quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Portugal e o iberismo (v)

Escrito por Franco Nogueira







A que doutrinação se encosta o moderno iberismo espanhol? Sob forma aparentemente nova, retoma a linha tradicional. No historiador Juan Beneyto podemos encontrar uma clara expressão da tese actual (15). Convém observá-la, ainda que em síntese. Na tradição e na mitificação do Centro, este está ligado ao Círculo, que depende daquele e de Deus. Quando está dentro do Círculo, é o Cosmos; para além do Círculo, é o Caos. Firmar-se-ia esta análise em concepções de Platão, e depois na filosofia cristã; a Renascença exaltara o Centro; e durante a Idade Moderna o Centro é utilizado como esquema ordenador da vida e da convivência. Do Centro partem as vias radiais; e esta realidade deve comandar as estradas e os caminhos-de-ferro (e portanto comunicações e transportes) (16) e actividades culturais também. Em termos políticos, o Centro seduz e arrasta. Do Centro manda-se melhor, e de maneira mais firme. Por isso o Centro tem a vocação de coagir; e historicamente todas as periferias têm sido subordinadas aos poderes instalados no Centro (17). Este e a periferia são assim quantidades que se completam, e os pormenores dessa conjugação reflectem-se nas suas variáveis de Meseta e Litoral. Aliás, já Sanchez Albornoz sustentava parecer semelhante: considerava Castela um país de Meseta, onde a vida de pobreza e de luta contra a natureza áspera produz uma força expansiva que arrasta à procura, para além do território, de uma vida amável e mais doce, e da fortuna. Em termos políticos, Centro e Periferia, Meseta e Litoral são variáveis que dependem do elemento telúrico, que é particularmente ligado à proximidade ou ao afastamento do mar. E os Espanhóis, instalados numa terra subordinada ao Continente por uma montanha de fogo, têm ao invés toda a periferia encostada ao mar, pois que Espanhóis são também ao modo antigo os Portugueses. A Oeste, quedava-se Portugal, que se havia afirmado para lá da órbita de Castela, eximindo-se à identificação da Espanha política com a Espanha física (segundo o que se alega ser uma terminologia antiga), e isso numa Península que deve estar sob um único mando, rodeada como está pela França e com a saída para o Atlântico por Lisboa. Esta foi a suprema obsessão de Filipe II; e essa continua a ser a maior tragédia de Castela, que vê morrer o Douro fora da sua terra. Castela - Centro e Meseta - jamais tomou consciência de que a periferia e a meseta fossem coisa diferente; e não teve em conta os reinos em seu derredor. Se Maquiavel sublinhou o dilema em que se debatem os príncipes - serem amados ou serem temidos - Castela usou de ambos os instrumentos: o amor de Deus e o temor do Rei. E para compreender a Espanha e filiar as suas estruturas tradicionais, importa investigar o que é Castela. Se a invasão islâmica impediu o surto do Feudalismo - e consequentemente um forte alheamento da história europeia - a conquista de novo mundo atrasou o impulso que a levaria a ocupar toda a Península. Apenas a utilização por Filipe II do poder marítimo marítimo português conduziu à integração da velha Lusitânia no mecanismo político-administrativo, aproveitando-se do problema sucessório; e parece assim evidente que o esforço militar necessário para eliminar o separatismo no resto da Espanha foi deslocado para as Índias, isolado e abandonado o Litoral. No entanto, tudo foi gradualmente submetido. Portugal foi a única entorse à política de homogeneidade da Península. Saavedra Fajardo dissera que Portugal abandonara a coroa de Castela como condado e a esta regressaria como reino. Seriam diferentes os métodos; mas impunham-se os mesmos mecanismos sociais. Tentaram-se os casamentos, fundindo-se interesses e obrigações; e também o intercâmbio de funções. Em súmula, era esta aliás a famosa defesa do conde-duque dirigida a Filipe IV, a quem acusava de não ter querido proceder como Filipe II. Mas Portugal, nascido cedo para a liberdade, possuía uma identidade tão arreigada, nota Beneyto, que não se podia assimilar por Castela. E deste conjunto de circunstâncias - que concluir? Para prosseguir e completar a epopeia política castelhana, de avanço da Meseta para o Litoral, pode prever-se uma alteração de porte, de que a Espanha necessita. À castelhanização dos não-castelhanos deve seguir-se uma espanholização do todo, e que, progredindo num desenvolvimento convergente, atinja como ponto de coincidência o sentido de uma Pátria Nova, numa concepção integral hispânica, sem anexações nem secessões; e uma integração que avance até ao Litoral, aceitando as estruturas dos que aí habitam mas subordinando-as também.




Esta a tese. Importa ensinamentos e autoriza ilações. Alicerçada no que se considera a própria natureza das coisas, baseada numa especiosa interpretação da geografia, firmada em dados quase havidos por sacrossantos, invocando unilateralmente uma raiz telúrica, apresentando-se como necessidade filosófica evidente, a tese estriba-se em elementos que por definição não desaparecem nem se alteram na essência, e assim tem de se dizer que se pretende atribuir-lhe validade permanente. Na actualidade, a tese não cumpre; mas porque é sempre válida, haverá de cumprir-se mais tarde ou mais cedo. E então as perguntas são: qual o motivo do seu não cumprimento? e que se impõe fazer para transformar em realidade o princípio implícito numa tese válida? Estão encontradas as respostas desde Filipe II: porque Castela se empenhou distraidamente noutras tarefas (as Índias, isto é, as Américas), e porque se não aplicaram os mecanismos previstos (e preconizados desde Carvajal e Floridablanca até Pelayo e Pidal, Unamuno e Margall, Albornoz e Madariaga, e os demais iberistas). Mas Castela está agora bem consciente das distracções a que se entregou no passado; e está livre de se dedicar doravante à concretização da tese. Por outro lado, Portugal oferece hoje uma oportunidade rara, e portanto a não desperdiçar: reduzido ao mínimo nos seus recursos e no seu espaço; enfraquecido nas suas estruturas; trabalhado por forças que tentam destruir no seu cerne os mecanismos psicológicos de defesa; infiltrado por interesses económicos e financeiros alheios, e que não raramente obedecem a comandos estrangeiros, e a que naturalmente são inconvenientes a soberania, a independência e a integridade portuguesas; fascinado por construções internacionalistas, efémeras como sempre; convencido de que estão ultrapassados os valores essenciais (nacionalismo, patriotismo), ainda que os demais países os cultivem com empenho e os respeitem com fervor; e descrente de si próprio. Todas estas realidades foram inspiração para um expressivo e premonitório editorial no jornal A B C, assinado por Florentino Perez-Embib, que prevê um adeus ao Portugal Grande, e concluiu com esta pergunta elucidativa: «que será na Península um Portugal pequeno?» (editorial de 7. V. 1974). E tempo depois o mesmo A B C, em artigo de Alfonso de La Cerna, saúda o reencontro com a Espanha de António Sardinha (editorial de 14-VIII-1977). E ainda mais tarde, de novo o A B C, em artigo de Manuel Fraga Iribarne, antigo ministro de Franco e integrado na situação portuguesa post-franquista, não cita o nome de Portugal mas a este se aplica a sua doutrina. E esta é integradora: «negar a tendência integradora e seus benefícios é falsificar a história»; e a «pressão exterior actua hoje em favor da integração, justamente porque os desafios externos são mais agudos» (artigo de 28-III-1984). E neste particular importa acaso abrir um rápido parêntesis. Manuel Fraga é tido em Portugal, por muitos, como não partilhando, quanto a Portugal, das correntes iberistas, e o próprio Fraga se apresenta como desejoso de construir um sonho: uma região aparte constituída pela Galiza e Portugal (não o Minho apenas, mas Portugal); e esse seria um pequeno mundo diferenciado de tudo o mais na Península. Mas não é esse, no fundo, o seu pensamento, nem o seu sentimento. Num volume recente, acaso sem o pretender, fugiu-lhe a pena para a sua verdade: Escreveu: «O resultado tem sido uma penalização injusta para a maioria das regiões fronteiriças. Este tem sido o caso na maior parte da fronteira hispano-portuguesa: todas as nossas províncias ocidentais, como parte oriental de Portugal, viram-se cortadas nas suas relações económico-sociais mais naturais. Chegou o momento de dar solução aos seus problemas, no marco da integração comum da Europa, e em particular da nova política estrutural da Comunidade». Por outras palavras, Manuel Fraga pretende o desenvolvimento em comum das regiões fronteiriças de Portugal, cujas relações económico-sociais normais seriam com a Espanha. Acrescenta mais Manuel Fraga: «As estatísticas indicam que a integração económica de Portugal e Espanha continua a um ritmo superior ao da integração do conjunto da Península Ibérica no contexto da CEE com um ritmo quase duplicado das correntes comerciais». Dito de outro modo: ainda que venha a acabar a CEE, a integração económica de Portugal na Espanha será um facto. E para o fim do volume escreve Manuel Fraga: «Não podemos continuar a desertificar a nossa Meseta; é preciso enchê-la de oásis, ligados entre si, que sejam verdadeiros depósitos de inovação e humanismo» E a região Galiza-Portugal idealizada por Fraga tem evidentemente a sua sede em Tui - sede histórica, psicológica, geográfica, política. Manuel Fraga, em suma e explicitamente, adere à tese Meseta-Litoral, a Portugal ficando reservado o papel de ser um oásis no conjunto da Meseta (Manuel Fraga, Iribarne, A Galiza e Portugal no Marco Europeu, pp. 27, 29, 78, na colecção Textos da Presidência da Xunta de Galicia, Santiago de Compostela). Mais elucidativo é Ramon Villares. Traçando o ideário do nacionalismo galego, com base no histórico Manifesto da Asamblea Nazionalista de Lugo, Villares resume-o assim: «no plano político, expõe-se em primeiro lugar a necessidade da autonomia integral para a Galiza, a organização federal da Península (já que Portugal deveria entrar na federação) e a casualidade das formas de governo, embora a simpatia que se preconiza por aquela forma de governo que torne mais fácil a federação com Portugal, suponha uma clara opção antimonárquica. Nacionalismo, republicanismo, federalismo e iberismo são os conceitos que dominam as posturas políticas» daquela Assembleia (Ver Ramon Villares, História da Galiza, Livros Horizonte, 162). Estas palavras, tanto de alguns anos atrás como de hoje, poderão acaso penetrar e dissipar a candura dos portugueses entusiastas do Movimento Minho-Galiza como do igualmente cândido Movimento Algarve-Andaluzia. Mas feche-se o parêntesis. De um outro ângulo, a revista Cambio 16 (número de Julho de 1983) interpreta a seu modo a situação, e não é ambígua: ocupa-se do iberismo; defende a integração de Portugal na Espanha; e considera que o ingresso dos dois países no Mercado Comum constituiria um excelente caminho para a União Ibérica, através da união económica, da união aduaneira e do desaparecimento das fronteiras. Destes comentários a conclusão pode ser uma só: procura-se a execução dos princípios da tese Meseta e Litoral. Excluída a violência, ocorrem métodos tradicionais desde Filipe II. E a doutrinação retoma as linhas constantes. Julian Marias, que sem embargo da sua avançada idade é ensaísta prestigioso e comentador político, escreve muito nitidamente: «A Espanha, como um todo, mais do que uma recordação, é uma meta, um destino. A separação de Portugal foi um fracasso, uma rebelião contra a geografia. A Península Ibérica está preparada, desde o princípio do tempo, para ser a morada dos Espanhóis» (J. M., Cinco años de España, Espasa Calpe, 1982, pp. 24, 25). Julian Marias é havido como admirador, acaso discípulo de Pelayo, de Maragall, de Unamuno, de Sanchez Albornoz, de Madariaga, sobretudo de Ortega y Gassett, dos iberistas integradores em suma; e por isso é análoga a sua concepção da Espanha. E por isso insiste em que Portugal independente é contra a estrutura primária do conjunto; o Brasil não faz sentido fora do mundo hispânico; e a nova fusão entre Portugal e Espanha, a fazer-se, deve ser impulsionada pelos povos da América Hispânica (ob. cit., p. 227). Através dos seus volumes - A Espanha Real, La devolución de España, España en nuestras manos - sustenta uma visão global de que um vivo iberismo faz parte integrante, e muito intensa. Em síntese, pode neste particular, do lado português, dizer-se: «do lado espanhol, raros são, mesmo entre os melhores desses homens, os que aceitam sem azedume esta bizarra mutilação que nós representamos no todo geográfico da Península; e os que podiam orientar os governos, repetidas vezes quiseram emendar o que lhes parecia defeituoso; éramos um enfermo crónico do el morbo do separatismo, mas a cura devia tentar-se» (Alberto Martins de Carvalho, Iberismo, Vol. III do Dicionário da História de Portugal, dirigido por Joel Serrão). E tudo isto continua a ser o eco do pensamento de Lafuente, nome já mencionado, e que Hernâni Cidade citou como fonte essencial da matéria: «não podemos reconhecer nunca, nem ao filho de Henrique de Borgonha, nem aos Portugueses, o direito à emancipação». A tese Meseta e Litoral, actualizada e modernizada, constitui a forma do iberismo neste fim de século e de milénio. Para se avaliar da sua excepção, de que elementos objectivos dispõe?

Santiago de Compostela


Com a evidência dos factos, e só esta, e que deve recusar-se a qualquer emoção ainda que legítima, haverá de dizer-se que do lado espanhol se estão a utilizar instrumentos culturais, económicos, políticos, militares. No plano cultural, e em síntese: penetração da televisão espanhola, que cobre bem um terço do território nacional; exibição de filmes espanhóis não legendados em português; aliciamento da juventude portuguesa raiana para se deslocar a território espanhol; esmagamento dos descobrimentos portugueses com os descobrimentos espanhóis, que já conseguiram chegar aonde nunca chegaram; multiplicação dos encontros de poetas de expressão ibérica, de técnicos de expressão ibérica, de comerciantes e empresários de expressão ibérica, de jornalistas de expressão ibérica, e houve mesmo um encontro ibérico de municípios (em Lagos, em 1988, segundo a imprensa); sugestão por alguns da possibilidade de a língua espanhola ser uma opção nos liceus portugueses (18); e uniformização da História de Portugal e da de Espanha, de modo a eliminar da primeira quanto a possa exaltar e quanto possa desagradar à segunda. Reitores das Universidades do Minho, Porto e Vila Real, reuniram-se com os das Universidades espanholas de Corunha, Santiago de Compostela e Vigo, e concordaram em que os alunos portugueses daquelas universidades do Norte de Portugal poderiam fazer a sua formação académica naqueles três centros de ensino superior da Galiza (Diário de Notícias, 4-XII-91). Tudo isto na orientação preconizada por Sinibaldo de Más: criar a habitualidade do iberismo no espírito e na alma do povo português. E depois o uso de instrumentos económicos: compras de excelentes locais na cidade de Lisboa e nos arredores do Porto, e outros sítios; aquisição do controle de bancos, companhias e empresas de Portugal por capitais espanhóis; compras por parte de espanhóis feitas com financiamentos portugueses; investimentos espanhóis que não se destinam a criar riqueza nova mas a financiar simples transferências de propriedade; desenvolvimento em comum dos territórios fronteiriços, estando naturalmente os Espanhóis prontos a tomar à sua custa o maior quinhão das despesas e ficando cerca de dois terços do continente português cobertos por esse desenvolvimento comum (veja-se, por ex., António Pintado e Eduardo Barrenchea, La Raya de Portugal, la frontera del subdesarrollo, Cuadernos por el dialogo, Madrid); construção de vias rápidas para Espanha, aparentemente na convicção de que se estão a lançar para a Europa; acolhimento de esquemas como o eixo Minho-Galiza ou Andaluzia-Algarve, já velhos desde antes de Filipe II, e cujo real significado e propósito vimos há pouco; abandono da marinha mercante, passando a usar os transportes terrestres para a esmagadora maioria das nossas exportações e importações; e por tudo não deverá causar surpresa que a mesma revista Cambio 16 haja escrito em largas parangonas que o «capital espanhol pôs cerco à economia portuguesa» (número de Dezembro de 1989). Neste particular, e neste contexto, cabe lembrar o apólogo conhecido: o da panela de barro e a panela de ferro que procuram resistir à corrente (Alberto Martins de Carvalho, artigo citado). Neste contexto, há que registar um artigo publicado da imprensa portuguesa, sob o título de «Bolsa ibérica é provável». Aí se escreve: «comentando a hipótese de uma fusão entre Lisboa e Madrid», considera-se que «em termos económicos Portugal não deixa de ser um prolongamento de Espanha», e a «verdade» - acrescenta um responsável, segundo o jornal, «é que os espanhóis já estão aí a comprar tudo, podendo dar-se o caso de não se pôr sequer esse problema no futuro» (o da bolsa ibérica), «uma vez que grande parte das empresas portuguesas poderão já ser detidas maioritariamente por espanhóis» (Semanário, 4-I-92). E encaremos o terreno propriamente político. No que há de fundamental, teremos de ver o seguinte; constitui grave risco pertencer Portugal conjuntamente com a Espanha à mesma estrutura internacional e multilateral político-militar e económica (assunto levantado, por ex., por Medeiros Ferreira. Um século de problemas), estimulando-se assim uma tendência, encorajada naturalmente pela Espanha, para se tratar a Península como um conjunto em que Portugal se dilui e para se adoptarem soluções que correspondam mais ao peso da Espanha (por exemplo, exigir a sede de multinacionais em Madrid, mas com jurisdição em toda a Península). Um exemplo frisante, e elucidativo: a comissão de transportes e comunicações da Comunidade Europeia, ao planear as ferrovias trans-europeias, atribuiu à Península um triângulo ferroviário para alta velocidade: Porto, Lisboa, Madrid. Quer isto dizer que a CEE entende que para Portugal a Europa é Madrid. Por todas estas razões, procurou sempre Portugal pertencer a estruturas de países periféricos - de que a aliança luso-britânica é o mais expressivo exemplo - e não a estruturas continentais, ao contrário da Espanha, que prefere estas, sempre mais saudosa de Carlos V do que da aventura atlântica. Mas o uso de instrumentos políticos, por parte de Madrid, importa ainda uma outra coordenada: a obsessão de substituir a presença ou a influência de Portugal por toda a parte, desde o Brasil até aos países africanos de expressão oficial portuguesa. E finalmente o quadro militar. E aqui ganha toda a sua virtualidade a frase inicial: fazer coincidir a geoestratégia da Península com a sua geopolítica. Logo à sua entrada para o Pacto do Atlântico, mostrou a Espanha empenho vivo em se responsabilizar pela defesa do flanco ocidental e sul da aliança; não sentiu a menor dificuldade ou hesitação em reivindicar toda a responsabilidade por aquela zona; e assim, muito naturalmente, os meios espanhóis são dispostos por forma envolvente, pondo em causa a liberdade irrestrita das nossas costas (sul e ocidental), e também a do triângulo estratégico português, ou seja o Atlântico decisivo, de que fala o professor Borges de Macedo (cf. Álvaro de Vasconcelos, Portuguese/US Relations in the Field of Security, em Portugal: An Atlantic Paradox, 64, 65). Enfim, estamos perante a política permanente. Há que repisar o comentário: os tempos não são novos, nem são outros: e os fantasmas do passado estão bem vivos no presente - porque não são fantasmas.


Quanto fica para trás, suscita naturalmente uma interrogação: por que havia de mudar a Espanha? Por que abandonar um sonho multissecular? E que se opõe à execução prática da tese Meseta e Litoral? Em verdade, nada, rigorosamente nada - salvo a vontade, a resolução, a lucidez, a capacidade, a consciência nacional, o rasgo dos Portugueses. Em qualquer caso, objectivamente, não há por que criticar a Espanha. É um grande povo; está no seu papel; está na sua lógica; mas não está no seu direito. Quando dizemos a um francês, ou a um inglês, ou a um italiano, que admiramos o seu país, mas não queremos ser franceses, ingleses ou italianos, acham a afirmação óbvia: admiram também muito Portugal mas não querem ser portugueses. Se com toda a simplicidade afirmamos a um espanhol a nossa admiração pelo seu país, mas acrescentamos que não queremos ser espanhóis - este mostra-se surpreendido e afrontado, tem-se por ofendido, e considera que se está a ser anti-espanhol. Como explicá-lo? Nós, Portugueses, parecemos porém não estar por vezes à altura dos destinos que são os nossos, e dos nossos incontestáveis direitos. Se o iberismo avançar, são culpados os Portugueses. Todos os Portugueses. Em consciência, com objectividade e com isenção, não podemos responsabilizar este ou aquele vulto político, este ou aquele partido, este ou aquele círculo social ou económico. São responsáveis - apenas todos os Portugueses. E «todo o povo que se esquece da terra em que nasceu e contempla indiferentemente as cores estrangeiras que a proclamam vencida - é um povo morto, uma nação cujo espírito passou enquanto o corpo se dissolve» (Rebelo da Silva, Bosquejos Histórico-Literários, I, 72) (19).

(in ob. cit., pp. 143-151).


Notas:

(15) Já atrás citado, España y Litoral, Madrid Siglo XXI, 1980.

(16) Como se sabe, quem dominar transportes e comunicações domina tudo o mais. Transportes e comunicações significam império.

(17) Esta teoria poderia também explicar (a especulação é minha) por que motivo a Inglaterra sempre se opôs a um continente europeu unido. E também explicaria a luta permanente de Portugal contra e em face do Centro.

(18) Este ponto suscita alguns reparos. Para lerem os livros da grande cultura espanhola, os Portugueses não precisam de aprender espanhol. São outros, portanto, os objectivos. Acaso se julgará que optar pelo espanhol é o mesmo que optar pelo italiano, ou sueco, ou sânscrito? Há que reflectir em que, por detrás da opção pelo espanhol, há logo a poderosa vontade de Espanha, os poderosos meios de Espanha, e o aliciamento e exploração que se fariam de quantos jovens portugueses fizessem tal opção, através de subsídios, bolsas de estudo em Espanha, etc.




(19) Julgo estar bem consciente de que o problema do iberismo, para ser tratado em toda a extensão e profundidade, requereria um grosso tomo pelo menos. O autor sabe que muito e muito ficou por dizer; e ainda haverá mais a dizer e que o autor não sabe. Mas as páginas que antecedem serão talvez bastantes, como ponto de partida, para o leitor curioso ou preocupado se lançar nas suas reflexões ou até nas suas investigações.


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