segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

A escola fixista

Escrito por Miguel Bruno Duarte






«O que entre nós acontece, acontece em geral nos outros países, embora alguns se tenham conseguido defender melhor do que nós das inevitáveis consequências de um "ensino superior" que, nos últimos decénios, só consegue não ser uma instituição caduca por ser uma instituição vazia. Os professores, agarrados aos privilégios tradicionais do ofício, constituem-se cada vez mais num sindicato de classe e fazem dos corpos docentes universitários uma associação de socorros mútuos. Movidos pela má consciência do seu magistério vazio, confiam a perduração do ofício e a segurança do emprego à adopção de doutrinas cada vez mais acessíveis, mais fáceis e mais degradadas, de doutrinas que tudo vão concedendo à dispensa de preparação cultural, de estudo documental e de reflexão intelectual e que lisonjeiam, portanto, o atrevimento raciocinante da juventude mais apressada, mais oca e mais afirmativa, de doutrinas acessíveis às formas mais comuns da ignorância. As universidades acabaram, deste modo, por se fazerem instrumentos para a formação de comunistas ou criptocomunistas, meios para a divulgação do comunismo do qual já se disse, com irrefutáveis razões, que é "a única doutrina acessível a todos os estúpidos". Assim se criou aquilo que, numa expressão já corrente, se designa por "marxismo universitário", mistura manhosa de comunismo e criptocomunismo que facilitará a obtenção de emprego bem remunerado numa sociedade dominada por complexos socialistas, que satisfará para toda a vida as estreitas carências intelectuais dos alunos menos dotados, mas que será, para os outros, os mais dotados, reflexivos e sérios, um obstáculo ou um malefício de formação escolar a cuja remoção vão ter de dedicar depois os melhores anos da sua vida». 

Orlando Vitorino («Exaltação da Filosofia Derrotada»).







O texto que se segue foi já devidamente actualizado para uma reedição especialmente revista de Noemas de Filosofia Portuguesa.


«A escravidão é a perda do valor pessoal, a abdicação da palavra própria, da realidade da parcela. É, no mundo humano, a direcção da pessoa por uma lei exterior; seria, no mundo físico, a exaustão completa da qualidade, a sua representação em pura quantidade, a supressão em cada massa de sua qualidade de inércia, a integral redução a puro geometrismo».

Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).


Segundo a tradição escolar, o ensino diferencia-se fundamentalmente em três graus: o elementar, o médio e o superior. Ora, estes três graus correspondem às três idades da formação da personalidade: a infantil, a adolescente e a juvenil. Implica, portanto, um movimento gradativo que está de acordo com os ritmos e as disposições da natureza humana, podendo até mesmo dizer-se que tem sido universalmente cumprido.

Contudo, convém chamar a atenção do leitor para o que, oportunamente, mais nos importa, que é, in mente, o ensino liceal, não só pela virtude conferida ao aperfeiçoamento superior da natureza moça, como também por ser o lugar onde, por princípio, se deveria manifestar o despertar da vida intelectual e sentimental dos adolescentes, a que primacialmente subjaz o princípio de individuação mercê do qual, da potência ao acto, cada indivíduo se sabe distinto e se reconhece diferente dos outros.

São, pois, os anos em que cada estudante tende a desvelar e a descobrir aquilo a que os pais e os professores propriamente designam por vocação, ou mais particularmente aqueles atributos inigualáveis e características únicas com que a própria natureza o dotou e agraciou. É, aliás, por isso que o justo paradigma do ensino liceal deve sobretudo apelar para uma multiplicidade tão variegada de cursos quanto é, de facto, expectável a progressiva diferenciação entre os indivíduos; depois, como essa diferenciação não oferece limites, ou é, por outras palavras, tão misteriosamente inclusiva quanto imprevisível, aquele paradigma é naturalmente suceptível de imperfeição; porém, nunca deve o ensino deixar de se organizar no sentido de disponibilizar aos adolescentes o maior número possível de cursos com vista à formação liceal por excelência.

Sabemos, infelizmente, que o ensino médio do nosso tempo faz e prepara o contrário. Apesar da dispersão ilusória e formalista das opções escolares em várias especialidades ou em múltiplas especializações, temos, de facto, vindo a observar que a indiferença suscitada por um tal ensino face à singularidade dos indivíduos e, portanto, assaz propiciador de um nivelamento uniformizante, denuncia como prioridade dominante a implementação de um ensino único, igualitário e, por consequência, válido para todos.

Daí a desilusão perante a actual situação confrangedora do ensino médio, a que convém necessariamente ligar as profundas implicações com os demais graus de ensino, nomeadamente o superior e o das primeiras letras. Desta forma, é na idade mais delicada e sensível da formação da personalidade que desde logo verificamos uma tendência negativa e até contraproducente no que à afirmação individual do ser humano se reporta, dado que a «unificação» ou a tão proclamada socialização do ensino apresenta-se segundo três directivas que designadamente passam pela subordinação do ensino à utilidade social, pela difusão da aprendizagem em grupo e pela adulteração do ensino por via da indústria do audiovisual.

Ora, no que toca à primeira das directivas supramencionadas, é evidente que a subordinação do ensino à utilidade social, que o mesmo é dizer às circunstâncias transitórias e contingentes da actividade técnica e económica, tem como efeito imediato uma clara incompatibilidade com a arte e o saber desinteressados. Tal situação, de resto, consolida e proporciona uma adversidade ao pensamento livre, sem o qual não pode haver existência civilizada que esteja no mais perfeito acordo com os princípios universais infundidos no espírito humano. Aliás, a abdicação que daí decorre tornou-se igualmente possível por razões que, incontestavelmente, consistem no abandono ou no esquecimento daquela visão sistemática e unitiva que faz, de todo o verdadeiro magistério, um modo de coexistência iniciática no qual se relacionam as manifestações naturais da realidade vivida e os superiores significados da transcendência principial.






Por contrapartida ao triunfo opiniático que exalta a cultura como um fenómeno social total, convém ainda reconhecer que, só no ensino propriamente situado, pode a filosofia elevar os homens ao universal concreto e verídico, sem o que tudo permanece, na ordem política, jurídica e económica, inteiramente destituído de qualquer significado superior. É por isso que para nós, Portugueses, se nos impõe conceber as supernas e profundas razões do nosso modo de filosofar, contrariando assim o falso e abstracto universalismo na base do qual, pairando uma Europa socialista aparentemente unida, se atacam as inconfundíveis fundações espirituais das entidades nacionais que de alguma forma ainda resistem e cada vez mais, pela legitimidade histórica que as caracteriza e assiste, teimam em se posicionar e afirmar como tais. Demais, avultando como um Mestre da tradição oculta portuguesa, Sampaio Bruno, o autor e livre-pensador de O Encoberto, também nos ensina, de acordo com José Marinho, «que não se compreende a filosofia senão quando se cria», (1) o que, em abono da verdade, significa que as causas de geração da nossa nacionalidade, isto é, da autenticidade e originalidade do pensamento português, quedam na ordem de um compromisso inevitável de realização lógica que não se coaduna com as representações de uma gramática geral e, portanto, válida para todos os povos.

Podemos, então, francamente deduzir que a finalidade última do ensino é o saber omnímodo que não se confunde, anula ou cousifica numa espécie de uniformidade ideológica, rotundamente sectária ou vulgarmente partidária, sob pena de cairmos na inevitável estatização da cultura, ou numa intervenção administrativa, técnica e profissionalizada do Estado em todos os domínios da actividade cultural. Atendamos, decididamente, que o nobilíssimo acto de educar não consiste em forçar as novas gerações a, custe o que custar, se adaptarem à organização social hodierna, por, nessa medida, conduzir a um anacronismo inevitável; além de que, nem sequer um tal acto se há-de projectar com vista à futura organização social, porque, na verdade, volver-se-ia tão-só em mero utopismo; assim, qualquer movimento educativo deve, antes de mais, saber operar, mobilizar e despertar nos adolescentes as poderosas virtualidades de superação criadora que, por sua natureza endógena, transcendem os fins propostos pela utilidade técnica, que só realmente valem quando, nalgum dado momento, surgem como o resultado proporcionalmente equilibrado do conhecimento, ou quando, proporcionando o esperado auxílio, simplesmente se configuram enquanto operações na matéria secundadas no cálculo, na experimentação ou no engenho constituinte da extensão científica.

Se, entretanto, o ensino apenas tiver por finalidade a subordinação à utilidade social, então todo ele será aquilo que, na sua exacta medida, for a sociedade. Ora, nesta surpreendente situação, como poderá, então, o adolescente desenvolver e afirmar a sua própria individualidade perante um ensino que se apresenta com as características gerais e abstractas da sociedade contemporânea, tais como as que manifestamente assinalam a preponderância da comunicação cibernética, da tecnologia militar e do emergente sistema preconizador de novos valores planetários em que influem, decisivamente, centros de poder politicamente unificados? Como poderão, de resto, os estudantes, eventualmente ditos, realizar a individuação no pensamento e, simultaneamente, darem-se conta da trama menos visível e caleidoscópica da percepção quando a cultura predominante, em sua opressão devoradora, se limita a ser o produto socializado e arregimentado das convicções partilhadas pela opinião pública mundial? E não terá ainda a subordinação do ensino à utilidade social uma agravada condição que se manifesta na cisão extrema com um certo e determinado tipo de clarividência que vai de Platão a Bergson, evidenciando, pura e simplesmente, até que ponto a civilização ocidental se encontra esvaziada de conteúdo e formas substanciais de pensamento? Aliás, toda esta decadência fora, em muitos aspectos, previamente estudada por pensadores esclarecidos como Hegel, Nietzsche, Oswald Spengler e Leonardo Coimbra, como se, porventura, prenunciassem, ainda que obscuramente, aquilo que já se nos afigura ser, em termos explícitos, o desenvolvimento irreversível das sociedades totalitárias num mundo globalmente programado por uma miríade de agências e organizações intergovernamentais que visam, sobretudo, a abolição das soberanias nacionais mediante a erosão gradual dos direitos de propriedade e das consequentes disposições de autogoverno de cada indivíduo em particular.

Sabemos, assim, que a utilidade social opõe sérios obstáculos à actividade intelectiva do homem, até porque já sempre foi dado reconhecer, desde a Antiguidade clássica, a conveniência para depurar ou afastar o exercício do pensamento das prementes preocupações de ordem sócioeconómica. Aliás, não foi por acaso que Aristóteles logrou afirmar ter sido o Egipto o berço da matemática em virtude do ócio usufruído pela casta sacerdotal. (2) Logo, a actividade especulativa do pensamento é algo que, pela sua verdade, condição e destino eminentemente espirituais, deve, por princípio profiláctico, permanecer aquém de qualquer ocupação mundana ou materialmente afim, conquanto, dada a sua imperiosa necessidade, obstaculiza e perturba a divina propensão do homem para a ética e para a liberdade.

Quem, no lance, é absorvido ou desviado para objectivos de incessante laboração, em que avultam as cumulativas exigências sociais, sabe perfeitamente quanto tempo ainda lhe resta para a íntima e transfigurante vida do pensamento. E se o ensino, tal como se encontra actualmente organizado, permite que o estudante possa repartir a sua atenção mental por actividades que de sua natureza lhe são espiritualmente nocivas, então teremos de admitir que existe, de facto, um perigo iminente para a sua integridade psiconoética. Por conseguinte, a divisão do trabalho, quer seja social ou industrialmente considerada, jamais poderá servir de modelo para a justa organização do sistema escolar, a não ser que se pretenda impor aos estudantes o critério igualitário da unidimensionalidade pensante, que é, no fundo, o que eventualmente permite, da sua parte, uma mais dócil aceitação dos variadíssimos estereótipos que tão correntemente abundam na sociedade colectivista contemporânea. (3) No mais, este modelo de vertente sociológica é, além de superficial e supérfluo, algo que se apresenta como indubitavelmente exterior à alma humana, visto rasurar todas as diferenças individuais que caracterizam e singularizam o ímpeto libertador da alma juvenil.

A segunda directiva reporta-se, por seu turno, à chamada “pedagogia de grupo”, que, difundida em meados do século passado, depressa chegou a manifestar os seus efeitos nefastos no âmbito da personalidade dos adolescentes. É, demais, através deste tipo de procedimento escolar que podemos, curiosamente, perceber que os estudos apresentados por um determinado grupo de alunos acabam por ser apenas realizados por um ou dois desses alunos, limitando-se os restantes a comparecer e a receber a correspondente habilitação do esforço alheio.

Ora, este proceder que é, visivelmente, tão desonesto como procaz, também nos leva a surpreender algo que, de profundamente negativo, não menos perpassa nos habituais métodos e metodologias do corpo docente. Deste modo, não estranhamos o facto de haver quem, versado no assunto, tenha especialmente criticado a forma como, em termos didácticos, os professores preparam e conduzem em grupo a normalização da actividade docente: «A orientação simonista da educação nas escolas portuguesas, na medida em que vai substituindo os professores por “agentes de ensino” e, recentemente, por “trabalhadores de ensino”, que devem proceder todos da mesma maneira, utilizar os meios audiovisuais, dar os mesmos programas, servir-se dos mesmos textos, constitui a própria negação da escola, no objectivo, nem sequer disfarçado, de fazer se não fez já, dos portugueses um povo de medíocres, isto é, de seres destituídos de memória». (4)

Movida, na sua generalidade, pela má consciência de um falso e degradado ensino, a classe dos professores, predominantemente sindicalizada, caracteriza-se, no essencial, por limitar a perduração do ofício e a segurança do emprego à compulsiva transmissão de um conjunto de temáticas que já vêm na linha de uma ordem programática pré-estabelecida, e, portanto, em tudo adaptáveis às formas mais comuns de ignorância que normalmente afligem a juventude mais oca e raciocinante. Aliás, parte do que explica a afirmação abrupta e impensante da juventude, encontra-se, por vício ou defeito do sistema escolar, na deplorável ausência de preparação elementar dos jovens estudantes no que principalmente respeita à capacidade de leitura e de expressão escrita, isto para não falar na dispensa de preparação cultural, de estudo documental e de reflexão intelectual que, quase por inteiro, define, por mais incrível que pareça, a classe privilegiada dos professores.

Consequentemente, não obstante a medíocre tarefa a que tão prosaicamente se entregam os tutores da «disciplina de Filosofia», a verdade é que os principais atributos e qualidades a exaltar no sublime exercício do magistério filosofal são, acima de tudo, a vocação autêntica para a missão espiritual, bem como a consagrada e fiel propensão para a máxima realização especulativa. Assim, ao termos por certo que a vocação é já algo de si bem diferente daquilo que o vulgo amiúde designa por aptidão, tal é o que nos permite concluir que a filosofia não pode nem deve ficar meramente subordinada a um conjunto de estéreis metodologias inadequadas ao puro pensamento. Nem, de resto, é salutar que se exija ao filósofo um avolumar enciclopédico de infindáveis e fastidiosos conhecimentos, porque até nos parece assaz fundamental que se possa contrariar, por totalmente desnecessária, a erudição palavrosa e o discorrer semi-sapiente do que é manifestamente caduco, inútil e desprovido de valor escatológico superior. Logo, temos apenas por indispensável o desenvolvimento em acto da unidade sófica do saber e, nessa medida, a floração em liberdade do singular artista da palavra.

Temos igualmente observado que são raros os professores que no ensino médio, terminadas as provas ou as provações academicamente exigidas, dão a conhecer o resultado escrito da sua reflexão intelectual. Não há assim, entre nós, nenhum género actualizado de especulação filosófica, cuja actividade aparece tão mal considerada em Portugal, senão mesmo restringida à investigação e à participação em congressos nacionais e internacionais.

Não esqueçamos, porém, que quanto mais a escola se desnacionaliza, tanto mais tenderá a exigir de cada agente de ensino a estipulada obediência aos programas internacionalmente vigentes. Desta forma, estamos perfeitamente cientes de que a destruição metódica do ensino em Portugal, mercê da interferência estrangeira na Universidade, se deve sobretudo à acção de programas planeados para a adopção utópica de um universalismo abstracto e igualitário, tal qual o especialmente preconizado nas instituições-chave do super-estatismo transnacional. (5)

Comprometidas na socialização radical da natureza humana estão, sem dúvida, as chamadas «Ciências da Educação», conquanto, sob a bandeira pedagógica, minam substancialmente o professorado a fim de o submeter a estranhos e abstractos métodos de educação hipotética. Não admira, pois, que os portugueses tenham efectivamente perdido a confiança nas faculdades de decisão e autonomia próprias, acabando assim por se tornarem no alvo dos mais nocivos agentes de intoxicação e de infecção social. Daí, portanto, o nosso mais vivo repúdio pela actividade oriunda de tais metodólogos, de modo que consideramos inútil e até prejudicial o praticismo proveniente das várias instituições aparentemente científicas a que tais metodólogos se encontram particularmente associados.


De entre todos os prejudiciais factores que mais contribuem para a queda da civilização cristã, é a monitorização programada da educação aquele que mais possibilidades oferece para o enfraquecimento e a desorientação dos povos, (6) o que, aliás, já vem na sequência da dissolução da árvore genealógica da família, actualmente consignada na legislação igualitária. Logo, tratando-se de uma época especial, como a nossa, em que prepondera o globalismo multipolar, não há nada como podermos vir a restabelecer, segundo a melhor tradição clássica, o perdido magistério por via do qual só o verdadeiro educador, consciente da sua missão espiritual, poderá garantir a infusão universal do seu pensamento conceitual e imaginal.

Por fim, temos a terceira directiva, que consiste na adulteração do ensino por intermédio da tecnologia audiovisual, a que juntamente acresce a perniciosa técnica da socialização grupal. Ora, tudo isto assenta no facto de que o agente especializado, mais particularmente entendido como um “agente de mudança” na sociedade globalizada, deve sobretudo transmitir ao estudante um conjunto prescrito de parâmetros eco-políticos mediante uma tão sofisticada quão eficiente estratégia de mistificação, para assim promover uma espécie de didáctica linear em que a vida conceptual da palavra, já entretanto preterida por uma nomenclatura ao serviço do “desenvolvimento sustentável”, passa a ser doravante substituída por um manual de programação comum, bem como pelo emprego fraudulento dos meios audiovisuais que transformam o ensino em algo de simplesmente instrumental perante o que, acima de tudo, deveria constituir a magistralidade singular do professor e a perfectibilidade individual do aluno. Por conseguinte, um tal aparentado processo de comunicação, baseado essencialmente no monopólio virtual da informação, nega substantivamente os fins espirituais do que poderia, porventura, vir a ser a nossa melhor tradição liceal, em que o eixo real da educação mormente perpassa pela centralidade pluridimensional da pessoa humana, tanto na sua imaginação criadora como na auspiciosa intuição do seu destino sobrenatural.

Depois, convém ainda salientar que os processos de ensino pela imagem podem, de facto, suscitar um entorpecimento disfuncional no acto de captar a tessitura complexa do real, já que a fabricação e o encadeamento sugestivo de imagens origina, naqueles que diariamente sofrem o seu efeito hipnótico, uma visualização apática que paralisa a conceptibilidade concêntrica da inteligência humana. Preterida assim a visão conceptológica aristocratizada, o ensino interactivo multimédio obstrui, alfim, o movimento ascensional do intelecto activo, também ocasionalmente evidente na sequência propagandística de diapositivos cuja projecção, convidando à visualização passiva, não exibe nem encerra qualquer conteúdo cognitivo inteligível. De resto, é já perfeitamente claro que os novos programas de educação, posto que interrelacionados e cada vez mais assentes num sistema global de redes digitais interligadas, terão por principal objectivo substituir, passo a passo, e momento a momento, o ensino tipicamente oral e vivencial da literatura, da filosofia e da história pelo que, num futuro iminente, tenderá a concretizar-se na internacionalização vitoriosa de um sistema de censura universal do pensamento. Numa palavra, tudo assaz concorre para a negação das doutrinas filosóficas, artísticas e religiosas inspiradas na sabedoria clássica, como também tudo o mais se impõe mediante os processos fraudulentos da historiografia contemporânea, através dos quais se procede à deturpação da História Universal, por um lado, e da História Nacional, por outro.

Apesar de tudo, consta ainda que a maior parte dos professores ainda esperam, na melhor das hipóteses, encontrar nos novos métodos de difusão do ensino a compreensão objectiva dos principais problemas que afligem a humanidade. E a par disso consta igualmente que o acentuado e desequilibrado aumento da instrução torna cada vez mais difícil e complexa a interacção da vida social, já que hoje em dia ninguém poderá, decerto, realizar a total abrangência daquilo que na ordem tecnocrática veio, infelizmente, subverter a tradição outrora consagrada no culto, na cultura e na civilização. Somos, pois, levados a crer que a instrução cessa quando se transforma em divulgação e, nessa medida, em subsequente vulgarização do que, por sua natureza exógena, jamais se coaduna com o espiritualmente realizável.

É sobretudo com base no exclusivo da especialização técnica, tão fundamente prejudicial a todo o ensino, que a estratégia de eliminação da diferença se cumpre inexoravelmente. A escola assim programada representa um racionalismo estático que mais corresponde ao predomínio da sobrevaloração técnica sobre a desvalorização artística, o que deveras favorece, na esfera funcional da tecnocracia prepotente e autoritária, as comprometidas inteligências que mais pesam na política internacional. Aliás, eis, de resto, a razão por que pertence ao pensador experimentado, avisado do que significa o culto da ciência no processo que, segundo Rudolph Joseph Rummel, levou ao democídio durante o século XX, saber o quanto a escola fixista não representa, por defeito irrevogável, o dinamismo do aperfeiçoamento integral do ser humano. Por outro lado, tal é também o que permite explicar por que é que as universidades, exclusivamente voltadas para o princípio da especialização redutora, acabaram por ficar espiritualmente inoperativas ao determinarem um agente técnico por cada área, disciplina ou especialidade didáctica, num esforço que, além do mais, obsta à realização do fim último preconizado no e pelo universal concreto.

O enorme potencial que a plataforma comum tecnológica pode hoje fornecer ao homem, torna-se, mais do que nunca, extremamente perigoso para as artes da palavra, na exacta medida em que prepara e generaliza a degenerescência da expressão oral e escrita. Deste modo, não é de admirar que tão poucas pessoas saibam propriamente ler e escrever, já que o sintoma de um tal fenómeno perpassa em numerosos documentos escritos que constantemente denunciam a ausência de fluidez adjectiva que mais se assemelha a uma fonação moribunda. Por sua vez, a degradação contínua da eloquência vai dando lugar a uma larga onda de discussões polémicas que são, infelizmente, evidências assustadoras na impropriedade linguística da palavra humana. E, a par disso, atente-se à situação catastrófica a que tem sido conduzida a tradicional aprendizagem do ler, do escrever e do contar, a começar no primeiro ano do ensino onde se cultivam as primeiras letras, que deve, aliás, ser justamente compreendido como o natural prolongamento da fala que as mães ensinam aos filhos, sem o que graves prejuízos irreparáveis resultarão para o seu desenvolvimento ulterior.


Nestas circunstâncias, há sempre quem, porventura, julgue que o poder criador da palavra não oferece, por vago e retoricamente inútil, qualquer tipo de compatibilidade com a objectividade científica, normalmente identificada com a abstracção matemática, ou até com os avanços da tecnologia, por mais tangíveis e visíveis, mas indubitavelmente inertes. Porém, em muitos casos, isso só prova, ou prontamente revela que as pessoas que foram mentalmente condicionadas nas instituições escolares e universitárias, tendem, de facto, a assinalar uma tendência defeituosa no precipitado acto de julgar. Aliás, não por acaso se ouvia antigamente dizer serem, à partida, bastante consideráveis as diferenças daquilo que ao espírito era dado observar quando descia da capital à província, ou da cidade à vila, a ponto de melhor discernir, por tradição e amor à terra, o essencial do acidental. Por conseguinte, a distância que separa da natureza os homens públicos, familiares das repartições administrativas e das mais próximas ou distantes instituições de ensino, num protagonismo efémero e ilusório de que a maior parte é, ao fim e ao cabo, vítima, configura uma verdade que por ora desafia os mais desatentos e os mais desprevenidos.

Enfim: se é certo que a vida cosmopolita não se esgota simplesmente no prestígio da organização tecnoburocrática, ou até na insidiosa propaganda que sopra dos centros de operações da inteligência global, é também curial que se diga não ter uma tal vida a mais directa relação com o transcurso cíclico da Natureza, frequentemente serena, encantadora e a desafiar quem mormente ignora o poder criador de Deus.


Notas:

(1) José Marinho, O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, Porto, 1945, p. 31.

(2) Aristóteles, Metafísica, Madrid, Editorial Gredos, 1990.

(3) Quanto à análise do economista Frederico Hayek sobre o avanço do socialismo nos países da Europa Central, o seu valor reside na afirmação de que a instauração de um regime autoritário na esfera de existência de um povo começa, pois, numa forma única e esmagadora de organização que, à laia de um chefe ou de um grupo, acaba por se impor pela força ditatorial da opinião homogénea. Convém, aliás, exemplificar como tamanho empreendimento encontra terreno propício nos sectores e domínios da presente educação, para onde, de resto, vão sendo mobilizados os elementos intelectualmente mais fracos de uma sociedade: «(…) há todas as razões para considerarmos verdadeiro que, quanto mais elevada for a educação e a inteligência de um indivíduo, mais as suas opiniões e seus gostos se singularizam e, portanto, mais resistência oporá em dar a sua concordância a uma hierarquia de valores que lhe proponham. A prova disso é que, quando queremos encontrar um alto grau de uniformidade e semelhança de pontos de vista, temos de descer às regiões sociais de níveis morais e intelectuais mais baixos e nos quais predominam os instintos e os gostos mais primitivos e grosseiros. Não quer isto dizer que a maioria do povo tenha um nível moral baixo, mas significa apenas que a maior parte das pessoas com valores éticos muito semelhantes são pessoas de níveis baixos. Como se o denominador comum mais baixo fosse o que reúne o maior número de pessoas. Se for necessário constituir um grupo bastante numeroso e forte para impor aos outros as suas concepções éticas da vida, esse grupo nunca será recrutado entre os que possuem gostos altamente singularizados e desenvolvidos. Será antes recrutado entre aqueles que formam as “massas”, no sentido pejorativo do termo, entre os menos originais e independentes, entre os que não hesitem em se servir do peso do seu número para apoiarem os seus ideais privados» (Frederico Hayek, O Caminho para a Servidão, pp. 219-220).

(4) António Telmo, «O Discurso do Método a seguir nas Escolas», in Bárbara, n.º 1, 1997, p. 20.

(5) Consideremos ainda, no que concerne ao processo de desnacionalização escolar, o proeminente testemunho de Álvaro Ribeiro: «Dada a acumulação e a convergência de todos os indícios, é lícito admitir – o que eu sinceramente creio – que essa actividade desnacionalizante e desnacionalizadora está a ser efectivamente comandada, não por homens conscientes da subtil delinquência em que se encontram envolvidos, mas por um espírito difícil de discernir na puridade da sua essência, mais facilmente conhecido pelos seus propósitos e efeitos inegáveis» (Álvaro Ribeiro, «O Homem Português», in As Portas do Conhecimento, pp. 308-309).

(6) É lícito admitir, nas condições do mundo contemporâneo, que entre a vida escolar e a uniformização sociológica da humanidade, existem implicações extremamente subtis a que conviria, desde já, atender: «Nós sabemos perfeitamente – temo-lo sentido na carne, se é que não mesmo na alma – que a hora é poderosamente anti-filosófica. Hoje, porventura mais realmente do que na época em que viveu e pensou Leonardo Coimbra, o positivismo e o materialismo dominam quase impantemente a vida das sociedades, dos Estados e dos homens. É, desde logo, uma ousadia abordar os problemas pedagógicos numa perspectiva filosófica. O que os poderes nacionais e internacionais querem que façamos – poderes políticos, económicos, sociais e culturais – é executar os programas pedagógicos que nos fornecem já feitos: executá-los à luz dos princípios, meios e fins que os informam e acompanham. A verdade é que – apesar das reiteradas declarações em contrário – esses poderes não querem que nós pensemos a educação do homem com a liberdade e a radicalidade com que o homem deve pensar tudo e deve principalmente pensar-se a si próprio» (Manuel Ferreira Patrício, A Pedagogia de Leonardo Coimbra, Teoria e Prática, Porto Editora, 1992, p. 9).






2 comentários:

  1. Miguel, o trabalho de Charlotte Iserbyt lhe é familiar?

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  2. Não estou propriamente familiarizado com a sua obra, embora já tenha tomado conhecimento da existência do seu livro "The Deliberate Dumbing Down of America". Merece, de facto, toda a atenção, na medida em que dá a conhecer como o sistema de educação americano foi já inteiramente distorcido com vista à criação de um "currículo universal" que esteja em clara sintonia com os desígnios de um governo socialista mundial. De resto, a autora sustenta essa demonstração a partir dos planos inicialmente promovidos pela Andrew Canergie Foundation, em clara associação com os propósitos mundialistas do clã Rockefeller.

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