo. A essência invisível permanece fixa na memória, articula-se por processos de inteligência, e explica a coordenação e a subordinação dos fenómenos visíveis, aparências e aparições.
Horizonte fixo para o homem estático,
deslocar-se-á como barreira móvel à medida que a ciência for reconhecendo a
evolução humana. Em vez do pensamento sedentário, preocupado com o primeiro
elemento, a pedra sobre a qual edifica ou arquitecta as imagens vãs, é o
pensador itinerante quem, transitando de elemento para elemento, em viagens
cada vez mais perigosas e mais precárias, alcança todavia o que as brumas
escondem aos homens sem esperança.
Na invariável distância perdura a
quietação, mas logo pelo movimento, interior ou exterior, nos avisa pelas
imagens infixas de que até os corpos sólidos, de densidade mineral, se
plasticizam, fluidificam e eterizam como quaisquer outros fenómenos. Quebra-se
a anestesia, e temos de readmitir a estética. Segundo nos diz tudo está em
movimento, e a sensação nos ilude quando nos desperta, quase sempre para a dor
e raras vezes para o prazer. A própria árvore, que de longe nos parece imóvel,
age e reage nas condições do ambiente, porque também faz parte do mundo
sensível, aparente mas real.
A oposição entre a mobilidade e a imobilidade, tão propícia para a dialéctica, não satisfaz os requisitos da inteligência indagante e unificante, pelo que solicita, por inquietação, o terceiro termo elementar que permite o voo do raciocínio. O movimento há-de, por isso, ser situado entre as aparências e as essências, distinção indispensável à arte de filosofar. Se é certo que de estudar a história da filosofia quase sempre resulta o desprezo da filosofia, porque nos meandros da erudição torna-se estéril o poder conceptual, vale a pena aos curiosos verificar que aquela distinção, representada de vários modos, de vários graus e de várias formas, subsiste irredutível nos sistemas, nas sínteses e nas doutrinas.»
Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).
Os escritores falam do que escrevem
Álvaro Ribeiro é uma figura de grande relevo na nossa vida cultural – a qual não peca por excesso de riqueza – por seus trabalhos notáveis, principalmente nos domínios da filosofia. Tem, neste campo, vedado ao grande público, ideias próprias, conceitos próprios, critérios próprios. O problema, senão os problemas da filosofia em Portugal e da filosofia portuguesa têm sido por ele explanados em profundidade, quer no que têm de histórico e constituem a herança legada e mal recebida, do passado, quer no que eles têm de implicações actuais. Assumiu, a esse respeito, uma atitude crítica e uma outra construtiva. Não se limita a discordar do que se faz mal, como aponta, com grande lucidez e intensa claridade, a maneira por que, em seu critério, se devia fazer bem. Os seus estudos sobre Sampaio (Bruno) e Leonardo Coimbra figuram entre os melhores, porque os mais sérios, mais lúcidos, mais completos, até hoje publicados.
Álvaro Ribeiro, em relação ao muito que
vale, ao muito que sabe, ao muito que tem a dizer, escreve pouco, o que não
obsta a que a influência espiritual e cultural que exerce seja grande.
– Em
que trabalha actualmente? – inquirimos.
– Presto serviço numa repartição pública
onde me esforço por corresponder, do modo mais satisfatório, à confiança dos
meus superiores. Trabalhar é um dever social, mas a alegria no trabalho só é
dada a quem realizar na sua profissão o ideal da sua personalidade.
– Luta, então, com a falta de tempo para
escrever, depois do dia laborioso?
– Tempo há sempre, quando a vocação, ou
«chamada», se apresenta como imperativo categórico. Renunciando a vários
divertimentos humanos, evitando a ociosidade das tertúlias, encurtando os
períodos de repouso, o escritor economizará uma ou duas horas por dia para se
libertar da pressão interior, isto é, para exprimir o que lhe mandam dizer.
A
maior dificuldade está no problema de obter tempo livre para actualizar a cultura,
já que as bibliotecas públicas funcionam às horas em que os estudantes estão
nas aulas e os empregados nos escritórios. As bibliotecas eruditas são «só para
os sócios» das respectivas colectividades.
Ora sem frequente consulta de novos
livros, sem documentação fortificante, a produção do intelectual isolado não
pode ir além do ensaio opinioso.
– Preferiria ser bibliotecário,
professor, jornalista, se outra orientação profissional não tivesse dado à sua
vida de escritor?
– Gostaria eu de ter aplicado as minhas
habilitações ou os meus préstimos em um trabalho importante e urgente de serviço
público: – a edição nacional e popular da obra completa de Aristóteles. A obra
de Aristóteles é a pedra filosofal que permite a transformação, por assim dizer,
alquimista, dos metais vis em metais nobres que constituem a alta cultura. A
cada geração que queira aperfeiçoar ou renovar o sistema de conhecimentos
humanos cumpre, antes de mais, publicar a tradução actualizada dos livros
paradigmáticos. O aristotelismo medieval de Averróis, Maimónides e Santo Tomás de Aquino, como também o dos comentadores modernos Pedro da Fonseca, Francisco
Suárez ou João Baptista afiguram-se-nos hoje meros documentos paleográficos,
nocivos em quanto obstam a que o estudante diligente surpreenda nas obras dos
filósofos nossos contemporâneos inspiração benéfica da doutrina perene.
– Refere-se a um trabalho de grupo,
talvez patrocinado por uma fundação cultural ou por um instituto didáctico.
Encarregar-se-ia de traduzir directamente do grego, não é verdade?
– É verdade que não sou helenista; mas a
tradução da obra de Aristóteles, se for confiada somente a especialistas de
filologia clássica, conservará em termos arcaizantes as erróneas várias das
traduções árabes, hebraicas e latinas que adulteraram tendencionalmente a nobre
doutrina do fundador do Liceu. Só por intuição filosófica será possível recuperar a palavra do Mestre. Convém distinguir: há tradução e há tradição. O
texto francês que J. Tricot fixou para os livros de Aristóteles, editados pela
Librairie Philosophique J. Vrin, dar-nos-á o exemplo de um mau serviço para os
estudantes universitários. A tradução espanhola da Retórica, escrita por
António Tovar, é um modelo de actualização quase perfeita.
– Se atribui à tradução portuguesa da
obra de Aristóteles tão alta importância para a estabilização da nossa
cultura, alguma vez apresentou, certamente, o seu alvitre e a sua proposta às
entidades responsáveis.
– Infelizmente.
– Pode esclarecer a sua resposta
lacónica e amarga?
– Em Portugal tem sido dada à palavra cultura uma acepção perversa. A deslocação semântica explica a indiferença social pelos primeiros problemas. Assim é que as instituições chamadas de cultura obedecem muito mais a um critério utilitário ou disciplinar do que ao culto da verdade. A investigação científica declina para a aplicação técnica. Vivemos num tempo em que a filosofia do trabalho, que tem o seu máximo expoente em Karl Marx, autor do Das Kapital, vai substituindo a filosofia do capital, exposta admiravelmente por Aristóteles, a quem devemos o lúcido e perene conceito de escravatura.
– Há tão obscura ironia nas suas palavras como em muitas páginas dos seus ensaios. Algo de contraditório inverte a situação dos escritores portugueses, não é assim?
– Acima da verdade colocam os
intelectuais portugueses outros valores mais emocionantes: ou a beleza que
exprimem em escritos de mal dissimulada vaidade, ou a bondade que pretendem
realizar por modalidade polémica. Quem se dedica de preferência à pesquisa da
verdade, e, consequentemente, aspira a aperfeiçoar a sua cultura filosófica,
entra em desentendimento com as tertúlias literárias e descuida até publicar
livros.
– Diga-me agora, para concluir, que obra prepara para contento dos leitores?
– Não me considero publicista nem industrial das letras. Eis porque me esquivo a declarar títulos, a indicar editores, a marcar prazos nesta nossa conversa acerca das relações entre o pensar, o falar e o escrever. Os escritores falam do que escrevem...
(In Diário de Notícias, ano 104, n.º 36 667, Lisboa, 4 de Abril de 1968, pp. 17 e 18).