terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Portugal e o iberismo (iv)

Escrito por Franco Nogueira




Península Ibérica vista do espaço


Uma pergunta ocorrerá certamente: o iberismo espanhol, naqueles finais do século XIX, limitava-se aos círculos políticos militantes, tanto republicanos como monárquicos, e por razões de oportunismo? Ou era reflexo também de toda uma elaboração cultural e doutrinária? Na realidade, naquele período afirmou-se em Espanha toda uma teoria de escritores, ensaístas, filósofos, historiadores, críticos, polígrafos em suma. Foram homens eminentes, e representaram sem exagero uma das mais altas expressões da intelectualidade europeia na época. Como se definiram esses homens em face do iberismo? Não tento sequer esboçar aqui um inventário, mesmo aproximado, de todas aquelas figuras, e seu comportamento no capítulo. Deverá adiantar-se, contudo, que o escol castelhano daquele período se conservou inteiramente à altura das grandes tradições na matéria, e foi fervorosamente iberista, e em nada se desviou da rotina do passado. Haverá mesmo de acrescentar-se que procurou para o iberismo novos fundamentos doutrinários, novos motivos históricos, nova inspiração ideológica, novos objectivos políticos. Dir-se-ia que assim melhor se ocultariam os propósitos reais, tornando estes, porque mais disfarçados e mais subtis, mais aliciantes também, e até aparentemente inócuos e favoráveis a Portugal. Reflectiam além disso, como sempre, a própria orientação oficial. Esta foi constantemente iberista durante os reinados espanhóis na transição para o século XX, e durante este até Afonso XIII, bem expressivo aliás na entrevista já conhecida. E afigura-se plausível sugerir, e acaso até concluir, que toda aquela orientação era inspirada, entre outras fontes, pela História Geral de Espanha, de Modesto Lafuente, de grande influência na primeira metade do século XIX. Mas o iberismo dos intelectuais transcende em muito os aspectos meramente históricos: trata-se, para aqueles, de uma alta missão a ser cumprida por mandato de épocas imemoriais, de obediência a um sentido providencial que aponta um destino, de um imperativo escrito nas coisas e nas almas, de um dever sacrossanto para cada espanhol.

Menendez Pelayo é um primeiro nome. Foi grande admirador de Oliveira Martins, que considerava o maior historiador-artista da Península. Para a sua reconstituição da Espanha, esta aparecia a Pelayo como una, e abarcava toda a Península. Na sua obra de história e de crítica literária, poetas portugueses como Gil Vicente e Camões, surgem ao lado de espanhóis sem que se assinalem diferenças de raiz ou cultura: porque todo o complexo peninsular, como escreve Garcia Morejon, continua sendo Espanha na actualidade, sem embargo de 1640. Para Pelayo, a Espanha é toda a Península Ibérica, e a unidade da história não permite que se atendam artificiais divisões políticas (Miguel Artigas, La España de Menendez Pelayo, 54, Valhadolide, 1938). Portugal era simples região, a pertencer a um federalismo que deveria constituir a forma de governo natural do conjunto. Uma futura união não deveria usar o nome de Ibéria mas o nome «tradicional e venerando de Espanha»; a literatura portuguesa não era distinta da espanhola mas irmã da castelhana, de que é parte integrante; e não havia teatro português, ou castelhano, ou catalão, mas singelamente teatro espanhol. Das mesmas opiniões partilha Juan Valera, que foi embaixador em Lisboa, e grande amigo de Pelayo. E Ramon Menendez Pidal, discípulo preferido de Pelayo, é igualmente claro. Para este, a emancipação de Portugal é sintoma e resultado da decadência geral de Espanha; esta deve procurar ser unitária e antilocalista; e Pidal lamenta que corresponda a uma idade áurea já ida o pensamento de Quevedo, para quem o Deus dos exércitos havia ajudado a Espanha nas batalhas do Cid, das Navas de Tolosa, e «nas empresas de Vasco da Gama, de Cortez ou de Cisneros» (Ramon Menendez Pidal, Los Españoles en la História, 193). Paralelamente, persistiam na mesma orientação muitos dos que, por alturas do ultimatum, já haviam sido entusiastas da união ibérica: eram então jovens impetuosos: e estão neste caso Angel Canivet, Valle Inclan, Pio Baroja, Martinez Ruiz (Azorin), Ramiro de Maetzu; e o próprio Miguel de Unamuno, mais do que todos conhecido e admirado então em Portugal, não excedia os seus vinte e seis anos (8). Sobre Unamuno justifica-se por isso uma palavra à parte.



Miguel de Unamuno



Muito jovem estudante de Filosofia e Letras em Madrid, Unamuno observa a Espanha e considera os seus problemas, organiza para si uma consciência de pátria; e esta leva-o ao iberismo. É também um discípulo de Menendez Pelayo, e por igual um admirador de Oliveira Martins. Segue-lhes os mesmos traços; mas evolui depois, já nas primeiras décadas do século XX, para um iberismo diferente. Tem os Portugueses por irmãos, e também os Latino-Americanos; mas não concebe a sua existência separada da Hispania. Para Unamuno, a palavra hispanidade reveste-se da máxima dimensão e do máximo conteúdo: deve abranger todos os povos peninsulares e todos os povos ultramarinos junto de quem a acção da Hispania se tenha feito sentir. É a antiga concepção dos Reis Católicos e de Filipe II. Jamais Unamuno encarou o conjunto de um ângulo localista, isto é, vasco, ou castelhano, ou português, ou catalão. E assim o mestre salamantino se torna um inimigo do republicanismo federativo peninsular: este era, para Unamuno, um impossível absoluto. Porquê? Porque o federalismo não supunha integração; e sem esta seria efémera toda a unidade (e aqui parece que o professor de Salamanca não entrava em linha de conta com o génio centralizador de Castela). Neste particular, Unamuno frisa com o pensamento de Oliveira Martins: se em vez de união real e exploração se houvesse seguido o caminho da incorporação e assimilação, Portugal haveria desaparecido para sempre do rol das nações (9). Assim considera Unamuno que uma monarquia, ainda que federal, não unia: apenas uma república revolucionária, por lógica crítica e unitária, conseguiria esse objectivo: e convinha por isso não confundir federalismo com republicanismo ou liberalismo. No fundo, o reitor de Salamanca regressa à unicidade dos Filipes, de Pelayo e de Pidal. E nas suas prolongadas estâncias em Portugal, julga Unamuno encontrar provas complementares das suas concepções. Firma-se a sua amizade por Teixeira de Pascoaes, o «poeta dulcíssimo», e com Guerra Junqueiro, «o maior lírico português entre os vivos e um dos maiores do mundo de hoje»; e globalmente entende a poética portuguesa como de essência peninsular. Não apenas a poética portuguesa: toda a alta cultura portuguesa, toda a grande literatura portuguesa são peninsulares, ibéricas, espanholas. É quanto resulta claramente dos livros e cartas de Unamuno; e tudo está pormenorizado no bem documentado volume de Júlio Garcia Morejon Unamuno y Portugal, Madrid, 1971. Unamuno admirava profundamente alguns escritores portugueses de fins do século XIX e princípios do actual. Tornemos a Antero. Com este partilhava o reitor de Salamanca do mesmo sentimento trágico da vida e de igual agonia filosófica. Mas para Unamuno e Morejon, Antero é ibérico; e sublinham que o poeta dos Sonetos defendeu com calor a fusão ibérica e confabulou com José Fontana uma república federal ibérica. Mas Morejon, que cita a carta de Antero a Stork, omite que nesse mesmo documento concluiu o poeta pelo repúdio do iberismo. Unamuno considerava João de Deus «o maior lírico entre os mortos»; admirava-lhe a extrema simplicidade; e o autor do Campo de Flores teria um fundo espanhol e romântico. Também Camilo Castelo Branco era um novelista ibérico por excelência, símbolo da paixão peninsular; e para Unamuno o Amor de Perdição, que lhe teria sido dado a conhecer pelo seu amigo Teixeira de Pascoaes, era obra fundamental da literatura ibérica, da alma ibérica. Mas nem Unamuno nem Morejon aludem à recusa de Camilo em acolher o iberismo no momento de emoção causada pelo ultimatum britânico. De Eça de Queirós diz Unamuno que é ibérico o seu sarcasmo, que tem um ímpeto ibérico, que mergulha em fundas raízes ibéricas, e que é parente dos grandes escritores peninsulares de todos os tempos. Morejon sublinha a popularidade de Eça em Espanha, nas traduções de Valle-Inclan, ou Gonzalez-Blanco, ou Fernández Flórez, ou pelo estudo de Perez de Ayala; mas não se nos documenta qualquer atitude iberista do autor de Os Maias, que evidentemente nunca existiu. Quanto a Junqueiro, que Unamuno admirava prodigiosamente, não seria um poeta português, mas ibérico, e de ressonância universal, e muito mais espanhol do que português; mas não há, nem por parte de Morejon, a menor alusão ao firme repúdio do iberismo feito por Junqueiro a propósito do congresso de Badajoz. Para Unamuno, Oliveira Martins é historiador artista, tem um pensamento de carácter peninsular; e a História da Civilização Ibérica, que representaria o momento mais alto do iberismo do autor do Portugal Contemporâneo, deveria ser um livro de cabeceira de todos os espanhóis. Mas nem Unamuno nem Morejon se aperceberam de que, no termo de tudo, Oliveira Martins era um patriota português. Por último, Fidelino de Figueiredo. Entre este e Unamuno, ainda que se tivessem encontrado pessoalmente apenas uma vez ao que parece, houve intimidade de relações intelectuais. A hispanofilia de Fidelino, o iberismo de Fidelino, o hispanismo de Fidelino são constantemente sublinhados; e citam-se em apoio muitos dos seus livros, em particular As Duas Espanhas. As duas Espanhas, para Fidelino, são a do Quixote e a dos Filipes. Mas o que Unamuno e Morejon omitem é isto: em As Duas Espanhas, como veremos, pergunta Fidelino a qual pertence Portugal: e responde que Portugal não pertence a nenhuma. E para Unamuno, os Portugueses são um povo triste, mesmo quando sorri; a sua literatura, mesmo que se pretenda cómica ou jocosa, é triste; e o sorriso de Eça de Queirós é enigmático e triste. São de superfície a brandura e a meiguice portuguesas: por debaixo encontra-se uma violência plebeia que assusta. E escreve: «Portugal é um povo de suicidas, talvez um povo suicida; a vida não tem para os Portugueses um sentido transcendente; querem talvez viver, mas não sabem bem para quê, e por isso acaso valerá mais não viver». Esta visão de um Portugal suicida encontrou ressonância num português: Manuel Laranjeira. Com efeito, escreveu em carta a Unamuno: «Em Portugal chegou-se a este estado de filosofia desesperada: o sacrifício é uma espécie de redenção moral. Neste desgraçado país tudo que é pobre se suicida»; «eu, por mim, não sei em boa verdade, amigo, não sei para onde vamos»; «sei que vamos mal»; «até onde nos leva a má ventania do destino, até onde?». E Manuel Laranjeira suicida-se em 1911 (Maria Amália Vaz de Carvalho, Coisas de Agora, 173, 174). Mas nenhum daqueles traços sombrios impediu Unamuno de ver Portugal como parte integrante da pátria espanhola, numa compreensão que queria mútua e fraternal. Anos mais além, por 1930, em entrevista a António Ferro, Unamuno mitigava o seu iberismo, para não ferir os Portugueses: estes seriam os únicos senhores do seu destino; a Espanha apenas faria o que Portugal quisesse; e só os Portugueses têm o direito de se governar, de saber o que lhes convém. Mas não consegue fugir a repisar os seus velhos conceitos: se os Portugueses quisessem uma república federal, deveria fazer-se; fora sempre contrário à fragmentação da Península; a personalidade de um povo não se perde numa república federal. E Unamuno sugere o gradual desaparecimento da língua portuguesa e lembra que Camões «fez versos em espanhol». E vem a nota final, aliciante, sortílega, anestesiadora: nada receiem, os Portugueses nunca serão absorvidos pelos Espanhóis (10). Não ocorreu decerto ao mestre de Salamanca que, ao afirmar que a Espanha faria o que Portugal quisesse, estava a indicar que no seu pensamento reservava para a Espanha um papel quanto ao futuro de Portugal. Faria Unamuno as mesmas afirmações quanto a uma França, por exemplo?






Acolhe Unamuno calorosamente a solidariedade iberista de Juan Maragall, que no dizer de Morejon foi um dos mais exaltados, se não o mais exaltado iberista espanhol. Catalão, como Pi y Margall, que fora em As Nacionalidades teorizador entusiasta do movimento federalista ibérico, também Juan Maragall se proclama iberista com euforia. Dizia a um português: «Há uma pátria comum, uma grande Espanha a construir. E nessa Espanha entram também vocês. Vamos fazê-la; e animá-la; façamos uma política comum, uma política ibérica; uma pátria maior». Abre-se correspondência entre Juan Maragall e Miguel de Unamuno. Maragall quer uma unidade firmada no triângulo Portugal, Castela, Catalunha; mas esta não era a solução última sonhada pelo professor de Salamanca; porque este aproximava-se mais, no que toca a este ponto, de um «amor a Portugal», à maneira de Gimenez Caballero. Numa sugestão, todavia, se encontra Unamuno de acordo: no lançamento de uma revista. Tratava-se de fazer evangelização ibérica. Unamuno declara o seu apoio: era o sonho da alma ibérica: e para isso estaria pronto a escrever aos seus «amigos de Portugal, da Galiza, das Astúrias, etc., e se for necessário a americanos e até a judeus orientais de língua espanhola, que a alguns conheço». Por seu turno, o poeta catalão pormenoriza: a alma ibérica, que tão poucos ainda sentem, há que buscá-la dentro de Castela, de Portugal, da Catalunha, até alcançar a raiz comum: daqui arrancará a Espanha grande, a Espanha europeia, por invasão espiritual: e este é o caminho. E Unamuno lembra mesmo que para evitar susceptibilidades deverá a revista surgir em Portugal. De outro modo, os Portugueses poderão imaginar que acaso se trata de «coisas do Diabo».

Mas na década de 1930 está em plena pujança toda uma nova geração espanhola, por igual eminente, e iberista. Neste último particular, não se afastou da tradição. E vale a pena salientar alguns nomes: porque foram chefes de fila de importantes correntes de pensamento espaanhol: e ainda porque se projectaram igualmente, e com inteira justiça, muito para além das fronteiras espanholas. Verdadeiramente, muitos conquistaram uma audiência europeia.

Claudio Sanchez Albornoz é um desses nomes. Repete as grandes pisadas de Pelayo e Pidal (como as virá a repetir mais recentemente Pedro Sainz-Rodrigues). Mestre de historiografia espanhola, as investigações e os estudos de Albornoz fizeram fé no mundo culto. Fez pesquisas em Lisboa, na Torre do Tombo, nos inícios da década de vinte, e então ainda conheceu Gama Barros, a quem admirava e que cultivava. Por 1935, depois de uma passagem pelo Governo da República Espanhola, foi Sanchez Albornoz embaixador em Lisboa, e então conviveu com uma restrita comunidade de espanhóis emigrados, de que Ortega y Gasset e Sainz-Rodrigues eram homens de destaque.






Foram sempre cordiais as suas relações pessoais com Oliveira Salazar, e até de deferência mútua, quando este era ministro das Finanças e foi depois chefe do Governo. Mais tarde, após o início da guerra civil espanhola em 1936, e sobretudo com a vitória de Francisco Franco, Albornoz abandonou quaisquer funções oficiais, e exilou-se para a Argentina. Neste país se fixou, e aí retomou o seu magistério de professor de consequência. Foi sempre um iberista convicto: e ao seu iberismo foi levado pelo desejo de decifrar o enigma espanhol (outros em Espanha lhe têm chamando mistério) e por uma interpretação das suas origens. Nestas, via o fundamento de «uma comunidade hispânica de nações», em que incluía Portugal. Esta comunidade seria uma reivindicação histórica de Castela. E no seu Testamento Histórico-Político, Sanchez Albornoz não é ambíguo: «Respeito o orgulho nacionalista dos Portugueses e repito quanto estou enamorado da sua pátria, mas mentiria se ocultasse a minha esperança num futuro retorno de Portugal à matriz da Hispânia de onde saiu». Que espécie é esta de iberismo? O de Unamuno, o de Pelayo, o de Pidal? Não. Esclarece-nos o próprio Albornoz, noutra passagem: «anseio pela conjugação federal de Portugal e Espanha». Era portanto um iberismo federalista, à maneira de Pi y Margall ou de Juan Maragall, catalães que eram ambos. E no mesmo sentido foi o iberismo de outro espanhol de alto nível, e da mesma geração de Albornoz: refiro-me a Salvador de Madariaga. Este tinha a independência de Portugal por rebelião contra a geografia e contra a história. Portugal independente constituía assim uma mentira política. Madariaga queria portanto que fosse corrigida essa mentira, e reposta a verdade; e esta implicava uma península unitária, federada ou não, mas com uma só nação, um só Estado, um só governo. Depois de abandonar as suas funções oficiais de representante da Espanha em Londres, e pelo mesmo motivo por que as abandonou Albornoz em Lisboa, Madariaga continuou a viver na capital inglesa; e no fim da década de trinta avistava-se de quando em vez com Armindo Monteiro, que por 1937 deixara o Ministério dos Estrangeiros e assumira o cargo de embaixador de Portugal na Grã-Bretanha. Nas conversas, o iberismo de Madariaga era irreprimível, e manifestava-se com paixão e empenho. Desenterrava para o efeito os argumentos banais que impressionam os portugueses crédulos, ou provincianos, ou oportunistas, ou inconscientes: o primeiro chefe do Governo do novo país unitário poderia bem ser o chefe do Governo português (11); a capital da nova Espanha poderia bem ser Lisboa; e Portugal teria evidentemente o seu lugar assegurado, a sua influência respeitada, o seu peso reconhecido na nova Grande Espanha. Madariaga resumiu o seu pensamento num volume publicado postumamente: o que há de peculiar nos Portugueses - é que são espanhóis. Mas um outro homem, que pertenceu à mesma geração extraordinária, exprimiu-se ao arrepio da corrente geral. Foi Gregório Marañon. Talvez haja sido o único, entre os espanhóis de grande talento, e daquela geração, que não partilhava de qualquer iberismo. Cientista de alto destaque, também humanista de vulto, Marañon deu-se à literatura e à história, e o seu Conde-Duque de Olivares rapidamente se converteu num clássico, e assim permaneceu (12). Marañon foi naturalmente impelido a estudar a actuação dos Filipes em Portugal, e assim a percorrer o processo que transformou uma união pessoal num regime de estrangulamento, de opressão, de destruição das estruturas vitais portuguesas. Por isso deu à sua biografia do Conde-Duque um subtítulo: a paixão de mandar. E Marañon compreendeu bem que Portugal era realidade à parte e não identificável com a Hispânia: e Olivares foi apenas o motivo imediato que fez desencadear uma restauração inevitável. Escreveu Marañon: «era tão artificial a incorporação deste Reino (Portugal) na coroa de Espanha que a sua separação, imposta pela realidade dos factores étnicos, e por tudo o que há de mais vivo e eficaz no jogo da história, não se teria feito esperar, com Olivares ou sem ele» (13). Esta posição do escritor ilustre constitui assim uma excepção entre a alta intelectualidade espanhola: um caso isolado. Pelo menos, na minha limitada investigação não encontrei outro.



Francisco Franco



Do plano da história, da literatura, do ensaio, do humanismo, podemos passar, numa síntese rápida, ao terreiro da política na mesma época. Foi prosseguida pela República a atitude de Afonso XIII. Homens de todos os matizes políticos eram iberistas. Alcala Zamora, primeiro Presidente da República e liberal moderado; Calvo Sotello, figura intelectual e moral de grande dimensão, e chefe político e mental dos monárquicos; Alexandre Lerroux, liberal do centro-direita; José Maria Gil Robles, chefe da Confederação Espanhola das Direitas Autónomas; Manuel Azaña e Martinez Barrios, mentores da esquerda democrática; Largo Caballero e Indalécio Prieto, chefes socialistas - eram iberistas, quer partidários do federalismo, quer do unitarismo peninsular. Como eram iberistas os comunistas e os militantes da Federação Anarquista Ibérica. E poderia acaso pensar-se que o iberismo espanhol cessara, ou ao menos entrara em surdina, com a vitória dos militares e dos nacionalistas, que aceitaram Francisco Franco por chefe militar e político. Nada se alterou, todavia. Caberá mesmo afirmar que aquela vitória exacerbou o iberismo espanhol, e tornou-o mais virulento; mas eram muito discretas as manifestações porque da guerra civil saíra em ruínas a Espanha, e porque para o resultado da guerra muito contribuíra a política praticada pelo Governo de Lisboa. Era iberista Francisco Franco: quando cadete da Academia de Toledo, ao tema que escolheu para provas de oficial de Estado-Maior deu o título expressivo: como se ocupa Portugal em 28 dias. E eram iberistas sem disfarce ou ambages os homens que constituíam o regime de Franco. Era esse o sonho dos Falangistas de José António Primo de Rivera; e também o das Juventudes de Serrano Suñer (cunhado de Franco); e igualmente o dos velhos monárquicos que se acolheram a Franco. Mais tarde, pelo fim da década de quarenta, estruturada e estabilizada que foi a situação que Franco personificou, nem por isso cessaram os iberistas de afirmar o seu desígnio e de ocupar posições políticas de alta consequência (14). Entre mil outros que se poderiam citar, ocorrem estes: Ibañez Martin, que foi ministro da Educação, e depois por anos embaixador em Lisboa, onde exerceu de forma mal disfarçada uma tenaz acção antiportuguesa; José Félix de Lequerica, Martin Artajo, Fernando Maria Castiella, que foram ministros das Relações Exteriores de Espanha; e os três Lopes (Lopes Rodó, Lopes Letona, Lopes Bravo), que em vários momentos políticos foram membros do gabinete de Franco. E Serrano Suñer, quando ministro dos Estrangeiros, advogara o repúdio da aliança inglesa por parte de Portugal e a sua substituição pela sempre desejada aliança peninsular (Serrano Suñer, Entre Hendaya y Gibraltar; 143).



Bandeira da Falange Espanhola





Brasão de Armas da família Franco antes de 1940





Brasão de Armas de Francisco Franco



Nesta fase do iberismo importa distinguir duas correntes fundamentais: os unitaristas e os federalistas. Foram unitaristas Pelayo, Pidal, Unamuno, os monárquicos, os falangistas; foram federalistas Juan Maragall, Pi y Margall, Sanchez Albornoz, os republicanos, os socialistas. No termo de tudo, as duas linhas de pensamento, ambas absorventes e imperiais, correspondem às duas Espanhas que em tempo, em Portugal, Fidelino de Figueiredo definiu e procurou caracterizar (Fid. Fig., As Duas Espanhas, Coimbra, 1932). Escreveu Fidelino: «Os dois espanhóis mais vivos e, portanto, mais presentes na consciência espanhola, são Filipe II que, querendo unificá-la, a dividiu para sempre, e o Quixote que, querendo ridicularizar o seu gosto, a engrandeceu e lhe personificou as excelsitudes do espírito ante o mundo». Poder-se-ia talvez dizer que, no campo do iberismo, os federalistas pretendem a incorporação de Portugal por meios políticos e de pressão, e que os unitaristas preferem o uso da cultura, da penetração psicológica, da assimilação pelo espírito e pelo aliciamento, pela sugestão e pela lisonja, pela promessa e até pela corrupção. Ambos formam as duas espanhas. A qual pertence Portugal? Já vimos como replicou o autor da Crítica do Exílio. A nenhuma, respondeu Fidelino de Figueiredo. E explica: «O mar arredou-o para sempre da massa continental ibérica; é um país atlântico, simples cais de embarque, bastante unificado, sem acções revulsivas internas; não forma parte de nenhuma das duas Espanhas» (F. de Fig., ob. cit., 256). Confronte-se com Hernâni Cidade, atrás citado. E assim, e por isso, Portugal teve de «buscar apoios fora do mundo hispânico», e firmá-los, e daqui proveio «aquela diferença essencial que aparta a história portuguesa da história castelhana», o que levou «este povo da beira-mar a prescindir das intrigas políticas da Europa» (também Fidelino de Figueiredo, Pyrene, 1935).

(in ob. cit., pp. 134-143).


Notas:

(8) Alguns destes homens, na sua maturidade, moderaram os seus entusiasmos pelos objectivos iberistas. Foi o caso de Canivet, que passou a considerar a separação entre os dois países como facto inevitável.

(9) Este, como se sabe, foi o pensamento expresso por O. M. na sua História de Portugal. Mais tarde, o autor do Portugal Contemporâneo modificou-o para esta síntese: para sermos unidos em pé de igualdade, éramos poucos; para sermos assimilados, éramos de mais.

(10) Citações e conceitos de Miguel Unamuno são obviamente extraídos de obras daquele escritor, em especial Por Terras de Portugal e de Espanha, e também de Unamuno e Portugal, de Julio Garcia Morejon, que cito várias vezes.

(11) Na altura, como se sabe, Oliveira Salazar. Sem embargo do abismo ideológico entre os dois homens, Madariaga dizia-se pronto a aceitar aquele como chefe do Governo de toda a Península. E até é de acreditar que o aceitaria. Depois se veria qual seria o segundo. Delicadamente, Monteiro repelia sempre as teses de Madariaga.

Serrano Suñer, Franco e Salazar em Sevilha


(12) Como se sabe, não foi esta a única obra de Moranon. Dom João, Tempo Velho e Tempo Novo, Vida e História, Ensaios Liberais, ainda outros volumes. Mas para os propósitos deste capítulo, é a biografia do conde-duque que oferece interesse.

(13) G. M.., El Conde-Duque de Olivares, 1965, p. 317. Também Morejon, 333.

(14) Dois exemplos frisantes. O jornal falangista intitulava-se unidade, publicava na primeira página um mapa de toda a Península como um só país; e o lema era: Espanha una, grande e livre. Também os meios de direita espanhola faziam circular uma composição heráldica com as armas de Castela, Aragão e Portugal, ao mesmo nível e por igual subordinadas à àguia dos Áustrias. Por debaixo, a legenda: El Imperio Español.

Continua


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