sexta-feira, 30 de março de 2012

Islão e Cristandade (i)

Escrito por Frithjof Schuon



Frithjof Schuon


«(…) o modo racional de conhecimento jamais ultrapassa o domínio das generalidades, nunca chegando a atingir qualquer verdade transcendente. Pode, porém, servir de modo de expressão a um conhecimento supra-racional, como foi o caso da ontologia aristotélica e escolástica, mas sempre ocorrerá em detrimento da integridade intelectual da doutrina. Alguns talvez objectem que a metafísica mais pura se distingue por vezes pouco da filosofia; que, como esta, faz recursos a argumentos e parece chegar a conclusões. Mas tal semelhança só se apoia no facto de que todo o conceito, desde que é expresso, se reveste forçosamente dos modos do pensamento humano, que é racional e dialéctico. O que distingue aqui essencialmente a proposição metafísica da proposição filosófica é que a primeira é simbólica e descritiva – no sentido em que se serve dos modos racionais como de símbolos para descrever ou traduzir conhecimentos que comportam mais certeza do que qualquer outro conhecimento de ordem sensível -, enquanto a filosofia, a que não foi em vão que se chamou ancilla theologiae, nunca é mais do que aquilo que exprime».

Frithjof Schuon («A Unidade Transcendente das Religiões»).


«As palavras faladas são símbolos das afecções de alma, e as palavras escritas são símbolos das palavras faladas. E como a escrita não é igual em toda a parte, também as palavras faladas não são as mesmas em toda a parte, ainda que as afecções de alma de que as palavras são signos primeiros, sejam idênticas, tal como são idênticas as coisas de que as afecções referidas são imagens».

Aristóteles («Periérmeneias»).


«(...) mesmo nas coisas que são intuídas pela mente, em vão todo aquele que as não pode intuir, ouve as palavras do que as intui, à parte ser útil acreditá-las enquanto se ignoram. Todo aquele porém que as pode intuir, esse interiormente é discípulo da Verdade, e exteriormente é juiz daquele que fala, ou melhor, da mesma locução, pois ele muitas vezes sabe as coisas que se disseram, quando as ignora aquele mesmo que as disse.



Santo Agostinho e o mistério da Santíssima Trindade



Suponhamos por exemplo que alguém, acreditando nos epicuristas, e julgando que a alma é mortal, expõe os argumentos que sobre a sua imortalidade foram elaborados por homens mais sábios, e que o está a ouvir uma pessoa capaz de intuir coisas espirituais. Esta pessoa julga que o tal epicurista diz coisas verdadeiras, mas o que as diz ignora se diz coisas verdadeiras, ou até as julga falsíssimas. Dever-se-á então pensar que ele ensina o que não conhece? Entretanto, usa das mesmas palavras de que também poderia usar, se fosse conhecedor...».

Santo Agostinho («O Mestre»).


«O mundo da natureza consiste em múltiplas formas reflectidas num único espelho. Não, melhor dizendo, é antes uma única forma reflectida em múltiplos espelhos».

Muhy-d-Dîn Ibn'Arabî


«Chamado Muhyî al-Dîn, isto é , Vivificador da Religião - para opor às eventuais mortificações derivadas que o averroísmo causara - Ibn Arabí deve definir-se em primeiro lugar pelo que não foi: nem um pensador do kalâm, nem um faylasûf ao modo aristotélico. O termo omisso define o que foi, um místico que, à prática, aditou a teoria da mística. (...) Ibn Arabí parte de um cepticismo acerca do entendimento humano para conhecer o que mais importa. O princípio do conhecimento consiste em negar a capacidade humana para o conhecimento divino só por humanos meios. O conhecimento é, porém, aquisitivo, destinado a conhecer as duas categorias do Ser: o Ser em si mesmo, e o ser criado».

Pinharanda Gomes («A Filosofia Arábigo-Portuguesa»).




Ibn Arabí









Islão e Cristandade


Indo ao fundo do problema, é-se obrigado a constatar – posta de parte toda e qualquer questão dogmática – que a causa da incompreensão intrínseca entre cristãos e muçulmanos reside no seguinte facto: o cristão vê sempre diante si a sua própria vontade. Essa vontade a que ele vem praticamente a reduzir-se -; acha-se, pois, perante um espaço vocacional indeterminado, espaço no qual ele se pode lançar dando largas à sua fé e ao seu heroísmo. Deste modo, o sistema islâmico de prescrições «externas», devidamente ponderadas e calculadas, surge a seus olhos enquanto expressão de uma mediocridade disposta a todas as concessões e incapaz de qualquer espontaneidade, de todo e qualquer impulso próprio ou voo espiritual. Em teoria – pois, na prática, ignora-se em absoluto -, a virtude muçulmana parece-lhe assim coisa superficial e vã. A perspectiva do muçulmano é radicalmente outra: ele tem perante si, perante a sua inteligência – inteligência que tomou uma opção, que escolheu o Único -, não um espaço volitivo, espaço que surgiria a seus olhos como uma tentação de aventura individualista, mas sim toda uma rede de canais divinamente predispostos com vista ao equilíbrio da sua vida volitiva. Este equilíbrio, longe de ser um fim em si, contrariamente ao que o cristão costuma pressupor habituado que está a um idealismo voluntarista mais ou menos exclusivo, não passa, em última análise, de uma base destinada a permitir-lhe evitar, no âmbito da contemplação pacificadora do Imutável, símbolo de serenidade e libertação, as incertezas e a turbulência do ego. Resumindo: se a atitude de equilíbrio que o Islão busca e concretiza surge aos olhos dos cristãos como mais não sendo que mediocridade calculista, incapaz de sobrenatural, também o idealismo sacrificial do Cristianismo corre o risco de ser mal interpretado pelo muçulmano, de ser por ele encarado enquanto individualismo egoístico, desdenhoso desse dom divino que a inteligência é. E, caso nos objectem que o muçulmano comum pouco se preocupa com contemplação, responderemos que o cristão médio também não se incomoda por aí além com a questão do sacrifício. A verdade é que, tal como todo o cristão acalenta no fundo da sua alma um impulso sacrificial, impulso que talvez nunca venha a assumir, também todo o muçulmano possui, por via da sua própria fé, uma predisposição para a contemplação, muito embora uma tal contemplação talvez nunca chegue a manifestar-se dentro de si, a despontar no seu coração. Mas, para lá disso, alguns poderiam contrapor que os místicos cristãos e muçulmanos, longe de serem tipos opostos, apresentam, bem pelo contrário, analogias de tal modo flagrantes que já se julgou pertinente concluir pela ocorrência de adopções, tanto unilaterais como recíprocas. A isso responderemos que, se se supõe que o ponto de partida dos sufis foi o mesmo do dos místicos cristãos, coloca-se então a questão de saber porque é que eles permaneceram muçulmanos e como é que suportaram continuar a sê-lo. Na realidade, eles não eram santos «apesar» da sua religião, mas sim «por via» dessa mesma religião. Longe de terem sido cristãos disfarçados, os Hallâj e os Ibn Arabi mais não fizeram, pelo contrário, que levar possibilidades latentes do Islão ao seu auge, tal como o tinham feito, aliás, os seus grandes predecessores. A despeito de determinadas aparências, como seja a ausência do monaquismo enquanto instituição social, o Islão, preconizando a pobreza, o jejum, a solidão e o silêncio, comporta em si todas as primícias de uma ascese contemplativa.




Quando o cristão ouve a palavra «verdade», pensa de imediato no facto de que «o Verbo se fez carne», ao passo que o muçulmano, ao ouvir esta mesma palavra, pensa a priori que «não existe qualquer divindade à margem da própria Divindade», algo que, consoante o seu grau de conhecimento, interpretará ou em termos literais, ou em termos metafísicos. O Cristianismo baseia-se num «acontecimento», o Islão num «ser», numa «natureza das coisas». Aquilo que no Cristianismo surge como um facto único, designadamente a Revelação, tornar-se-á no Islão a manifestação ritmada de um Princípio (1). Se, para os cristãos, a verdade está no facto de Cristo se ter deixado crucificar, já para os muçulmanos – para quem a verdade está no facto de apenas existir um só Deus – a crucificação de Cristo não pode, pela sua própria natureza, ser «a Verdade», consistindo a rejeição muçulmana da cruz numa forma de expressar semelhante convicção. O «anti-historicismo» muçulmano – que, por analogia, poderíamos qualificar de «platónico» ou de «gnóstico» - culmina precisamente numa tal rejeição, no fundo meramente externa, até mesmo duvidosa, pelo menos para alguns, em termos de intenção (2).

A atitude reservada do Islão, não perante o milagre, antes perante o apriorismo judaico-cristão – e sobretudo cristão – do milagre, explica-se pela predominância do pólo «inteligência». Com efeito, o Islão entende fundamentar-se na evidência espiritual, no sentimento de Absoluto, e isto em conformidade com a própria natureza do homem, a qual é aqui encarada enquanto inteligência teomorfa, não enquanto vontade que apenas espera a vir seduzida no bom ou no mau sentido, logo, por milagres ou por tentações. Se o Islão, a última das recém-chegadas na série das grandes Revelações, não se fundamenta no milagre – muito embora tenha necessariamente de o admitir, sob pena de deixar de ser uma religião -, isso deve-se igualmente ao facto de que o Anticristo «a muitos reduzirá pelos seus prodígios» (3). Ora, acontece que a certeza espiritual, achando-se nos antípodas da «inversão» produzida pelo milagre – e que o Islão oferece sob a forma de uma lancinante fé unitária, de um agudo sentido do Absoluto -, é um elemento inacessível ao demónio. Este pode imitar um milagre, mas não uma evidência intelectual, pode imitar um fenómeno, mas não o Espírito Santo, excepção feita no caso daqueles que desejam ser enganados, e que, de qualquer das formas, não possuem nem o sentido da verdade, nem o do sagrado.






Aludimos mais atrás ao carácter não histórico da perspectiva do Islão. Um tal carácter permite explicar, não só a intenção de mais não ser que mera repetição de uma realidade intemporal ou simples fase de um ritmo anónimo, logo, uma «reforma» - porém, isto apenas no sentido estritamente ortodoxo e tradicional do termo, inclusive num sentido de transposição, visto que uma autêntica Revelação é forçosamente espontânea, proveniente apenas de Deus como de facto é, sejam quais forem as aparências -, mas também noções como a da criação contínua, pois se Deus não fosse sempre Criador, autor de uma criação a cada instante renovada, o mundo desmoronar-se-ia. Ora, visto Deus ser sempre Criador, criador contínuo e permanente, é Ele quem intervém em todos os fenómenos, não havendo, pois, causas segundas, princípios intermédios, leis naturais que possam interpor-se entre Deus e o facto cósmico, salvo no caso do homem que, sendo o representante (imâm) de Deus na Terra, possui os dons miraculosos que a inteligência e a liberdade representam. Contudo, em última análise estas também não escapam à determinação divina: assim, o homem escolhe livremente obedecer ou não àquilo que Deus quer, mas «livremente» apenas porque Deus assim o quer, e isto já que Deus não pode deixar de manifestar, no âmbito da ordem contingente, a Sua absoluta Liberdade. A nossa liberdade é assim real, porém, de uma realidade tão ilusória quanto a relatividade em que se vem a manifestar, relatividade na qual não passa de um mero reflexo d’Aquilo que existe, d’Aquilo que é.

Ao fim e ao cabo, a diferença intrínseca entre o Cristianismo e o Islão surge de forma bastante clara naquilo que cristãos e muçulmanos respectivamente detestam. No caso cristão, revela-se odioso, primeiro, a rejeição da divindade de Cristo e da Igreja, depois, todas as morais que sejam menos ascéticas do que a sua, isto sem falar já da luxúria. Quanto ao muçulmano, odeia a rejeição de Alá e do Islão, pois a Unidade suprema, assim como o carácter absoluto e a transcendência desta, surgem a seus olhos fulgurantes de evidência e de majestade, além de que o Islão, a Lei, representa para si a própria Vontade divina, a emanação lógica – em termos de equilíbrio – dessa Unidade. Ora, a Vontade divina – e é sobretudo aí que nos surge toda a diferença – não coincide forçosamente com o aspecto sacrificial, podendo mesmo, conforme os casos, «aliar o útil ao agradável». Por conseguinte, o muçulmano dirá: «É bom aquilo que Deus quer» e não: «O doloroso é aquilo que Deus quer». Logicamente, o cristão é da mesma opinião que o muçulmano, só que a sua sensibilidade e imaginação tendem mais para a segunda fórmula. No âmbito do islamismo, a Vontade divina tem em vista, não a priori o sacrifício e o sofrimento enquanto penhores de amor, mas sim o desenvolvimento da inteligência deiforme (min Rûhî, «do Meu Espírito»), inteligência determinada pelo Imutável, inteligência que, consequentemente, engloba em si todo o nosso ser, caso contrário incorrer-se-ia em «hipocrisia» (nifâq), visto que conhecer é existir, conhecer é ser. Na realidade, as aparentes «facilidades» do Islão tendem para um equilíbrio – já antes o dissemos -, um equilíbrio cuja razão suficiente reside, em última análise, no esforço «vertical», na contemplação, na gnose. Numa dada óptica, devemos fazer o contrário daquilo que Deus faz, enquanto, numa outra, devemos agir como Ele: é que, por um lado, assemelhamo-nos a Deus porque existimos, mas, por outro, somos-lhe opostos porque, dado existirmos, nos achamos separados d’Ele. Por exemplo, Deus é amor, logo, por um lado, e precisamente porque somos semelhantes a Ele, devemos amar, mas, por outro, Ele também julga e tira vingança, algo que nós, precisamente porque somos diferentes d’Ele, não podemos fazer. No entanto, dado estas posições serem meras aproximações, as morais podem e devem diferir, pois há sempre lugar em nós – pelo menos, em princípio – para um amor culpado e uma justa vingança. Neste ponto, é tudo uma questão de acento tónico e de delimitação, pelo que a escolha depende de uma dada perspectiva -, antes uma perspectiva conforme à natureza das coisas ou a este ou àquele aspecto preciso dessa mesma natureza (in Compreender o Islão, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 21-25).




Notas:

(1) Também a queda – e não só a Encarnação – é um «acontecimento que é suposto poder determinar de uma forma absoluta um «ser», nomeadamente o ser do homem. Para o Islão, a queda de Adão é uma manifestação necessária do mal, e isto apesar de o mal não poder determinar o ser específico do homem, pois este jamais pode perder a sua deiformidade. No Cristianismo, o «agir» divino parece, de certa forma, suplantar o «ser» divino, designadamente no sentido de que o «agir» vem a recair sobre a própria definição de Deus. Uma tal forma de ver pode parecer algo expedita; contudo, existe aí um distinguo extremamente subtil, facto que não é possível negligenciar quando se trata de comparar duas teologias.

(2) Tal é o caso de Abû Hâtim, citado por Louis Massignon em Le Christ dans les Évangiles selon Al-Ghazzâlî.

(3) Um autor católico da «belle époque» poderia muito bem exclamar: «Precisamos de signos, de sinais, de factos concretos!» Semelhante frase seria inconcebível da parte de um muçulmano, pois, na óptica do Islão, ela surgiria enquanto infidelidade, até mesmo enquanto apelo ao diabo ou ao Anticristo, e, em qualquer dos casos, enquanto uma extravagância das mais censuráveis.

Continua


terça-feira, 27 de março de 2012

São Bernardo

Escrito por René Guénon







«Protector dos Templários contra o Papa, protector dos Judeus contra o Povo se mostrou outrossim D. Dinis, que contra o Papa e contra o Povo, como este acabou por dizer, fez tudo quanto quis».

Sampaio Bruno («Os Cavaleiros do Amor»).


«O silêncio de René Guénon sobre tudo quanto se passou em Portugal, depois da destruição na Europa da Ordem da Milícia do Templo, tem surpreendido e perturbado os raros investigadores - como José Luís Conceição Silva - que verificaram a relação directa entre o que ele escreveu no Rei do Mundo e os descobrimentos marítimos dos portugueses.

É inverosímil interpretar esse silêncio como desconhecimento da nossa história num homem tão vasta e profundamente informado.

"Fala-se muito do Preste João na época de São Luís, a propósito das viagens de Carpin e de Rubruquis. O que complica as coisas é que, segundo alguns, teria havido quatro personagens com este título: no Tibete (ou sobre o Pamir), na Mongólia, na Índia e na Etiópia (esta última palavra tem um sentido muito vago); é provável que se trate de diferentes representantes do mesmo poder". Eis um exemplo do que escreve René Guénon. Será possível que o autor destas linhas ignorasse que a viagem de Vasco da Gama tenha tido precisamente por fim o contacto com o Reino do Preste João?

Também Julius Evola, outra grande autoridade no assunto, cala tudo sobre Portugal, embora saiba muito bem que "uma nau com cruz vermelha sobre vela branca é a que recebeu Parsifal e o conduziu para um lugar desconhecido, onde estava o Graal e donde Parsifal não voltou mais". Parece que, com a destruição dos Templários nos começos do século XIV, a cobertura que lhes deu D. Dinis através da Ordem da Milícia de Cristo levasse a concentrarem-se na terra do extremo ocidente europeu os últimos prolongamentos de uma organização que tanto Guénon como Evola consideram depositária da tradição primordial e que tinha "por missão principal assegurar a comunicação entre o Oriente e o Ocidente, comunicação cujo verdadeiro alcance se avalia quando se verifica que o centro do mundo sempre foi descrito, pelo menos no que diz respeito aos tempos 'históricos', como situado no Oriente". Quando seria de esperar uma alusão à Ordem da Milícia de Cristo, René Guénon escreve: "Todavia, depois da destruição do Templo, o Rosacrucianismo, ou aquilo que recebeu este nome a seguir, continuou a assegurar a mesma ligação, embora mais dissimuladamente"».

António Telmo («História Secreta de Portugal»).







«Reparem como o patriotismo de Fernando Pessoa é considerado um aspecto menor do que escreveu. Até Afonso V (Pessoa pensava que até D. João III) Portugal foi regido pelos Rosa-Cruzes; tal é, pelo menos, o ensino da Mensagem. A monarquia, com D. João III, passou para as mãos dos seus inimigos. Há o análogo disto na Europa, com a diferença que, nesta, a mutação dá-se mais cedo, quando aqui reinava D. Dinis. É então que se começa a trabalhar para a implantação do socialismo pela propaganda da noção de igualdade. Levou séculos, mas foi fácil. Bastou fazer passar a inveja por generosidade. O socialismo é, pois, obra dos Rosa-Cruzes. Tornou-se necessário para combater aqueles que se tinham apoderado da monarquia.

Hoje, porém, qualquer tentativa de derrubar os governos socialistas é aproveitada por estes últimos, que aparecem como os verdadeiros representantes da Pátria. Compreende-se assim que o monarquismo de Fernando Pessoa e o republicanismo de Sampaio Bruno sejam a mesma coisa...».

Tomé Natanael («Viagem a Granada»).


«Eu, na verdade, quanto mais longe e mais facilmente me adiantei nos estudos das letras, tanto mais ardentemente a elas me apeguei, e fui seduzido por um tão grande amor por elas que, abandonando aos meus irmãos a pompa da glória militar junto com a herança e a prerrogativa dos primogénitos, renunciei completamente à corte de Marte para ser educado no regaço de Minerva. E, visto que eu preferi as armas dos argumentos dialécticos a todos os ensinamentos da filosofia, troquei as outras armas por essas e antepus os choques das discussões aos troféus das guerras. Por isso, perambulando pelas diversas províncias a travar debates, onde quer que ouvisse dizer que florescesse o estudo dessa arte, tornei-me um émulo dos peripatéticos.

(...) Ora aconteceu que eu me aplicasse, de início, a discorrer sobre o próprio fundamento da nossa fé por meio de analogias propostas pela razão humana, e que eu compusesse para os meus alunos um tratado Sobre a Unidade e a Trindade de Deus. Eles me pediam argumentos humanos e filosóficos, e insistiam mais naqueles que pudessem ser entendidos do que proferidos, dizendo ser supérflua a prolação de palavras sem a compreensão das mesmas, e que não se pode crer naquilo que antes não se entendeu, e que é ridículo alguém pregar aos outros o que nem ele próprio nem aqueles que ensina podem compreender com o intelecto».

Pedro Abelardo («Historia calamitatum»).




SÃO BERNARDO






Entre as grandes figuras da Idade Média há poucas cujo estudo seja mais apropriado do que a de São Bernardo para dissipar certos preconceitos caros ao espírito moderno. Efectivamente, haverá algo mais desconcertante, para esse espírito, do que ver um puro contemplativo, que sempre quis ser assim e continuar a sê-lo, chamado a desempenhar um papel preponderante na condução dos negócios da Igreja e do Estado, e triunfando muitas vezes onde tinha fracassado toda a prudência dos políticos e dos diplomatas de profissão? Haverá algo mais surpreendente, e mesmo mais paradoxal, de acordo com a maneira vulgar de julgar as coisas, do que um místico que só sente desdém por aquilo que ele chama «as argúcias de Platão e as subtilezas de Aristóteles» e, que todavia, vence sem dificuldade os mais subtis dialécticos do seu tempo? Toda a vida de São Bernardo poderia parecer destinada a mostrar, através de um exemplo fulgurante, que existem, para resolver os problemas de ordem intelectual e mesmo de ordem prática, meios totalmente diferentes daqueles que se tornou hábito, desde há muito tempo, considerar como os únicos eficazes, sem dúvida porque eles são os únicos ao alcance de uma sabedoria puramente humana, que nem sequer é a sombra da verdadeira sabedoria. Essa vida aparece, assim, de qualquer modo, como uma refutação antecipada destes erros, aparentemente opostos mas realmente solidários, que são o Nacionalismo e o Pragmatismo; e, ao mesmo tempo, confunde e derruba, para quem as examina imparcialmente, todas as ideias preconcebidas dos historiadores «cientistas» que consideram, com Renan, que a «negação do sobrenatural constitui a própria essência da crítica», o que nós admitimos, aliás, de bom grado, mas porque vemos nessa incompatibilidade o contrário do que eles vêem nela: a condenação da própria «crítica», e não a do sobrenatural. Na verdade, que lições poderiam, na nossa época, ser mais proveitosas do que essas?

Bernardo nasceu em 1090, em Fontaines-lés-Dijon; os seus pais pertenciam à alta nobreza de Borgonha, e se apontamos esse facto é porque nos parece que alguns traços da sua vida e da sua doutrina, de que falaremos seguidamente, podem, até certo ponto, estar ligados a essa origem. Não queremos, somente, dizer que é possível explicar desse modo o ardor por vezes belicoso do seu zelo ou a violência que ele pôs muitas vezes nas polémicas para que foi arrastado, e que era, aliás, meramente superficial, porque a bondade e a doçura constituíam, incontestavelmente, o fundo do seu carácter. Pretendemos, sobretudo, aludir às suas relações com as instituições e o ideal da Cavalaria, aos quais, de resto, se deve sempre dar grande importância caso se queira compreender os acontecimentos e o próprio espírito da Idade Média.

Foi por volta dos seus vinte anos que Bernardo concebeu o projecto de se retirar do mundo; e em pouco tempo conseguiu fazer com que a sua visão fosse partilhada por todos os seus amigos. Nesse primeiro apostolado, a sua força de persuasão era tal, apesar da sua juventude, que brevemente «ele se tornou, diz o seu biógrafo, o terror das mães e das esposas; os seus amigos temiam vê-lo abordar os seus amigos». Há já aí qualquer coisa de extraordinário, e seria seguramente insuficiente invocar o poder do «génio», no sentido profano desta palavra, para explicar uma influência semelhante. Não será melhor reconhecer aí a acção da graça divina que, penetrando de qualquer modo toda a pessoa do apóstolo e irradiando exteriormente pela sua superabundância, se comunicava através dele como por um canal, de acordo com a comparação que ele próprio utilizará, mais tarde, aplicando-a à Santa Virgem, e que se pode também, restringindo mais ou menos o seu alcance, aplicar a todos os santos?

Mosteiro de Alcobaça


É portanto, acompanhado por uma trintena de jovens que Bernardo em 1112 entrou no mosteiro de Cister, escolhido por ele em virtude do rigor com que aí era observada a regra, rigor contrastante com o desleixo que se tinha introduzido em todos os outros ramos da Ordem beneditina. Três anos mais tarde, os seus superiores não hesitavam em lhe confiar, apesar da sua experiência e da sua saúde periclitante, a direcção de doze religiosos que iam fundar uma nova abadia, a de Claraval, que ele deveria governar até à sua morte, repelindo sempre as honrarias e as dignidades que lhe ofereceriam tantas vezes, ao longo da sua carreira. O renome de Claraval não tardou a estender-se até longe e o desenvolvimento que essa abadia adquiriu em breve foi verdadeiramente prodigioso: quando morreu o seu fundador, ela abrigava, diz-se, cerca de sessenta novos mosteiros.

O cuidado que Bernardo trouxe à administração de Claraval, regulando ele próprio até os mais significativos pormenores da vida quotidiana, a parte que ele teve na direcção da Ordem cisterciense, como chefe de uma das suas primeiras abadias, a habilidade e o êxito das suas intervenções para aplanar as dificuldades que surgiam frequentemente com Ordens rivais, tudo isso basta já para provar que aquilo que se designa por sentido prático pode muito bem aliar-se, por vezes, à mais alta espiritualidade. Havia aí mais do que suficiente para absorver toda a actividade de um homem vulgar; e, no entanto, Bernardo em breve veria abrir-se diante de si um outro campo de acção, aliás bem contra a sua vontade, porque ele temia, mais do que qualquer outra coisa ser obrigado a sair do seu claustro para se misturar com os assuntos do mundo exterior, do qual ele tinha julgado poder isolar-se para sempre, a fim de se poder entregar inteiramente à ascese e à contemplação, sem que qualquer coisa o viesse distrair do que era, aos seus olhos, segundo as palavras evangélicas, «a única coisa necessária». Nisso ele tinha-se enganado redondamente; mas todas as «distracções» no sentido etimológico, às quais ele não pôde escapar e de que chegou a lamentar-se com alguma amargura, não o impediram de alcançar os pontos mais altos da vida mística. Isso é notável; e o que não o é menos é que, apesar de toda a sua humildade e de todos os esforços que empreendeu para ficar na sombra, fez-se apelo à sua colaboração em todos os assuntos importantes, e que, embora ele nada fosse aos olhos do mundo, todos, incluindo os mais altos dignitários civis e eclesiásticos, se inclinaram sempre espontaneamente diante da sua autoridade espiritual – e nós não sabemos se esse facto é mais um louvor do santo ou da época em que viveu. Que contraste entre o nosso tempo e aquele em que um simples monge podia, pela simples irradiação das suas virtudes eminentes, tornar-se de certo modo o centro da Europa e da Cristandade, o árbitro incontestado de todos os conflitos em que o interesse histórico estava em jogo, tanto na ordem política como na ordem religiosa, o juiz dos mestres mais reputados da filosofia e da teologia, o restaurador da unidade da Igreja, o mediador entre o Papado e o Império, e ver, por fim, exércitos de muitas centenas de milhar de homens reunirem-se com a sua pregação!


Aparição da Virgem a S. Bernardo de Claraval (Filippino Lippi).


(…) Todavia, o abade de Claraval não tinha só que lutar no domínio político, mas também no domínio intelectual, em que os seus triunfos não foram menos fulgurantes, visto que foram marcados pela condenação de dois elementos adversários; Abelardo e Gilbert de la Porrée. O primeiro tinha adquirido a reputação de ser um dos mais hábeis dialécticos, graças aos seus ensinamentos e aos seus escritos; chegava mesmo a abusar da dialéctica, porque em vez de ver o que ela é na realidade, um simples meio para chegar ao conhecimento da verdade, encarava-a quase exclusivamente como um fim em si mesmo, o que resultava, naturalmente, numa espécie de verbalismo. Parece também que havia nele, seja no método, seja no próprio fundo dos ideais, uma procura de originalidade que a aproxima um pouco dos filósofos modernos; e numa época em que o individualismo era quase desconhecido, este defeito não podia arriscar-se a passar por uma qualidade, como acontece nos nossos dias. Assim, em breve, alguns se mostraram inquietos com estas novidades que tendiam a estabelecer uma verdadeira confusão entre o domínio da razão e o da fé; não que Abelardo fosse propriamente um racionalista, como por vezes se afirmou, porque não houve racionalistas antes de Descartes; mas não soube distinguir entre o que era do domínio da razão e o que lhe é superior, entre a filosofia profana e a sabedoria sagrada, entre o saber puramente humano e o conhecimento transcendente – e essa foi a raiz de todos os seus erros. Não ia ele ao ponto de sustentar que os filósofos e os dialécticos gozam habitualmente de uma inspiração que seria comparável à inspiração sobrenatural dos profetas? Compreende-se facilmente que São Bernardo, quando foi chamada a sua atenção para teorias semelhantes, se tenha levantado contra elas em força e mesmo com um certo arrebatamento, e também que tenha censurado amargamente ao seu autor ter ensinado que a fé não era mais do que uma simples opinião. A controvérsia entre estes dois homens tão diferentes, começada em encontros particularmente, teve em breve imenso eco nas escolas e mosteiros; Abelardo, confiando na sua habilidade para manejar o raciocínio, pediu ao arcebispo de Sens que reunisse um concílio, perante o qual ele se justificaria publicamente, porque pensava poder conduzir a discussão de tal modo que confundisse facilmente o seu adversário. Mas as coisas passaram-se de outra maneira: o abade de Claraval, efectivamente, concebia o concílio como um tribunal diante do qual o teólogo suspeito iria comparecer como acusado; numa sessão preparatória, apresentou as obras de Abelardo e as suas afirmações mais temerárias, de que provou a respectiva heterodoxia; no dia seguinte, já com o autor presente, e depois de ter enunciado essas afirmações, intimou-o a retratar-se ou a justificá-la. Abelardo, pressentindo logo uma condenação, não esperou o juízo do concílio e declarou imediatamente que apelaria para o tribunal de Roma; nem por isso o processo deixou de seguir o seu curso normal e, assim que a condenação foi anunciada, Bernardo escreveu a Inocêncio II e aos cardeais cartas de uma eloquência premente, de tal modo que, seis semanas mais tarde, a sentença era confirmada em Roma. Abelardo tinha apenas que se submeter; refugiou-se em Cluny, junto de Pedro o Venerável, que conseguiu marcar um encontro entre ele e o abade de Claraval, conseguindo reconciliá-los.



Abelardo e Heloísa


O concílio de Sens decorreu em 1140; em 1147, Bernardo obteve igualmente do concílio de Reims a condenação dos erros de Gilbert de la Porrée, bispo de Poitiers, respeitantes ao mistério da Trindade; estes erros provinham de que o seu autor aplicava a Deus a distinção real entre essência e existência, a qual só é aplicável aos seres criados. Gilbert, aliás, retratou-se sem dificuldades; assim, foi simplesmente proibido de ler ou de transcrever a sua obra antes de ela ser corrigida; a sua autoridade, à parte os pontos particulares que estavam em causa, não foi atingida, e a sua doutrina, continuou a ter grande crédito nas escolas durante a Idade Média.

Dois anos antes deste último caso, o abade de Claraval tivera a alegria de ver subir ao trono pontifical um dos seus antigos monges, Bernardo de Pisa, que tomou o nome de Eugénio III, e que continuou sempre a manter com ele as mais afectuosas relações; e é o novo Papa que, logo no começo do seu reinado, o encarrega de pregar a segunda cruzada. Até aí, a Terra Santa não ocupava, pelo menos aparentemente, senão um lugar menor nas preocupações de São Bernardo; seria, no entanto, um erro julgar que ele era inteiramente estranho ao que se passava aí, e a prova está num facto acerca do qual normalmente se insiste muito menos do que conviria. Falamos da sua participação na constituição da Ordem do Templo, a primeira das Ordens militares pela data e pela importância, e que iria servir de modelo a todas as outras. Foi em 1128, cerca de dez anos após a sua fundação, que esta Ordem recebeu a sua regra do concílio de Troyes e foi Bernardo que, na sua qualidade de secretário do concílio, foi encarregado de a redigir, ou pelo menos de traçar as suas linhas gerais, porque parece que somente mais tarde foi chamado a completá-la e que só terminou a sua redacção definitiva em 1131. Comentou seguidamente essa regra no tratado «De laude novae militiae», em que expôs em termos de magnífica eloquência a missão e o ideal da cavalaria cristã, do que ele chamava a «milícia de Deus». Estas relações do abade de Claraval com a Ordem do Templo, que os historiadores modernos encaram como um episódio bastante secundário da sua vida tinham certamente uma outra importância aos olhos dos homens da Idade Média, e nós mostrámos já que elas constituem sem dúvida a razão pela qual Dante deveria escolher São Bernardo para o guiar nos últimos círculos do Paraíso.













Desde 1145 que Luís VII tinha formado o projecto de socorrer os principados latinos do Oriente, ameaçados pelo emir de Alepo; mas a oposição dos seus conselheiros tinha-o obrigado a adiar a sua realização e a decisão definitiva tinha sido remetida para uma assembleia plenária que deveria realizar-se em Vezelay, durante as festas da Páscoa do ano seguinte. Eugénio III, retido em Itália por uma revolução suscitada em Roma por Arnaldo de Bréscia, encarregou o abade de Claraval de o substituir nessa assembleia; Bernardo, depois de ler a bula que convidava a França a juntar-se à cruzada, pronunciou um discurso que foi, a julgar pelo efeito produzido, a maior acção oratória da sua vida: todos os assistentes se precipitaram a receber a cruz das suas mãos. Encorajado por este sucesso, Bernardo percorreu as cidades e as províncias, pregando por toda a parte a cruzada com zelo infatigável; onde não podia ir pessoalmente enviava cartas não menos eloquentes do que os seus discursos. Passou seguidamente à Alemanha, onde a sua pregação teve os mesmos resultados do que em França; o imperador Conrado, depois de resistir algum tempo, teve que ceder à sua influência e integrar-se na cruzada. A meio do ano de 1147, os exércitos francês e alemão puseram-se em marcha para essa grande expedição que, apesar da sua aparência formidável, acabaria por redundar num desastre. As causas deste fracasso foram múltiplas: as principais parecem ter sido a traição dos gregos e a falta de entendimento entre os diversos chefes da cruzada; mas alguns procuraram injustamente lançar a responsabilidade sobre o abade de Claraval. Este foi obrigado a escrever uma verdadeira apologia da sua própria conduta, que era ao mesmo tempo uma justificação da acção da Providência, mostrando que as desgraças ocorridas eram imputáveis apenas às faltas dos cristãos, e que, desse modo, «as promessas de Deus permaneciam intactas, porque elas não prescreviam contra os direitos da sua justiça»; essa apologia está contida no livro «De Consideratione», dirigido a Eugénio III, livro que é como que o testamento de São Bernardo e que contém, nomeadamente, a sua visão acerca dos deveres do Papado. Aliás, nem todos se deixaram desencorajar, e Sugar concebeu, em breve, o projecto de uma nova cruzada, de que o abade de Claraval deveria ser o chefe; mas a morte do grande ministro de Luís VII suspendeu a execução desse projecto. O próprio São Bernardo morreu pouco depois, em 1153, e as suas últimas cartas testemunham que ele se preocupou até ao fim com a libertação da Terra Santa.

Se o objectivo imediato da cruzada não tinha sido alcançado deveria, por isso, dizer-se que essa expedição tinha sido completamente inútil e que os esforços de São Bernardo tinham redundado em pura perda? Não o cremos, apesar do que poderiam pensar os historiadores que se agarram apenas às aparências exteriores, porque havia nestes grandes momentos da Idade Média, que tinham simultaneamente carácter político e religioso, razões mais profundas, das quais uma, a única que queremos indicar, era a de manter na Cristandade uma viva consciência da sua unidade. A Cristandade era idêntica à civilização ocidental, baseada então em bases essencialmente tradicionais, como toda a civilização normal, e que iria alcançar o seu apogeu no século XIII; a perda deste carácter tradicional devia necessariamente seguir-se à ruptura da própria unidade da Cristandade. Essa ruptura, que foi efectuada no domínio religioso pela Reforma, ocorreu no domínio político pela instauração das nacionalidades, precedida pela destruição do regime feudal; e pode dizer-se, segundo este último ponto de vista, que aquele que desferiu os primeiros golpes no grandioso edifício da Cristandade medieval foi Filipe o Belo, o mesmo que, por uma coincidência que não tem certamente nada de fortuito, destruiu a Ordem do Templo, atacando por aí, directamente, a própria obra de São Bernardo.






No decurso de todas as suas viagens, São Bernardo apoiou constantemente a sua pregação em numerosas curas milagrosas, que eram para as multidões como que sinais visíveis da sua missão; estes factos foram contados por testemunhas oculares, mas ele referiu-se muito pouco a eles e contra vontade. Talvez essa reserva lhe fosse imposta pela sua extrema modéstia; mas também certamente atribuía a esses milagres apenas uma importância secundária, considerando-os somente como uma concessão feita pela misericórdia divina à fraqueza da fé na maior parte dos homens, de acordo com as palavras de Cristo: «Felizes aqueles que acreditam sem terem visto». Essa atitude estaria de acordo com o desdém que ele manifestava, em geral, por todos os meios exteriores e sensíveis, tais como a pompa das cerimónias e a ornamentação das igrejas; foi mesmo possível censurarem-no, com alguma aparência de verdade, por ter manifestado desprezo pela arte religiosa. Os que formulam esta crítica esquecem, todavia, uma distinção necessária, a que ele próprio estabelece entre o que chama arquitectura episcopal e arquitectura monástica: só esta última deve ter a austeridade que ele preconiza; somente aos religiosos e aos que seguem o caminho da perfeição ele proíbe o «culto dos ídolos», ou seja, das formas, acerca das quais, pelo contrário, ele proclama a sua utilidade como meio de educação para os simples e os imperfeitos. Se ele protestou contra os abusos das figuras desprovidas de significado e tendo apenas valor ornamental, não podia querer, como falsamente se afirmou, abolir o simbolismo da arte arquitectural, quando ele próprio o utilizava frequentemente nos seus sermões.

A doutrina de São Bernardo é essencialmente mística: queremos dizer que ele encara sobretudo as coisas divinas sob o aspecto do amor, o que seria, aliás, errado interpretar aqui num sentido simplesmente afectivo, como o fazem os modernos psicólogos. Tal como muitos dos grandes místicos, ele foi especialmente atraído pelo «Cântico dos Cânticos», que comentou em numerosos sermões, formando uma série que prosseguiu através de quase toda a sua carreira; e este comentário, que ficou por terminar, descreve todos os graus do amor divino até à paz suprema que a alma alcança no êxtase. O estado de êxtase, tal como ele o compreende e certamente alcançou, é uma espécie de morte para as coisas deste mundo; com as imagens sensíveis todo sentimento natural desaparece, tudo é puro e espiritual na alma como no seu amor. Este misticismo devia naturalmente reflectir-se nos tratados dogmáticos de São Bernardo; o título de um dos principais, «De diligendo Deo», mostra efectivamente o lugar aí ocupado pelo amor; mas seria errado acreditar que isso aconteça em detrimento da verdadeira intelectualidade. Se o abade de Claraval quis sempre permanecer estranho às vãs subtilezas da escola é porque não tinha qualquer necessidade dos laboriosos artifícios da dialéctica; resolvia de um só golpe as questões mais árduas, nunca procedendo segundo uma longa série de operações discursivas; aquilo que os filósofos se esforçam em alcançar através de um desvio, e como que tacteando, ele atingia-o imediatamente pela intuição intelectual, sem a qual nenhuma metafísica real é possível, e fora da qual só se pode colher uma sombra da verdade.

Um último traço da fisionomia de São Bernardo que é ainda necessário assinalar é o lugar eminente ocupado na sua vida e nas suas obras pelo culto da Santa Virgem e que deu lugar a um florescer de lendas que são talvez o seu traço mais popular. Ele gostava de dar à Virgem o título de Nossa Senhora, tendo-se esse uso generalizado desde então, e sem dúvida em grande parte graças à sua influência; é que ele era, como se disse, um verdadeiro «Cavaleiro de Maria» e via-a realmente como a sua «dama» no sentido cavalheiresco desta palavra. Se se aproximar este facto do papel que desempenha o amor na sua doutrina, e que desempenhava também, sob formas mais ou menos simbólicas, nas concepções próprias das Ordens de Cavalaria, compreender-se-á facilmente a razão pela qual nós tivemos o cuidado de mencionar as suas origens familiares. Mesmo depois de se fazer monge continuou a ser cavaleiro, como eram todos os da sua raça; e por isso mesmo se pode dizer que ele estava de certo modo predestinado a desempenhar, como o fez em tantas circunstâncias, o papel de intermediário, de conciliador e de árbitro entre o poder religioso e o poder político, porque havia na sua pessoa como que uma participação na natureza de um e de outro. Monge e cavaleiro, simultaneamente, estes dois caracteres eram os dos membros da «milícia de Deus» da Ordem do Templo; eram também, e primeiro que tudo, os do autor da sua regra, do grande santo que foi chamado o último dos Padres da Igreja e em quem alguns querem ver, não sem alguma razão, o protótipo de Gallaz, o cavaleiro ideal e sem mancha, o herói vitorioso da «demanda do Santo Graal» (in O Esoterismo de Dante, Vega, 1995, pp. 83-87 e 91-99).




sexta-feira, 23 de março de 2012

O Ouro dos Templários (iii)

Escrito por Maurício Guinguand





«(...) Os nove cavaleiros não tiveram apenas por missão proteger os peregrinos, mas sobretudo encontrar, guardar, obter algo de particularmente importante, ou particularmente sagrado no lugar do Templo de Salomão: a Arca da Aliança e as Pedras da Lei.

(...) Não sabemos, ao certo, qual a origem do saber dos Egípcios, mas a verdade é que ele se manifestou de um modo relativamente súbito, sem precursores, por assim dizer; é bastante provável que as Tábuas da Lei sejam, elas mesmas, extraídas de documentos sagrados egípcios obtidos por Moisés aquando do Êxodo, o que explicaria a perseguição dos Hebreus à qual se entregaria o Faraó para os impedir de fugir.

Diz o Génesis que as Tábuas são de Pedra, mas que estão, no entanto, encerradas num cofre coberto de ouro: a Arca.

Parece que os Hebreus, antes de Salomão, não souberam utilizar as Pedras da Lei, e até o próprio Salomão, que tinha toda a sabedoria dos Egípcios, não pôde, por inépcia dos construtores, senão apelar à ajuda do rei de Tyr para construir o seu monumento.

Se Israel jamais pôde construir uma civilização própria, é ainda assim notável que duas civilizações tenham procedido do "Livro", da Bíblia, a muçulmana e a cristã, e que as duas tenham, a título não menos notável, conquistado Jerusalém, isto é, o lugar onde se encontravam as Tábuas da Lei. E ambas a conquistaram por via guerreira.

Ora, nós constatamos dois fenómenos idênticos: a ruína da civilização do Islão depois da tomada de Jerusalém, assim como a ruína da civilização do Ocidente após a tomada da mesma».

Louis Charpentier («Os Mistérios Templários»).


«Que existe um ouro interior, ou, melhor dizendo, que o ouro possui simultaneamente uma realidade externa e uma realidade interna, era uma conclusão perfeitamente lógica para uma mentalidade que, de forma espontânea, soubera reconhecer no ouro e no Sol uma mesma substância. Aqui e só aqui vimos a deparar com a raiz da alquimia, a qual, em si mesma, remonta aos tempos do antigo Egipto, onde era praticada pelos sacerdotes. E acontece que a tradição alquímica que se espalhou pelo Próximo Oriente, tendo vindo depois a alcançar terras do Ocidente, além de também ter provavelmente influenciado a alquimia hindu, reconhece como seu fundador Hermes Trismegisto, "o três vezes grande Hermes", o qual não é outro senão o deus do antigo Egipto a que os Gregos chamavam Thot, deus que regia as artes e ciências sagradas, à semelhança do papel que o deus Ganesha desempenhava no hinduísmo.

A palavra alquimia deriva do vocábulo árabe al-kimiya, que, por seu turno, e ao que tudo indica, provém do egípcio kême, significando a "terra negra", algo que tanto poder ser a denominação do próprio território do Egipto quanto o símbolo da matéria-prima dos alquimistas. Do mesmo modo, a expressão também poderia derivar do grego chyma, que significa "fundir" ou "derreter". Seja como for, os apontamentos alquímicos mais antigos que chegaram até nós foram lavrados em papiros egípcios. O facto de não possuirmos documentos alquímicos da primeira civilização egípcia nada prova por si só, uma vez que uma das características essenciais de toda a arte sagrada é a transmissão oral. Na maior parte dos casos, o seu registo por escrito ou representa um primeiro indício de decadência, ou, pelo menos, revela o temor de que a transmissão oral pudesse vir a perder-se. Assim sendo, é perfeitamente natural que o chamado Corpus Hermeticum, o qual abarca todos os textos atribuídos a Hermes-Thot, tenha chegado até nós em língua grega e redigido num estilo mais ou menos platónico. Contudo, no essencial, tais textos constituem realmente uma recolha do autêntico legado de uma civilização distinta, não sendo de modo algum invenções gregas arcaizadas, facto que a sua profunda fecundidade espiritual demonstra à saciedade».

Titus Burckhardt («Alquimia»).



UM LUGAR PORTUGUÊS


Tal como as estrelas da Via Láctea, os Visigodos dividiram-se em dois grupos e os que tomaram a direcção de Espanha pararam em Toledo, onde foi encontrada, em 1858, uma parte do tesouro.

Os mais ousados continuaram a avançar em direcção a Oeste, até Tomar, e a partir deste ponto espalharam-se em direcção ao Norte de Portugal.

Depois de terem conquistado a capital dos Alanos, Portucal, deram-lhe o nome de Braga e lá se instalaram.

De acordo com as tradições visigóticas, Tomar era um ponto telúrico extremamente propício e esta terra privilegiada foi, posteriormente, confirmada várias vezes através da história.


Mosteiro de Alcobaça


Nesta região, São Bernardo mandou edificar um dos mais belos florões da Ordem Cisterciense, o Mosteiro de Alcobaça, que, ainda hoje, continua a ser uma das obras-primas mais puras da arquitectura gótica no seu início (17).

Tomar passou a ser o berço onde nasceram as mais belas páginas da História de Portugal e continua a ser, ainda hoje, uma terra de eleição para os que permanecem atentos aos fenómenos cósmicos.

E mais uma vez a lenda permite-nos alcançar as fontes longínquas seguindo caminhos floridos que a História não pode utilizar.

As palavras-chave – sempre as mesmas – são transmitidas de geração em geração, respeitando fielmente um significado oculto que permanece intacto entre os pormenores maravilhosos que a lenda vai enriquecendo lentamente.

Conta a lenda que, um dia, enquanto trabalhava no campo, Wamba foi informado de que acabava de ser eleito rei dos Godos. O novo rei declarou que não aceitaria o título a menos que se desse imediatamente um milagre. De súbito, a aguilhada que tinha na mão, e que normalmente utilizava para picar os bois que puxavam o arado, ficou coberta de folhas de oliveira de ouro.

Em Reddae havia quarenta carniceiros. Aqui, encontramos um boieiro com os seus bois e folhas de oliveira de ouro, enquanto a Constelação de Boieiro – ou Charrua – está situada a treze graus da Constelação da Virgem.

É pois sob a protecção da Virgem que é escondido o ouro dos carros visigóticos, junto do santuário telúrico que mais tarde terá o nome de Nossa Senhora das Oliveiras.

Aí ficará o ouro durante muito tempo e um convento habitado por quarenta e quatro monges protegerá o local com os seus cuidados e preces.

Este santuário está ligado ao convento de Santa Iria por um subterrâneo e as pedras de apoio que encontramos confirmam a sua origem visigótica por meio de motivos esculpidos de cabeças bovinas.

A passagem deve ter sido reforçada ulteriormente em certos pontos, visto que encontramos abóbadas ogivais, características de uma restauração feita por Templários, sem dúvida contemporânea da época em que foi aberto o subterrâneo que liga o convento ao Castelo dos Templários.

Como se apresenta o enigma em Nossa Senhora das Oliveiras?

A capela propriamente dita, de estilo visigótico, respeitou a orientação de um santuário primitivo. Essa orientação corresponde ao nascer do Sol no dia 28 de Agosto, dia de Santo Agostinho, o santo representado no quadro de Valcrose.

O campanário, que dista uma quinzena de metros da construção principal, está orientado de acordo com o nascer do Sol no solstício do Verão, dia de São João Baptista.






O conjunto está portanto de acordo com uma tradição antiga e com a cosmogonia moderna.

O chão da capela está actualmente coberto por lajes tumulares de um cemitério que existia em volta do edifício.

Uma estrela mural cobre um nicho lateral onde foram colocadas as cinzas do herói e fundador de Tomar, o cavaleiro Gualdim Pais.

A arquitectura não revela outros indícios, mas os pilares e as pedras estão marcados com os sinais tradicionais da época gótica, escrupulosamente respeitados e transmitidos sem qualquer alteração, como sempre, mesmo quando o seu significado permanece inacessível às gerações vindoiras.

Os que edificaram a capela nova cingiram-se à tradição.

E assim a estátua da Virgem, que data do século XV ou XVI e que ainda hoje podemos admirar na capela de Nossa Senhora das Oliveiras, continua a ser uma estátua tradicional, visível no local onde foi originalmente colocada.

Sobre o braço esquerdo está sentado o Menino Jesus e ambos apontam na mesma direcção com a mão direita.

Basta seguir a indicação dada – muito diferente da que é fornecida pelo diabo da igreja de Rennes-le-Château – para compreendermos que aponta uma direcção.

Esta direcção está confirmada nas lajes do chão por meio de uma linha que passa entre os pilares da nave até à parte lateral direita. Aí encontramos uma laje oblíqua.

O Convento de Santa Iria fica na direcção do ângulo inferior desta laje. E é a colocação desta laje que pode marcar o acesso ao subterrâneo que faz a ligação com o convento.

O poço, situado no exterior da capela, permitiria a ventilação do subterrâneo.

Este subterrâneo foi o campo de jogos preferido pelas crianças desta região de Tomar. Há menos de quarenta anos, ainda lá brincavam. Segundo afirmam, o subterrâneo prolongava-se para sul, numa extensão de cerca de dois quilómetros, até à antiga Nabância romana.

Num ângulo de trinta e quatro graus para leste, em relação a Nossa Senhora das Oliveiras, foram descobertas as fundações de uma propriedade senhorial visigótica. No mesmo ângulo, mas para Oeste, encontramos as de Nabância.

No centro da fachada principal da igreja, ficamos precisamente a treze graus do eixo miradouro do Castelo dos Templários.

Temos pois mais uma vez reunidas as coordenadas que permitem deduzir que o tesouro pode muito bem ter sido enterrado. E este tesouro foi confiado à vigilância de dois conventos e entregue à guarda de um miradouro, de acordo com a ideia também utilizada pelo abade Saunière, que, com a mesma finalidade, mandou construir a Torre Magdala.


O SOL DE OIRO – HORUS


O valor de um tesouro não reside obrigatoriamente no seu volume nem nas vantagens que pode providencialmente oferecer do ponto de vista material e social.

Há diversas espécies de tesouros. O conhecimento é uma espécie, que não procura necessariamente a obtenção de lucros inesperados. O conhecimento permite a acumulação dia após dia de qualquer coisa igualmente preciosa. Saberemos realmente em que consistiam alguns destes tesouros fabulosos?

Ruínas Célticas na "Pedra de Cashel" (Irlanda).


(…) Alguns milénios antes da nossa era, os pré-Celtas partiram de Oeste para Leste à procura de algo de novo que lhes permitisse transpor os limites hiperbóreos, oferecendo às civilizações encontradas pelo caminho os cristais límpidos do seu saber original.

Foram em direcção ao Oriente colher pérolas maravilhosas que o sol ardente tornava mais fascinantes. Em seguida, carregados de jóias preciosas, regressaram, século após século, ao ponto de partida e deixando para a história somente os megálitos que cobrem os territórios do antigo continente.

Mais tarde, os Gauleses, que também partiram do norte, foram até à Pérsia e à Ásia Menor, fundaram a Galácia, depois a Galícia e a Galileia, mais tarde regressaram à sua terra de eleição, dirigindo as esperanças para o Sol poente onde a «Terra acaba», a Gália e a Galiza.

Roma, desejosa de alcançar o apogeu supremo, inicia em direcção Oeste ataques belicosos necessários à manutenção da grandeza de um império que não consegue aumentar as suas riquezas para Leste. As hordas visigóticas, movidas por uma intuição primária, foram até ao Oriente em busca das bases de um saber e, depois dos Romanos, do ouro precioso que só é comparável ao Sol.

Uma vez no Ocidente, o metal precioso que na Ásia Menor ornava paredes rutilantes, perde o seu significado à luz de um Sol avermelhado. Há que enterrá-lo e protegê-lo dos raios solares.

Como muitos dos seus antecessores, os Visigodos limitaram-se a seguir os filões da terra que se amplificam com os eflúvios solares. As deslocações que efectuaram sobre a superfície do globo, transformou-os, diremos mesmo que os transmutou. Deixaram de ser guerreiros nómadas para passarem a ser agricultores.

Quando o viandante pára, deixa de procurar e o Graal enterra-se. O ouro erguido verticalmente para o Sol é aferidor cósmico. Escondido passa a não ser nada.

Mas a caminhada prossegue movida por um impulso místico.

Portadores de um germe oriental guardado num cofre céltico, os monges são detentores de tesouros esotéricos fundamentais.

Os Beneditinos dirigem os peregrinos para Oeste, alimentando assim o impulso da fé, o desenvolvimento da Ordem e a expansão cristã. Trata-se de Santiago de Compostela.

Vêm em seguida os Cistercienses, que não hesitam em se dirigirem simultaneamente em duas direcções, para o Sol nascente e para o Sol poente.

Os templários seguem as mesmas directrizes que os Cistercienses, tornando mais uma vez secretos os mistérios egípcios.




Mas apesar de se esforçarem por pôr as riquezas obtidas ao serviço de todos, por saberem que não era permitido que cada um possuísse pessoalmente uma parte, não conseguiram, ao contrário dos Egípcios, ter pelo ouro o respeito que merece e sagrá-lo repondo ao Sol, como Quéope, que ornou de ouro o cimo da grande Pirâmide.

Os Templários não souberam restituir ao ouro o seu trono solar. Foi o maior erro que cometeram.

Apesar de terem encontrado os meios de abastecer os cofres, limitaram-se a ampliar a massa de um metal demasiado comercializado.

Nele deixou de haver a quota-parte do Sol-Rei e o Graal desapareceu. Enquanto isto, muito mais longe em direcção ao poente, os Incas testemunhavam para com o ouro a mesma grandeza desinteressada que os Egípcios.

Mais tarde foi necessária a cobiça ignorante dos europeus do Oeste, que procuravam a renovação do materialismo, arrastados pela corrente nociva que o Renascimento tinha iniciado, para destruir cegamente esta civilização.

Ao fugirem de França, os Templários levaram para Oeste o tesouro que iria alimentar as esperanças de renovação.

Mas, segundo parece, só conseguiram embarcar sobre a Argo uma parte do Tosão, aquela que de um ponto de vista territorial dependia do controle celeste da constelação da Águia.

As riquezas que se encontravam abaixo de Burgos não puderam ser transportadas para além dos limites do Hexágono e julga-se que tenham ficado sujeitas a novas leis que impuseram que fossem escondidas.

Os cofres dos Templários transformaram-se em ataúdes.

Os locais escolhidos para esconderijos subterrâneos situam-se nas regiões em que os Gauleses se desfizeram do ouro de Delfos e onde os Visigodos confiaram à terra o tesouro de Alarico.

Chegamos portanto à conclusão de que, neste domínio, não houve qualquer evolução entre a época gaulesa e o século XIV, visto os Templários não terem trazido outra inovação além da forma de «re-nascer».

Seja como for, tudo nos leva a pensar que a cosmogonia dos Templários, e sobretudo a Cisterciense que está na sua origem, ultrapassou ligeiramente, movida pelo seu activismo impaciente, as leis dos dois Sóis – nascente e poente – que foram aplicadas simultaneamente devido a uma pressa imensa e a uma precipitação verdadeiramente nefasta.

E foram os Templários, precisamente porque possuíam a massa de metal catalisador, as vítimas das primeiras reacções, aliás as mais violentas.

Apesar de as repercussões terem sido menores para os Cistercienses, que eram possuidores do contravalor do ouro em bens de raiz, não deixaram de existir em relação a esta Ordem, que, de modo mais ou menos aberto, se erguera contra outro tipo de místicos – os Cátaros -, que, à semelhança dos Antoninos, souberam efectuar um regresso mental às origens do Sol nascente.

Castelo de Montségur


Os monges tinham tido como única finalidade dar apoio ao Papado, poder religioso mas também poder financeiro entre os maiores do mundo, apesar deste não ter vivido somente horas de fausto, como o prova a invenção das «cruzadas».

Depois de terem saído de França, os Templários ficaram ao serviço de Portugal, mas compreendemos agora bastante melhor, à luz destes comentários, qual foi a natureza fundamental dos erros que provocaram a extinção ulterior da Ordem e ao mesmo tempo o declínio do reino que lhes deu refúgio.

Depois do Reinado de D. Manuel I, o «Rei-Sol» dos Templários, construtor e arquitecto, Portugal deixou de ser capaz de consagrar ao Sol nascente as riquezas que as caravelas traziam do poente. A questão mística solar inverteu-se, provocando a perda do saber e da tradição. O caminho simbólico do Reinado de Prestes João passou a ser a rota materialista do comércio.

Tanto o Templo como a Pirâmide são exemplos de uma arquitectura erigida em honra do homem, para a sua evolução mental e para o colocar na devida correspondência espiritual por meio da sua própria projecção sobre uma abstracção.

A pedra é o médium que assegura a ligação entre o solo e o céu por intermédio do Sol, quando é dimensionalmente chamada à sagração por meio do côvado, medida vertical e feiticeiresca.

Embora a pedra – a carne da Terra – seja dotada de uma ressonância própria, adquire no Santo dos Santos uma finalidade mais perfeita quando se reveste de ouro.

Este ouro que coroa a arquitectura como no cimo da pirâmide de Quéope, ou que se adapta a uma superfície mural como no Templo de Jerusalém ou nos santuários maias, ganha com a luz uma eficiência ritmada e perfeitamente harmónica desde que se baseie no valor secreto do côvado.

Isto para o templo exterior, a fim de constituir o templo interior. É nesta altura que intervém a alquimia, cujas diversas correntes de inspiração e de iniciação se limitaram a seguir coordenadas permanentes, terrestres e solares, e as diversas correntes de influência mística.

Com a única diferença de se tratar de recriar um ouro palpável ou abstracto, não a partir das duas facetas do côvado – a medida concreta e a sombra visível -, mas a partir da vibração destas duas facetas, a hipotenusa, utilizada numa quarta dimensão. É a restituição do filho do Sol.

Dar ao ouro a forma de uma pedra – um lingote – é escondê-lo, é destruir o templo invisível, a pedra invisível (in ob. cit., pp. 197-200 e 225-230).


(17) Alcobaça situa-se a sessenta e cinco quilómetros para poente de Tomar e a meio caminho de Fátima.


Castelo de Tomar