terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Górgias ou da retórica (ii)

Escrito por Platão





Colunas de Theseion em Atenas



Sócrates

Vejamos então este novo ponto: existe uma coisa que se chama «saber»?

Górgias

Existe.

Sócrates

E uma coisa que se chama «crer»?

Górgias

Também.

Sócrates

Achas que saber e crer são a mesma coisa, ou ciência e crença são coisas diferentes?

Górgias

Penso que são diferentes.

Sócrates

E pensas bem, como te vou já provar. Se alguém te perguntar «Górgias, existe uma crença falsa e outra verdadeira?», responderias afirmativamente, creio eu.

Górgias

Por certo.

Sócrates

E quanto à ciência? Há também uma ciência falsa e outra verdadeira?

Górgias

De modo nenhum.

Sócrates

É, portanto, evidente que ciência e crença não são a mesma coisa.

Górgias

Tens toda a razão.

Sócrates

Mas tanto os que sabem como os que crêem estão igualmente persuadidos.

Górgias

Assim é, de facto.


Paestum













Sócrates

Concordas então em distinguir duas espécies de persuasão, a que produz a crença sem ciência e a que produz a ciência?

Górgias

Absolutamente.

Sócrates

Sendo assim, qual é destes dois tipos de persuasão aquele que é produzido pela retórica nos tribunais e nas outras assembleias, relativamente ao justo e ao injusto? Será aquele donde nasce a crença sem a ciência ou o que produz a ciência?

Górgias

É evidente, Sócrates, que é aquele donde nasce a crença.

Sócrates

Podemos, portanto, dizer que a retórica é obreira da persuasão que gera a crença, não o saber, sobre o justo e o injusto.

Górgias

Exacto.

Sócrates

Deste modo, o orador, nos tribunais e nas outras assembleias, não instrui sobre o justo e o injusto, limita-se a fazer que os outros creiam. A verdade é que ele não poderia, em pouco tempo, instruir tanta gente sobre matérias tão complexas.

Górgias

Sem dúvida nenhuma.

Sócrates

Ora bem, vejamos então o sentido exacto das nossas afirmações sobre a retórica. Pela minha parte, não consigo ainda ter dela uma ideia bem precisa.

Batalha de Salamina (480 a. C).


Quando uma cidade se reúne para escolher médicos, construtores de navios ou outro qualquer trabalhador especializado, será o orador a pessoa indicada para dar conselhos? É evidente que não, porque, em cada um destes casos, haverá que escolher os mais hábeis na sua profissão. Do mesmo modo, quando se tratar da construção de muralhas, portos ou arsenais, naturalmente que se consultarão os arquitectos; para a eleição de um general, a disposição de um exército em linha de batalha ou a conquista de uma posição, recorrer-se-á ao conselho dos especialistas na arte militar, não ao dos oradores. Qual é a tua opinião a este respeito, Górgias? Uma vez que te dizes orador e capaz de formar outros oradores, estás em óptimas condições para informar sobre as coisas da tua arte.

Repara, aliás, que estou afinal a defender os teus interesses. Talvez entre os presentes se encontre alguém que pretenda ser teu discípulo, e estou mesmo convencido de que há aqui muitos que, embora o desejem, sentem, no entanto, acanhamento em te interrogar. Considera, portanto, que são eles que, por meu intermédio, te perguntam: «Que benefício tiraremos nós, Górgias, do teu ensino? Sobre que assuntos ficaremos nós aptos a aconselhar a cidade? Será apenas sobre o justo e o injusto ou também sobre os temas que Sócrates acaba de citar?» Experimenta responder-lhes.

Górgias

Vou tentar, Sócrates, revelar-te claramente todo o poder da retórica, dado que tu me abriste admiravelmente o caminho para isso. Não ignoras por certo que esses arsenais e muralhas dos Atenienses e a criação dos portos se ficaram devendo, uma parte aos conselhos de Temístocles, a outra aos conselhos de Péricles, e nada aos homens da especialidade.

Sócrates

Diz-se, realmente isso, Górgias, a respeito de Temístocles. Quanto a Péricles, eu próprio o ouvi aconselhar-nos a construção da muralha interior de Atenas.

Górgias

E quando se trata de uma daquelas eleições de que há pouco falavas, Sócrates, vês que são os oradores que aconselham e que é a sua opinião que vence.

Sócrates

É isso que me espanta, Górgias, e daí interrogar-te há tanto tempo sobre o poder da retórica. À minha reflexão ela aparece assim como algo de grandeza quase divina.

Górgias

Mais surpreendido ficarias, Sócrates, se soubesses tudo, ou seja, que, por assim dizer, ela reúne em si e tem sob a sua jurisdição todos os poderes. Vou dar-te uma boa prova do que afirmo. Muitas vezes acompanhei meu irmão e outros médicos a casa de doentes que não queriam tomar um remédio ou submeter-se ao tratamento do ferro ou do fogo. Ora, quando o médico se mostrava incapaz de persuadir o doente, fazia-o eu, sem mais recursos do que a retórica. Mais ainda: se um orador e um médico se apresentarem numa cidade qualquer à tua escolha e se discutir na assembleia do povo ou em qualquer reunião qual dos dois deve ser eleito médico, garanto-te que o médico deixa simplesmente de existir e que aquele que domina a arte da palavra se fará eleger, se quiser.

Do mesmo modo, seja qual for o profissional com quem entre em competição, o orador conseguirá sempre que o prefiram a qualquer outro, porque não há matéria sobre a qual um orador não fale, diante da multidão, de maneira mais persuasiva do que qualquer profissional. Tal é a qualidade e a força desta arte que é a retórica.

Deve-se, porém, Sócrates, usar a retórica como todas as outras artes de competição. Lá porque se aprendeu o pugilato, o pancrácio e o combate com as armas de modo a poder vencer amigos e inimigos, não se vai agora fazer uso disso contra toda a gente, a ponto de ferir, trespassar ou matar os próprios amigos.

Note-se ainda, por Zeus, que, se alguém frequenta a palestra, onde adquire robustez e bom treino de pugilismo, e se serve depois dessas vantagens para maltratar o pai, a mãe ou qualquer dos parentes ou amigos, não devemos ver nisso razão para detestar e exilar das cidades os mestres de ginástica e os mestres de armas. É que estes instruem os seus discípulos para que eles façam um uso justo da sua arte contra os inimigos e contra os maus, para se defenderem, não para atacarem, mas os discípulos desviam-se por vezes da linha traçada e usam mal da sua força e da sua arte. Claro que não são os mestres que são maus nem a sua arte é culpada ou censurável; a culpa cabe exclusivamente, creio eu, àqueles que fazem mau uso do que aprenderam.



Zeus



Idêntico raciocínio pode aplicar-se à retórica. O orador é, sem dúvida, capaz de falar de tudo e contra todos e poderá, melhor que ninguém, persuadir a multidão em qualquer assunto que lhe interesse, mas isso não é motivo para privar da sua reputação os médicos ou os outros profissionais, não basta estar em condições de o fazer. A retórica, como qualquer arte competitiva, deve ser usada com justiça. Portanto, entendo que, se um homem adquire uma preparação retórica e depois se serve deste poder e desta arte para praticar o mal, não há o direito de odiar e desterrar da cidade aquele que o ensinou. Este ministrou conhecimentos em ordem a um uso legítimo e o outro utiliza-os de um modo inteiramente oposto. A justiça manda, pois, que não seja o mestre mas este, que abusou da sua arte, a sofrer o ódio, o exílio ou a morte.

Sócrates

Estou a pensar, Górgias, que deves ter assistido como eu a muitas discussões e observado que, quando dois homens se propõem conversar, é sempre com dificuldade que limitam o âmbito da discussão e raramente se separam depois de se ter instruído e esclarecido reciprocamente. Pelo contrário, se divergem em relação a algum ponto e um deles pensa que o outro fala com pouca exactidão ou clareza, perdem a cabeça, convencem-se de que o interlocutor age por maldade, levados mais pelo espírito de disputa do que pelo desejo de esclarecer o tema proposto. Alguns deles acabam por se injuriar grosseiramente e se despedem depois de ter dito e ouvido tais coisas que os presentes chegam a deplorar a ideia de ter sido auditório de gente de tal categoria.

Porque digo eu estas coisas? É que me parece que tu, neste momento, estás a fazer afirmações que não são inteiramente consistentes e harmónicas com as que fizeste a princípio sobre a retórica. Temo, no entanto, refutar-te, não vás tu supor que, nesta discussão, me movem quaisquer razões pessoais contra ti, em vez do simples propósito de dilucidar a questão. Se vês as coisas como eu, terei muito gosto em continuar a interrogar-te; de outro modo, fico por aqui.

Que espécie de homem sou eu? Sou daqueles que gostam de ser refutados quando estão em erro e que gostam de refutar os outros quando são os outros que erram, não sentindo nunca mais gosto em refutar do que em ser refutado. É que esta última situação é para mim muito mais vantajosa, porque reputo maior bem ser libertado do maior dos males do que libertar outrem. Nada, efectivamente, me parece mais prejudicial a um homem do que ter ideias falsas sobre a matéria que tratamos.

Se a tua maneira de pensar é semelhante à minha, prossigamos na nossa conversa; se, pelo contrário, te parece melhor desistir da discussão, desistamos já e terminemos aqui o nosso diálogo.

Górgias

Também eu, Sócrates, pertenço ao número das pessoas que acabas de referir, mas talvez conviesse atender também aos interesses dos presentes. Antes da vossa chegada, já eu tinha ocupado largamente o auditório com a exposição das minhas ideias e a sessão vais estender-se ainda muito, se continuarmos esta conversa. Devemos, pois, pensar nas conveniências dos ouvintes, não aconteça que estejamos a reter aqui alguém que tenha mais que fazer.

Querefonte

Estais a ouvir, Górgias e Sócrates, o murmúrio de aprovação dos assistentes à ideia de escutar as vossas palavras. Pela minha parte, nunca eu tenha ocupações tão urgentes que me forcem a considerá-las mais importantes do que uma conversa desta natureza, entre pessoas de tal categoria!

Cálicles

Pelos deuses, Querefonte, também eu tenho assistido a muitas discussões, mas não me lembro de ter assistido a nenhuma que me desse tanto prazer com esta. Pelo que me toca, poderíeis falar todo o dia, que eu só teria gosto nisso.

Sócrates

Pois bem, se Górgias quiser, eu não tenho nada a opor.

Górgias

Depois de tudo isto, Sócrates, teria vergonha de não aceitar o convite, quando eu próprio me comprometi a responder a todo aquele que quisesse interrogar-me. Portanto, se os presentes concordam, continuemos a nossa conversa, pergunta o que quiseres.

Sócrates

Escuta, então, Górgias, aquilo que me surpreende nas palavras que proferiste. Admito, aliás, que tenhas falado com justeza e que simplesmente eu não te tenha entendido bem. Afirmas que és capaz de ensinar a retórica a quem a quiser aprender contigo?

Górgias

Afirmo.

Sócrates

De tal modo que essa pessoa fique em condições de ganhar o assentimento de uma assembleia sobre qualquer assunto, sem a instruir e recorrendo apenas à persuasão?

Górgias

Absolutamente.

Sócrates

Dizias há pouco que até em questões de saúde o orador é mais persuasivo do que o médico.

Górgias

Sim, perante uma multidão.






Sócrates

Perante uma multidão quer dizer, certamente, perante aqueles que não sabem, porque perante aqueles que sabem, o orador não pode ser mais persuasivo do que o médico.

Górgias

Dizes bem.

Sócrates

Nesse caso, se ele for mais persuasivo do que o médico, será mais persuasivo do que aquele que sabe.

Górgias

Sem dúvida.

Sócrates

E isto sem ser médico, não é verdade?

Górgias

Sim.

Sócrates

Mas aquele que não é médico não é ignorante nas matérias em que o médico é entendido?

Górgias

Claro que é.

Sócrates

Então, quando o orador é mais persuasivo do que o médico, é um ignorante a ser mais persuasivo do que um entendido perante uma multidão de ignorantes. É realmente isto que sucede ou é outra coisa?

Górgias

No caso presente é o que sucede.

Sócrates

E não estão o orador e a retórica na mesma situação relativamente a todas as outras artes? Não precisa a retórica de conhecer a natureza das coisas, mas tão-somente de encontrar um meio qualquer de persuasão que a faça aparecer aos olhos dos ignorantes como mais entendida do que os entendidos.

Górgias

Não é de uma grande comodidade, Sócrates, que uma pessoa não tenha de aprender as outras artes mas esta só, para não ser inferior em nada a todos os especialistas?

Sócrates

Se, por esse processo, o orador é ou não inferior aos outros, vê-lo-emos já, se a análise do nosso tema o exigir. De momento, vejamos primeiro se, relativamente ao justo e ao injusto, ao feio e ao belo, ao bom e ao mau, a situação do orador é a mesma que em relação à saúde e aos objectos das outras artes, ou seja, se, sem conhecer as coisas, sem saber o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, o que é justo e o que é injusto, lhe basta imaginar um processo de persuasão a este respeito para, apesar de ignorante, parecer mais entendido que os entendidos aos olhos dos ignorantes. Ou será necessário o conhecimento prévio destas coisas a todo aquele que te procura para ser instruído na retórica? Se não é, tu, que és mestre de retórica, sem ensinar nada disto aos teus discípulos (não é essa, de facto, a tua função), farás que, aos olhos da maioria, eles pareçam saber estas coisas não as sabendo, e que pareçam homens de bem, sem o serem? Ou não estás, realmente, em condições de ensinar a retórica a quem não tenha, antecipadamente, aprendido a verdade acerca destes assuntos? Que pensar de tudo isto, Górgias? Por Zeus, revela-me, como há pouco disseste, todo o poder da retórica.






Górgias

Pensa, Sócrates, que quem, porventura, não conheça já essas coisas aprendê-las-á também contigo.

Sócrates

Um momento: acabas de fazer uma boa afirmação. Para fazer de alguém um orador é imprescindível que esse alguém conheça o justo e o injusto, ou por o ter aprendido antes ou por o teres ensinado tu.

Górgias

Absolutamente.

Sócrates

Mas vejamos: aquele que aprendeu a arte da construção é construtor, não é verdade?

Górgias

É.

Sócrates

E é músico o que aprendeu música?

Górgias

É.

Sócrates

E médico o que aprendeu medicina e assim por diante: aquele que aprende uma coisa passa a ser aquilo que a aprendizagem dessa coisa determina, não será assim?

Górgias

Naturalmente

Sócrates

Pela mesma ordem de ideias, será justo aquele que aprendeu a justiça.

Górgias

Sem dúvida alguma.

Sócrates

E aquele que é justo pratica acções justas.

Górgias

Sim.

Sócrates

É, portanto, forçoso que o orador seja justo e que um homem justo não queira agir senão segundo a justiça.

Górgias

Assim parece.

Sócrates

E um homem justo nunca quererá praticar a injustiça.

Górgias

Necessariamente.

Sócrates

Assentemos, portanto, que, de acordo com o nosso raciocínio, o orador é necessariamente justo.

Górgias

Está bem.

Sócrates

E que nunca o orador desejará cometer uma injustiça.



Pancrácio



Górgias

Parece que sim.

Sócrates

Lembras-te de me teres dito há pouco que não se deve acusar os professores de ginástica nem expulsá-los das cidades, se acontecer que um pugilista se sirva da sua técnica para praticar o mal? E que, do mesmo modo, se um orador fizer mau uso da retórica, não é ao mestre que se deve acusar e expulsar da cidade, mas tão-só àquele que procedeu mal, fazendo um uso indevido da retórica? Disseste isto ou não?

Górgias

Disse.

Sócrates

Mas agora parece que chegámos à conclusão de que o orador é incapaz de cometer uma injustiça. Não foi assim?

Górgias

Assim parece (454d-460e).

Continua


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