sexta-feira, 29 de abril de 2016

Inquisição e Cristãos-Novos (iv)

Escrito por António José Saraiva








«...Encontramos nos textos bíblicos o termo Senhor, mas esta palavra Senhor significa em nosso idioma o mais velho, o antiquíssimo e, por transposição semântica, o eterno: L'Eternel, como dizem e escrevem os poetas franceses. São estes os atributos pelos quais Deus é designado nas escrituras. Traduziremos por Céu o Monte Sinai de onde Moisés, educado no Egipto, recebeu a Tora, como traduziremos Israel com o significado de homem novo.

Há, todavia, dificuldade teológica em definir quem seja o sujeito da revelação, quem seja o revelador. A expressão bíblica, tal como se encontra traduzida para o nosso idioma, atribui à palavra profeta a significação de Enviado de Deus. Decidido porém que revelador seja o profeta, logo em estádio progressivo surge o problema da origem e da diferença das religiões.

Moisés apresentou-se perante o Faraó como emissário do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob. Embaixador de Israel perante o império do Egipto, esforçou-se por libertar o seu povo de uma escravatura cujo clamor alcançava os céus. A lei de Moisés e a sua doutrina, - pois traduzimos por Doutrina a palavra Tora, que outros traduzem por Lei, - figurada no Pentateuco, manteve-se central e de perpétua memória, apesar das diversas interpretações que lhe foram dadas pelos doutores judeus desde a destruição do Templo até à diáspora messiânica.

É verdade que Jesus se apresentou como enviado de seu Pai, segundo a expressão do Evangelho, e se é certo que a revelação cristã foi dada à Humanidade depois de historicamente haverem surgido a filosofia da Grécia e o direito de Roma, contemporâneas foram estas formas de cultura de toda a religião que se expandiu e divulgou na Palestina e em Alexandria. Jesus não vem, pois, fundar uma religião nova, mas depurar, aperfeiçoar e completar a lei de Moisés, estabelecendo como que uma ponte simbólica entre a geração dos Filhos de Deus e a geração dos Filhos dos Homens, ou, noutra linguagem, surge como o Messias que viria conciliar os Judeus com os Gentios.

Leão Hebreu, seguindo a doutrina de Maimónides, afirmou no seu livro sobre o amor humano e o amor divino que Moisés fora o príncipe dos profetas. "Moisés foi o príncipe dos profetas porque profetizava na vigília, com o entendimento claro e limpo de fantasia, em união com a divindade, sem a mediação de anjos, sem auxílio de imagens ou figuras". Efectivamente a singularidade desta revelação no Pentateuco merece demorada consideração.

No Êxodo, no Levítico, nos Números, no Deuteronómio encontramos muitas vezes traduzida a seguinte expressão: O Senhor falou a Moisés, dizendo... As vozes poderiam ser apenas de origem angélica, que se revelam imediatamente à consciência, sem referência objectiva a qualquer sensação ou percepção. Os textos referem-se, todavia, à intuição, à visão directa, à presença visível e audível, de Deus, o que a nenhum outro profeta foi jamais concedido, mas verdade que exige e merece uma interpretação liberta de antropomorfia ou antropolatria, liberta até ao infinito.

Estabelecida a comparação de Moisés com todos os outros profetas de que temos notícia pelo Antigo Testamento, compreenderemos que de acordo com os textos ele tivesse sido o predilecto de Deus. No livro de Números, capítulo 12, relata-se o episódio da sedição de Miriam e de Aarão contra Moisés. A palavra de Deus é nesse momento perfeitamente explícita em seus dizeres: "Ouvi agora as minhas palavras; se entre vós houver profeta, Eu, o Senhor, em visão a ele me farei conhecer, ou em sonhos falarei com ele. Não é assim com o meu servo Moisés que é fiel em toda a minha casa. Boca a boca falo eu com ele, e de vista, e não por figuras; pois ele vê a semelhança do Senhor. Porque não tiveste, pois, temor de falar contra o meu servo, contra Moisés?"

Manuscrito da Torá mais antigo do mundo. Ver aqui


Os filhos de Israel viram que o rosto de Moisés resplandecia maravilhosamente quando o profeta descia do monte Sinai com a Lei de Deus, mas ao falar para os fiéis cobriu o rosto com o véu. A Lei de Deus e a respectiva doutrina, ou Tora, eram transmitidas com fidelidade autêntica, pois não resultavam de sonhos ou de adivinhações, como aconteceu com outros profetas inspirados. Assim se compreende que esta doutrina revelada tivesse sido pelos povos monoteístas considerada também como sagrada.

A cultura teológica e filosófica do poeta levou-o a reconhecer que não podemos deixar de aplicar à apreensão das realidades espirituais as mesmas categorias em que pretendemos entender as realidades materiais, e a função da crítica, que não nos deixa iludir, permite-nos contudo usá-las dado que saibamos que são inadequadas mas também analógicas. É esta, aliás, a admirável lição da escada angélica referida no capítulo 28 do Génesis. Jacob sonhou:

"E eis uma escada era posta na terra, cujo topo tocava nos céus, e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela.

E eis que o Senhor estava no cimo dela, e disse: Eu sou o Senhor, o Deus de Abraão teu pai, e o Deus de Isaac: Esta terra em que estás deitado ta darei a ti, e à tua semente.

...Acordado, pois, Jacob do seu sonho, disse: "Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos céus".

A imagem especial do trono, com seus degraus ou graus, representa a hierarquização possível em teologia, antropologia e cosmologia. Poderemos interpretá-la também como relação entre o plural e o uno, indispensável primórdio de qualquer classificação científica e de significado superior à relação do todo com as partes. Teatro admirável, resta saber quais são os entes que dentro dele se movem.

Na interpretação tradicional, os anjos representam os mensageiros de Deus, que cumprem as ordens divinas, mas na interpretação medieval de Salomão Ibn Gabirol, glória de Espanha, eles representariam os pensamentos humanos, graduados pela natureza dos objectos a que se aplicam. Descendo do trono a escada e o escudo, a lógica das imagens leva-nos a simbolizar no livro, custodiado pelos anjos, a mais alta figura de heráldica, onde se reflecte e espelha o Espírito. Mais espirituais no sonho ou mais corporais na vigília, estimulam no patriarca Jacob (que é o novo homem ou o homem novo, pois assim interpretamos a significação da palavra Israel), o indispensável esforço para sua perfeição imanente ou transcendente, conforme os insondáveis desígnios divinos.

O monoteísmo, tal como foi intuído por Abraão e descrito nos livros do Pentateuco, é exemplo mais aproximado da comunicação do espírito humano com o puro espírito de Deus, é o pensamento implícito e explícito no poema intitulado Sarça Ardente. Em frente da fogosa imagem do clarão e do brasão, o pensamento do poeta exacerba-se, dilata-se e esclarece-se como nos verdadeiros místicos, mas permanece ainda ansioso do que arde sem se consumir. Não conhecemos poesia alguma que mais perfeitamente signifique a verdade, intuída por alguns filósofos, de que o universo, o mundo, a matéria não são, ou não é, mais do que uma das línguas em que Deus nos fala».

Álvaro Ribeiro («A Literatura de José Régio»).




Moisés e a Sarça Ardente



«Os anos 40 do século XVII representam uma viragem para o mundo intelectual. Se é verdade que Descartes continuou fiel à metafísica (por exemplo, prova a existência de Deus, recorrendo à ideia de perfeição), não é menos verdade que Mersenne e o seu grupo não aceitam, embora nunca o tenham escrito preto no branco, o primado da metafísica sobre a ciência. É a altura (1641) escolhida por Gassendi para se separar de toda essa vertente da filosofia cartesiana. Aliás, o percurso da filosofia cartesiana é dos mais curiosos. Se inicialmente inspira e alimenta o pensamento científico moderno, servindo-lhe de método e de bússola, através das múltiplas dificuldades por que teve então de passar, no período compreendido entre 1640 e 1670, a partir de então, o legado filosófico de Descartes vai ser disputado, em direcções substancialmente diferentes, por três grandes nomes - Newton, Espinosa e Leibniz. Embora circunscrito a alguns círculos, que reuniam um número muito limitado de pensadores, o cepticismo filosófico, que se inspirava no espírito científico emergente, começa, por volta de 1660-1670, a difundir a ideia de que, tudo somado, o Demónio era apenas o símbolo do Mal presente no ser humano. É verdade que o dogmatismo desses pensadores não é menos virulento que o dos seus adversários. O que facilmente se explica, se soubermos que muitos deles continuavam a aceitar um universo, total ou parcialmente, "encantado". Por exemplo, Newton continuava a praticar com assiduidade a astrologia. Por outro lado, Leibniz, muito influenciado pela metafísica e pela escolástica, utiliza uma argumentação que pode deixar perplexo um leitor do século XXI. Apesar de, em seu entender, o conhecimento se fundar na razão natural, continua a aceitar que a revelação divina seja fonte de conhecimentos autónomos cujos enunciados não se limitam às fronteiras dessa mesma razão natural, o que não o impede de insistir que esta tenha a primazia.

Apesar das suas "contradições", os racionalistas científicos obrigaram os seus adversários a reavaliar, pelo menos em tese, a natureza do Diabo. Por exemplo, os Jesuítas, ao estabelecerem uma diferença entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, aceitaram que a ciência e a metafísica pertenciam, de jure, a duas esferas distintas. Uma vez essa distinção feita, é evidente que o edifício do dogmatismo religioso, que vigorara durante séculos, perde a sua natureza de um todo monolítico, deixando à vista dos seus adversários brechas evidentes que estes, durante todo o século XVIII, não hesitarão em explorar a fundo. Aliás, os próprios defensores do Diabo e da antiga ordem dogmática foram os primeiros a perceber que essas distinções punham em causa os fundamentos da fé e abriam caminho à noção de Diabo como efeito de uma ilusão. Razão por que foram céleres e brutais na resposta, tentando matar no ovo o processo nascente de desdramatização do facto religioso. A polémica que, então, se iniciava iria durar até à extinção do Antigo Regime.

Em Inglaterra, por volta de 1646, um escritor mostrava-se clarividente, ao afirmar que a crença no Demónio era inseparável da de Deus, e que, abandonada aquela, rapidamente esta seria abandonada. Anos antes, em 1635, um céptico insular pedira que lhe mostrassem um Diabo como prova material da existência de Deus. Estas questões eram pertinentes, na medida em que, durante séculos, o dogmatismo ideológico tornara as duas noções interdependentes. O que, aliás, deixa bem patente Keith Thomas, quando afirma que "o Diabo imanente era o complemento essencial de um Deus imanente". Entretanto, estas questões haviam abandonado os círculos restritos onde tinham emergido para se tornarem interrogações do domínio público. Razão por que artistas e autores de teatro rapidamente repercutiram, e desde muito cedo, esse questionamento que aflorava à tona da sociedade urbana. Assim, por exemplo, em 1608, Webster leva à cena o seu O Diabo Branco, em que as más acções são imputadas ao espírito humano e não ao Diabo. Ben Johnson (1572-1637) expõe igualmente as loucuras da humanidade em O Diabo É Um Asno. O Demónio, aliás, já tinha uma presença muito discreta nas peças de Shakespeare, do mesmo modo que o personagem principal de A Trágica História do Doutor Fausto (1588), de Christophe Marlowe, está praticamente só na sua tentativa desesperada de ultrapassar a condição humana.








Ao abandonar a esfera propriamente teológica para passar a ser tema da filosofia e da literatura, o Demónio perdia, ipso facto, potência e realidade. Para Descartes, Deus havia criado o universo e, em seguida, tinha-se retirado da cena, deixando o mundo entregue às leis mecânicas de que o havia dotado e que, aliás, dispensavam a sua intervenção continuada. Por outro lado, o conhecimento que temos do mundo espiritual é-nos apenas facultado pela revelação, o que nos leva a aceitar a encarnação de Cristo, a existência dos anjos e do Diabo, etc., sem que esse conhecimento interfira, por pouco que seja, no funcionamento da natureza. O Demónio, apesar de existir, não tem, assim, qualquer realidade. A sua função é, de facto, omnipotente, mas serve apenas e tão-só para frustrar o homem nos esforços que empreende para conhecer a realidade do mundo. Em suma, o Diabo é uma espécie de pressuposto gnosiológico que permite distinguir o que é real do que apenas possui a aparência de realidade. Razão por que Ernest Gellner considera que a unidade de toda a filosofia pós-cartesiana assenta na noção de Diabo inventada por Descartes, contrariamente aos seus contemporâneos que continuavam a acreditar na sua existência real. Numa primeira fase, acrescenta ele, os continuadores de Descartes pensavam que o Maligno era o nosso próprio espírito. Esse ponto de vista foi, numa segunda fase substituído por uma teoria mais vasta - elaborada por Locke, Hume, Kant (embora, de maneira implícita) e, explicitamente, por todos os pensadores posteriores -, segundo a qual, o Diabo é, na realidade, sinónimo da própria história, ou seja, é uma manifestação do entendimento humano, genericamente considerado. Numa terceira fase, com Darwin e os seus continuadores, o demónio da história ampliou-se, integrando o demónio da natureza e o demónio da língua. Por outras palavras, a nova filosofia inaugurada pela dúvida metódica de Descartes deu origem a uma série de identificações do Diabo com o espírito, a história, a natureza biológica, o inconsciente e a linguagem. Retomadas por círculos cada vez mais largos, sob o impulso de uma ciência triunfante, essas concepções alimentaram uma vasta corrente que, paulatinamente, foi libertando os espíritos do império que sobre eles exercera a figura satânica. O problema do Mal, adquiriu, destarte, um cariz acentuadamente pessoal. Na sua Quatrième Méditation [Quarta Meditação], Descartes explica que o erro, mistério recorrente e obsidiante, não deve ser atribuído a uma divindade (que considerava, aliás, por norma, benevolente), mas ao próprio homem que, no uso da sua liberdade, forçava os limites das ideias claras e distintas. A questão da responsabilidade colectiva, sob o olhar de um Deus terrível que encarregava Satanás de castigar a humanidade, é substituída pela responsabilidade do indivíduo confrontado consigo próprio. A culpabilização torna-se, assim, uma questão do foro individual. Nu e num universo vazio, dispondo apenas de uma única arma, a dúvida metódica, o homem deixa de ter um Deus e um Diabo como explicação da sua existência infeliz (e, a esse título, infinitamente acusáveis), para passar a ser o único responsável pela sua infelicidade. Idêntica lição iremos encontrar na Dioptrique [Dióptrica], publicada por Descartes em 1637 - desencantado, liberto das antigas magias, o olho irrompe brutalmente para fora do mundo, nada deixando por detrás da imagem, nem nada de impossível, seja no Céu, seja na Terra, nem sequer imagem alguma, mas apenas e tão-só a certeza de que é a alma que sente e não o corpo, sem outra certeza que não seja a do pensamento, cogito ergo sum.

Os pensadores, por maiores que sejam, não podem só por si inflectir as tendências dominantes da sua época. Descartes foi o homem certo no momento certo - o momento em que se tornou evidente que era necessário olhar a vida com um olhar menos trágico e resignado, diferente, portanto, do que fora usado nas décadas de fogo e de sangue que o precederam. Inscreve-se, pois, num longo processo de promoção da consciência individual contra a tirania das verdades impostas, sempre pronta a perseguir com a mais extrema violência os seus contraditores. De certo modo, assiste-se ao retorno da divindade "benevolente" dos Humanistas, disposta a fazer frente às doutrinas de cariz augustiniano que monopolizaram o campo intelectual, durante o século dos santos em França e os rigores de certas práticas protestantes na Inglaterra e nas Províncias Unidas».

Robert Muchembled («Uma História do Diabo»).







«A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factores mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa história aparece aos olhos do historiador filósofo. Como peninsular, sinto profundamente ter de afirmar, numa assembleia de peninsulares, esta desalentadora evidência. Mas, se não reconhecermos e confessarmos francamente os nossos erros passados, como poderemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva? O pecador humilha-se diante do seu Deus, num sentido acto de contrição, e só assim é perdoado. Façamos nós também diante do espírito de verdade, acto de contrição pelos nossos pecados históricos, por que só assim nos poderemos emendar e regenerar.

(...) Tais temos sido nos últimos três séculos: sem vida, sem liberdade, sem riqueza, sem ciência, sem invenção, sem costumes. Erguemo-nos hoje a custo, espanhóis e portugueses, desse túmulo onde os nossos erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os passos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões lúgubres e mortais chegamos ressuscitados! Quais as causas dessa decadência, tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada? Examinemos os fenómenos, que se deram na Península durante o decurso do século X, período de transição entre a Idade Média e os tempos modernos, e em que aparecem os germens, bons e maus, que mais tarde, desenvolvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada qual o seu verdadeiro carácter. Se esses fenómenos forem novos, universais, se abrangerem todas as esferas da actividade nacional, desde a religião até à indústria, ligando-se assim intimamente ao que há de mais vital nos povos - estarei autorizado a empregar o argumento (neste caso, rigorosamente lógico) post hoc, ergo propter hoc, e a concluir que é nesses novos fenómenos que se devem buscar e encontrar as causas da decadência da Península.

Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela Filosofia: a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista. Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do catolicismo de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus: a classe média, impondo aos reis os seus interesses, e muitas vezes o seu espírito, é o oposto do absolutismo, esteiado na aristocracia e só em proveito dela governando: a indústria, finalmente, é o oposto do espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio.

Assim, enquanto as outras nações subiam, nós baixávamos. Subiam elas pelas virtudes modernas; nós descíamos pelos vícios antigos, concentrados, levados ao sumo grau de desenvolvimento e aplicação. Baixávamos pela indústria, pela política. Baixávamos, sobretudo, pela religião.

Concílio de Trento (1545-1563).


Da decadência moral é esta a causa culminante! O catolicismo do Concílio de Trento não inaugurou certamente no mundo o despotismo religioso: mas organizou-o de uma maneira completa, poderosa, formidável, e até então desconhecida. Neste sentido, pode dizer-se que o catolicismo, na sua forma definitiva, imobilizado e intolerante, data do século XVI. As tendências, porém, para esse estado vinham já de longe; nem a Reforma significa outra coisa senão o protesto do sentimento cristão, livre e independente, contra essas tendências autoritárias e formalísticas. Essas tendências eram lógicas, e até certo ponto legítimas, dada a interpretação e organização romana da religião cristã: não o eram, porém, dado o sentimento cristão na sua pureza virginal, fora das condições precárias da sua realização política e mundana, o sentimento cristão, numa palavra, no seu domínio natural, a consciência religiosa. É necessário, com efeito, estabelecermos cuidadosamente uma rigorosa distinção entre cristianismo e catolicismo, sem o que nada compreenderemos das evoluções históricas da religião cristã. Se não há cristianismo fora do grémio católico (como asseveram os teólogos, mas como não pode nem quer aceitar a razão, a equidade e a crítica), nesse caso teremos de recusar o título de cristãos aos luteranos, e a todas as seitas saídas do movimento protestante, em quem todavia vive bem claramente o espírito evangélico. Digo mais, teremos de negar o nome de cristãos aos apóstolos e evangelistas, por que nessa época o catolicismo estava tão longe do futuro, que nem ainda a palavra católico fora inventada! É que realmente o cristianismo existiu e pode existir fora do catolicismo. O cristianismo é sobretudo um sentimento: o catolicismo é sobretudo uma instituição. Um vive da fé e da inspiração: o outro do dogma e da disciplina. Toda a história religiosa, até ao meado do século XVI não é mais do que a transformação do sentimento cristão na instituição católica. A Idade Média é o período de transição: há ainda um, e o outro aparece já. Equilibram-se. A unidade vê-se, faz-se sentir, mas não chega ainda a sufocar a vida local e autonómica. Por isso é também esse o período das igrejas nacionais. As da Península, como todas as outras, tiveram, durante a Idade Média, liberdades e iniciativa, concílios nacionais, disciplina própria, e uma maneira sua de sentir e praticar a religião. Daqui, dois grandes resultados, fecundos em consequências benéficas. O dogma, em vez de ser imposto, era aceito, e, num certo sentido, criado: ora, quando a base da moral é o dogma, só pode haver boa moral deduzindo-a de um dogma aceito, e até certo ponto criado, e nunca imposto. Primeira consequência, de incalculável alcance. O sentimento do dever, em vez de ser contradito pela religião, apoiava-se nela. Daqui a força dos caracteres, a elevação dos costumes. Em segundo lugar, essas igrejas nacionais, por isso mesmo que eram independentes, não precisavam oprimir. Eram tolerantes. À sombra delas, muito na sombra é verdade, mas tolerados em todo o caso, viviam judeus e mouros, raças inteligentes, industriosas, a quem a indústria e o pensamento peninsulares tanto deveram, e cuja expulsão tem quase as proporções de uma calamidade nacional. Segunda consequência, de não menor alcance do que a primeira. Se a Península não era então tão católica como o foi depois, quando queimava os judeus e recebia do Geral dos jesuítas o santo e a senha da sua política, era seguramente muito mais cristã, isto é, mais caridosa e moral, como estes factos o provam.

Rasga-se porém o século XVI, tão prodigioso de revelações, e com ele aparece no mundo a Reforma, seguida por quase todos os povos de raça germânica. Esta situação cria para os povos latinos, que se conservavam ligados a Roma, uma necessidade instante, que era ao mesmo tempo um grande problema. Tornava-se necessário responder aos ataques dos protestantes, mostrar ao mundo que o espírito religioso não morrera no seio das raças latinas, que debaixo da corrupção romana havia alma e vontade. Um grito unânime de reforma saiu do meio dos representantes da ortodoxia opondo-se ao desafio, que, com a mesma palavra, haviam lançado ao mundo católico Lutero, Zwingle, Oecolampado, Melanchton e Calvino. Reis, povos, sacerdotes clamavam todos reforma! Mas aqui aparecia o problema: que espécie de reforma? A opinião dos bispos e, em geral, das populações católicas pronunciava-se no sentido de uma reforma liberal, em harmonia com o espírito da época, chegando muitos até a desejar uma conciliação com os protestantes: era a opinião episcopal, representante das igrejas nacionais. Em Roma, porém, a solução, que se dava ao problema, tinha um bem diferente carácter. O ódio e a cólera dominavam os corações dos sucessores dos apóstolos. Repelia-se com horror a ideia de conciliação, da mais pequena concessão. Pensava-se que era necessário fortificar a ortodoxia, concentrando todas as forças, disciplinando e centralizando; empedernir a Igreja, para a tornar inabalável. Era a opinião absolutista, representante do Papado. Esta opinião (para não dizer este partido) triunfou, e foi esse triunfo uma verdadeira calamidade para as nações católicas. Nem era isso o que elas desejavam, e o que pediram e sustentaram os seus bispos, lutando indefesos durante 16 anos contra a maioria esmagadora das criaturas de Roma! Pediam uma verdadeira reforma, sincera, liberal, em harmonia com as exigências da época. O programa formulava-se em três grandes capítulos fundamentais. 1.º Independência dos bispos, autonomia das igrejas nacionais, inauguração de um parlamentarismo religioso pela convocação amiudada dos Concílios, esses Estados Gerais do cristianismo, superiores ao Papa e árbitros supremos do mundo espiritual. 2.º O casamento para os padres, isto é, a secularização progressiva do clero, a volta às leis da humanidade de uma classe votada durante quase mil anos a um duro ascetismo, então talvez necessário, mas já no século XVI absurdo, perigoso, desmoralizador. 3.º Restrições à pluralidade dos benefícios eclesiásticos, abuso odioso, tendente a introduzir na Igreja um verdadeiro feudalismo com todo o seu poder e desregramento. Destas reformas saía naturalmente a humanização gradual da religião, a liberdade crescente das consciências, e a capacidade para o cristianismo de se transformar dia a dia, de progredir, de estar sempre à altura do espírito humano, resultado imenso e capital que trouxe a Reforma aos povos que a seguiram. Os graves prelados, que então combatiam pelas reformas que acabo de apresentar, não desejavam, certamente, nem mesmo previam estas consequências: o próprio Lutero as não previu. Mas nem por isso as consequências deixariam de ser aquelas. Bartolomeu dos Mártires e os bispos de Cádiz e Astorga não eram seguramente, revolucionários: representavam no Concílio de Trento a última defesa e o protesto das igrejas da Península contra o ultramontanismo invasor: mas a obra deles é que era, pelas consequências, revolucionária; e, trabalhando nela, estavam na corrente e no espírito do grande e emancipador século XVI. Se houvessem alcançado essa reforma, teríamos nós talvez, espanhóis e portugueses, escapado à decadência. Quem pode hoje negar que é em grande parte à Reforma que os povos reformados devem os progressos morais que os colocaram naturalmente à frente da Civilização? Contraste significativo, que nos apresenta hoje o mundo! As nações mais inteligentes, mais moralizadas, mais pacíficas e mais industriosas são exactamente aquelas que seguiram a revolução religiosa do século XVI: Alemanha, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Suíça. As mais decadentes são exactamente as mais católicas! Com a Reforma estaríamos hoje talvez à altura dessas nações: estaríamos livres, prósperos, inteligentes, morais... mas Roma teria caído!


Roma não queria cair. Por isso resistiu longo tempo, iludiu quanto pôde os votos das nações, que reclamavam a convocação do concílio reformador. Não podendo resistir mais tempo, cede por fim. Mas como fez? Como cedeu Roma, dominada desde então pelos jesuítas? Estamos em Itália, meus senhores, no país de Maquiavel!... Eu não digo que Roma usasse deliberada e conscientemente de uma política maquiavélica: não posso avaliar as intenções. Digo simplesmente que o parece; e que, perante a história, a política romana em toda esta questão do Concílio de Trento aparece com um notável carácter de habilidade e cálculo... muito pouco evangélicos! Roma, não podendo resistir mais à ideia do concílio, explora essa ideia em proveito próprio. De um instrumento de paz e progresso, faz uma arma de guerra e dominação; confisca o grande impulso reformador, e fá-lo convergir em proveito do ultramontanismo. Como? De uma maneira simples: 1.º, dando só aos legados do papa o direito de propor reformas: 2.º, substituindo, ao antigo modo de votar por nações, o voto por cabeças, que lhe dá com os seus cardeais e bispos italianos, criaturas suas, uma maioria compacta e resolvida sempre a esmagar, a abafar os votos das outras nações. Basta dizer que a França, a Espanha, Portugal e os Estados católicos da Alemanha nunca tiveram, juntos, número de votos superior a 60, enquanto os italianos contavam 180, e mais! Nestas condições, o Concílio deixava de ser universal: era simplesmente italiano; nem italiano, romano apenas! Desde o primeiro dia se pôde ver que a causa da reforma liberal estava perdida. Provocado para essa reforma, o Concílio só serviu contra ela, para a sofismar e anular!

Composta e armada assim a máquina, vejamo-la trabalhar. Para sujeitar na terra o homem, era necessário fazê-lo condenar primeiro no céu: por isso o Concílio começa por estabelecer dogmaticamente, na sessão 5.ª, o pecado original, com todas as suas consequências, a condenação hereditária da humanidade, e a incapacidade do homem se salvar por seus merecimentos, mas só por obra e graça de J. Cristo. Muitos teólogos e alguns poucos sínodos particulares se haviam já ocupado desta matéria: nenhum concílio ecuménico a definira ainda. Um concílio verdadeiramente liberal deixava essa questão na sombra, no indefinido, não prendia a liberdade e a dignidade humanas com essa algema: o Concílio de Trento fez dessa definição o prólogo dos seus trabalhos. Convinha-lhe, logo no começo, condenar sem apelação a Razão humana, e dar essa base ao seu edifício. Assim o fez. De então para cá, ficou dogmaticamente estabelecido no mundo católico que o homem deve ser um corpo sem alma, que a vontade individual é uma sugestão diabólica, e que para nos dirigir basta o Papa em Roma e o confessor à cabeceira. Perinde ac cadaver, dizem os estatutos da Companhia de Jesus.

Na sessão 13.ª confirma-se e precisa-se o dogma da Eucaristia, já definido, ainda que vagamente, no 4.º Concílio de Latrão, e vibra-se o anátema sobre quem não crer na presença real de Cristo no pão e no vinho depois da consagração. É mais um passo (e este decisivo) para fazer entrar o cristianismo no caminho da idolatria, para colocar o divino no absurdo. Poucos dogmas contribuíram tanto como este materialismo da presença real para embrutecer o novo povo, para fazer reviver nele os instintos pagãos, para lhe sofismar a razão natural! Parece que era isto o que o Concílio desejava!

Na sessão 14.ª trata-se detidamente da Confissão. A confissão existia há muito na Igreja, mas comparativamente livre e facultativa. No 4.º Concílio de Latrão restringira-se já bastante essa liberdade. Na sessão 14.ª de Trento é a consciência cristã definitivamente encarcerada. Sem confissão não há remissão de pecados! A alma é incapaz de comunicar com Deus, senão por intermédio do padre! Estabelece-se a obrigação dos fiéis se confessarem em épocas certas, e exortam-se a que se confessem o mais que possam. Funda-se aqui o poder, tão temível quanto misterioso, do confessionário. Aparece um tipo singular: o director espiritual. Daí por diante há sempre na família, imóvel à cabeceira, invisível mas sempre presente, um vulto negro que separa o marido da mulher, uma vontade oculta que governa a casa, um intruso que manda mais do que o dono. Quem há aqui, espanhol ou português, que não conheça este estado deplorável da família, com um chefe secreto em regra, hostil ao chefe visível. Quem não conhece as desordens, os escândalos, as misérias introduzidas no lar doméstico pela porta do confessionário? O Concílio não queria isto, decerto: mas fez tudo quanto era necessário para que isto acontecesse.






Na parte disciplinar e nas relações da Igreja com o Estado, predomina o mesmo espírito de absolutismo, de concentração, de invasão de todos os direitos. Na sessão 5.ª, tornam-se as Ordens regulares independentes dos Bispos, e quase exclusivamente dependentes de Roma. Que arma esta na mão do Papado, que já de si não era mais do que uma arma na mão do jesuitismo! Na sessão 13.ª só o Papa, pelos seus comissários, pode julgar os bispos e os padres. É a impunidade para o clero! Na sessão 4.ª põem-se restrições à leitura da Bíblia pelos seculares, restrições tais que equivalem a uma verdadeira proibição. Ora, o que é isto senão a suspeição da razão humana, condenada a pensar e a ler pelo pensamento e pelos olhos de meia dúzia de eleitos? Nas sessões 7.ª, 9.ª, 18.ª, 24.ª, estabelecem-se igualmente disposições tendentes a sujeitar os governos, a impor aos povos a polícia romana, apagando implacavelmente por toda a parte os últimos vestígios das igrejas nacionais. Finalmente, a superioridade do Papa sobre os concílios triunfa nas sessões 23.ª e 25.ª, pela boca do jesuíta Lainez, inspirador e alma do Concílio... se é permitido, ainda metaforicamente, falando de um jesuíta, empregar a palavra alma... A redacção de um Catecismo, vem coroar esta obra de alta política. Com esse catecismo, imposto por toda a parte e por todos os modos aos espíritos moços e simples, tratou-se de matar a liberdade no seu germen, de absorver as gerações nascentes, de as deformar e torturar, comprimindo-as nos moldes estreitos de uma doutrina seca, formal, escolástica e subtilmente ininteligível. Se se conseguiu ou não esse resultado funesto, respondam umas poucas de nações moribundas, enfermas da pior das enfermidades, a atrofia moral!

Sim, meus senhores! essa máquina temerosa de compressão, que foi o catolicismo depois do Concílio de Trento, que podia ela oferecer aos povos? A intolerância, o embrutecimento, e depois a morte! Tomo três exemplos. Seja o primeiro a guerra dos Trinta Anos, a mais cruel, mais friamente encarniçada, mais sistematicamente destruidora de quantas tem visto os tempos modernos, e que por pouco não aniquila a Alemanha. Essa guerra, provocada pelo partido católico, e por ele dirigida com uma perseverança infernal, mostrou bem ao mundo que abismos de ódio podem ocultar palavras de paz e religião. O padre não dirigia somente, assistia à execução. Cada general trazia sempre consigo um director jesuíta: e esses generais chamavam-se Tily, Picolomini, os mais endurecidos dos verdugos! Salvou então a Alemanha e a Europa a firmeza indomável de um coração tão grande quanto puro, sereno em face dessas hordas fanáticas. O verdadeiro herói (e único também) dessa guerra maldita, o verdadeiro santo desse período tenebroso, é um protestante, Gustavo Adolfo. Enquanto ao Papa, esse aplaudia a matança! O segundo exemplo é a Itália. O terror que inspirava ao Papado a criação em Itália de um Estado forte, que lhe pusesse uma barreira à ambição crescente de dia para dia, tornou-o o maior inimigo da unidade italiana. É o Papado quem semeia a discórdia entre as cidades e os príncipes italianos, sempre que tentam ligar-se. É o Papado quem convida os estrangeiros a descerem os Alpes, na cruzada contra as forças nacionais, cada vez que parecem querer organizar-se. "O Papado, diz Edgar Quinet, tem sido um ferro sagrado na ferida da Itália, que a não deixa sarar". Hoje mesmo, se essa suspirada unidade se consumou, não foi no meio das maldições e cóleras do clero e de Roma? O único pensamento, que hoje absorve o Papado, é desmanchar aquela obra nacional, chamar sobre ela os ódios do mundo, o ferro estrangeiro, podendo ser; é assassinar a Itália ressuscitada! Estes factos são por todos sabidos. O que talvez nem todos saibam é o papel que o catolicismo representou no assassinato da Polónia. "A intolerância dos jesuítas e ultramontanos, diz Emílio de Laveleye, foi a causa primária do desmembramento e queda da Polónia". Esta nação heróica, mas pouco organizada, ou antes, pouco unificada, era uma espécie de federação de pequenas nacionalidades, com costumes e religiões diferentes. Encravada entre monarquias poderosas e ambiciosas, como a Áustria, a Rússia e a Turquia de então, a Polónia só podia viver pela liberdade política, e sobretudo pela tolerância religiosa, que conservasse amigos e unidos contra o inimigo comum os grupos autonómicos de que se compunha. A essa tolerância deveu ela, com efeito, a força e importância que teve na história da Europa até ao século XVII: católicos, gregos cismáticos, protestantes, socinianos viveram muito tempo como irmãos, numa sociedade verdadeiramente cristã porque era verdadeiramente tolerante. Um dia, porém, os jesuítas, lá do centro de Roma, olharam para a Polónia como para uma boa presa. Aquela nação era efectivamente um escândalo para os bons padres. Tanto intrigaram, que em 1570 tinham já logrado introduzir-se na Polónia: o rei Estêvão Batory concede-lhes, com uma culpável imprudência, a Universidade de Vilna. Senhores do ensino, e em breve das consciências da nobreza católica, os jesuítas são um poder: começam as perseguições religiosas. Em 1648, João Casimiro, que antes de ser rei fora cardeal e jesuíta, quer obrigar os camponeses ruténios, sectários do cisma grego, a converterem-se ao catolicismo. Estes levantam-se, unem-se aos cossacos, também do rito grego, e começa uma guerra formidável, cujo resultado foi separarem-se cossacos e ruténios da federação polaca, dando-se à Rússia, em cujas mãos se tornaram uma arma terrível sempre apontada ao coração da Polónia. Nunca esta nação teve inimigos tão encarniçados como os cossacos! Sem eles, a Polónia, enfraquecida entre vizinhos formidáveis, devia cair, e caiu efectivamente. A partilha espoliadora de 1772 não fez mais do que confirmar um facto já antigo, a nulidade da nação polaca.

Assim, pois, meus senhores, o catolicismo dos últimos três séculos, pelo seu princípio, pela sua disciplina, pela sua política, tem sido no mundo o maior inimigo das nações, e verdadeiramente o túmulo das nacionalidades. "O antro da Esfinge, disse dele um poeta filósofo, reconhece-se logo à entrada pelos ossos dos povos devorados".


Antero de Quental


E a nós, espanhóis e portugueses, como foi que o catolicismo nos anulou? O catolicismo pesou sobre nós por todos os lados, com todo o seu peso. Com a Inquisição, um terror invisível paira sobre a sociedade: a hipocrisia torna-se um vício nacional e necessário: a delação é uma virtude religiosa: a expulsão dos judeus e mouros empobrece as duas nações, paralisa o comércio e a indústria, e dá um golpe mortal na agricultura em todo o Sul da Espanha: a perseguição dos cristãos-novos faz desaparecer os capitais: a Inquisição passa os mares e, tornando-nos hostis os índios, impedindo a fusão dos conquistadores e dos conquistados, torna impossível o estabelecimento de uma colonização sólida e duradoira: na América despovoa as Antilhas, apavora as populações indígenas, e faz do nome de cristão um símbolo de morte: o terror religioso, finalmente corrompe o carácter nacional, e faz de duas nações generosas, hordas de fanáticos endurecidos, o horror da civilização. Com o jesuitismo desaparece o sentimento cristão, para dar lugar aos sofismas mais deploráveis a que jamais desceu a consciência religiosa: métodos de ensino, ao mesmo tempo brutais e requintados, esterilizam as inteligências, dirigindo-se à memória, com o fim de matarem o pensamento inventivo, e alcançam alhear o espírito peninsular do grande movimento da ciência moderna, essencialmente livre e criadora: a educação jesuítica faz das classes elevadas máquinas ininteligentes e passivas; do povo, fanáticos corruptos e cruéis; a funesta moral jesuítica, explicada (e praticada) pelos seus casuístas, com as suas restrições mentais, as suas subtilezas, os seus equívocos, as suas condescendências, infiltra-se por toda a parte, como um veneno lento, desorganiza moralmente a sociedade, desfaz o espírito de família, corrompe as consciências com a oscilação contínua da noção do dever, e aniquila os caracteres, sofismando-os, amolecendo-os: o ideal da educação jesuítica é um povo de crianças mudas, obedientes e imbecis; realizou-o nas famosas Missões do Paraguai; o Paraguai foi o reino dos céus da Companhia de Jesus; perfeita ordem, perfeita devoção; uma coisa só faltava, a alma, isto é, a dignidade e a vontade, o que distingue o homem da animalidade! Eram estes os benefícios que levávamos às raças selvagens da América, pelas mãos civilizadoras dos padres da Companhia! Por isso o génio livre popular decaiu, adormeceu por toda a parte: na arte, na literatura, na religião. Os santos da época já não têm aquele carácter simples, ingénuo dos verdadeiros santos populares: são frades beatos, são jesuítas hábeis. Os sermonários e mais livros de devoção, não sei por que lado sejam mais vergonhosos, se pela nulidade das ideias, pela baixeza do sentimento, ou pela puerilidade ridícula do estilo. Enquanto à arte e literatura, mostrava-se bem clara a decadência naquelas massas estúpidas de pedra da arquitectura jesuítica, e na poesia convencional das academias, ou nas odes ao divino e jaculatórias fradescas. O génio popular, esse morrera às mãos do clero, como com tanta evidência o deixou demonstrado nos seus recentes livros, tão cheios de novidades, sobre a literatura portuguesa, o sr. Teófilo Braga. Os costumes saídos desta escola sabemos nós o que foram. Já citei a Arte de Furtar, os Romances picarescos, as Farsas populares, o Teatro espanhol, os escritos de D. Francisco Manoel e do Cavaleiro de Oliveira. Na falta destes documentos, bastava-nos a tradição, que ainda hoje reza dos escândalos dessa sociedade aristocrática e clerical! Essa funesta influência da direcção católica não é menos visível no mundo político. Como é que o absolutismo espiritual podia deixar de reagir sobre o espírito do poder civil? O exemplo do despotismo vinha de tão alto! Os reis eram tão religiosos! Foram por excelência os reis católicos, fidelíssimos. Nada forneceu pelo exemplo, pela autoridade, pela doutrina, pela instigação, um tamanho ponto de apoio ao poder absoluto como o espírito católico e a influência jesuítica. Nesses tempos santos, os verdadeiros ministros eram os confessores dos reis. A escolha do confessor era uma questão de Estado. A paixão de dominar, e o orgulho criminoso de um homem, apoiava-se na palavra divina. A teocracia dava a mão ao despotismo. Essa direcção via-se claramente na política externa. A política, em vez de curar dos interesses verdadeiros do povo, de se inspirar de um pensamento nacional, traía a sua missão, fazendo-se instrumento da política católica romana, isto é, dos interesses, das ambições de um estrangeiro. D. Sebastião, o discípulo dos jesuítas, vai morrer nos areais de África pela fé católica, não pela nação portuguesa. Carlos V, Filipe II, põem o mundo a ferro e fogo, porquê? Pelos interesses espanhóis? Pela grandeza de Espanha? Não: pela grandeza e pelos interesses de Roma! Durante mais de 70 anos, a Espanha, dominada por estes dois inquisidores coroados, dá o melhor do seu sangue, da sua riqueza, da sua actividade, para que o Papa desse outra vez leis à Inglaterra e à Alemanha. Era essa a política nacional desses reis famosos: eu chamo a isto simplesmente trair as nações.

Tal é uma das causas, senão a principal, da decadência dos povos peninsulares. Das influências deletérias nenhuma foi tão universal, nenhuma lançou tão fundas raízes. Feriu o homem no que há de mais íntimo, nos pontos mais essenciais da vida moral, no crer, no sentir - no ser: envenenou a vida nas suas fontes mais secretas. Essa transformação da alma peninsular fez-se lá em tão íntimas profundidades, que tem escapado às maiores revoluções; passam por cima dessa região quase inacessível, superficialmente, e deixam-na na sua inércia secular. Há em todos nós, por mais modernos que queiramos ser, há lá oculto, dissimulado, mas não inteiramente morto, um beato, um fanático ou um jesuíta! Esse moribundo que se ergue dentro em nós é o inimigo, é o passado. É preciso enterrá-lo por uma vez, e com ele o espírito sinistro do catolicismo de Trento...».

Antero de Quental («Causas da Decadência dos Povos Peninsulares». Discurso pronunciado na noite de 27 de Maio [1871], na Sala do Casino Lisbonense).








«A decadência dos povos estuda-se na declinação das cerimónias, das instituições e das leis, já que para o leitor atento das obras históricas a palavra costumes sofre os desvios semânticos da opinião moral. Além do que se observa durante as cerimónias, as instituições e as leis, cumpre analisar o enfraquecimento dos instintos, a degeneração fisiológica, a repressão da vitalidade, mais susceptíveis de apreciação económica por conta, peso e medida. É no entanto na astúcia da posição subversiva: - os estrangeiros a educar os nativos, os mais novos a dirigir o trabalho dos mais velhos, os valores femininos a substituir os valores masculinos - que se adulteram as estruturas étnicas dos povos e a desnacionalização efectua-se por meio de juízos igualitários e, por fim, majoritários, a inserir na argumentação política.

A nossa tese, recebida da filosofia da história que entre nós foi escrita por Sampaio Bruno, é a de que a principal causa da decadência dos povos peninsulares está maravilhosamente descrita no livro O Encoberto (1908). É portanto uma interpretação religiosa, referida ao primeiro sistema de filosofia da história, seja o providencialismo messiânico da Bíblia. A Península Ibérica decaiu por consequência da expulsão dos Judeus.

A influência cultural deste povo de monoteísmo transcendente, que não reconhece representação nem representante de Deus na Terra, povo de doutores fiéis a uma Doutrina que não impõem por métodos de proselitismo, mas, que defendem pelo sacrifício da própria vida, povo para o qual são pecados mortais só o homicídio, o adultério e a idolatria, povo que considera a aliança como padrão da vida religiosa, que antecede de um ritual belo, sério e santo o próprio acto conjugal, que santifica o sábado como dia de festa da família, que pratica a oração com simplicidade, modéstia e alegria, que espera pela era messiânica de redenção da humanidade, a influência de tal povo, repetimos, ainda não foi assaz reconhecida por etnógrafos e historiadores. Este povo que vive, respeita e pratica um admirável preceito, segundo o qual "o pai que não manda ensinar um ofício a seu filho faz dele um pedinte ou um ladrão", trabalhando destituído de instituições políticas e fixado na vida civil ou privada, foi o educador filosófico e religioso de outros povos migrantes, exerceu uma influência civilizadora que permaneceu latente e oculta depois de ser expulso da Península Ibérica. Este factor é muito mais importante do que aquele que aparece sublinhado pelo materialismo histórico, ou seja, a falta de tais homens no comércio, na indústria e na agricultura, ocupações que poderiam ser igualmente distribuídas pelas várias camadas da população católica.

Portugal, se perdeu a independência política em 1580, não restaurou a autonomia cultural em 1640. A expulsão de Aristóteles e a extinção da Universidade pelo espírito politécnico e antifilosófico do Marquês de Pombal foram actos adversos à Alma Mater e, consequentemente, à Pátria. Estes e outros temas, teses e teoremas que formam a disciplina especulativa da História de Portugal foram preciosamente compendiados por António Quadros nos dois volumes que a tão magno assunto dedicou (A Teoria da História em Portugal: I. O Conceito de História; II. A Dinâmica da História. Prefácio, selecção, notas e comentários finais de António Quadros. Notas biobibliográficas de Pinharanda Gomes - Lisboa, 1967-1968)».

Álvaro Ribeiro («A Literatura de José Régio»).








«Eis o momento para, em termos sumários, descrever como a Universidade pombalina tudo predispôs para que a razão humana declinasse nas trevas da ignorância. Tal processo, enquanto expressão dos despóticos desígnios do Marquês de Pombal, partiu de uma intervenção estatal em todas as estruturas públicas e particulares de ensino, visando fazer dos mestres funcionários ao serviço do Estado, ou agentes por ele nomeados, dirigidos e pagos. O fim perseguido pelo ministro josefino seria, então, o de preparar os quadros de uma administração que se queria politicamente centralizada, e como tal determinada por critérios utilitários de ordem económica, como os que, a título de exemplo, se patenteiam nos Estatutos da Aula do Comércio, aprovados a 19 de Abril de 1759.

No entanto, se é verdade que este processo parece ter surgido de uma acção exterior à Universidade, o seu êxito passou pela colaboração activa de membros a ela estreitamente ligados, como a do reitor-reformador Francisco de Lemos, ele próprio um homem da Igreja. Não deixa, porém, de ser interessante como a estatização pombalina, procurando transferir o "poder" da sociedade religiosa para o Estado, perseguiu desde logo os jesuítas com o beneplácito - se assim o podemos dizer - da Congregação dos Oratorianos, se bem que também esta posteriormente perseguida. A presença, pois, de eclesiásticos desempenhando funções em organismos estatais - tais como o prelado D. Tomás de Almeida enquanto Director-Geral dos Estudos, bem como Frei Manuel do Cenáculo exercendo o cargo de presidente da Real Mesa Censória -, passa a ser, na época, uma constante significativa do acto de profanar a respectiva missão espiritual, dada a predisposição para servir fins temporais que, a curto e médio prazo, estariam na origem do ensino universitário decaído em ensino politécnico. Consequentemente, este processo acabaria por fazer da Universidade o agente dinamizador do poder estatal, tornando-a assim bastante poderosa pelo facto de poder determinar como se devem planificar o ensino, a política e a economia».

Miguel Bruno Duarte («Noemas de Filosofia Portuguesa. Um estudo revelador de como a universidade é o maior inimigo da cultura lusíada»).


«A aurora do dia 13 de Janeiro de 1759 alvorejava uma luz azulada do eclipse daquele dia, por entre castelos pardacentos de nuvens esfumaradas que, a espaços, saraivavam bátegas de aguaceiros glaciais. O cadafalso, construído durante a noite, estava húmido. As rodas e as aspas dos tormentos gotejavam sobre o pavimento de pinho. Às vezes, rajadas de vento do mar zuniam por entre as cruzes das aspas e sacudiam ligeiramente os postes. Uns homens, que bebiam aguardente e tiritavam, cobriam com encerados uma falua carregada de lenha e barricas de alcatrão, atracada ao cais defronte do tablado. Às 6 horas e 42 minutos ainda mal se entrevia a faixa escura com umas cintilações de espadas nuas, que se avizinhava do cadafalso. Era um esquadrão de dragões. O patear cadente dos cavalos fazia um ruído cavo na terra empapada pela chuva. Atrás do esquadrão seguiam os ministros criminais, a cavalo, uns com as togas, outros de capa e volta, e o corregedor da corte com grande majestade pavorosa. Depois - uma caixa negra que se movia vagarosamente entre dois padres. Era a cadeirinha da marquesa de Távora, D. Leonor. Alas de tropa ladeavam o préstito. À volta do tablado postaram-se os juízes do crime, aconchegando as capas das faces varejadas pelas cordas da chuva. Do lado da barra reboava o mugido das vagas que rolavam e vinham chofrar espumas no parapeito do cais. Havia uma escada que subia para o patíbulo. A marquesa apeou da cadeirinha, dispensando o amparo dos padres. Ajoelhou no primeiro degrau da escada, e confessou-se por espaço de 50 minutos. Entretanto martelava-se no cadafalso. Aperfeiçoavam-se as aspas, cravavam-se pregos necessários à segurança dos postes, aparafusavam-se as roscas das rodas. Recebida a absolvição, a padecente subiu, entre os dois padres, a escada, na sua natural atitude altiva, direita, com os olhos fitos no espectáculo dos tormentos. Trajava de cetim escuro, fitas nas madeixas grisalhas, diamantes nas orelhas e num laço dos cabelos, envolta em uma capa alvadia roçagante. Assim tinha sido presa, um mês antes. Nunca lhe tinham consentido que mudasse de camisa nem o lenço do pescoço. Receberam-na três algozes no topo da escada, e mandaram-a fazer um giro no cadafalso para ser bem vista e reconhecida. Depois, mostraram-lhe um a um os instrumentos das execuções, e explicaram-lhe por miúdo como haviam de morrer seu marido, seus filhos, e o marido de sua filha. Mostraram-lhe o maço de ferro que devia matar-lhe o marido a pancadas na arca do peito, as tesouras ou aspas em que se lhe haviam de quebrar os ossos das pernas e dos braços ao marido e aos filhos, e explicaram-lhe como era que as rodas operavam no garrote, cuja corda lhe mostravam, e o modo como ela repuxava e estrangulava ao desandar do arrocho. A marquesa então sucumbiu, chorou muito ansiada, e pediu que a matassem depressa. O algoz tirou-lhe a capa, e mandou-a sentar num banco de pinho, no centro do cadafalso, sobre a capa, que dobrou devagar, horrendamente devagar. Ergueu-se, e com um movimento de pé concertou a orla da saia. O algoz vendou-a; e, ao pôr-lhe a mão no lenço que lhe cobria o pescoço, - não me descomponhas - disse ela, inclinou a cabeça, que lhe foi decepada pela nuca, de um só golpe.


Execução de José Maria de Távora




Brasão de Armas dos Távoras




Este começo de carniceria, naquela manhã de nevoeiro, debaixo de um céu de chumbo impassível como a lâmina que degolou Leonor de Távora, há-de sempre lembrar com horror e piedade. Porém, que nome execrado, que verdugo responsável escreveremos na página da História? Sebastião José, esse não tinha nada que ver com os adultérios de seu real amo e senhor. Mas agora que aí temos à porta o centenário do marquês de Pombal, vem de molde recordar alguns episódios daquele tempo.

(...) O Conde de Oeiras, ao vigésimo quarto ano da sua omnipotência, é que achou defeitos, excessos e perversidades no velho Regimento do Santo Ofício. Serviu-se do tribunal da fé enquanto lhe utilizou ter na mão do inquisidor o torno da tortura, a mordaça, o açoite e o círio de cera amarela que acendia a fogueira. Durante vinte e quatro anos teve os cárceres do Santo Ofício à sua disposição como sucursais das cavernas do Bugio, da Foz, de Pedroiços e do Forte da Junqueira. Nunca lhe tinha lembrado que a protérvia sanguinária daquele tribunal era obra da Companhia da Jesus. É que esta bestialidade incompreensível nunca tinha passado pelo espírito de ninguém. O padre António Vieira, o formidável jesuíta, dobrara-se diante dos juízes do Santo Ofício. Um século antes vingara o mesmo Vieira, em Roma, paralisar por largo tempo os braços dos inquisidores e enferrujar os aparelhos dos suplícios. A Ordem de S. Domingos e a de Santo Inácio odiavam-se reciprocamente. Rivalizavam-se, porém, na competência de habilitar almas para o cortejo de Deus na eterna glória. O jesuíta adensava um antemural de grossa treva contra a luz da Reforma que alvorecia no Norte - era o jurado conservador da Idade Média; mas preferia o obscurantismo do ensino teológico à maceração da tortura, à ressicação da carne e à crepitação dos ossos. O inquisidor não se preocupava em pôr diques à torrente das ideias novas. A sua missão, degenerada dos estatutos do espanhol Gusmão, era vingar Jesus de Nazaré, um Deus assassinado pelos homens, que morrera crucificado por vontade paterna e condescendência própria; afora isso, cauterizava as aberrações do crânio extranaturais, e queimava corpos vivos que tinham dentro obras do Diabo, manifestadas em íncubos e súcubos. Mas é claro que o jesuíta e o dominicano, a um tempo, agenciavam, cada qual a seu modo, colónias de almas para as infinitas regiões do divino azul. O engajado do jesuíta docemente e correctamente, sem mutilação sensível, entrava no Céu pelo amplo portal da ignorância; o engajado do inquisidor era lá içado à força pelas roldanas da polé e pela contrição de haver nascido fatalmente hebreu ou por ter obedecido às indeclináveis violências do seu temperamento e da sua educação.

Ora, o marquês de Pombal, que se ria, como eu, dos dois sistemas, atribuía aos apóstolos de Loiola a notável influência nas crueldades da Inquisição, e manteve o tribunal sinistramente influenciado. Transcorridas, porém, duas dúzias de anos, achou que era tempo de expurgar o Santo Ofício das sugestões jesuíticas. Assombroso velhaco!

O Sr. conde de Samodães, um crente sincero, ilustradíssimo e honrado em todas as suas intenções de escritor, no seu livro que estou lendo, O Marquês de Pombal cem anos depois da sua morte, mostra-nos o ministro com um afecto entranhado à missão do Santo ofício, grande simpatia pelo inquisidor e figadal inimizade ao jesuíta, e assenta que o seu ódio ao segundo era tão pronunciado quanto sensível a estima pelo outro. Escreve o Sr. conde de Samodães: Tanto abominava o marquês de Pombal a Companhia de Jesus quanto amava a Santa Inquisição. Dizia ele que os jesuítas nunca conseguiram dominar este esclarecido tribunal, que não era jesuítico. Se o marquês disse isto, retractou-se torpemente no Regimento do Santo Ofício e nos decretos que referendou, e até redigiu. Releia o ilustre escritor o Título XV do Regimento do Santo Ofício da Inquisição promulgado pelo régio alvará de 1 de Setembro de 1774, e combine os dizeres, que atribui ao marquês, com o seguinte parágrafo, recheado de inépcias, e que o mesmo marquês referendou: Tendo mostrado a História por factos incontestáveis que os chamados autos-de-fé, ordenados nos regimentos de D. Pedro de Castilho e de D. Francisco de Castro, fabricados pelos Jesuítas, e até autorizados com as armas da sua perversa e já extinta Sociedade foram outro invento da malignidade dos mesmos Regulares, para mais fomentarem a ignorância e o fanatismo, etc. E no decreto do mesmo ano e dia:... Não era verosímil que a bula fundamental, as leis da criação, e os regimentos que tinham dado as normas para o bom governo do Santo Ofício da Inquisição deixassem de padecer iguais ou maiores estragos por efeito dos mesmos estratagemas da terribilidade jesuítica... que a nociva prepotência daquela Sociedade jesuítica... por uma parte fizera nomear diversos inquisidores-gerais seus notórios faccionários, os quais, conspirando com ela, etc.



A conclusão tácita do longo arrazoado do decreto é que sob a influência dos jesuítas até ao ano de 1732 tinham sido condenados ao fogo 1 404 indivíduos, e saíram com hábitos de infâmia nos autos-da-fé 23 068 réus. Aqui tem o Sr. conde de Samodães a lisura de carácter com que o conde de Oeiras, uma vez julgava ilesos da peste jesuítica os dominicanos, e outra vez fazia os dominicanos uns dóceis algozes das sugestões dos jesuítas. Tortuosa infâmia de homem!

E, se o Santo Ofício estava deturpado e pervertido pelo ascendente dos jesuítas, porque não arrasou ele a Inquisição com um aceno desse poderoso braço que exterminou a Companhia de Jesus? É que não lhe convinha eliminar uma das suas repartições de tormento: pelo contrário, chamou-a a si, deu a direcção dela a seu irmão Paulo de Carvalho, e ordenou por lei que a tratassem por majestade. Sua Majestade a Inquisição! Aceitou a instituição infamada pelo ascendente dos jesuítas, e manteve-a com os seus autos-da-fé, com as suas fogueiras, com os seus açoutes, com os seus freios na boca dos padecentes, com a exposição dos retratos dos que morreram, e com a ignomínia do hábito e prisão perpétua dos hebreus.

(...) Em 1804 as alfaias inquisitoriais da casa dos tormentos eram ainda as mesmas com que se tinha servido Paulo de Carvalho e o cardeal da Cunha, seu sucessor. Quando o marquês de Pombal foi demitido, os cárceres da Inquisição estavam repletos, e era grande o número de réus que tinha morrido desde 1761 até 1777 nos ecúleos e nos segredos. A mobília da tortura não participou da influência reformatriz do marquês: eram do mesmo feitio os instrumentos e com os mesmos engenhosos artifícios flagelantes do tempo do rei-inquisidor, de D. Pedro de Castilho e de D. Francisco de Castro.

(...) Os Távoras, o duque de Aveiro e os outros indiciados regicidas sofreram os tratos, chamados espertos, de cavalete ou potro. Os que saíram no auto-da-fé de 1765 quase todos tinham passado por essa prova, pois que na maior parte eram confitentes diminutos, e o Regimento referendado pelo marquês igualava os hereges aos regicidas perante a tortura. Não houve a cremação dos corpos vivos, na praça, à luz dos archotes, como em 1761; mas deu-se a agonia da lenta dilaceração nos subterrâneos do Santo Ofício. O dominicano que não podia, sem ordem do marquês, queimar em público, despedaçava a ocultas o judeu e o herege. Pombal era indiferente aos processos recônditos, contanto que não houvesse o escândalo do auto-da-fé, que ele, na sua depravada estupidez, atribuía aos jesuítas. D. Luís da Cunha tinha escrito a D. José, quando lhe pedia que admitisse ao ministério Sebastião José de Carvalho , que os estrangeiros escarneciam o hediondo espectáculo do auto-da-fé; mas o marquês só vinte e nove anos depois entrou nas ideias do seu amigo e mestre.

Ó centenaristas, ó heresiarcas, ó inimigos do altar e do trono! Se o marquês de Pombal vos apanhasse, maganões!

- Mas - pergunta-me um centenarista um pouco confuso, não obstante ser esclarecido -, como sabe você que o marquês de Pombal escreveu, ou sequer referendou os artigos do Regimento do Santo Ofício? Como o sei? Sei-o por mo dizerem D. José I e mais ele. Sei-o pelo Alvará de Lei do 1.º de Setembro de 1774, em que o texto tem esta clareza: ...E porque, em resolução da sobredita consulta, houve por bem conformar-me com o parecer do conselho geral e ordenar-lhe que o sobredito novo e necessário Regimento subisse à minha real presença para sobre ele resolver o que achasse conveniente: porque, em outra consequente consulta de 14 do próximo pretérito mês foi agora apresentado o sobredito Regimento, escrito nas 70 meias folhas de papel que baixam referendadas no fim de cada uma delas pelo Marquês de Pombal do meu Conselho de Estado e ministro por mim privativo e deputado para o expediente de todos os negócios concernentes ao Santo Ofício, etc. Depois, assina o rei, e assina o ministro.






(...) E ao mesmo tempo que proibia a posse e leitura de obras adversas ao Santo Ofício, o marquês de Pombal fazia atacar as crenças católicas, negando a supremacia do Papa, chasqueando-lhe a pretendida infalibilidade, escarnecendo-lhe os seus santos. O espírito agressivo de António Pereira de Figueiredo, um dos dóceis instrumentos dos seus planos, com um conto de réis por ano, não era mais suave para Roma que as invectivas dos grandes heresiarcas dos séculos XV e XVI. À sua custa mandava imprimir o marquês de Pombal o famoso livro do bispo dissidente de Miriófita, que, sob o pseudónimo de Justinus Febronius, escreveu - Do Estado da igreja e poder legítimo do pontífice romano - uma diatribe contra a religião católica, vertida a expensas do marquês pelo coronel Miguel Tibério Pedegache. Leituras desta natureza indispensavelmente fomentavam o protestantismo no reino, a heresia que se identificava com Calvin e com Luther. Muitos leitores desses livros, desligados mentalmente da igreja romana, caíram na imprudência de manifestar a sua aversão ao Santo Ofício. Pois, senhores, esses desgraçados, embaídos pelos livros que lhes facilitava o marquês, se se deixavam desvairar, iam malhar com os ossos na polé da Santa Inquisição.

Quando nos dará a história um homem semelhante, uma tão impenetrável, tão absurda depravação? Quem me explicará a sinistra ideia do ministro-filósofo que permitia os tratos espertos nos heresiarcas, proibia com severidades acerbas a leitura e posse de obras hostis ao Santo Ofício, mandava ao mesmo tempo publicar livros eivados de jansenismo e do racionalismo de Voltaire, e fazia queimar os livros ortodoxos que alimentavam a piedade boçal dos seus contemporâneos?

Convinha, antes do centenário, trazer à luz a tenebrosa monstruosidade deste carácter incoercível e único na história!».

Camilo Castelo Branco («Perfil do Marquês de Pombal»).


«Foi há mais de dois séculos que Portugal viu estabelecida a centralização do poder estatal com a liquidação pombalina da Nobreza e da Companhia de Jesus. Seria na sequência da transferência das missões ultramarinas para o Estado, até então a cargo dos jesuítas, assim como do atentado ao rei D. José I, que o Marquês mandaria, numa atmosfera de terror, tortura e interrogatório, aplicar o seguinte: encerramento de todos os colégios e escolas sob orientação inaciana (1758); expulsão da Companhia de Jesus de todo o território português (12 de Janeiro de 1759), por crime de lesa-majestade; suplício, em Belém (13 de Janeiro de 1759), dos marqueses de Távora e de Alorna, do duque de Aveiro e seu criado, como ainda dos condes de Atouguia, de Óbidos e da Ribeira Grande; a publicação do alvará régio de 28 de Junho de 1759, em que se determina o ensino público de ora avante estruturado no mais vivo repúdio do método preconizado pela neo-escolástica conimbricense. Todavia, seria sobretudo através da Real Mesa Censória, decorridos três anos da sua aparição enquanto organismo estatal (5 de Abril de 1768), que se levariam às últimas consequências a extinção das ordens tradicionais: Clero, Nobreza e Povo.

Portadoras de valores espirituais, tais Ordens ou Estados ficariam doravante sujeitas a uma política aniquiladora dos diferentes com a redução do magistério ao ministério. Perante a total e constrangedora dependência do ensino ao poder político, assistir-se-ia, consequentemente, a "uma constante uniformidade de doutrina", já notória nas directrizes pedagógicas impostas aos professores pelo alvará de 28 de Junho de 1759. Acrescente-se, ainda, o carácter obrigatório e policial dessas directrizes, quer fosse através de medidas intimidatórias como o reparo, a demissão e a prisão, quer fosse mediante a obtenção sine qua non de um diploma passado ou reconhecido pelo Director dos Estudos, ao tempo o prelado D. Tomás de Almeida.






É sabido que Luís António Verney, autor do Verdadeiro Método de Estudar (1746), foi um dos principais inspiradores da reforma pombalina do ensino. Assim, em duas frentes contribuiu para a entrada do iluminismo em Portugal: a primeira com o ensino dos estrangeirados nos colégios e universidades segundo o sistema da física moderna, tal como se desenvolvia na Europa setentrional e central; a segunda pelo combate à antiga sociedade de ordens, nomeadamente a nobreza hereditária com sua propriedade territorial e graus de cavalaria. Com efeito, quer Verney quer ainda Ribeiro Sanches, em suas Cartas sobre a Educação da Mocidade (1760) - que Pombal parece ter consultado para os estudos médicos em abono da reforma universitária -, seguem e propõem o modelo europeu de instrução dos nobres, com isto visando destituir o príncipe da função nobilitadora dispensada aos que, tocados pela graça, formam o escol ou os aristocratas do espírito.

De resto, ao Marquês restaria apenas planear a destruição da nobreza, valendo-se, para o efeito, da estatização do ensino e do controlo da economia pelas companhias monopolistas. Há, contudo, quem veja na legislação pombalina uma espécie de consagração social da nobreza sob a forma de uma prévia e sistemática adaptação ao aparelho administrativo do Estado, ou ainda mediante a atribuição de privilégios e títulos de fidalguia aos detentores do poder económico, como no caso dos Sobrais, dos Braamcamp, etc. Porém, tal não corresponde à verdade, mesmo quando, a propósito da condição e do estatuto temporal dos nobres, haja quem defenda uma inevitabilidade histórica da sociedade moderna apostada no trabalho, na ciência e na igualdade entre os homens.

De facto, o que prevalecia eram apenas desígnios políticos à margem de qualquer distinção dinástica e nobiliárquica, bem como à margem de toda e qualquer actividade relacionada com a arte, a filosofia e a religião. A confirmá-lo está o seguinte testemunho: "A educação dos nobres ficara extremamente descuidada depois da extinção da antiga dinastia, em 1580. O Ministro de D. José I tinha instituído um colégio onde os alunos não progrediam. Antes da fundação deste colégio quase todos os nobres eram educados em Coimbra, cidade mais própria para a vida estudantil e, sob este aspecto, oferecendo muito maiores vantagens que Lisboa (...) O Conde de Oeiras fundara o Colégio dos Nobres apenas com intuitos políticos. Neste particular ele usava como os imperadores do Japão, que obrigavam uns tantos membros de cada família nobre a fixar-se na capital como reféns da sua fidelidade. O Ministro desejava ter debaixo de mão os filhos da nobreza, que tanto perseguira e vexara, para assim melhor segurar os pais". Logo, quem, porventura, quererá ver no consulado pombalino algo de positivo para a cultura portuguesa?

Sem embargo de alguma popularidade atribuída à administração pombalina, existem testemunhos, tanto nacionais como estrangeiros, que permitem revelar a pobreza e a miséria da época, devida, nomeadamente, aos privilégios concedidos pelo Estado às companhias monopolistas, a saber: Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755), Companhia Geral da Agricultura e Paraíba (1759), Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve (1773). Além disso, também sobressaía, a par da ruína dos particulares, o penoso achar financeiro da administração, pois "devia-se o pré às tropas", tal como "deviam-se os salários nas oficinas do Estado, as soldadas aos serviçais do paço", etc. Há, contudo, quem ainda hoje admire, na esteira dos iluministas e positivistas, a administração política de Pombal, a avaliar pela "estátua no local assinalado pela mais importante operação militar na véspera da Proclamação da República"».

Miguel Bruno Duarte («Noemas de Filosofia Portuguesa. Um estudo revelador de como a universidade é o maior inimigo da cultura lusíada»).






«Geralmente confunde-se "Cristão-Novo" e "Judeu". Para quase todos os Autores que escreveram sobre os Cristãos-Novos o problema deles é um problema de Judaísmo. Esta crença era já a dos inquisidores, que fizeram tudo para a acreditar.

O Autor do presente ensaio pretende contestá-la. Empresa difícil, porque é um desafio, não apenas à inércia das ideias feitas e à susceptibilidade dos mitos, mas ainda à evidência indiscutida de uma documentação que, pela sua enormidade, faz as delícias dos eruditos: a secção inquisitorial da Torre do Tombo.

(...) As inquisições portuguesa e espanhola constituem um caso à parte dentro da história geral da Inquisição. Esta particularidade resulta principalmente da qualidade dos réus que elas perseguiam, os chamados Cristãos-Novos ou marranos, e também das relações entre o poder estatal e o poder inquisitorial, que na Península Ibérica foi singularmente organizado, centralizado e estável.

O que há de comum a todas as inquisições, além de conhecerem e de punirem os crimes contra a fé e os bons costumes, é, em primeiro lugar, o investigarem e julgarem esses crimes segundo uma forma de processo especial, diferente da que se seguia nos crimes comuns; e, em segundo lugar, a possibilidade de fazer executar, para os ditos crimes, que se consideravam de natureza "espiritual", penas temporais. Desta forma, as inquisições, desde a sua origem, combinaram dois direitos e jurisdições que tradicionalmente constituíam duas esferas distintas: o direito eclesiástico, aplicado pelo braço "espiritual", e o direito civil, aplicado pelo braço "temporal". Isto foi possível graças a uma aliança entre o Rei e o Papa.

Antes da instituição dos tribunais inquisitoriais competia aos bispos investigar ou inquirir sobre os crimes contra a Fé dentro das respectivas dioceses. A grande vaga de heresias que grassou no sul da França durante o séc. XII deu lugar a uma conjuntura em que o poder pontifício e o poder régio se uniram não só para a guerra de cruzada contra os Albigenses como também para a eliminação dos vestígios heréticos entre os vencidos. Com este fim, nos primeiros anos do séc. XIII, nas regiões mais afectadas pelas heresias, o Papa criou tribunais especiais encarregados de despistar e punir os hereges.

Os seus juízes foram pela maior parte recrutados entre os frades da ordem dominicana, recentemente fundada, e que estava na vanguarda da luta contra as novas heresias.

Da função de inquirir (investigar) os crimes heréticos, veio a estes tribunais especiais o nome de Tribunais do Santo Ofício da Inquisição (ou inquirição). Delegados do papa (e por isso independentes dos bispos), os inquisidores contavam com a colaboração das autoridades régias para fazer aplicar penas temporais aos culpados de heresia. Com efeito, sendo uma instituição eclesiástica, a Inquisição só podia, em princípio, impor penas "espirituais" (excomunhões, penitências, etc); mas, entregando, ou "relaxando" ao "braço secular", isto é, à justiça civil, os condenados, submetia-os, implicitamente, à pena de morte e de confiscação de bens, que o direito estatuía para certos crimes, entre os quais os de heresia.


No entanto, as relações entre os tribunais inquisitoriais e a autoridade régia foram muito flutuantes durante a Idade Média. O princípio da colaboração dos dois poderes foi mais ou menos aplicado consoante as conjunturas e os lugares, a variação das relações entre o Rei e o Papa. Antes do estabelecimento da Inquisição ibérica não houve um estatuto fixo regulando as relações entre o poder real e o poder inquisitorial, isto é, o conjunto dos tribunais inquisitoriais de cada país, organizados num todo e representados por um orgão supremo. Pode falar-se, como instituição, de uma Inquisição espanhola, de uma Inquisição portuguesa mas não de uma Inquisição francesa ou de uma Inquisição aragonesa.

Em princípio, a Inquisição ocupava-se exclusivamente dos súbditos da Igreja, isto é, da gente baptizada que se apartava da Fé professando heresias ou entrando em pactos com o Diabo, cujos poderes sobrenaturais, segundo a crença medieval, estavam na origem da feitiçaria. Em teoria, a Igreja não podia obrigar a converterem-se à Fé cristã os nascidos fora do seu grémio, como Judeus ou Muçulmanos. E, com efeito, não encontramos nas Inquisições medievais perseguições anti-islâmicas ou antijudaicas. Estas últimas, na Europa medieval, desenvolveram-se sempre à margem da Igreja, que nelas não interveio, pelo menos ex oficio.

Irradiando do sul de França na caça dos Albigenses e dos feiticeiros, os tribunais inquisitoriais propagaram-se às regiões vizinhas, na França, na Itália, na Península Ibérica. Tiveram uma actividade intensa no Aragão fortemente contaminado de heresias. Mas detiveram-se no Ebro. Em Castela e em Portugal não há notícia de terem grassado as heresias perseguidas pelos inquisidores. Em meados do século XV as últimas chamas desta série inquisitorial esmorecem no Aragão.

É então que, inesperadamente, passam o Ebro. O veículo desta passagem foi o casamento de Fernando de Aragão com Isabel de Castela. Mas o combustível que vai alimentar as novas labaredas não são já as heresias que tinham dado origem à Inquisição medieval, não é tão-pouco a heresia protestante, que só aparecerá dezenas de anos depois da fundação da Inquisição espanhola. É uma nova espécie de prevaricadores que a Inquisição medieval tinha ignorado.

Entre os muitos milhares de antigos Judeus, convertidos mais ou menos forçadamente para escapar da morte, à expatriação ou à confiscação dos bens, alguns eram acusados de "judaizarem", isto é, de praticarem em segredo a religião dos seus antepassados, incorrendo portanto na acusação de apostasiarem o baptismo: eram eles os chamados "marranos". Apesar de haver durante a Idade Média, em vários países da Europa, muitos Judeus convertidos; apesar de serem particularmente numerosos na Itália, durante o séc. XVI, os Judeus e conversos fugidos de Espanha, nem as Inquisições medievais nem a Inquisição romana se ocuparam deles, a não ser esta última, durante um curto período. É na Espanha e só na Espanha que os Judeus convertidos constituem, de forma sistemática e durável, matéria de investigação e perseguição inquisitorial.

Por outras palavras, se o problema judaico existiu em quase toda a Europa, em toda a bacia do Mediterrâneo e noutras regiões do mundo, o problema dos Cristãos-Novos é especificamente ibérico.






Já na Espanha muçulmana, região particularmente florescente da civilização mediterrânea, então dominada pelos Árabes, os Judeus ocupavam uma posição privilegiada. Com o refluxo dos Árabes, populações de Judeus ficaram em território cristão. Entre as duas religiões inimigas, formavam uma terceira religião que podia manter-se alheia à refrega e beneficiar de uma certa neutralidade. Aos Cristãos, guerreiros e camponeses, eles apareciam como homens de civilização superior cujos serviços lhes eram indispensáveis. Os Judeus eram artesãos, pequenos e grandes comerciantes, financeiros, médicos, homens de leis, funcionários da corte. Continuaram a sê-lo na Península cristã, e os reis recorreram largamente às suas capacidades e competências. Entre a plebe camponesa e a aristocracia guerreira, constituíam o nó de uma classe burguesa.

Pelas funções que desempenhavam e pelo seu número, alcançaram uma situação superior, em prosperidade e em prestígio, à de qualquer outra comunidade hebraica da Europa medieval.

Ora, quando a comunidade hebraica se encontra aqui na sua época de maior esplendor, nos séculos XII e XIII, desencadeiam-se em vários países de além-Pirenéus, mas sem a intervenção da Igreja, como já notámos, os massacres e as conversões forçadas de Judeus. É nas regiões de grande desenvolvimento artesanal e comercial que se verifica a eliminação pacífica ou violenta da minoria hebraica: o norte da França, a Inglaterra, as cidades do Reno. Tudo leva a crer que este fenómeno corresponde ao progresso artesanal e comercial e ao aparecimento correlativo de burguesias urbanas nesses países, que repelem ou assimilam as burguesias hebraicas já instaladas, segundo uma tendência para eliminar as minorias étnicas religiosas. As classes sociais tendem, pouco a pouco, a caracterizar-se cada vez mais pela função económica e pela forma de apropriação da riqueza; são cada vez menos castas hereditárias com a sua expressão religiosa particular. O Direito pessoal ou étnico vai cedendo o lugar ao Direito geral. A este processo corresponde no plano político, como se sabe, a formação dos Estados modernos, em que o poder central reflecte, quando não já o predomínio da Burguesia, ao menos um compromisso entre esta e a Nobreza tradicional, que continua a ser uma casta, tornando-se esse poder central mais um factor de nivelamento.

O facto de este processo de eliminação da minoria judaica só se iniciar muito mais tarde na Península Ibérica é provavelmente um indício do atraso económico social da população cristã nesta parte da Europa, onde as três religiões coexistiam. Aqui, aparentemente, a burguesia cristã nem tinha força para concorrer com a burguesia judaica, nem era capaz de a substituir.

Só em meados do séc. XIV se desencadeia em Espanha a perseguição acaudilhada sobretudo por membros do baixo clero, secundados pelo povo simples, que via nos Judeus a causa das suas penas. Um progrom desencadeado em Sevilha por acção de um clérigo fanático, em 1391, alastra para o norte, até Barcelona. Milhares de Judeus são assassinados, outros milhares convertem-se sob o terror. Massacres, violências, leis discriminatórias, conversões em massa sucedem-se ao longo do séc. XV. Em 1449 é posta em vigor a primeira lei de "limpeza de sangue" proibindo o acesso de descendentes de Judeus a inúmeros cargos, honras e profissões. Quando os Reis Católicos sobem ao poder encontram uma massa de Judeus convertidos ou "Cristãos-Novos", e outra massa de Judeus praticantes. Por motivos óbvios, estes dois grupos digladiavam-se, e entre os mais diligentes perseguidores dos adeptos da lei mosaica contavam-se muitos novos convertidos. No meio dos dois grupos, havia os que, na comunidade cristã, não sabiam ou não queriam romper os laços que os uniam à comunidade judaica. Praticavam abertamente os ritos cristãos e secretamente os hebraicos (sendo de notar que nesta duplicidade não havia necessariamente hipocrisia). Eram os "marranos". Para reprimir este culto clandestino, que a persistência das comunidades judaicas tornava inevitável, os Reis Católicos obtêm do Papa, em 1478, uma bula instituindo a Inquisição em Castela. Embora constituída por vários tribunais regionais, pode falar-se de uma Inquisição espanhola porque todos eles dependiam de um Inquisidor-Geral, nomeado pelo Rei, e de um conselho geral ou "junta suprema".

Estes tribunais ocupam-se, não dos judeus, cujo culto continuava a ser reconhecido oficialmente, mas dos Cristãos suspeitos de judaizarem, e portanto considerados como "apóstatas".

Em princípio, o estabelecimento da Inquisição em Espanha pode explicar-se pela confusão resultante da existência dos dois grupos, o dos Judeus convertidos e o dos não-convertidos, que originava e sustentava um terceiro grupo, o dos falsamente convertidos. Por outro lado, a conversão de milhares de Judeus criara uma nova camada burguesa cristã (de origem judaica), inimiga natural da velha burguesia judaica.

Cristovão Colombo perante os Reis Católicos Fernando e Isabel, representado por Emanuel Leutze.


Em 1491, finalmente, os Reis Católicos ordenaram a expulsão dos Judeus que não quisessem converter-se ao Cristianismo. Muitas dezenas de milhares de homens liquidaram os seus bens ao desbarato e partiram, em parte pelos portos, em parte pela fronteira portuguesa. As razões que determinaram esta medida têm sido diversamente explicadas. É evidente que ela resultou num imenso saque dos bens dos expatriados, saque esse que não aproveitou apenas ao rei e seus agentes, mas a toda uma massa de gente que dispunha de dinheiro líquido para comprar, a preços irrisórios, as terras, as casas e os móveis dos que partiam. Mas não parece menos evidente que a expulsão é a conclusão inevitável da situação que anteriormente se criara. Uma vez que uma grande parte dos Judeus se tinha convertido, tornava-se difícil a existência dos não-convertidos. Um dos grupos tendia a eliminar o outro. Acrescente-se que, uma vez que das conversões em massa a partir de meados do séc. XIV resultaram uma nova burguesia e um novo artesanato cristãos, a expulsão dos Judeus representava, agora, uma amputação económica e social bem menos grave do que o teria sido antes da existência de uma população numerosa de Cristãos-Novos. Ainda assim, os historiadores são concordantes no imenso prejuízo que resultou para a Espanha da partida dos Judeus sobreviventes.

Durante os anos seguintes, a Inquisição espanhola levou a cabo a exterminação dos restos do Judaísmo. Essa obra estava consumada em meados do séc. XVI, isto é, pouco mais de meio século depois da expulsão dos Judeus. Na segunda metade do século os processos contra judaizantes rareiam, e se a partir da união de Portugal e Castela voltam a multiplicar-se, as suas vítimas não são já os judaizantes de origem espanhola, mas os de origem portuguesa, que estavam emigrando em massa para Castela. Como escreve Caro Baroja, baseando-se no estudo quantitativo dos processos em Espanha, "mortos os homens ou mulheres nascidos em 1480 a começos do século XVI, adultos ou velhos os filhos destes, verifica-se que o rigor inquisitorial contribuíra muito para que o Judaísmo em Castela chegasse a uma situação tão precária que podia prever-se a sua extinção total".

Em conclusão, a situação em Espanha caracteriza-se, até 1492, pela existência de três grupos: os judeus mosaicos, os judeus cristãos, os judeus marranos. Estes últimos tinham um pé no grupo mosaico, e outro pé no grupo cristão. A expulsão do grupo mosaico, em 1492, acarretou automaticamente o desaparecimento do grupo marrano. Perdido o pólo de atracção mosaico, os marranos assimilaram-se ao Cristianismo. O espaço de uma geração bastou à Inquisição espanhola para liquidar os seus restos.

Mas se os judaizantes quase desapareceram, os chamados Cristãos-Novos ficaram. Mais do que isso: passaram a constituir um grupo social bem definido, do seio do qual saíram algumas das grandes personalidades da Espanha, como Fernando Rojas, autor da Celestina; o grande humanista, Juan Luis Vives; Santa Teresa de Ávila; o Padre Diogo de Lapinez, um dos fundadores e primeiros chefes da Companhia de Jesus, como aliás muitos outros jesuítas de relevo. Estas e outras grandes personalidades mostram bem como os descendentes de hebreus se integraram na vida espanhola. E, não obstante, os Cristãos-Novos espanhóis eram reduzidos pelas leis, pelos costumes e pelos preconceitos dominantes a uma situação de inferioridade. Contra eles vigoravam as leis de "limpeza de sangue" que lhes vedavam o acesso aos cargos ditos "honrosos", isto é àqueles que eram apanágio de fidalgos ou de que resultavam prestígio e liderança social, bem como aos cargos eclesiásticos.



Santa Teresa de Ávila, de François Gérard




Por várias formas procuraram os Cristãos-Novos iludir as leis que os separavam da população espanhola, escapar a esta deminutio capitis ou estatuto social de inferioridade, e muitos o conseguiriam individualmente num paciente e pertinaz esforço, utilizando o dinheiro e o casamento, mudando de nome e de lugar, quando era preciso. Mas nem por isso os Cristãos-Novos, como grupo, conseguiram romper, antes de meados do século XVIII, a espécie de ghetto social a que estava reduzidos, muito embora de longa data tivessem deixado de dar motivo a perseguições religiosas. Por tradição, mas também porque a tanto os compelia a situação em que se encontravam, dedicavam-se particularmente ao comércio, às profissões liberais e às actividades intelectuais não eclesiásticas. Por isso foi possível falar da "classe dos conversos". Entre o fidalgo, rico ou pobre, e o lavrador de ínfima condição (que uns e outros se jactavam do seu sangue "limpo"), os Cristãos-Novos (que em numerosíssimos casos descendiam de Cristãos-Velhos) constituíam o grosso da classe média. E é de notar que muitas famílias de mercadores, graças à riqueza, subiram na escala social e ingressaram na nobreza, abandonando a actividade mercantil. Estes passavam a gozar dos privilégios dos nobres e deixavam de pertencer ao grupo dos Cristãos-Novos. Desta forma o nome de Cristão-Novo corresponde a uma situação económica e social, tanto, pelo menos, como a uma continuidade hereditária.

Alguém aproveitava, naturalmente, com esta discriminação: aqueles que eram os detentores tradicionais da terra e do poder político e que se identificavam com os valores feudais. Para esses, os mercadores, homens de negócio, letrados laicos, cujo poder crescente ameaçava a ordem estabelecida, cuja mentalidade punha em causa os valores tradicionais, constituíam um inimigo perigoso. As leis de limpeza de sangue eram uma barreira ao seu avanço. É verdade que o terreno social era favorável a tais leis. O enorme poderio da Igreja dava um grande papel às motivações religiosas (ou pseudo-religiosas) na política do Estado; o relativo arcaísmo da sociedade manifestava-se, mais do que na Europa Central, pela persistência de grupos fechados especializados em funções económicas que se transmitiam hereditariamente, com tendência a virarem castas. Até certo ponto, está na natureza das coisas sociais em Espanha, nesta época, que os burgueses constituam um grupo hereditário, da mesma forma que os fidalgos e os lavradores. É evidente, no entanto, que se as leis de limpeza de sangue resultam em parte do atraso social da Espanha, elas contribuem para o prolongar, em benefício do grupo cujo poder resulta desse mesmo atraso, e em prejuízo do grupo ou grupos cujo progresso punha em causa o status quo.

Por estas razões me parece inteiramente inadequada a expressão "Judeus" ou "Criptojudeus" que alguns autores (como I. S. Révah ou Julio Caro Baroja) empregam para designar os Cristãos-Novos espanhóis. Judeus e Cristãos-Novos são entidades inteiramente distintas, embora haja entre elas uma ligação histórica. Importa não as confundir, sob pena de não compreendermos o problema que nos é posto pela existência deste grupo social exclusivamente ibérico.

Na Península Ibérica, como no resto da Europa, a situação dos Judeus, durante a Idade Média, resultava de uma realidade étnica e religiosa; esta realidade separava as burguesias judaicas das burguesias cristãs. Mas, ao passo que no resto da Europa as perseguições acabaram pela exterminação, expulsão ou assimilação da minoria judaica, num movimento de cilindragem e de igualização que tendia a abolir a lei particular e a discriminação dentro de cada colectividade, na Península Ibérica o processo de assimilação e extermínio foi seguido de um outro em sentido contrário, isto é, de um processo de dissimilação que conduziu a uma nova discriminação e criou, em lugar da antiga minoria extinta, uma nova minoria com estatuto social de inferioridade.

Mapa topográfico dos Pirenéus


Além-Pirenéus voltou a haver Judeus em vários países, depois dos massacres e conversões em massa; mas esses resultavam de novas imigrações e não dos Judeus nativos convertidos. Não era o tronco antigo, decepado, que deitava novas vergônteas, mas sementes novas que o vento trazia de fora e criavam novas raízes. Na Península Ibérica, pelo contrário, os chamados Judeus dos sécs. XVI, XVII e XVIII resultam de que depois da assimilação conseguiram até certo ponto criar um novo ghetto. A nova minoria não tem já uma realidade étnica e religiosa, e a sua personalidade resulta da pressão que sobre ela exercem, do exterior, as leis, os costumes e os preconceitos alimentados por certos fautores. "O Judeu está em situação de Judeu porque vive no seio de uma comunidade que o tem como Judeu": este asserto de J.-P. Sartre aplica-se de forma particularmente flagrante aos Cristãos-Novos ibéricos. Realidade religiosa vimos que a não tinham estes novos cristãos que mal davam pretexto à inculpação por motivo religioso. Personalidade étnica é difícil encontrá-la nestes vários grupos de população que já na época muçulmana viviam livremente na Península, que se foram convertendo em camadas sucessivas a partir da segunda metade do séc. XIV e que não se privavam de misturar por casamento o seu sangue com o dos Cristãos-Velhos. A personalidade deste grupo social, aliás pouco estável e de limites mal definidos, resultava sobretudo das suas actividades económicas predominantes e da consciência particular que dentro dele tendia a criar-se em resultado da sua situação relativamente aos outros grupos sociais».

António José Saraiva («Inquisição e Cristãos-Novos»).


«(...) - Para melhor situar o debate, (...) gostaria de lhe perguntar que importância reveste para a compreensão da civilização portuguesa a história espiritual e material dos Cristãos-Novos? Por outro lado, António José Saraiva indica (p. 25) que I. S. Révah emprega a expressão "Judeus" e "Criptojudeus" para designar "os Cristãos-Novos espanhóis". Poderia dizer-me se para si estas duas realidades se confundem?

- Respondo imediatamente à segunda parte da sua pergunta. Para apreciar a boa fé do polemista A. J. Saraiva, basta citar um trecho de um livro meu de 1950 que ele leu e até citou: a minha introdução à edição de um manuscrito inédito do grande clássico João de Barros, o Diálogo Evangélico sobre os artigos da Fé contra o Talmude dos Judeus. Neste trecho, sublinhava eu "a profunda diferença entre a situação espiritual dos Cristãos-Novos na Espanha e Portugal": "Na Espanha, as conversões violentas verificam-se desde 1391, e durante todo o século XV a polémica religiosa antijudaica não abranda um instante. A invenção da imprensa vem decuplicar o esforço de contágio dos convertidos pelos judeus que professam a lei de Moisés. Os Cristãos-Novos formarão no seio do catolicismo espanhol uma massa inquieta, muito sensível às novidades, mas movendo-se afinal no interior do credo cristão".

Em Portugal, a situação é completamente diferente; no entanto, mesmo neste país, tenho o maior cuidado em não confundir o conceito de Cristão-Novo, que se refere ao domínio étnico (pois se aplica a todos os descendentes dos judeus portugueses e espanhóis convertidos pela violência ao catolicismo em 1497) e o conceito de Criptojudeu ou Marrano, que se refere ao domínio religioso (pois designa os Portugueses que, de 1497 até aos nossos dias, embora aparentemente católicos, aderiram clandestinamente aos dogmas essenciais e observaram algumas práticas da religião judia). O conceito étnico de Cristão-Novo era susceptível de uma avaliação aritmética, dado que os inquisidores podiam referir-se a alguém dizendo que ele era cristão-novo, meio cristão-novo, quarto de cristão-novo, ou até... "meio oitavo de cristão-novo". Ora, nem todos os Judaizantes e Judeus portugueses eram "puros" Cristãos-Novos, sob o ponto de vista étnico.

O que constituiu, a meu ver, a razão da extrema importância dos Cristãos-Novos na história da sociedade e da cultura portuguesas, sobretudo entre o fim do séc. XV e o fim do séc. XVII, é a massa enorme de pessoas às quais se aplicou a conversão forçada de 1497. Todos os números que se possam avançar serão naturalmente aproximativos e discutíveis, mas não será grande exagero se dissermos que em 1497 os Cristãos-Novos constituíam aproximadamente a décima parte da população total de Portugal, proporção absolutamente extraordinária na história dos Estados cristãos do Ocidente.


- Um ponto importante a esclarecer é o de saber qual o destino histórico dessa comunidade neocristã, no seio da sociedade portuguesa, após a conversão forçada. Assimilou-se inteiramente ao resto da população ou manteve uma individualidade e personalidade próprias?

- É necessário ser dotado de um dogmatismo ideológico excepcional para supor que esta enorme massa de Judeus, convertidos através de meios abomináveis, e cujo nível cultural médio era bastante elevado, se fundisse no espaço de uma geração com uma sociedade de Cristãos-Velhos dominada pelo analfabetismo. Para mais, nenhum esforço particular de catequização católica foi tentado em relação a esta população profundamente judia, a qual, até 1531, pode ter impressão de judaizar em segurança, contanto que respeitasse as regras elementares de prudência.

Eu nunca neguei que, desde 1497, certos Cristãos-Novos tentassem assimilar-se totalmente ao resto dos Portugueses. Mas em 1531, o processo de assimilação não devia ter atingido senão uma fracção bastante fraca dos Cristãos-Novos: é evidente que ele foi gravemente contrariado quando se desencadeou a repressão inquisitorial, e que obteve muitas vezes resultados exactamente contrários aos que se esperava do Santo Ofício. Daí a grande complexidade da história do grupo étnico-religioso, inicialmente homogéneo, dos Cristãos-Novos, complexidade de que se não podem aperceber os ideólogos dogmáticos e que resulta da interacção de quatro factores diferentes, cuja influência sobre o destino de cada indivíduo foi, na realidade, muito variada:

1.º - a sinceridade da adesão a uma fé religiosa (católica ou criptojudia);

2.º - a reacção perante os efeitos da repressão inquisitorial do criptojudaísmo;

3.º - a força do apego à terra natal;

4.º- o grau de submissão às condições económicas e sociais.

Ao seguir, através dos documentos, a história bissecular de numerosas famílias neocristãs, pude constatar a interacção progressiva, por vezes dolorosa, de muitos dos seus membros na sociedade católica. Mas pude também verificar a perpetuação da fé criptojudia entre muitos outros membros dessas mesmas famílias e a sua adesão, depois de expatriados, às comunidades judias oficiais ou aos agrupamentos marrânicos semiclandestinos do estrangeiro.

Assim, para responder completamente à sua pergunta de há pouco, eu diria que a importância da história material e espiritual dos Cristãos-Novos ultrapassa largamente o quadro português e se refere também a numerosas nações que acolheram esses Portugueses fugitivos.

- No entanto, uma das teses essenciais de A. J. Saraiva é que os grupos de Cristãos-Novos da Península Ibérica nos séculos XVI, XVII e XVIII não tinham nem "personalidade étnica" nem "realidade religiosa", antes, a sua personalidade "resultava sobretudo das suas actividades económicas predominantes e da consciência particular que dentro dele [s] tendia a criar-se em resultado da sua situação relativamente aos outros grupos sociais" (p. 26). Como encara esta tese, e como definirá os pressupostos que ela implica?


- Eu já respondi que, para o ideólogo A. J. Saraiva dos anos 1955-1956 (as datas têm a sua importância), uma aplicação simplista do esquema da luta de classes no nosso problema não se podia acomodar com a existência multissecular, em Portugal, de uma etnia neocristã e de uma religião marrânica criptojudia: o mais simples era negar esta existência e sacrificar a massa enorme dos factos históricos perfeitamente estabelecidos ao esplendor imaculado do dogmatismo ideológico.







O que é profundamente entristecedor, é que salvo raríssimas excepções, não se tem visto que o carácter ridículo das suas teses negadoras se pudesse comprovar por duas constatações históricas bastante simples.

1.º - dos fins do séc. XV aos fins do séc. XVIII, dezenas de milhares de Cristãos-Novos deixaram a sua pátria para se reunir às comunidades, ou para fundar e manter novas comunidades, apesar da hostilidade mais ou menos tenaz que lhes manifestaram a Igreja Católica ou as Igrejas protestantes, segundo os lugares, e apesar do "handicap" social, e por vezes económico, que acarretava para estes fugitivos a filiação numa comunidade judaica;

2.º - grupos cripto-judeus, de uma homogeneidade étnica e religiosa notável, foram descobertos no séc. XX em várias localidades portuguesas, nas regiões no interior do país.

A hipótese de 1955-1956 era inteiramente falsa, mas a tese de 1969, que a retoma, agravando-a, é totalmente absurda. Podemos perguntar até que ponto A. J. Saraiva, que leu as objecções de José Alcambar e as minhas, acredita realmente nela. Aliás o autor contradiz-se a si próprio, por vezes a apenas algumas páginas de distância. Quando, por exemplo, quer demonstrar que nunca existiu em Portugal nem uma etnia neocristã nem uma religião cripto-judia, A. J. Saraiva baseia-se em documentos redigidos por autores que acreditavam firmemente na existência daquelas etnia e religião, e que procuravam que elas desaparecessem pacífica e gradualmente, como o Padre António Vieira, D. Luís da Cunha, o dr. António Ribeiro Sanches, etc. Daqui resulta que, no decurso da equívoca demonstração do autor, a palavra "Cristãos-Novos" designa: ora burgueses sem relação étnica nem religiosa com o judaísmo (afastados do poder pela aristocracia senhorial e pelos seus agentes inquisitoriais), ora autênticos descendentes dos judeus convertidos pela força em 1497 (dos quais muitos aderiram ao criptojudaísmo).

A aplicação simplista ao nosso problema do esquema da luta de classes exige:

1.º - que todos os "pseudo-Cristãos-Novos" tenham pertencido à alta burguesia mercantil e financeira; infelizmente para esta ideologia, a maior parte dos Cristãos-Novos, e até a maior parte daqueles que foram perseguidos por criptojudaísmo, não eram ricos: o Santo Ofício, que sequestrava imediatamente todos os bens dos detidos, devia tomar a seu cargo, durante os processos, a subsistência de muitos presos pobres (foram conservados até hoje numerosos livros de contas para esta categoria de presos); entre os Cristãos-Novos encontramos homens da alta e da pequena burguesia, membros das profissões liberais, artesãos, trabalhadores eclesiásticos e muita gente pobre;

2.º - que os "pseudo-Cristãos-Novos" tenham constituído a alta burguesia mercantil e financeira desde o séc. XVI até ao "seu triunfo" na época de Pombal; infelizmente para esta ideologia, os documentos provam (e D. Luís da Cunha e o dr. António Nunes Ribeiro Sanches confirmam) que a alta burguesia mercantil e financeira autenticamente neocristã, a qual, quando existia, era apenas uma parte mínima da população neocristã total, só foi realmente poderosa de D. João III a D. Pedro II e que ela praticamente já não existia no tempo de Pombal;

3.º - que os "pseudo-Cristãos-Novos que aderiram no estrangeiro a comunidades judias não tivessem sido, antes da sua expatriação, judaizantes em Portugal: não fariam senão agregar-se, para benefício próprio, aos "núcleos de portugueses ricos e poderosos"; infelizmente para esta ideologia, as comunidades judio-portuguesas de Amsterdão e Baiona sustentavam, no séc. XVIII, um número considerável de pobres, cuja condição económico-social teria sido muito superior na sua pátria, não fosse o obstáculo da religião...».

Entrevista com o Prof I. S. Révah conduzida por Abílio Diniz da Silva (in «Diário de Lisboa», 6-5-1971).



Sinagoga Portuguesa de Amesterdão


«(...) AFONSO: Révah dá como prova da justiça inquisitorial o facto de numerosos antigos condenados da Inquisição que fugiram para o estrangeiro terem aderido às sinagogas portuguesas existentes, e acrescenta que o fizeram "apesar da hostilidade mais ou menos tenaz que lhes manifestaram a Igreja Católica e as Igrejas protestantes [...] e apesar do handicap social e por vezes económico que acarretava para estes fugitivos a filiação numa comunidade judaica".

DAVID: Esse "apesar de ..." é muito curioso, porque Révah conhece muito bem os textos de Ribeiro Sanches e do Cavaleiro de Oliveira onde se diz que muitos portugueses fugidos à Inquisição e que nada tinham que ver com o Judaísmo aderiram à Sinagoga como meio de sobreviverem e granjearem a vida exterior. Ribeiro Sanches diz que o condenado da Inquisição "logo que pode sair do Reino o faz sem demora. A navegação mais fácil que acha é para a Holanda, França ou Inglaterra, aonde chega ignorante da língua daquelas terras, sem conhecimento mais que dos Judeus portugueses ou castelhanos, entre os quais acha parentes e amigos; e, ou de boa vontade ou forçados pela necessidade, como já sucedeu algumas vezes, se fazem Judeus". Comentando este texto, Révah escreve nas páginas 57 e 58 do seu opúsculo Les Marranes: "Une fois installés à l'Étranger et isolés para la langue et les moeurs de la population local, ces Nouveaux-Chrétiens de religion pour le moins tiède étaient souvent reconquis par l'active propagande des communautés marranes et juives". O que Saraiva sustenta é que as sinagogas portuguesas do estrangeiro foram fundadas pelos poucos Judeus que conseguiram resistir à assimilação. Pela sua própria coesão ideológica esses núcleos de Portugueses puderam sobreviver como colectividades orgânicas perante o meio estranho, segundo os costumes e a língua do seu país de origem. Um dos factos capitais da história dos Marranos é que o Português (e não o Espanhol) foi a língua oficial da comunidade judaica de Amsterdão até quase ao século XX; foi nessa língua que Espinosa aprendeu a falar. É natural que por esta simples razão todo o Português, judeu ou não, quisesse entrar na Sinagoga, e esta aceitava-os, porque bastava ser português e perseguido pela Inquisição para ser presumido Cristão-Novo. Ainda hoje se sabe isto em Amsterdão. O verdadeiro handicap social consistia em ficar fora da Sinagoga, sem protecção, sem relações, à deriva num mundo de língua estranha. A Sinagoga era, de algum modo, uma pátria.

AFONSO: E quanto ao handicap económico?

DAVID: É outro argumento extraordinário! Limito-me a citar um passo de um historiador hebraico recentemente falecido:

"É preciso não esquecer o papel desempenhado na vida comercial de outrora pelos laços de parentesco e de clã. Ser Marrano era também estar filiado numa vasta sociedade secreta de protecção e auxílio mútuo; passar mais tarde, em Salónica ou em Amsterdão, ao Judaísmo declarado era também agregar-se a um poderoso consórcio comercial " (L. Poliakov, Histoire de l'Anti-Sémitisme, II, p. 239).

AFONSO - Será possível que Révah não saiba isso ao menos por experiência própria?

DAVID: Claro que sabe. E até refere na sua entrevista "que as comunidades judeo-portuguesas de Amsterdão e de Baiona sustentavam no século XVIII um número considerável de pobres...". Se estes infelizes desterrados não fossem protegidos pela Sinagoga ficariam reduzidos à mendicidade em terra estrangeira.

AFONSO: Afinal, sem darmos por isso, tratámos do tema das comunidades portuguesas no estrangeiro. Concluímos que a adesão de portugueses expatriados às comunidades judaicas portuguesas (e, podemos acrescentar, espanholas) não é por si só prova de se ter praticado o Judaísmo em Portugal.

DAVID: Um momento! É preciso acrescentar que as declarações dos expatriados também exigem prova. É humano que muitos para se fazerem valer junto dos seus compatriotas judeus fantasiassem histórias. A este respeito ocorre-me um curioso episódio do romance picaresco espanhol Vida de Estebanillo Gonzalez. Chegado a Ruão sem recursos, o pícaro procurou uma pouca de cinza que meteu num embrulho; foi à Bolsa procurar judeus portugueses, saudou-os em língua portuguesa e contou-lhes que tinha fugido à Inquisição e mostrou-lhes a cinza de seu pai, que tinha sido queimado, dizia ele, num auto-de-fé. Os Judeus ficaram comovidíssimos, pediram-lhe uma parte daquela preciosa relíquia, juntaram rapidamente 25 ducados que deram ao moço, mais uma carta de recomendação para um correspondente de Paris. "Despedi-me deles, conclui o autor, contente de me ter saído tão bem junto de gente que sempre engana, mas nunca se deixa enganar". Este episódio é evidentemente de inspiração cinicamente anti-semita, mas traduz uma situação que deve ter ocorrido mais de uma vez. E ainda hoje encontramos casos comparáveis nos meios de emigrados portugueses, onde não falta quem queira resolver problemas pessoais com pseudomotivações ideológicas. Em conclusão, as declarações de prática de judaísmo secreto em Portugal por parte de emigrados que aderiam à Sinagoga também precisam de contraprova para servirem de contraprova ao processo inquisitorial. Révah esquece-se disto.






AFONSO: Mas passemos a outro tema que se liga com a prática clandestina do Judaísmo em Portugal. Révah diz que os "grupos criptojudeus, de uma homogeneidade étnica e religiosa notável", que "foram descobertos no séc. XX em várias localidades no interior do país" atestam a persistência do Judaísmo em Portugal, dando portanto razão aos inquisidores.

DAVID: Saraiva considera que esses grupos constituem um fenómeno residual, que não afecta as linhas gerais da assimilação da grande maioria da antiga população judaica que permaneceu em Portugal. Convém reduzir o fenómeno às suas proporções. O Eng.º Samuel Schwartz publicou em 1925 um livro intitulado Os Cristão Novos em Portugal no Século XX em que relatava a descoberta em povoações como a Covilhã, Fundão, Guarda, Belmonte, Bragança e outras, de famílias que praticavam secretamente uns restos de culto judaico já muito desfigurados. Em consequência disso, a Comunidade Israelita de Lisboa lançou um apelo internacional para recolher fundos destinados a uma escola onde os filhos desses "Marranos" pudessem ser educados no verdadeiro Judaísmo. Para estudar o problema a Anglo-Jewish Association e a Alliance Israelite Universelle enviaram a Portugal Lucien Wolf. Este notável conhecedor das questões judaicas esteve quatro semanas em Portugal, visitou a Guarda, a Covilhã, Belmonte, Curia, Coimbra, o Porto, avistou-se em Lisboa com altas personalidades, entre as quais o Presidente da República, que lhe prometeu todo o apoio. O relatório do seu inquérito saiu em Paris, em 1926, com o título Les Marranes ou Crypto Juifs du Portugal. São 22 páginas densas, de uma lucidez notável e grande poder de síntese, que vieram a ter grande influência no desenvolvimento dos estudos sobre o Marranismo. Wolf chegou a conclusões que não coincidiam com as da Comunidade Israelita de Lisboa. Segundo ele, a grande massa dos antigos Judeus da Beira e de Trás-os-Montes tinha-se convertido ao Catolicismo, apesar de a população continuar a chamar-lhes Judeus. Em Pinhel, por exemplo, localidade ainda qualificada, popularmente, de "judaica", não havia, diz Wolf, "um único marrano". Quanto aos Marranos subsistentes ainda, nada permitia estabelecer que tivessem qualquer ideia precisa da doutrina e da étnica judaicas, embora mantivessem alguns ritos já muito estropiados. Eram sobretudo as velhas quem transmitia aquelas tradições e a elas se devia a perpetuação do Marranismo (Révah havia de aproveitar mais tarde esta ideia a propósito da família de Uriel da Costa). Apesar do casamento laico facultado pelas leis da República, o casamento católico tinha-se tornado cada vez mais frequente, e Wolf quase não encontrou na Beira uma família de origem judia que não estivesse casada pela Igreja. Quanto ao número destes Marranos, Wolf considera "fortemente exagerada" a cifra de 10 000 famílias dada por Schwartz, se se entender por "Marranos" os que praticam secretamente o Marranismo; mas "provavelmente abaixo da realidade" se se contarem as pessoas que têm consciência da sua origem judaica, sendo embora católicos convictos. Apesar do entusiasmo missionário de Schwartz, apenas três ou quatro destes marranos manifestaram o desejo de voltar à Sinagoga, mas não lhe deram continuidade. Em conclusão, Wolf considerava pouco provável o projecto da criação de uma escola para filhos de Marranos em Lisboa, e propunha, em vez disso, a fundação, com a ajuda de missionários vindos de fora, de uma missão no Porto, para adultos, porque nessa cidade existia uma pequena sinagoga fundada, diz Wolf, pelo "único marrano que nos últimos 150 anos voltou à Sinagoga". Este marrano, o capitão Barros Basto, era português, mas a sinagoga que ele dirigia era formada por 17 famílias de imigrantes vindas da Europa Oriental. Tal era o estado da questão em 1925.

AFONSO: Não é essa a impressão que se tira das palavras de Révah. Ele fala da Sinagoga de Bragança, visitada por Leite de Vasconcelos em 1932, como se ela tivesse sobrevivido a três séculos de perseguição inquisitorial.

DAVID: É uma astúcia de estilo. A Sinagoga de Bragança de que fala Leite de Vasconcelos foi fundada pelo capitão Barros Basto em 1927. E apesar de ele ser um apóstolo ardente não consta que os seus esforços o levassem muito longe. O mesmo Leite de Vasconcelos regista que "desde cerca de 1910 o número de Israelitas tem vindo sucessivamente a "diminuir" em Portugal (Etnografia, IV, pág. 237).

Sinagoga Kadoorie - Mekor Haim ("Fonte da Vida"). Foi fundada pelo capitão Artur Carlos de Barros Basto.




AFONSO: Em todo o caso, essas sobrevivências, por exíguas que sejam, depõem a favor da existência de um Judaísmo clandestino no passado. Pode supor-se que na época de Pombal o Judaísmo era mais forte e mais vivo que hoje. Pelo menos é o que parece pensar Révah ao falar nos processos por Judaísmo na década de 60 do século XVIII.

DAVID: Como já disse, Saraiva não nega que houvesse uma minoria de Judeus clandestinos, cada vez mais reduzida, durante a vigência da Inquisição, a qual tentava, pelo contrário, fazer crer que ela era cada vez mais numerosa. Mas o simples uso do senso comum mostra que já na época das reformas de Pombal o Judaísmo estava completamente extinto e o Marranismo representava uma sobrevivência fóssil, sem significado religioso, quase no estado em que o encontrou Lucien Wolf.

AFONSO: E como ?

DAVID: Com as reformas de Pombal cessou completamente a perseguição por Judaísmo, e de tal forma que houve famílias judaicas praticantes (de origem portuguesa ou não) que já no século XVIII não recearam vir estabelecer-se em Portugal. Disto fala Leite de Vasconcelos. A família Amzafale veio da Palestina para Portugal no século XVIII. Em Lisboa foi criada uma sinagoga em 1813, quarenta anos depois da reforma pombalina, e um cemitério judaico - que naturalmente não podia ser clandestino - em 1815. É evidente que, se à data do fim da perseguição ainda existisse em Portugal um Judaísmo latente e vivo, se teria dado em tais circunstâncias um renascimento da fé judaica: ora isso não aconteceu. Todas as sinagogas criadas em Portugal a partir de 1813 em Lisboa, Faro, Faial, Angra do Heróismo, Bragança, etc., se devem à iniciativa de Hebreus vindos de fora. Com excepção da de Barros Basto no Porto; mas este, como notou L. Wolf, foi o único marrano que em cento e cinquenta anos voltou à fé judaica. Isto prova que na época de Pombal só a actividade da Inquisição dava uma aparência de realidade a um Judaísmo morto. Pombal devia sabê-lo bem, porque de outra forma ele não arriscaria a dar ocasião a uma divisão religiosa dentro de Portugal - ele considerava o culto católico como instrumento de unificação do Estado. As considerações de Révah a propósito dos processos por judaizantes na época pombalina (aos quais também se refere Saraiva) não valem um centavo. E quando ele diz que descobriu que a memória de Ribeiro Sanches (em que segundo Saraiva se inspiraram as reformas de Pombal) foi entregue na Inquisição em 1756 está simplesmente a alardear erudição para impressionar o leitor. O próprio Pombal sendo ministro e valido foi denunciado na Inquisição.

AFONSO: Révah parece não ter percebido a tese de Saraiva sobre o significado das reformas pombalinas. Ele diz que pretender que as perseguições cessaram porque subiu ao poder a própria classe perseguida é "uma manifestação de humor negro" porque a burguesia mercantil e financeira neocristã tinha desaparecido por causa das expatriações e perseguições. "Já não existia" [sic].

DAVID: Révah não é forte em humor, como o prova toda esta entrevista. Como é que a classe burguesa cristã-nova podia ter desaparecido, se ele próprio, no seu citado opúsculo Les Marranes (p. 48) aceita "presqu'entièrement", citando o primeiro livro de Saraiva, que "a história dos Cristãos-Novos, até ao governo do Marquês de Pombal, que aboliu novamente a discriminação, é até certo ponto, a história da burguesia financeira e mercantil portuguesa"? Se ele próprio, no mesmo livro e página, cita em reforço desta opinião a de Frédéric Mauro, que é a seguinte: "Portugal não é no século XVII o único país que possui uma burguesia e um grupo de Cristãos-Novos. Mas o que faz a sua originalidade é a confusão de facto entre Burgueses e Cristãos-Novos"? Se ele próprio constata o facto apontado por Saraiva de que as expressões "homens de negócios" e "homens da nação hebreia" eram sinónimas, em Portugal, no século XVII, até nos documentos oficiais. Supor que a burguesia mercantil e financeira portuguesa, que era no seu conjunto "cristã-nova", "já não existia" no tempo de Pombal, não é isso que é um disparate que dá vontade de rir?



AFONSO: Révah não se dará conta do ridículo a que se expõe?

DAVID: Ele não percebe o absurdo do argumento. Desde que sai dos arquivos perde o sentido da orientação. Depois de ter lido mil processos vem cá para fora com esta descoberta fenomenal: a burguesia mercantil e financeira portuguesa "já não existia" na época pombalina!

AFONSO: Talvez ele tenha lido isso nalgum sítio...

DAVID: O desaparecimento súbito da questão judaica em Portugal depois das leis de Pombal tem impressionado todos os estudiosos da questão, desde Lúcio de Azevedo e Lucien Wolf. Révah limita-se a repetir a explicação que eles já tinham dado. Mas na época em que eles escreveram os termos do problema eram outros, porque ainda não tinham sido postas em evidência a identificação da Burguesia portuguesa com os Cristãos-Novos. Révah expõe-se ao ridículo porque continua, depois dos livros de Saraiva, a repetir o mesmo argumento num contexto polémico completamente diferente.

AFONSO: É o contexto da luta de classes. Entrámos já no último tema principal da entrevista Révah-Silva. Révah contesta a "aplicação simplista", feita por Saraiva, dessa teoria ao problema dos Cristãos-Novos portugueses.

DAVID: Desconfio que da teoria da luta de classes Révah só sabe que é um tema melindroso na actual conjuntura de contestação universitária em França. Por isso fala prudentemente não da teoria em si, mas da sua "aplicação simplista", sem explicar em que é que consiste o simplismo da aplicação.

AFONSO: Isso não é inteiramente verdade. Ele resume nestes termos a tese do primeiro livro de Saraiva (1955): "que a etnia neocristã e a religião criptojudia eram mitos abomináveis inventados pelos inquisidores portugueses (instrumentos da classe senhorial dirigente) e que a denominação de "Cristãos-Novos era uma designação demagógica inventada pela classe dirigente e pelos seus agentes inquisitoriais para afastar do poder (até aos tardios decretos de Pombal) a burguesia mercantil e os seus aliados".

DAVID: Não é exactamente isso que Saraiva diz, mas sim: que a assimilação rápida dos Judeus convertidos (que se realizava sobretudo no seio da grande burguesia), dentro do processo económico em curso, dava ao conjunto da burguesia portuguesa uma força que ameaçava o grupo governante constituído pela nobreza tradicional e pelo clero; e que para obviar a essa situação o grupo dirigente resolveu restaurar uma discriminação, que tinha sido legalmente abolida em 1496, pela qual fechava dentro de um cordão sanitário todas as pessoas passiveis da acusação de Cristãos-Novos (ou antigos Judeus); isto é, virtualmente, toda a burguesia portuguesa; a Inquisição, não só pelos seus autos-de-fé, como também pelos seus arquivos de limpeza de sangue, foi o instrumento dessa discriminação.

AFONSO: Essa também é a tese do livro de 1969?

DAVID: É. Mas neste, Saraiva teve o cuidado de evitar o esquematismo do primeiro livro, onde a Burguesia e a Classe dirigente podiam aparecer como blocos homogéneos e rígidos. Por isso especificou as diferentes motivações convergentes dos diversos grupos de classe dirigente: os do Rei, os do clero, os da nobreza tradicional; distinguiu as motivações do baixo e alto clero; especificou as da burguesia intelectual; descreveu o estado de espírito, favorável à Inquisição, das classes ditas "baixas". Insistiu nos aspectos sociopsicológicos do problema. E sobretudo desenvolveu um tema que já estava esboçado no livro de 1955: as diferentes fases da história da Inquisição que correspondem a diferentes tipos de relações entre ela e o grupo governante. Há uma fase em que os dois poderes estão intimamente aliados, outra em que se dissociam, uma terceira em que entram em luta aberta, embora com peripécias de pseudo-reconciliação. Estas diferentes fases correspondem à alteração progressiva da proporção das forças em Portugal. Quando Pombal reformou a Inquisição ela era já só um espantalho porque o poder económico e cultural pertencia já, maioritariamente, à grande burguesia. Não parece que isto seja uma aplicação simplista da teoria da luta de classes; e embora Saraiva esteja hoje convencido de que se tem abusado dessa teoria (porque uma grande parte da realidade histórica não cabe dentro dela), o esquema proposto em 1955 e desenvolvido em 1969 ainda lhe parece a melhor chave para explicar o aparecimento e a história da Inquisição portuguesa.



Igreja da Memória, Ajuda-Lisboa




AFONSO: Révah contesta essa tese, segundo percebi, com o seguinte argumento: para supor que a Inquisição foi criada como instrumento contra a burguesia mercantil e financeira seria preciso aceitar que "todos os 'pseudo-Cristãos-Novos' tenham pertencido à alta burguesia mercantil e financeira" e isto "desde o século XVI até ao seu 'triunfo' na época de Pombal". Ora em primeiro lugar muitos dos Cristãos-Novos não eram ricos; em segundo lugar a dita alta burguesia só foi realmente poderosa de D. João III a D. Pedro II, e "praticamente já não existia no tempo de Pombal".

DAVID: É um argumento infantil. Toda a gente sabe que muitos Cristãos-Novos não eram burgueses. Saraiva salienta no seu livro, respondendo a Caro Baroja, que uma grande parte dos Judeus portugueses se dedicavam a "ofícios mecânicos", e os seus descendentes, mais ou menos cruzados, devem ter continuado a exercê-los. Mas do ponto de vista dos círculos dirigentes o facto significativo era que, já desde o princípio do século XVI, a burguesia mercantil e financeira portuguesa estava tão profundamente penetrada pelos descendentes dos antigos judeus que podia no seu conjunto ser isolada e discriminada do resto da população em nome de um argumento étnico-religioso. Nem todos os Cristãos-Novos eram burgueses, diz Révah; mas de um ponto de vista de luta de classes, nessa época, o que interessava é que todos os Burgueses fossem Cristãos-Novos. Na luta do grupo dirigente contra a Burguesia esse era o argumento decisivo. Mas valerá a pena continuar a discutir a um nível tão baixo?

AFONSO: Paciência...».

António José Saraiva (DIÁLOGO SOBRE A ENTREVISTA SILVA-RÉVAH, in «Diário de Lisboa», 3-6-1971).


«(...) Na realidade, "Inquisição e Cristãos-Novos" é um libelo demagógico contra a Inquisição, escrito por um ideólogo-catavento, absolutamente incompetente no assunto, que, por meio da deturpação sistemática de uns quantos textos e documentos (geralmente conhecidos de segunda mão), oferece uma visão inteiramente falsa da história multissecular dos Cristãos-Novos portugueses. O autor do libelo calava acintosamente a existência de graves críticas, formuladas por vários investigadores, contra as hipóteses que expusera em publicações de 1955-1956. Depois da entrevista Silva-Révah, que revelava o facto, já não fazia sentido esconder tais críticas. Por isso, os dois interlocutores do "Diálogo", Afonso e David, com a cínica má-fé, facilitada pela sua natureza fantasmagórica, passam a deturpar grande número de textos e teses importantes que, no libelo, brilhavam pela ausência. No "Diálogo" a deturpação atinge proporções colossais que tornam impossível uma refutação exaustiva nas colunas de um jornal. Para cada ponto de discussão é preciso: 1.º - restabelecer o sentido do que o Sr. Saraiva escreveu realmente em 1955-1956 e em 1969; 2.º - restabelecer o sentido do que escreveram realmente os críticos das hipóteses lançadas em 1955-1956, e os autores de estudos alegados pela primeira vez no Diálogo, depois de 16 anos de meditação saraiviana do assunto. O autor do Diálogo cita uma "recensão crítica muito favorável ao livro de Saraiva" (trata-se de uma recensão anónima de 28 linhas), mas cala, já se vê, a existência de críticas absolutamente pertinentes ao libelo de 1969, mesmo quando essas críticas se inserem em recensões no fundo "favoráveis" ou "muito favoráveis". E porquê? Porque mais vale perder o benefício de recensões em geral favoráveis, do que revelar aos leitores do Diário de Lisboa que alguns críticos tiveram o atrevimento de não concordar com todas as teses absurdas e demagógicas do Sr. Saraiva.

(...) O carácter absurdo e demagógico do libelo explica-se perfeitamente pelo conceito lamentável da historiografia, que o Sr Saraiva definiu espontaneamente, com o mais estreito dogmatismo, quando ninguém lhe pedia tal definição. Em Julho de 1969, em pleno triunfo de "Inquisição e Cristãos-Novos", o dr. Abílio Dinis Silva recolhia dos lábios do Sr. Saraiva, e publicava no Diário de Lisboa o seguinte oráculo: "... a história é um campo muito propício às ideologias, assim como às utopias relativas ao futuro. Em geral, os livros de história são uma ordenação dos factos passados segundo uma ideologia que se formou posteriormente a eles. São portanto formas de dar às ideologias aparências científicas". Quer dizer que, para o Sr. Saraiva, tudo se passa como se cada ideologia contratasse, integrasse nos seus serviços de propaganda, uns tantos funcionários, chamados "historiadores", que tivessem por missão, mediante uma ordenação tendenciosa dos factos do passado histórico, emprestar aparências de ciência à mesma ideologia. Não vou, é claro, gastar o meu tempo, nem a paciência dos leitores com a refutação deste indigno conceito de historiografia, e ainda menos com a competente definição da "ciência histórica", essa ciência na qual o Sr. Saraiva andou tantos anos a fingir que acreditava.



Mais compensatório é, na verdade, mostrar como a concepção de uma "historiografia-escrava-das ideologias" podia engendrar grandes complicações no espírito e no "trabalho" de um pseudo-investigador que sofre de doença perigosa: instabilidade ideológica crónica. Em 1955-1956 o Sr. A. J. Saraiva publicou um primeiro livro, em que aplicava de maneira simplista e ridícula a teoria da luta de classes à história dos Cristãos-Novos e da Inquisição, e um segundo livro, em que atacava deliberadamente a validade ideológica, e portanto historiográfica, da teoria da luta de classes. Esta constatação irrefutável está ao alcance de qualquer pessoa: prova que o Sr. A. J. Saraiva vota ao mesmo desprezo ideologia e historiografia. Apesar disso, o fantasma David, porta-voz dos belos sentimentos do seu procriador, encontrou para a minha observação uma explicação de grande nobreza: "Desconfio que da teoria da luta de classes Révah só sabe que é um tema melindroso na actual conjuntura de contestação universitária em França. Por isso fala prudentemente não da teoria, mas da sua 'aplicação simplista', sem explicar em que é que consiste o simplismo da aplicação". Responderei ao procriador do Sr. David: 1.º - que a contestação universitária deixou incólumes os estabelecimentos onde ensino desde 1955 e 1956, os quais, aliás, não fazem parte da Universidade francesa; 2.º - que sempre pensei e continuo a pensar que a teoria da luta de classes não é capaz de explicar a totalidade da história das culturas humanas, nem, em particular, a totalidade da história da cultura judaica; 3.º - que seria desleal julgar do valor explicativo de qualquer teoria pela sua aplicação em livrecos ridículos ou demagógicos como A Inquisição Portuguesa ou Inquisição e Cristãos-Novos, da autoria do Sr. Saraiva.

(...) É fácil explicar (e já se explicou várias vezes) em que consiste o simplismo da aplicação, pelo Sr. Saraiva, da teoria da luta de classes à história dos Cristãos-Novos e da Inquisição. No capítulo de 1955 e no livro de 1956 este simplismo exprime-se pelas ideias seguintes:

1.º - Os Judeus convertidos em 1497 foram rapidamente assimilados na sociedade cristã-velha;

2.º - "A raça dos Cristãos-Novos era um mito criado pelos próprios inquisidores e pelas forças de que eles eram os agentes", quer dizer pela classe senhorial;

3.º - A religião criptojudaica era uma invenção do Santo Ofício; não tinha existência real em Portugal. Já em 1524 os ritos judaicos, conservados por "uma minoria mais persistente", "perdiam progressivamente o seu significado religioso";

4.º - "O nome de Cristãos-Novos era o apelativo demagógico com que o grupo dominante em Portugal desde meados do séc. XVI procurou afastar a burguesia da direcção política do Estado e da hegemonia económica";

5.º - "O desaparecimento da casta dos Cristãos-Novos ao toque das leis de Pombal revela simplesmente que a burguesia se tornara, sob o seu governo, uma classe dominante e que a aristocracia senhorial perdera a partida".

Convém indicar que, em 1955-1956, o Sr. A. J. Saraiva, autor de um livro simplista, unilateral, dogmático sobre os Cristãos-Novos, ignorava inteiramente a existência de uma literatura sobre os Judaizantes portugueses no século XX, literatura da qual sobressaem as contribuições de Samuel Schwartz (1925), do erudito abade de Baçal Francisco Manuel Alves (1924-1926, 1931, 1947), do autor do opúsculo Marranos in Portugal (Londres, 1938), e dos colaboradores do periódico intitulado em hebraico Ha-lapid, orgão da comunidade israelita do Porto (conheço 139 números publicados entre Abril de 1927 e Novembro de 1947; há outros que não vi). Para avaliar a importância extraordinária da descoberta de núcleos criptojudaicos portugueses no século XX, basta evocar o caso dos Chuetas de Malhorca, cuja homogeneidade étnica foi mantida pelo ostracismo até o século XX, mas que tinham perdido toda a ligação religiosa com o Judaísmo. Não é exagero polémico qualificar de "ridículo" um opúsculo de 1956, em que se afirmava que em 1524 os ritos judaicos já iam perdendo o seu significado religioso em Portugal, quando os observadores modernos demonstram que esses ritos têm mantido o seu valor religioso no Portugal do nosso século.






(...) O Sr. Saraiva teve pouca sorte. O primeiro ataque às suas teses simplistas e ridículas veio de um crítico muito atento à história das lutas sociais. José Alcambar (O Estatismo e a Inquisição. Notas críticas ao livro "A Inquisição Portuguesa", de António José Saraiva. Régua, 1956). Este crítico mostrou que se podia aplicar o esquema da luta de classes ao problema em discussão, de maneira não simplista, sem se cair no ridículo de negar dogmaticamente a existência de uma etnia neocristã e de uma religião criptojudaica em Portugal, do século XVI aos nossos dias. José Alcambar afirma que a grande burguesia cristã-nova não foi ao contrário do que pretendia o Sr. Saraiva, a grande vítima da Inquisição. "É a pequena burguesia que mantém o ideal cristão-novo e fornece à Inquisição a sua matéria processual" (p. 11). Quanto a mim, toda a relação demasiado estreita, estabelecida entre classe social e fé religiosa, é uma afirmação dogmática e subjectivista, sem relação com a realidade histórica cristã-nova. Havia Cristãos-Novos na nobreza, na grande burguesia, na pequena burguesia e no povo. Houve cripto-judeus (e, depois da expatriação, judeus) e católicos em todas as classes cristãs-novas; mas é verdade que foram raros os Judaizantes entre os Cristãos-Novos pertencentes à nobreza peninsular. Reconheço no entanto (já o reconheci em 1958 e em 1960) que J. Alcambar foi o primeiro a reduzir a pó as afirmações ridículas do Sr. A. J. Saraiva, utilizando para isso o trabalho de S. Schwartz, e lembrando muito oportunamente os exemplos dos Cristãos-Novos portugueses que fundaram nos fins do século XVI a comunidade judaica de Amsterdão, e lutaram nos séculos XVII e XVIII para obter, o que dificilmente conseguiram, e contra a Igreja, o reconhecimento oficial das comunidades judaicas estabelecidas no Sul da França.

O quimérico ente chamado David sentenciou na última parte do Diálogo: "A crítica de José de (sic) Alcambar ao primeiro livro de Saraiva é infinitamente mais penetrante do que tudo quanto Révah escreveu, e ele tem talvez razão no que respeita a uma época já tardia da história da Inquisição". Magnífico exemplo da táctica de desorientação do leitor, constantemente utilizada no Diálogo! Mas, oh, céus! Se J. Alcambar tem razão pela parte que toca a uma época já tardia da história da Inquisição, mais razão tem ainda, por força, no que respeita às épocas precedentes. Logo não podem as teses do Sr. Saraiva deixar de ser classificadas de ridículas.

Se existe a possibilidade de J. Alcambar ter razão quanto a uma época já tardia da história da Inquisição, com o é que o mesmo fantasma, queremos dizer o Sr. David, teve a ousadia de sustentar na primeira parte do Diálogo que "o simples uso do senso comum mostra que já na época das reformas de Pombal o Judaísmo estava completamente extinto e o Marranismo representava uma sobrevivência fóssil, sem significado religioso (o sublinhado é nosso)? Depois da leitura do opúsculo de J. Alcambar só a má-fé permite escrever: "Indicámos as razões pelas quais nos parece que o Judaísmo deixou de ser praticado em Portugal, a não ser excepcionalmente, em famílias muito tradicionais, e que não se misturam com Cristãos-Velhos. Estas últimas devem ter constituído uma boa parte das primeiras vagas de emigração, e puderam judaizar além-fronteiras. Elas foram os primeiros núcleos de Judeus portugueses na Turquia, em Marrocos, na Itália, na França, nos Países Baixos" (Inquisição e Cristãos-Novos, p. 146; o sublinhado é nosso). A má-fé consiste em atribuir às "primeiras vagas de emigração" cristã-nova a fundação das comunidades judeo-portuguesas de Hamburgo, Amsterdão e Livorno (que foram organizadas um século depois da conversão), do Sul da França (que foram reconhecidas oficialmente mais de dois séculos depois da conversão)... Todas estas comunidades foram fortificadas até ao fim do século XVIII (três séculos depois da conversão) pela chegada incessante de Cristãos-Novos vindos de Portugal ou da Espanha.

Em 1958 M. Viegas Guerreiro publicou o vol. IV da Etnografia Portuguesa do grande José de Leite de Vasconcelos, volume que elaborou na base de materiais do autor, mas ampliados com nova informação. Logo no início do capítulo "Cristãos-Novos do nosso tempo em Trás-os-Montes e na Beira; suas práticas judaicas" discorda das "ideias" do Sr. Saraiva. Cito: "Quando este [isto é, o Santo Ofício] instalou em todo o Pais a sua máquina repressiva, havia mais de três dezenas de anos que os pseudo-conversos observavam ocultamente os preceitos da sua fé, e se tinha organizado e criado raízes esse culto clandestino. Convém não esquecer, evidentemente, que muitos foram os que se identificaram com todas as formas do viver cristão, mas errado é afirmar-se que a assimilação foi quase total, que ficou sem sentido o proclamado zelo religioso da Inquisição portuguesa, que este foi puro pretexto para o aniquilamento de uma burguesia luso-judaica endinheirada" (pp. 162-163; o sublinhado é nosso). Depois de resumir as páginas do opúsculo de A. J. Saraiva sobre o processo inquisitorial e os autos-de-fé, M. Viegas Guerreiro escreve: "Apesar disso e da legião dos condenados, que ano e ano desfilava ante seus olhos, amigos e parentes, irmãos, filhos e pais, muitos eram os Cristãos-Novos que se mantinham fiéis à sua crença. Nem a pregação, que se fazia mais para alívio da consciência ou por mera formalidade, do que por sincera convicção no êxito do processo, nem os mais horríveis tormentos tiveram força bastante para arrancar no coração dos pseudoconversos o seu amor ao ideal judaico. Judaizaram sempre, como provam copiosamente os processos que se lhes moveram. O terror sob que viviam foi tal e tão prolongado, que ainda depois de abolida a Inquisição as suas práticas religiosas se realizavam em sigilo: pouco depois e pelo tempo adiante até os nossos dias, e, o que mais é para admirar, em plena febre do triunfo republicano" (pp. 163-164).


Todo o capítulo referido (pp. 162-235) é um excelente estudo científico do criptojudaísmo português no século XX. Já citei, na entrevista Silva-Révah, o juízo categórico de José Leite de Vasconcelos, depois de uma visita à Sinagoga de Bragança em 1932: "Visitei a sinagoga ou esnoga e fiquei com boa impressão da excelente ordem com que se executou o serviço religioso, e é notável sob o aspecto histórico. Admiro-me de como se pôde manter por tantos séculos, quase sempre agitados, este grupo étnico firme e sem indício de secar". Esta afirmação do maior conhecedor das realidades étnicas portuguesas põe em relevo o carácter ridículo das "ideias" do Sr. Saraiva. No entanto o descarado Sr. David entende que a citação do texto de José Leite de Vasconcelos é, da minha parte, "uma astúcia de estilo", e produz um argumento decisivo: "O mesmo Leite de Vasconcelos regista que desde cerca de 1910 o número de Israelitas tem vindo sucessivamente a diminuir em Portugal (Etnografia, IV, p. 237)". Para provar a grosseira má-fé do Sr. David basta dizer que a frase parcialmente citada se encontra no capítulo intitulado "Nova emigração judaica em Portugal, dos meados do século XVIII em diante"; não tem nada que ver com a história dos Cristãos-Novos portugueses; não se refere a Portugal inteiro (como pretende o fantasma falsificador), mas ao número de Israelitas... de Faro, número que diminuiu devido à "emigração de grandes famílias para outros centros, principalmente Lisboa e Gibraltar" (p. 238).

(...) David, ente da razão, ou da sem-razão, afirma que, no livro de 1969, "Saraiva teve o cuidado de evitar o esquematismo do primeiro livro, onde a Burguesia e a Classe-dirigente podiam aparecer como blocos homogéneos e rígidos". Depois de inventar inexistentes diferenças dogmáticas entre os dois livros, o Sr. David conclui: "Não parece que isto seja uma aplicação simplista da teoria da luta de classes; e embora Saraiva esteja convencido de que se tem abusado dessa teoria (porque uma grande parte da realidade histórica não cabe dentro dela), o esquema proposto em 1955, e desenvolvido em 1969, ainda lhe parece a melhor chave para explicar o aparecimento e a história da Inquisição portuguesa". Não sei se muitos leitores do Diário de Lisboa ficaram convencidos com este admirável raciocínio: uma teoria, em que não cabe uma grande parte da realidade histórica, é ainda a melhor chave para explicar o aparecimento e a história da Inquisição portuguesa! Sei, em contrapartida, que o simplismo do esquema "desenvolvido em 1969" foi relevado por vários críticos, alguns dos quais, por limites de sua competência, se deixaram enganosamente seduzir por outros aspectos do libelo demagógico do sr. Saraiva.

No n.º 310 de Vértice (Julho de 1969) o sr. Jofre Amaral Nogueira examina o "complexo de ideias novas" que contém "Inquisição e Cristãos-Novos" e declara: "O modo como vêm expressas é directo e claro mercê de um ordenamento perfeito dos assuntos e da utilização do aparelho documental de uma forma convincente e natural, sem o aspecto de pesada erudição" (p. 489). A descrição demagógica do funcionamento da Inquisição, feita pelo sr. Saraiva, convenceu o sr. Jofre Amaral Nogueira: "Não podem ficar dúvidas, após esse exame, do modo como eram tornados artificialmente cristãos-novos muitos que o não eram de facto" (p. 491). No entanto, depois desta adesão, o sr. J. Amaral Nogueira destrói completamente o resto do libelo do sr. Saraiva, no qual vê a aplicação simplista de um esquema teórico: "Temos para nós que António José Saraiva adoptou posições muito extremes e simplificadoras da realidade, ao querer dar uma forma mais nítida e breve às suas teses" (p. 493; o itálico é nosso). "O que há de verdade nas imagens desses tempos, traçadas pelo autor, é indiscutível. Mas, ao que supomos, houve exagerado simplismo em muitos casos" (p. 494; o itálico é nosso). Sem conhecer a imensa documentação inquisitorial, em que poderia fartamente fundamentar os seus juízos, o sr. J. Amaral Nogueira não aceita as principais teses saraivianas: "a identificação excessivamente plena... do alto capitalismo com os Cristãos-Novos" (pp. 495-496); o pretenso "desaparecimento dos Cristãos-Novos, como tais, em resultado da reforma pombalina da Inquisição" (p. 496). O crítico lembra oportunamente que "uma teoria da história, que apenas se fundamenta no desenvolvimento económico, ou mesmo socioeconómico, realiza uma visão parcelar dos factos" (p. 498). A conclusão de toda a crítica podia ser esta: "Por mais que se queira, não se consegue 'encaixar' a Inquisição na tensão de forças económicas em cuja dependência o autor do livro a colocou" (p. 499)».

I. S. Révah («OS CRISTÃOS-NOVOS PORTUGUESES E A INQUISIÇÃO», Tréplica ao sr. António José Saraiva, in «Diário de Lisboa», 15-7-71 e 22-7-71).







«O estado marranático já fora imposto aos judeus no Islão, mas, factor primordial, mesmo a lei hebraica considera a existência de marranos no seu povo, já que no povo judaico só deve haver uma lei, tanto para os nacionais como para os estranhos, o que habilita os estrangeiros à conversão judaica, ou ao fingimento. A lei judaica transferida para a Cristandade tem equivalente na Carta de I de Março de 1507, que obriga os judeus a submeterem-se ao direito comum, incluindo a substituição do Pentateuco pelo Evangelho, nas cerimónias de juramento.

A extinção do gheto foi a origem histórica da condição marranática. Tudo começou no contrato de casamento de D. Manuel com D. Isabel de Castela e com as exigências castelhanas em matéria de política judaica. Houve quem defendesse e quem atacasse o critério, e, os que atacaram, raro invocaram causas religiosas, preferindo as motivações económicas, por demais glosadas pelos economistas do século XVII, nos tratados de economia política.

Na prática, a política expulsionista significa a predominância do direito nórdico na política hispânica: a proibição de ser judeu em terra ariana.

A fuga provocada pela expulsão não foi massiva. Os judeus foram reduzindo os bens imóveis a bens móveis, puseram a resguardo as suas fortunas, e, nalguns casos, até ficaram como estavam, na sua qualidade de "homens de negócio" e de "homens de nação", tanto mais que, até 1534, gozavam da imunidade contra denúncias, e não eram compelidos à usança de distintivo. A demora deu tempo à conversão, sincera ou forçada, e permitiu que o país não ficasse sem médicos, já que, na época, havendo muitos médicos judeus, o país continuou a dispor de muitos deles. As circunstâncias eram de molde a levar os judeus menos convictos a uma conversão aparente, pelo que tudo leva a ter como certa a existência de um judaísmo dissimulado, muito para aquém do século XVI, não sendo um mero lugar comum social-economicista, o conceito de "cristão-novo" (A. José Saraiva, Inquisição e Cristãos-Novos (1969), 22 e passim; Id., A Inquisição Portuguesa (1956). As teses de Saraiva foram irredutivelmente refutadas por I. S. Révah, Amílcar Paulo e José Alcambar)».

Pinharanda Gomes («A Filosofia Hebraico-Portuguesa»).





COMO E PORQUÊ ACABARAM OS CRISTÃOS-NOVOS EM PORTUGAL


A vitória da Inquisição sobre os Cristãos-Novos e os Jesuítas, em 1681, de modo algum destruiu o verme roedor que no espírito de um sector cada vez mais vasto do grupo dirigente a reduzia a uma carcaça sobrevivente e sem substância. É um fenómeno quase fascinante, embora muito recorrente, esta exibição soberba de um poder ilimitado, este recrudescimento do terror dos autos-de-fé, bem nutridos de vítimas durante o reinado de D. João V, este respeito atemorizado e subserviente que inspirava o pretensamente Santo Tribunal, tanto no Rei, como nos súbditos, ao mesmo tempo que, nos gabinetes dos poderosos, nas celas dos conventos e mesmo no confessionário régio, se desprezava e odiava, a um tempo, este anacronismo bárbaro, a propósito do qual o padre António Vieira dizia que Portugal estava mais atrasado que os índios selvagens do Brasil.

Desta atitude do grupo dirigente (ou, pelo menos, da parte dele mais culta e esclarecida) temos um curioso testemunho do Cavaleiro de Oliveira no célebre Discours Pathétique, publicado em 1756. Conta ele, com certa ingenuidade, que apesar da sua educação católica começou a sentir dúvidas acerca da humanidade e da justiça da Inquisição, antes de sair de Portugal em 1734, embora sufocadas pelo receio do perigo a que com isso se expunha: «Nem por isso deixei de desabafar em grande segredo, de tempos a tempos, com alguns amigos; e, continuando, falei com várias pessoas cuja probidade me era conhecida». E que descobriu o nosso homem nestas conversas secretas? «Muitas destas pessoas, honradíssimas, pensavam o mesmo que eu a este respeito, e trocámos confidências dando-me elas a conhecer o seu horror por este infame tribunal» (55).






O Cavaleiro de Oliveira era fidalgo da Casa Real, cavaleiro da Ordem de Cristo, destinado à carreira diplomática, sobrinho de um padre influente da Congregação do Oratório, também inimigo da Inquisição. Pertencia àquele meio de nobres mais ilustrados, ligados à administração e à diplomacia, de que encontraremos adiante outros exemplos. Começando nas dúvidas e desabafos, acabou por querer informar-se; para tanto buscou os escritos anti-inquisitoriais do Padre António Vieira, de que existiam várias cópias, inclusive na Biblioteca Real. É facto talvez significativo que os bibliotecários do Rei tenham preservado estes escritos célebres que tanto mal tinham feito aos inquisidores e que eles certamente desejariam ver destruídos.

Mas, como vimos, o desrespeito secreto pelo Tribunal do Santo Ofício existe já muito antes do Cavaleiro de Oliveira. É particularmente característico de uma roda de diplomatas e de outros portugueses que passaram os Pirenéus, na época de Vieira. Conhecemos já a posição do Marquês de Nisa nos anos quarenta do século XVII, quando era embaixador em Paris e escrevia ao seu Rei que os tempos não estavam para se porem embaraços aos homens de negócio. Outro embaixador, Francisco de Sousa Coutinho, também conhecido de Vieira, atreve-se, numa carta enérgica à Rainha regente em 1657, a propósito do confisco inquisitorial, a acusar formalmente os inquisidores de ladrões e inimigos da independência de Portugal. À roda de Vieira, íntimo confidente das suas diligências em Roma a favor dos Cristãos-Novos, pertenceu um dos homens mais cultos e eminentes do Portugal seiscentista, Duarte Ribeiro de Macedo, que foi igualmente embaixador em Paris na década de 70, e autor de um Discurso sobre a Introdução das Artes em Portugal que preconizava uma política económica colbertiana. Era certamente um adversário da Inquisição, embora dele não restem escritos nesse sentido, porque, durante a batalha contra os estilos do Santo Ofício à volta de 1673, o Padre António Vieira lhe comunica, confidencialmente, tudo quanto a este respeito se trama em Roma. D. Rodrigo de Meneses, o Marquês de Fronteira e o Duque de Cadaval contam-se também entre os amigos do Padre Vieira ao corrente da sua campanha contra os inquisidores (56).

Na geração seguinte a opinião ilustrada anti-inquisitorial inclui várias personalidades de grande relevo nacional. O Cavaleiro de Oliveira menciona o filósofo Martinho de Mendonça Pina e Proença, falecido em 1743, que viajou pela Europa, foi guarda-mor da Torre do Tombo e bibliotecário de D. João V. O traço mais saliente deste letrado, que polemizou com o padre Feijoo, é que foi, em Portugal, porventura o primeiro a atacar o sistema de Aristóteles. É autor de um livro intitulado Apontamentos para a Educação de um Menino Nobre (1737), precursor de outro sobre o mesmo tema do cristão-novo Ribeiro Sanches e que teve várias edições setecentistas. Podemos imaginar que Pina de Mendonça deu a ler ao seu jovem amigo Oliveira os manuscritos de Vieira confiados à sua guarda, na biblioteca real. Menciona também o nosso informador alguns eclesiásticos inimigos ou críticos da Inquisição, muito embora tenham estado ao seu serviço: o padre Hipólito Moreira, jesuíta membro da Academia Real; o padre Manuel Guilherme, dominicano e grande pregador; o padre Manuel Ribeiro, da Congregação do Oratório de S. Filipe de Nery, onde exerceu cargos dirigentes (57). A respeito dos Jesuítas conhecemos já a sua orientação anti-inquisitorial, desde a Renascença. Mas não seria de estranhar orientação semelhante na Congregação do Oratório, alfobre de letrados virados para a modernização religiosa e pedagógica, colaboradores futuros do Marquês de Pombal. É curioso que um mercador de Lisboa, Luís de França, antes de ser preso em 1683, pediu ao padre Bartolomeu do Quental, fundador em Portugal da mesma Congregação, que lhe escondesse do confisco inquisitorial uma parte da sua fortuna, em moedas de ouro. O padre escusou-se mas indicou outra pessoa para o mesmo serviço (58).

Os diplomatas têm um grande peso neste grupo. A acrescentar aos já mencionados, registemos, por indicação do Cavaleiro de Oliveira, José da Cunha Brochado, que foi enviado extraordinário na corte de Inglaterra e membro da Academia de História; o conde de Tarouca, João Gomes da Silva (1671-1738), que representou o Rei de Portugal na Inglaterra, na Holanda e na Áustria, onde morreu (59), e que colaborou estreitamente com D. Luís da Cunha. Este último, que morreu em Paris e de quem o Marquês de Pombal se dizia discípulo, é porventura o que melhor exprime o sentimento dos grupos anti-inquisitoriais ligados à diplomacia e ao governo.

D. Luís da Cunha, que pôde conhecer a opinião internacional acerca da Inquisição e que menciona a famosa Inquisition de Goa, de Delon, retoma alguns dos temas já nossos conhecidos: que a Inquisição faz expatriar os homens mais capazes para o comércio e afugenta os capitais; que a Inquisição condena por judaizantes cristãos verdadeiros; que a Inquisição, enfim, em vez de extirpar o Judaísmo, o multiplica, sendo, afinal, segundo a frase já nossa conhecida de Fr. Domingos de S. Tomás, uma «fábrica» de Judeus, ou de «chamados Judeus». Chama a atenção para a decadência das manufacturas da Beira e de Trás-os-Montes, assim como das fábricas de açúcar do Brasil, em consequência da perseguição inquisitorial. Reprova os autos-de-fé como um espectáculo bárbaro que desonra Portugal aos olhos da Europa civilizada. Analisa com perspicácia certos pormenores da instituição inquisitorial, como os familiares, que servem para pôr a nobreza ao serviço do tribunal. Mas D. Luís da Cunha vai mais longe que o Padre António Vieira e até mesmo que o Cavaleiro de Oliveira. A sua crítica situa-se num contexto francamente anticlerical, e até pombalino avant la lettre. Portugal sofre de uma sangria, cujas causas são, por um lado, a «fradaria», isto é, a multidão de ociosos que se abrigam à sombra dos conventos. Alude à ignorância «sórdida» do clero português, e insinua que os Jesuítas são os responsáveis pela perdição de D. Sebastião na batalha de Alcácer Quibir. Preconiza a subordinação dos inquisidores ao poder régio. O Marquês de Pombal não se esquecerá de retomar alguns destes temas. Enfim, o filósofo diplomata, que via todo o problema da Inquisição à luz do interesse do Estado, propunha uma reforma total do Tribunal do Santo Ofício, dar aos Judeus liberdade de consciência, admitindo em Portugal um ghetto; queimar os cristãos que se fizessem judeus; abolir o confisco, passando aos herdeiros os bens dos condenados. Mas D. Luís pondera muito lucidamente que a realização destas reformas necessita de tempo, porque a elas se opõe a própria educação do Príncipe, que se formara no respeito e no terror do Tribunal do Santo Ofício (60).



El Rey-Menino




Os tempos amadureciam mais depressa do que pensava D. Luís da Cunha. É significativo que o rei D. João V, grande protector de frades e freiras, tenha tido como secretário particular o padre Bartolomeu de Gusmão, que se interessava pelas ciências mecânicas e tentou construir a passarola voadora. Este padre foi denunciado como judaizante, mas era de facto luterano e como tal a Inquisição o perseguiu. Escapou-se para Toledo e aí morreu tranquilamente em 1724 (61). Mas o Rei de Portugal, como se tivesse perdido qualquer escrúpulo no contacto com os hereges, nomeou seu secretário, em substituição do padre fugido, um irmão dele, Alexandre de Gusmão, que tinha pelos inquisidores uma absoluta falta de respeito. Nessa época a discriminação entre Cristãos-Novos e Velhos, cada vez mais irreal, atinge a raia do absurdo irresponsável, e os eruditos compõem analogias para demonstrar que as famílias interessadas estavam limpas de sangue hebreu. D. Luís da Cunha responsabiliza a Inquisição pela mania genealógica que grassava em Portugal; e Alexandre de Gusmão, fazendo as contas, pergunta ironicamente aos membros da Confraria dos Puritanos se todos os 32 530 432 avós em vigésimo grau que tinha cada um dos portugueses de então era de sangue puro ou familiar do Santo Ofício (62).

Ora é muito significativo que as razões de D. Luís da Cunha e de outros coincidem com as dos chamados Cristão-Novos. Há muitos pontos comuns entre a crítica anti-inquisitorial de D. Luís da Cunha, nas Instruções a Marco António de Azevedo Coutinho, e a do Cristão-Novo emigrado Francisco Ribeiro Sanches, de quem já falámos, no seu escrito Origem da Denominação de Cristão Velho e Cristão Novo em Portugal, a tal ponto que não é de excluir que os dois «estrangeirados» (um por obrigação do cargo, outro pelo receio da perseguição), que se conheceram no estrangeiro, tenham discutido juntos o problema da Inquisição. Ambos propõem a abolição da discriminação, a adopção do processo comum e, com especial insistência, o fim dos autos-de-fé. Ambos atribuem à Inquisição a função de fabricar, e não extirpar os «Judeus».

Este conluio dos Cristãos-Novos com a gente esclarecida da elite dirigente, de que há exemplos na época de Vieira, amigo e colaborador do cristão-novo Villa Real, não é fortuito nem caprichoso. O que sucedia é que os homens mais informados e clarividentes, sobretudo aqueles que puderam «abrir os olhos» no estrangeiro, se davam conta de uma realidade que não era já a dos tempos de D. João III e procuravam soluções adequadas à nova situação. O modo de vida senhorial, assim como a sua base económica, tinham-se tornado subalternos e arcaicos num país cada vez mais dominado pela burguesia mercantil, e a mentalidade burguesa tendia a sair da clandestinidade para se tornar dominante. Duarte Ribeiro de Macedo, que preconizava a introdução das «artes em Portugal» para estancar a saída do dinheiro; D. Luís da Cunha, que critica o tratado de Methuen, assim como o Cristão-Novo Ribeiro Sanches, que vê na saída dos capitais de «Cristãos-Novos» uma causa do empobrecimento do Estado, são, em teoria económica, mercantilistas. E isto implicava uma contrapartida ideológica. Todos estes homens, como já o Padre Vieira, se dão conta do atraso de mentalidade que torna possível uma instituição como a Inquisição. Como notava o Cavaleiro de Oliveira, «Portugal é como um relógio que se atrasa demasiadamente. As modas novas só lá chegam quando são já velhas em França ou em Inglaterra». A reforma da mentalidade e a reforma económica, direito e avesso do mesmo pano, tornam-se o objectivo comum de todos os que têm consciência do atraso português, sejam eles fidalgos como D. Luís da Cunha ou «Cristãos-Novos» como Francisco Sanches.

Muita água tinha corrido debaixo das pontes desde que Vieira propusera, inutilmente, a nobilitação dos mercadores. Agora toda a gente em Portugal que se pretendia «europeizada» estava de acordo em considerar o «comércio» como a actividade mais útil e meritória para o Estado. Mas essa não era ainda a doutrina oficial nem, tão-pouco, o sentimento da gente obscura que fazia a maioria. Os autos-de-fé prosseguiam, impassivelmente. Em 1739, quando já D. Luís da Cunha tinha escrito os seus ataques à Inquisição, é executado o poeta António José da Silva, nosso conhecido, e no mesmo auto morrem mais dez «relaxados». No auto de 1744, em Lisboa, há quatro relaxados. Em 1748 saiu ainda um livro da longa série semita, Invectiva Católica contra a Obstinação e Perfídia dos Hebreus, de um obscuro frade capucho. A massa dos frades e fidalgos, bem como o povo, continuava a viver num mundo de aparência, numa cenografia de teatro a que a Inquisição dava a realidade do terror. O mito governava a gente e as coisas e, como se não bastasse, sobreviveu nos escritores dos nossos dias que falam de um «antagonismo de raça» que «divide a Nação». No entanto, esse antagonismo desapareceu, com a mesma facilidade com que muda um cenário, quando o Marquês de Pombal tomou a medidas suficientemente enérgicas para destruir o mito. O Castelo ameaçador, que era já só um punhado de poeira sustentado pela inércia, desfez-se ao contacto de alguns decretos.

O Marquês de Pombal é o executor dos projectos do grupo esclarecido constituído especialmente pelos «estrangeirados», sendo ele próprio um desses diplomatas e altos funcionários que, sob o reinado de D. João V, trabalhava secretamente pela modernização e europeização da nação portuguesa. Na sua biblioteca existiam as obras de Duarte Ribeiro de Macedo, incluindo o Discurso sobre a Introdução das Artes em Portugal, bem como as de D. Luís da Cunha, que era o seu mestre confesso. Ribeiro Sanches foi um dos seus conselheiros ou inspiradores, especialmente na fundação do Colégio dos Nobres. Como todo este grupo, o Marquês pensa que o comércio é o fundamento da riqueza nacional, e os seus panegiristas, como Correia Garção, falando em nome da Arcádia Lusitana, num discurso congratulatório pelo restabelecimento de D. José a seguir ao atentado, felicitam-se pela importância dada à classe dos comerciantes, que é «a mais útil e a mais distinta da nação», e fazem notar que a grandeza de Portugal nos seus tempos heróicos vem não das guerras mas do comércio. É altamente simbólico que à praça mais nobre de Lisboa, ao terreiro onde estava o Paço antes do terramoto, se tenha dado sob o governo do Marquês de Pombal o nome de Praça do Comércio (63).

Terreiro do Paço (1880), aquando das Comemorações do 3.º Centenário da Morte de Camões.



(1889)



Primeiro quartel do século XX



Anos 50 do século XX



Actualidade


O mais ilustre dos «estrangeirados», o grande teórico das reformas pedagógicas, Luís António Verney, viu no Marquês de Pombal o homem capaz de destruir a Inquisição. Numa carta dirigida ao ministro plenipotenciário em Roma e destinada a ser conhecida de Pombal, Verney propôs uma reforma do Tribunal do Santo Ofício, inspirada nas ideias humanitárias tão características dos intelectuais setecentistas: «Cristo não mandou que se matasse ninguém por delito de religião, nem, durante muitos séculos, os Concílios e os Papas mandaram tal coisa. Isto é uma invenção dos séculos bárbaros e uma imitação de Mafamede que depois adoptaram os Portugueses e os Espanhóis nas quatro partes do mundo, matando cruel e injustamente milhões de homens, com o pretexto de os quererem fazer cristãos, mas, na verdade, para rapinar-lhes os tesouros e reinos. Estas não são coisas que se devam permitir num século iluminado». Exemplo desta «barbaridade» são os retratos de relaxados que se conservam na Igreja de S. Domingos de Lisboa, «eterno monumento da desonra da Nação». Outro exemplo: as condenações por pactos com o Diabo; «Tem-se observado, nota a propósito o padre Verney, que o Diabo tem muito medo dos países onde se sabe bem Filosofia, Medicina, Leis e Teologia, pelo que não se atreve já em tais lugares a fazer pacto com homem nenhum». Para que o Tribunal da Inquisição, «obstáculo terrível ao bom gosto das Ciências e ao progresso e à introdução de muitas outras cousas necessárias e úteis», não possa «fazer mais mal ao povo», Verney propõe, em resumo, um novo regimento que determine: a substituição do processo inquisitorial pelo processo comum (abolição do segredo, do tormento, etc.), a abolição dos autos-de-fé e o controlo do Tribunal pelo poder civil. O que todavia importa relevar nesta carta é que o autor considera o Marquês de Pombal como o único homem capaz de impor a reforma da Inquisição e incita-o, através do seu correspondente, a fazê-lo o mais rapidamente possível, atendendo a que é um homem de idade avançada e por isso com poucos anos de vida e governo à sua frente. A posição do Marquês na direcção do Estado é para Verney uma ocasião única, a agarrar pelos cabelos (64).

Pombal não precisava provavelmente destes encorajamentos. As suas reformas, inspiradas pelos autores que mencionámos, especialmente por Ribeiro Sanches, são consequência natural e inevitável da ideologia que com ele saiu da clandestinidade e se tornou doutrina oficial.

Toda a legislação pombalina sobre a Inquisição, que Pombal promoveu directamente na qualidade de ministro encarregado dos negócios do Santo Ofício depende do Rei e não do Papa. Já o Cavaleiro de Oliveira, no Discours Pathétique e nos opúsculos contra o Santo Ofício, tinha sustentado que a abolição ou reforma do Tribunal, aparentemente tão difícil e temerosa, dependia afinal do mero arbítrio do Rei. Ribeiro Sanches, abonando-se com vários documentos, sustentava a mesma opinião: «A Inquisição de Portugal é um ramo de poder real, expresso nas Ordenações do Reino»; e com este fundamento formulava uma esperança: «que fiel patriota não terá uma firme e constante esperança: que El-Rei, único senhor e pai do povo, queira dar remédio a esta desordem?» (65). Este princípio estava, de resto, dentro da teoria do absolutismo régio de que Pombal foi um dos expoentes. Depois de ter nomeado Inquisidor-Geral o próprio irmão, Paulo de Carvalho, o Marquês declarou a Inquisição tribunal régio (alvará de 30-5-1769) e transferiu-o da protecção pontifícia para a protecção régia, atribuindo-lhe o título de «majestade», próprio dos conselhos de Rei (alvará de 20-6-1769).

O outro princípio, e o mais importante, que inspira a legislação pombalina é a tese de que a distinção entre Cristãos-Novos e Cristãos-Velhos não tem qualquer realidade senão a que resulta das leis de limpeza de sangue e dos preconceitos. Pombal faz sua a doutrina de Ribeiro Sanches, de D. Luís da Cunha e de tantos outros, segundo a qual as leis inquisitoriais são, não a consequência, mas a causa de haver tantos «Judeus» em Portugal. Consequentemente, mesmo antes da reforma do estatuto inquisitorial, começou por tomar medidas tendentes a suprimir a discriminação. Por alvará de 22 de Maio de 1768 mandam-se anular e destruir as listas dos Cristãos-Novos que tinham contribuído para o preço dos perdões gerais e outros benefícios comprados ao Rei. Ribeiro Sanches notara que, para recolher os donativos pagos em troca dos perdões gerais, foram fintados todos os Cristãos-Novos. «Daqui sucedeu que, ou por malícia ou por avareza daqueles que fizeram a repartição, fintavam muitas famílias que não eram do mesmo sangue; mas como eram obrigadas a pagar, ficaram conhecidas e havidas como descendentes da nação judaica».


Desenvolvendo esta ideia, a lei pombalina declara nos considerandos «que havendo sido um dos grandes trabalhos que nestes dois últimos séculos têm padecido os meus reinos o que neles causavam os róis das fintas dos Cristãos-Novos, em razão de terem estes compreendido nos mesmos róis pessoas que neles não deviam ter lugar, não só para fazerem menos importantes na multiplicação dos indivíduos as quotas-partes com que deviam contribuir, e não só para infamarem as pessoas das quais por ódio pretendiam vingar-se, mas também para agregarem a si a todos quantos Cristãos-Velhos puderam meter dentro na sua infelicidade, para desta sorte a fazerem menor...». O alvará determina penas severas para quem guardasse cópias dessas listas «perniciosas». Note-se que o princípio da distinção entre Cristãos-Novos e Cristãos-Velhos não é ainda atacado de frente neste diploma. A lei serve-se do pretexto de que, em virtude das razões apontadas, muitos Cristãos-Velhos ficavam falsamente reputados por Cristãos-Novos, tanto mais que das listas em questão só existiam cópias e cópias de cópias sem autenticidade. Mas a vontade oculta do legislador, como o provam as leis posteriores, é, evidentemente, destruir uma das principais fontes da discriminação. Desta forma desapareceram os únicos documentos e indícios em que podia fundamentar-se a classificação de Cristão-Novo, com grande pesar dos eruditos.

No mesmo ano, por alvará de 22 de Setembro, conservado secreto, foram tomadas medidas práticas para acabar com o grupo dos «puritanos», atacado como vimos por Alexandre de Gusmão. Por ordem do Rei efectivaram-se casamentos entre «puritanos» e «não-puritanos»; o mesmo alvará mandava suprimir nos livros de linhagem todas as referências a ascendentes hebraicos.

Estas medidas parcelares tornam-se lei geral pela lei de 25 de Maio de 1773, que suprime as provas de limpeza de sangue para os cargos públicos e honrosos e condena de forma geral «a sediciosa e ímpia distinção entre Cristãos-Novos e Cristãos-Velhos. Só seriam excluídos daqueles cargos os condenados pela Inquisição, seus filhos e netos. Ao mesmo tempo estabeleciam-se pesadas penas - açoites e degredo, privação de empregos e pensões, expulsão do Reino, conforme o culpado fosse plebeu, fidalgo ou eclesiástico - para todos os que apelidassem outrem de «cristão-novo» ou de qualquer outro nome discriminatório. O rei declara que decidira «restituir a todos os Estados dos meus reinos e senhorios a paz e concórdia [...] que se tinham alterado e perturbado com sinistros intentos pelo estratagema da inaudita distinção de Cristãos-Novos e Cristãos-Velhos, maquinada para a ruína da união cristã e da sociedade civil». Para tanto manda republicar e pôr em vigor as leis de D. Manuel de 1 de Março de 1507 e de D. João III de 16 de Dezembro de 1524 que proibiam, diz a lei pombalina, «a sediciosa e ímpia distinção entre Cristãos-Novos e Cristãos-Velhos». Na justificação desta lei encontra-se um eco nítido do opúsculo de Ribeiro Sanches, onde se lê: «é certo que nem em Portugal nem em Castela não se ouviu que dos novamente convertidos à lei de Cristo apostasiassem naqueles tempos tão frequentemente como hoje os Cristãos-Novos, até que se introduziram as inquirições [de sangue] e Inquisições». A lei pombalina diz que, tendo-se mandado examinar o número de penitenciados antes e depois das leis de limpeza de sangue, se apurou que no primeiro período foram sempre muito raros e em pequeno número, «quando pelo contrário, depois do segundo período, triste e lutuoso, foram os mesmos réus de ano em ano sendo cada vez mais numerosos, com uma proporção incomparável».

A lei de 25 de Maio de 1773 foi completada pela de 15 de Dezembro de 1774, que declarava habilitados para os cargos públicos inclusivamente os filhos e netos dos condenados, e os próprios condenados da Inquisição quando não fossem réus impenitentes sentenciados ao fogo. E com efeito, no ano seguinte o Rei agraciava com o hábito de Cristo um mercador, António Soares de Mendonça, que outrora comparecera com o hábito infamante de penitenciado num auto-de-fé em 1746.

As leis pombalinas não ficavam, como se vê, letra morta, e é talvez significativo que até hoje não tenha aparecido um único exemplar das listas de Cristãos-Novos mandadas destruir pelo decreto de Maio de 1768 (66).






O novo Regimento da Inquisição promulgado por alvará de 1 de Setembro de 1774 limita-se a legalizar e a sistematizar a situação de facto já criada (67). Havia já dez anos que se realizara em Portugal o último auto-de-fé público (1765), e havia quatorze (1761) que tinham sido executados os últimos relaxados. O regimento de 1774 proíbe os autos-de-fé públicos e suprime a pena de morte, a não ser para casos muito excepcionais que, de resto, nunca vieram a verificar-se. Este fim do sacrifício ritual que era o auto-de-fé marca uma data importante na história social da nação portuguesa. Por outro lado as regras do processo inquisitorial são substituídas pelas do processo comum, abolindo-se portanto o segredo das testemunhas, a condenação por testemunhas singulares, o uso do tormento, a infâmia imposta às pessoas presas e processadas pelo Santo Ofício - «erros» que - dizia o Relatório do novo Regimento - eram contrários ao Direito natural, divino e humano, às Ordenações do Reino, ou - caso do tormento - ao direito não escrito, estabelecido pelo costume. Instituía-se o recurso para a Coroa e reiterava-se a doutrina de que o Santo Ofício é um tribunal régio, tanto pela origem como pela natureza. Característica do espírito iluminista que inspira o novo Regimento é a afirmação de que os pactos com o Diabo não passam de uma superstição imprópria de um século «iluminado» (como o notara Verney), devendo os que se obstinassem em tal crença ser internados num hospital.

Pombal entendia, por outro lado, transformar a velha Inquisição num tribunal e polícia de Estado contra os delitos chamados de opinião; e especialmente contra os Jesuítas. Por isso fez introduzir no novo Regimento uma referência aos Jacobeus, seita religiosa que ele atribuía às «maquinações» dos «denominados Jesuítas». Nisto aproveitava, porventura, um conselho de D. Luís da Cunha que nas citadas Instruções sugeria a utilidade do tribunal contra o quietismo e outras doutrinas «que autorizam a sensualidade». No fundo, tanto no espírito de D. Luís da Cunha como no do Marquês seu discípulo, tratava-se de virar o feitiço contra o feiticeiro e transformar o instrumento secular do obscurantismo numa arma que ajudasse a introduzir em Portugal o espírito do «século iluminado». Convertido em orgão directo do Estado, o tribunal continuaria a defender a religião católica, concebida como um culto público expurgado de toda a superstição popular bem como de inquietação mística, compatível com o racionalismo laico, útil na medida em que contribuía para a unidade dos súbditos, sob a égide do poder real absoluto, que incarnava a majestade da lei, no pensamento do próprio Pombal.

Desta intenção é bem significativo o que sucedeu no último auto-de-fé em que pereceram relaxados, em Lisboa, 20 de Setembro de 1761, o padre Gabriel Malagrida e o Cavaleiro de Oliveira. O padre jesuíta vira no terramoto um castigo do céu pelos pecados do povo; o Cavaleiro de Oliveira, que se tinha convertido ao Protestantismo, atribuía-o também a castigo divino, mas por outra razão: por os Portugueses persistirem na ignorância da verdadeira lei, que era a protestante. O Inquisidor-Geral era então o próprio irmão do Marquês de Pombal, e a sentença declara que tanto um como o outro são hereges, porque o terramoto se deve não a um castigo divino, mas a causas naturais. A mais de dois séculos de distância reencontramos o argumento de Gil Vicente contra os frades de Santarém, o que parece mostrar que o problema da incredulidade no séc. XVI não se reduz inteiramente aos termos em que o põe Lucien Febvre. Consequentemente, tanto o Jesuíta como o fidalgo protestante foram condenados à fogueira (68). Fazer queimar por herege um Jesuíta, ele que seria acusado de franco-mação e que (provavelmente de má-fé) acusava os Jesuítas de inspirarem e governarem a Inquisição, deve ter sido no espírito do enorme marquês, amador do humorismo frio, ao mesmo tempo que um golpe político importante, uma facécia sanguinária. Tanto mais que, se o Jesuíta morreu em sentido próprio no cadafalso, o Cavaleiro de Oliveira, que Pombal conhecia pessoalmente de Londres e de quem provavelmente apreciava os escritos anti-inquisitoriais, estava longe, e quem ardeu, em seu lugar, no auto-de-fé foi um boneco de palha.

Que resistência encontraram as leis pombalinas? Qualquer que fosse, Pombal debelou-a com a sua habitual decisão. Segundo uma ordem régia de 11 de Março de 1774, alguns Cristãos-Novos ao abrigo das leis que aboliam a discriminação tinham pedido a admissão em misericórdias, irmandades e confrarias, em várias localidades do País; mas, alegando as disposições dos Estatutos, os respectivos directores recusaram-nos. Pela ordem régia que estamos extractando, o Rei manda examinar pelos seus corregedores aqueles estatutos e eliminar tudo o que neles se refira aos Cristãos-Novos, «para ficar abolida toda a memória desta irreligiosa, tirânica e abusiva distinção». Seriam presos todos os dirigentes de misericórdias, irmandades e confrarias que se recusassem a admitir «os chamados antecedentemente Cristãos-Novos» e a suprimir nos Estatutos os artigos que se lhes referiam.

Em Paris, o nosso conhecido António Nunes Ribeiro Sanches copiava no seu diário esta ordem régia e resumia outras leis pombalinas sobre a mesma matéria. Mas mostrava-se céptico quanto à eficácia desta legislação de que fora, afinal, um dos inspiradores:



A Conspiração dos Judeus, de James Tissot







Jesus zombado pelos soldados, de Gerard van Honthorst.


«Mas podem estas leis referidas extinguir da memória e do pensamento as ideias que se adquiriram na primeira idade ouvindo os pais e mães tratar os descendentes de Judeus por infames, traidores a Cristo Nosso Senhor, que o açoitaram, que o fizeram morrer na cruz? Poderá o menino e o adulto esquecer os sermões que ouviu nas sextas-feiras de Paixão, poderá esquecer que foram queimados por renegarem a fé de Cristo os pais e as mães - os párocos nos confessionários e os pregadores nos púlpitos publicando e pregando que os Judeus e seus descendentes, posto que baptizados, depois de nascer sempre ficavam Judeus, porque conservavam naquele sangue puxante uma alma sempre judaica que os obrigava a renegar a fé de Cristo?». Não. O ódio aos Cristãos-Novos iria crescer com a repressão pombalina, e logo que o Rei morresse as vítimas desta repressão voltar-se-iam contra eles com um furor reacendido pela vingança. Serão necessários, diz Sanches, outros meios, que aliás não especifica (69).

A História mostra no entanto que Pombal conhecia bem, neste particular, o País que governava. Posteriormente às suas leis, sob outros governos, a Inquisição prendeu, perseguiu ou recolheu denúncias sobre franco-mações e simpatizantes da Revolução Francesa, como Bocage, Filinto Elíseo, o dicionarista Morais, o Dr. José Anastácio da Cunha, Silvestre Pinheiro Ferreira. O próprio Pombal foi ali denunciado como franco-mação.

Mas nunca mais ninguém em terra portuguesa foi justiçado por Judaísmo. Essa «raça» ou religião dos Cristãos-Novos, de que falam Lúcio de Azevedo, Cecil Roth, Révah, Caro Baroja e tantos outros eruditos ou historiadores, fundiu-se como neve ao sol. O que fora durante mais de dois séculos a grande questão nacional deixou como único resíduo o enorme arquivo da Torre do Tombo, uma montanha de papel que, por sorte, escapou do Terramoto de 1755.

Como explicar este surpreendente fenómeno? Porque é que há centenas de judaizantes confessos no meio século anterior à década de 60 e não aparece um só depois?

O historiador moderno dos Cristãos-Novos portugueses, que se deixou iludir pela mise-en-scène inquisitorial, esforça-se por encontrar razões (70): entre outras, que o «instinto das turbas varia»; que a «hostilidade» contra os Cristãos-Novos era já «o efeito de um hábito adquirido antes que um processo de raciocínio»; que «o predomínio monetário passara aos Cristãos lídimos»; que os Cristãos-Novos, por cansaço, «tinham renunciado à reacção», etc. Razões inconsistentes. Qual é a sociologia que diz que «o instinto das turbas (?)» varia surpreendentemente, ou que um sentimento colectivo se enfraquece com o hábito? E porque é que os Cristãos-Novos haviam de ter renunciado à «reacção», numa época em que tinham cada vez mais aliados? E em que base, em que documentação se baseia a afirmação de que o «predomínio monetário» tinha passado aos Cristãos-Velhos?

O facto de os Cristãos-Novos desaparecerem como uma miragem ao toque dos decretos de Pombal prova que este partia de uma teoria bem mais verdadeira do que aquela que por interesse próprio adoptavam os inquisidores: que os Cristãos-Novos só existiam graças a uma discriminação arbitrária; que a única fronteira que separava os Cristãos-Novos dos Velhos eram as leis de limpeza de sangue, as listas de contribuintes dos perdões, as listas de condenados dos autos-de-fé, os próprios autos-de-fé com toda a sua publicidade. Desaparecidas essas leis, queimadas essas listas, abolido o espectáculo ritual, não houve mais Cristãos-Novos em Portugal. Apenas em aldeias perdidas ficou um ou outro vestígio arcaico que vem do tempo das judiarias: mas há vestígios de tudo, inclusive da Idade da Pedra. A eficácia das leis pombalinas prova apenas a razão dos que sustentavam, como Ribeiro Sanches, Cristão-Novo, ou D. Luís da Cunha, fidalgo Cristão-Velho, que a Inquisição era uma «fábrica de Judeus».

O Marquês de Pombal expulsando os Jesuítas.


E porque é que este acontecimento só se deu sob o governo de Pombal? Porque com ele sobem ao poder os próprios que a Inquisição perseguia e os seus aliados. Sobe ao poder a burguesia mercantil e a elite esclarecida que via no comércio a base da prosperidade das nações. Até então essa burguesia crescera em luta com a sociedade tradicional que se agarrava cada vez mais desesperadamente ao mito. O governo pombalino, que formou muitos dos letrados da Revolução liberal de 1820, marca o momento da mutação qualitativa que arranca o poder, ou a sombra do poder, à nobreza tradicional. Por isso o mito dos Cristãos-Novos se desvaneceu sem deixar rasto (ob. cit., pp. 197-210).


Notas:

(55) Oliveira, ob. cit., p. 35.

(56) Veja Lúcio d'Azevedo, História de António Vieira, II, 1931, pp. 166-167.

(57) Estes nomes são indicados por Oliveira, ob. cit., pp. 33-35.

(58) Processo de Luís de França, natural de Lisboa, no Arquivo Nacional, papéis da Inquisição, ano de 1683, maço V, n.º 1232.

(59) Ambos indicados por Oliveira, no lugar citado.

(60) Cunha, ob. cit., pp. 77-79.

(61) Azevedo, Novas Epanáforas, pp. 161-162.

(62) Citado por Azevedo, História dos Cristãos-Novos Portugueses, p. 343.

(63) Ver a minha introdução a Obras Completas de Pedro António Correia Garção, colecção Clássicos Sá da Costa, Vol. II.

(64) Carta de Verney, publicada por Cabral de Moncada, Um Iluminista Português do Séc. XVIII, 1941, pp. 155-174.

(65) Sanches, ob. cit., pp. 23-24.

(66) As leis de Pombal sobre os Cristãos-Novos podem ler-se na Collecção das Leys, Decretos e Alvarás que compreende o Feliz Reinado de El-Rei Fidelíssimo, D. José, o I.

(67) Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos reinos de Portugal, ordenado com o real Beneplácito e Régio Auxílio pelo Eminentíssimo e Reverendíssimo Senhor Cardeal da Cunha, Lisboa, oficina de Miguel Manescal da Costa, MDCCLXXIV.

(68) Azevedo, ob. cit., p. 349.

(69) O diário de Ribeiro Sanches, manuscrito, está na Biblioteca da Faculdade de Medicina de Paris, manuscrito 2015. Encontra-se aí, na data de 25-1-1775, uma cópia da Ordem Régia de 11-3-1774, fl. 186, verso, acompanhada de um comentário de que demos um extracto.

(70) Azevedo, ob. cit., p. 356. Embora em desacordo com a sua teoria sobre a história dos Cristãos-Novos portugueses (influenciada porventura pelas teses racistas de Werner Sombart), não quero deixar de prestar aqui homenagem ao talento, à imensa erudição, à probidade, à capacidade de síntese deste historiador notável, cuja obra constitui a base indispensável para o conhecimento do nosso século XVII.

Jesus Chorou (James Tissot).



He heals the lame (James Tissot).


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