quinta-feira, 23 de maio de 2013

Oração

Escrito por Leonardo Coimbra



Oração de Jesus Cristo no Jardim de Gétsemani


«O pensamento criacionista é um pensamento humano e, portanto, em analogia com o Pensamento criador, é um pensamento diminuto. Ele mal se conhece a si mesmo; é, pois, prenhe de obstáculos. E, como tal, pergunta-se por um Pensamento criador e pode, inclusive, alcançar a "hipótese" da sua existência - intui a existência de um "Pensamento" que cria sem obstáculos, que se eleva a uma perfeita Síntese. Mas, no momento em que ele se propõe conhecer este "Pensamento", vê-se logo limitado por um "Irracional" inatingível em termos de razão humana. Deus é, portanto, esse "Irracional" - esse é o seu nome. "Irracional, porque incomensurável".

"A divisão faz aparecer o número fraccionário. A radicação o número irracional. E, com o irracional, aparece abertamente a ideia de infinito".

Esse "Irracional" apresenta-se, então, como a "ideia" de um incomensurável Infinito; incomensurável, porque não pode ser medido por qualquer fórmula, não pode ser esgotado por "conceitos" ou "acções já realizadas". Deus não se esgota num momento histórico, e não cabe em nenhuma "fórmula" transmutável, pronta para um idêntico resultado - assim, por exemplo, como uma "teoria da relatividade" ou uma fórmula H2O.

O espírito humano é activo, é criação, um incessante mobilismo - esse é o princípio que se impõe ao Criacionismo. Transportar, pois, o espírito humano para um "reino" fora deste mundo (como querem, a seu ver, os intelectualistas) é conhecer um "criado" inerte e imóvel. Aos "intelectualistas" opõe-se o "irracionalismo". Só este pode garantir a liberdade criadora da própria "criação". A "criação" é o "mar imenso e profundo da Vida"».

Miguel Spinelli («A Filosofia de Leonardo Coimbra»). 


«Ao fim de qualquer processo filosófico parece surgir sempre a mesma conclusão: as matemáticas são, de todas as ciências humanas aquelas em que melhor se espelha a mais alta teologia. Substituir a teologia pela metafísica, como fez o iluminismo, ou pela sociologia, como fez o positivismo, no quadro das ciências filosóficas, é impiedade que equivale a embaciar para sempre, o espelho da verdade. Assim interpretamos a admirável analogia que Leonardo Coimbra escreveu em A Alegria, a Dor e a Graça: "O matemático que dispensa a hipótese Deus é como o homem que, junto ao lume do carvão, dispensa o calor do solo"».

Álvaro Ribeiro («As Portas do Conhecimento: Matemática e Metafísica»).



Leonardo Coimbra


«...O problema de Deus é o problema do significado humano ou super-humano mais finito e do significado absoluto da moral. A consciência moral é um acidente humano, ou é a mais estranha realidade e essência? Eis o problema de Deus.

E só assim Deus pode existir sem eliminar as criaturas. De outra forma seriam as criaturas determinismos sem autonomia, máquinas tombadas da absoluta vontade divina. E, como o querer absoluto fora do saber e amar coincide com o capricho, as criaturas seriam caprichos divinos, o que equivale a dizer que não seriam. Eis os motivos por que à velha palavra demos um novo sentido.

A filosofia criacionista não recebe por acção exterior o motivo da inflexão da sua trajectória. Foi a dialéctica científica que a levou à pessoa, que a Arte conserva e engrandece. O pensamento, chegado ao seu foco, reflecte, e a pessoa ainda é a palavra da síntese filosófica.

Não precisamos de sobrepor à síntese objectiva uma síntese subjectiva. A realidade não se divide nas duas coisas - sujeito e objecto. O sujeito e o objecto são vagas anunciações da pessoa activa e livre tendo como instrumentos de acção os determinismos subordinados. A trajectória do pensamento científico inflecte-se naturalmente para a irredutível realidade - a pessoa».

Leonardo Coimbra («O Criacionismo: Síntese Filosófica»).


Oração


Eu adoro e temo o senhor meu Deus, porque Ele é doce e terrível.

Só Ele é: e tudo quanto existe assenta na sua mão poderosa.

Ele espalhou os mares sobre a face da terra e arremessou as montanhas para as alturas dos céus.

Ele pode apertar em sua mão, aniquilando-os, os mundos que uma vez dispersou pelo Espaço.

A voz do trovão e do relâmpago, os clarões da terra incendiada, as lavas que vomitam as feridas da terra, os ventos galopando cortantes, a terra tremendo em seus alicerces e os mares expulsos de seus leitos não custam um estremecimento à sua tranquilidade terrível.

Ele manda, e, no Espaço, os mundos chocando-se fazem um formidável dilúvio de fogo; Ele manda e dos mais profundos pélagos surgem os dorsos corcovados dos planetas; Ele manda e essas mesmas montanhas são poeira tombando de seus alicerces de granito.


O tufão cresce, avança sobre nós, torna em seus invisíveis braços as árvores mais gigantes e arranca-as como penugem de andorinha adormecida; sopra e das casas desmoronadas fogem espavoradas as cinzas do último fogo que reunira a família. Mas o tufão cresce ainda e não são os alicerces dos planetas que estremecem, é o Sol, imensa fornalha ardente que vomita farrapos de fogo maiores que os próprios mundos...

Cresce ainda e não são as cidades da terra e os seus milhões de habitantes que tombam à cólera de seu sopro, e não é o Sol que abre em chaga formidável seu manto de fogo, são os sóis, as nebulosas, os lumes e as monstruosas trevas do Espaço que se chocam e comovem levadas em seu sopro como o cadáver da gaivota na onda da tempestade.

Meu Deus, meu Deus, como é terrível a força do teu braço, como é terrível o assopro da tua cólera.

Não são os montes que saltam em suas bases de rocha, são os mundos que flecham em suas órbitas transviadas.

O caminho passa e quem sabe de que mundos mortos é a poeira que se lhe prende nos cabelos. Os pés do peregrino pisam na terra poeira de mundos mortos, apagados nas densas estepes das alturas.

A criação ri e o raio que lhe doira os cabelos e afeiçoa a boca é uma gota de sangue do nosso melhor Sol agonizante, e ó quantas faces cadavéricas, quantos mundos sem vida já não beijou essa gota de sangue que nos chega agora a cintilar oiro num sorriso de criança?

Meu Deus tua força é terrível e a cólera de teus olhos é mais cortante que o gume duma espada num campo de batalha!

O trovão que nos estala sobre a cabeça é um eco amortecido da tua voz justiceira, a língua de fogo que repassa e funde as rochas e os metais mais fortes é o reflexo apagado do teu olhar ardente"

Onde esconderá Senhor sua cabeça pecadora o homem que teu olhar procure?

- Caim, Caim, que é de teu irmão Abel?

E onde se sumirá Caim de ante a tua face?


Caim matando Abel


Os mundos estão na palma da tua mão, diante de tuas pupilas ardentes.

Mas não são eles, os mundos, obra da tua vontade soberana, não és o senhor deles?

Quem pode pôr barreiras no campo que te pertence? Não terá o oleiro o direito de partir, amassar e reamassar os barros que amodelou?

Os mundos são teus que neles se faça a tua indomável vontade misteriosa.

Mas as almas, Deus meu?

Flores do teu jardim que tua mão semeou na vida e que tua mão vem colher tão cedo...

Que vem fazer a Morte, que é esta vida, às sementes da vida eterna que são as almas?

Ascender na podridão a beleza desse instante?

A simples fosforescência no monturo?

Meu Deus, meu Deus, como são terríveis os caminhos da tua vontade!

E as sementes que são colhidas mal iam desenovelando a morte das criancinhas?

Que estranho cacto vermelho não será a chaga dum coração materno!

As crianças morrem para Deus ter anjos e os corações maternos ficam chagas de luz a gritar no Espaço!

Os mundos que são obra da tua mão omnipotente não te conhecem, ó que importa, pois que os arremesses num ou noutro sentido?

Mas as almas, meu Deus, conhecem-te e conhecem-se; ó para quê semear almas e vir colhê-las antes que abram, para reunir corações e dispersar cadáveres? (in Miguel Spinelli, «A Filosofia de Leonardo Coimbra», Braga, 1981, pp. 271-273).

segunda-feira, 20 de maio de 2013

A polémica Pascoaes/Sérgio (ii)

Escrito por António Quadros 




Fernando Pessoa


«A doutrinação do saudosismo como movimento afastou Fernando Pessoa que, apoiado aos modernistas Sá-Carneiro, Armando Côrtes-Rodrigues, Almada Negreiros, Alfredo Guisado, Raul Leal e outros, se cindiu do aguilismo, para criar o Orpheu e, quanto este veio a determinar. No entanto, ao pensar e ao rescrever um estudo tão significativo como A Nova Poesia Portuguesa (1912), embora utilizando uma diversa metodologia, distante do abstraccionismo dos arquétipos de Pascoaes, Fernando Pessoa (1888-1935) acabava por aceitar, já as teses acerca da queda, postuladas por Bruno, Rêgo e Pascoaes, já os teoremas relativos a um ocultismo que o messianismo saudosista não previa de todo, ao menos no princípio, transferindo para a poesia a vinda do Encoberto, que outro ser não é o Super-Camões, profetizado por Fernando Pessoa, e que corresponde ao D. Sebastião do nacionalismo redentorista - tudo isso parafraseado no Infante de Sagres, que um Álvaro Ribeiro mencionou esperar para a Filosofia Portuguesa.  Importa assinalar que tais menções devem ser lidas segundo o que significam, nunca segundo o que designam, por constituírem mitos dinamizadores e não crenças dogmáticas. Tanto quanto parece, a cisão pessoana deve-se a causas estéticas, se pensarmos em que Pessoa não só aderiu a uma exegese ôntico-psicológica do povo português, mas ainda levou o messianismo às instâncias propostas no poema Mensagem, que é uma outra forma de pensar a Arte de Ser Portguês, que Pascoaes intuíra, pensara e escrevera. O que afastou Pessoa de Pascoaes foi um formalismo estético, não um ideário filosófico, mesmo e ainda quando se admitia ter sido - ao menos do que se julga saber - Pessoa mais erudito do que Pascoaes, e que o racionalismo daquele tenha entrado em oposição ao intuicionismo deste.

Mas a teoria saudosista, que não fez, só por ela, cindir Pessoa, fez cindir António Sérgio, cujo espírito pragmático, informado por um certo maurrasismo esquerdista, jamais poderia conciliar-se com as visionações messiânicas, evolucionistas e ascensionistas de Pascoaes e de Leonardo Coimbra. A influência deste, patente na revista, havia implicitado uma prioridade à especulação filosófica, para situar, primeiro, a filosofia e, depois, a política, o que Sérgio de forma nenhuma aceitava, uma vez dar prioridade à pedagogia em função da vida política. Sérgio representava a ideologia, enquanto, mais próximos, Pascoaes insistia na etno-psicologia portuguesa, e Leonardo visava um dinamismo estritamente filosófico, criacionista e centrífugo, mas filosófico antes de mais. O ideário republicano dos primeiros tempos sentia-se segregado nas páginas aguilistas e a cisão deveio. A polémica contra o Saudosismo foi o definitivo pretexto. Na verdade, o que se passava, era a profunda oposição entre os que preferiam o compromisso ideológico (António Sérgio e aderentes) e os que visavam a ascética filosófica (Leonardo, Pascoaes e discípulos). Que a Seara Nova constitua uma bifurcação ideológica de matriz aguilista, é facto a considerar».

Pinharanda Gomes («A "Escola Portuense"»).


«... Compreende-se o doloroso espanto do Poeta ao desembarcar na Ribeira. Diante dele erguia-se a sombra da Pátria de olhos fechados - morta! Ei-lo divagando, entre fantasmas, pelas ruas da cidade, verdes de Primavera e do abandono... E o seu Poema sublime, onde marulham as ondas do mar e as estrelas brilham e as almas dos heróis? Ah! É um livro para ser lido aos defuntos! Camões devia ter chorado... Mas a sua angústia maior veio depois; depois, quando recitou o Poema aos vivos que o não sentiram nem amaram: aquela gente surda e endurecida.

Então o Poeta, corrigindo o último canto d'Os Lusíadas, acrescentou-lhe aqueles terríveis versos do seu desânimo: a dor da sua alma incompreendida...

Só um homem, na flor da idade e da beleza, onde o génio da Raça num último esforço, se entranhou para fulgir o último relâmpago sangrento - sentiu e compreendeu Os Lusíadas. Foi na serra de Sintra, futuro paraíso de Lord Byron, que Luís de Camões leu a D. Sebastião essas estrofes que voavam de encontro ao seu desejo de guerras e aventuras. A expedição a Marrocos, que o jovem Rei premeditava, seria nova matéria para novo canto. Ah! Como se lhe cravou na alma aquele verso:


Dareis matéria a nunca ouvido canto...





D. Sebastião, ouvindo Os Lusíadas, antegozava a sua futura existência nas estrofes imortais de um Poema... Ser cantado não é o máximo desejo dos Deuses, dos Heróis e das Mulheres?

Mas o Herói e o Poeta estavam a dois passos do sepulcro.

Há sonhos que já parecem sonhados durante o sono da Morte. Têm mais amplidão e inconsistência, mais negrume sem estrelas, na sua indefinida curva misteriosa. O fundo em que eles se esboçam, é de uma fluidez incolor, uma distância inverosímil, abstracta. O nada, o nada absoluto vagamente a figurar-se, para além de tudo, é a fantástica matéria destes sonhos que a sombra da Morte próxima introduz no sono dos moribundos, - esse aflito prelúdio negro da calma Eternidade.

Assim, D. Sebastião sonhava um novo Império e Camões a sua Sebastianeida... O Poema não foi trasladado para o papel. Existe ainda gravado, por dentro, nos ossos de uma caveira, e a sua música divina ouve-se ainda naquele vento que chora, inconsolável, durante certas noites portuguesas... É um vento que não sopra em outros países, um vento estranho e fúnebre, levantado dos areais de Alcácer, feito de um negro bater de asas agoirentas, num clamor de almas penadas, que estiola as folhagens e mete medo...

A Sebastianeida ficou dispersa no Limbo. D. Sebastião no Deserto e na Saudade, e Portugal sob o jugo de Castela. A noite do cativeiro demorou-se sessenta anos acima do horizonte português. A nossa independência e liberdade ressurgiam, mais por esforço alheio que por virtude própria. Mas a alma cantada n'Os Lusíadas jaz ainda no deserto africano...

(...) Camões, talvez o maior e o mais imperfeito lírico do mundo, foi a voz suprema de uma Raça que nasceu das entranhas da terra, para morrer nas entranhas do mar. Mas a Voz sobrevive encantada no seu corpo de harmonia, como D. Sebastião, o sublime rei camoniano, em seu espectro de névoa...

Este Espectro e aquela Voz são hoje a velha Lusitânia, descarnada, reduzida ao seu espírito imortal: a sombra de eterna Beleza em que um Povo inteiro se dissolveu, pairando sobre uma Pátria defunta...

Mas o Encoberto, embriagado do canto de Camões, divaga ao luar da nossa evocação, na ilha do Encantamento... a ilha do nosso Desejo».

Teixeira de Pascoaes («Os Poetas Lusíadas»).


«... Os valiosos estudos da obra de Pascoaes que até agora têm vindo a ser feitos por pensadores da tradição portuguesa, os estudos de um Afonso Botelho, de um António Cândido Franco, de um Manuel Patrício, de um Paulo Borges ou de um Pedro Sinde, se obedeceram à preocupação de situar essa obra no quadro da nossa filosofia, nem sempre o fizeram de acordo com o conceito de filosofia portuguesa, e de tudo o que nela se implica, tal como foi formulado por Álvaro Ribeiro, o mestre entre nós dos que sabem...» .

António Telmo (Prefácio ao volume 21 das Obras de Teixeira de Pascoaes - Assírio & Alvim, 2002). 



António Telmo


(...) A réplica de Teixeira de Pascoaes


Solar de Gatão, onde viveu Teixeira de Pascoaes (Amarante).



Mas voltemos aos ataques de António Sérgio ao saudosismo, que Pascoaes não teve qualquer dificuldade em aparar. Não sem ironia, mas com que outro voo! Antes de entrarmos no coração da polémica sobre o sebastianismo, entendamos que a querela de Sérgio não era só com os sebastianistas, era com quantos procurassem assumir, como o poeta do Maranus, o génio do lugar, a qualidade de uma estrutura cultural, o enigma, a paixão, a «obscuridade» luminosa de um povo e as «palavras intraduzíveis» da sua língua, que, afinal de contas, exprimem em profundidade a sua circunstância. Depois dos Sérgios e da sua acção «racionalista» e «cívica», surgiram decerto gerações de homens políticos empenhados numa acção cooperativista e socialista, mas Portugal tornou-se mais cinzento, mais medíocre, mais alinhado com os lugares comuns de todas as convenções europeias ou internacionalistas, cada vez mais divorciado da sua identidade psicológico-cultural, até se chegar à insignificância complexada em que se vê hoje, impotente para reencontrar uma autonomia cultural, intelectual e criadora capaz de corresponder, como um conteúdo, aos slogans formais de «independência nacional» ou de «país restituído ao seu destino», que não logram ultrapassar a esfera da demagogia política.

Sérgio troçara da definição de saudade de Duarte Nunes de Leão, retomada por Teixeira de Pascoaes, lembrança de alguma coisa com o desejo dela, «mostrando-a» como aplicável não só ao homem como a toda a animalidade; e compusera uma historieta satírica em que o saudosismo surgia descrito tem termos caricaturais e redutores, sob a sugestão da teoria dos reflexos condicionados de Pavlov.

Diz Pascoaes, na sua resposta, onde se sente uma projecção de autenticidade poética e intelectual:

«António Sérgio confessa todavia que o que caracteriza a Saudade é um certo quid de sentimento. Perfeitamente. É nesse quid que existe a sua essência original, representativa de uma Raça autónoma. Pois saiba o ilustre escritor que esse quid se contém na definição de Duarte Nunes e na minha. Consideramos a Saudade um sentimento-síntese, um sentimento-símbolo, resultante da fusão harmoniosa dos dois princípios do Universo e da Vida que, desde a origem, se digladiam: Espírito e Matéria, Desejo e Lembrança, Dor e Alegria, Treva e Luz, Vida e Morte.

«António Sérgio não quis compreender assim e afirma erradamente que nós não definimos a Saudade, mas um rude facto geral de toda a animalidade. E, como prova, apresenta uma chalaça canina que pode fazer arreganhar os dentes... só para rir, é claro.

«Sim, meu caro amigo, eu conheço alguns cães bem mais capazes de sentirem a Saudade que certos seres da espécie humana. Quanto mais conheço os homens, mais amo os cães».




E responde, em seguida, à troça incompreensiva de Sérgio:

«A Saudade, como todos os sentimentos, é susceptível de graus inferiores e superiores. Há a saudade rudimentar, acessível talvez às próprias árvores; e entre esta e a Saudade lusíada, há outros graus decerto não comuns a todos os países, mas também a todos os seres vivos... A Saudade de um belo almoço em dias de fome, de uma esposa, de um filho, etc., evidentemente que é um sentimento comum de todos. Pretender o contrário seria infinitamente ridículo» (18).

Mas Pascoaes falava de uma outra Saudade, que Sérgio não podia, no seu humanismo de curto voo, entender. A que já cantava Camões:

... a Saudade
D'aquela santa idade
D'onde est'alma descendeu.


E o poeta do Regresso ao Paraíso conceptua e define:

«Não há grande Poeta português que não viva dramaticamente esta Saudade. É ela a dolorosa essência metafísica da nossa autêntica literatura, incluindo a Poesia popular. É a Saudade do Céu, divina sede de perfeição e redenção, o eterno Sebastianismo da alma portuguesa e a sua transcendente e poética atitude perante o Mistério infinito!».

Pascoaes acrescenta esta nota com interesse:

«Deixe-me frisar ainda o seguinte: o que torna este alto Sentimento extraordinário e nosso, é o haver nascido da alma colectiva do Povo e não do temperamento excepcional de certos indivíduos».

Mas mais importante é a réplica de Pascoaes à acusação sergista de que o saudosismo seria reaccionário, voltado para o passado:

«Também erra, meu caro amigo, quando afirma que a Saudade é retrógrada e paralítica, o que, aliás, se depreende do já exposto. Não resulta ela da combinação activa e amorosa dos dois princípios da Vida? Na Saudade, o desejo e a lembrança perpetuamente se casam e fecundam, porque ela é o símbolo da Natureza, desenhado pelo nosso espírito lusíada... D'aqui tirou Leonardo Coimbra a sua filosofia criacionista, a filosofia de maior mobilidade, anticoisista por excelência, que só vê no Universo o seu constante devenir, a sua eterna criação espiritual.



«Sim: a Saudade é a grande criadora do futuro, mas não tira o Futuro do Nada, não consegue um Futuro de geração espontânea ou caído miraculosamente das estrelas. Ela constrói o Futuro com a matéria do Passado» (19).

E aqui, Teixeira de Pascoaes ironiza por seu turno a respeito de toda a cultura de base exclusivamente sociológica, que faz tábua rasa dos valores arquétipos, julgando assim ficar liberta de um peso de reacção:

«O meu querido camarada parece querer eliminar o Passado. É apenas um belo gesto quixotesco... O Passado é indestrutível, nele murmura a fonte onde bebemos as novas energias. Ai de nós, se não tivermos Passado! Ai da árvore, sem profunda terra onde mergulhar as raízes" Não pode frutificar» (20).

Noutro passo da sua segunda carta, António Sérgio não só repelia a ideia das palavras intraduzíveis (ignorava ainda a lição de Heidegger, que foi bem mais longe do que Pascoaes, dizendo: «Só se pode traduzir o grego para o grego» (21) ou ainda, «ser grego é pensar grego», como ainda recusava originalidade à palavra saudade. Neste ponto, Pascoaes dá uma lição de filologia a Sérgio, para quem as palavras são meros instrumentos polémicos ou casuísticos, e não, como dizia Heidegger, a morada do ser. Depois de sublinhar que a saudade galega ou a anyoranza catalã estão próximas da saudade portuguesa, por evidentes parentescos culturais, escreve: «De resto, eu sei lá o sentido íntimo d'essas palavras arrevesadas, doru, saknad, savn, saknor, etc!!! Eu não sei, nem o meu caro amigo!».

E ainda, com ironia:

«O meu caro António Sérgio ama a chalaça; a Europa deu-lhe cepticismo de mistura com electricidade e carvão de pedra... As suas palavras modernistas são aviadoras; pairam, portanto, sobre as coisas, sem pousar...

«Desça, desça, um pouco à alma da sua Raça...» (22).

Por último, Teixeira de Pascoaes dá a Sérgio o conselho que ele nunca será capaz de seguir: «Uma Pátria necessita de se afirmar constantemente na sua individualidade esculpida pelos séculos. De contrário, será uma sombra apagada, um ninguém neste mundo. Para agir, é preciso ser antes de tudo» (23).

Ideia profunda, esta última, e antecipadamente heideggeriana, ideia de que os pragmatistas, os activistas, os racionalistas judicativos, os materialistas ou os marxistas ficaram sempre aquém. Trinta e três anos mais tarde, Heidegger diria praticamente o mesmo, na Carta sobre o Humanismo. Assim principia esse texto de 1946, traduzido para português em 1973: «Vamos longe de pensar, com suficiente radicalidade, a essência do agir. Conhecemos o agir apenas como o produzir de um efeito. A sua realidade efectiva é avaliada segundo a utilidade que oferece. [É o conceito vulgar dos racionalistas judicativos e voluntaristas como Sérgio, e também dos marxistas]. Mas- continua o autor de Sein und Zeit -, a essência do agir é o consumar. Consumar significa: desdobrar alguma coisa até à plenitude da sua essência; levá-la à plenitude, producere. Por isso, apenas pode ser consumado, em sentido próprio, aquilo que já é. O que, todavia, "é", antes de tudo, é o ser» (24).



Martinho Heidegger


Assim, Heidegger confirma a posteriori a fulgurância das intuições de Pascoaes, jamais entendidas por Sérgio. Pascoaes disse, efectivamente: «Todas as línguas têm as suas palavras intraduzíveis. São elas que mostram o que há de original e característico na alma de um Povo» (25). Heidegger escreveria: «A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem» (26).

Pascoaes: «Para agir é preciso ser, antes de tudo». E Heidegger: «... a essência do agir é consumar [...] apenas pode ser consumado, em sentido próprio, aquilo que já é. O que, todavia, "é", antes de tudo, é o ser».

Pascoaes, precursor de Heidegger? A muitos títulos o é, como inspirador que foi de filósofos portugueses, tais Leonardo Coimbra e José Marinho. Pascoaes, inesperadamente mais moderno do que Sérgio? Certamente (in ob. cit., pp. 285-291).


Notas:

(18) A Águia, loc. cit., pp. 104-105.

(19) Ibid., p. 106.

(20) Ibidem.

(21) Martin Heidegger, Qu'apelle-t-on penser? (trad. francesa), Paris, Presses Universitaires de France, 1959.

(22) A Águia, loc. cit., p. 106.

(23) Ibid., p. 109.

(24) Martin Heidegger, Carta sobre o Humanismo, tradução portuguesa de Arnaldo Stein, com prefácio de António José Brandão, Lisboa, Guimarães Editores, 1973, p. 37.

(25) A Águia, loc. cit., p. 109.

(26) Carta sobre o Humanismo, p. 37.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

A polémica Pascoaes/Sérgio (i)

Escrito por António Quadros






«A empresa, ou movimento intitulado "Renascença Portuguesa" foi criada para actuar pelo pensamento e pelo sentimento com vista à reconstrução da vida política e social da Nação Portuguesa. A crise instaurada pela mudança de regime, mudança essa efectuada por militares, sem prévio conhecimento da vontade comunitária, levou diversos sectores da vida portuguesa, sem experiência partidária, à procura das vias alternativas. Católicos, enquanto tal, monárquicos, independentes, cidadãos desencantados (hajamos em vista o ascético Basílio Teles e o messiânico Bruno) entregaram-se, uns mais, outros menos, ao exercício que alguém [Henrique Barrilaro Ruas] já designou de "política experimental", todos com fontes comuns. A leitura dos objectivos renascentistas achou diversas interpretações, estando claro que o primeiro manifesto, sujeito a controvérsia, por diferença de posições intelectuais de Lisboa e do Norte, acabou por ser redigido por Pascoaes, sem o unânime assentimento dos fundadores, pelo que uma tensão doutrinal se instalou no movimento desde os primeiros dias, atingindo-se a raia de, os de Lisboa, caricaturizarem a empresa sob o epíteto de uma firma, "Pascoaes & C.ª", corroborando, afinal de contas, o predomínio da linha mental pascoalina no movimento. Há lugar para se antepor o confronto de um par de propostas antagónicas: sergismo versus pascoalismo, a breve trecho personalizado em sergistas e pascoalistas, e leonardistas, esta porventura mais extensiva após a fundação do segundo modernismo, e na opção mental da revista Presença.

A "Renascença Portuguesa", não obstante, avançou, mas o vírus tensional permaneceu activo, nem Sérgio nem Proença desistindo dos seus propósitos, defendendo um activismo imediatista, pragmático, dirigido ao concreto, ao real social em contraste com o mediatismo teorético, poético e especulativo, assumido pelos mais distantes do pragmatismo e mais próximos da inteligência poética e filosófica de Pascoaes, Leonardo Coimbra incluído, e patente no modo singular na revista A Águia, pois o jornal A Vida Portuguesa, (verdadeiro orgão da "Renascença Portuguesa"), conseguiu, em suas páginas, melhor convergência pragmática, graças ao sentido prático de Álvaro Pinto, o gestor empresarial do movimento.

Ignoramos que fortes motivos levaram as partes a tão frontal desacordo, pois no contexto do manifesto há espaço para se dar a voz aos poetas e aos práticos, desde que uns e outros não tenham a soberba de se anularem ou absorverem. Não obstante, o vírus inicial foi cultivado, e Sérgio recusou contemporizar com o tom romântico e passional que Pascoaes imprimia ao movimento, com a falta de um projecto político objectivo e instaurável, e também com a orientação eclesiológica de Pascoaes, apetente de uma "igreja lusitana". Embora cada vez mais as posições sergistas se abonassem da diferença em relação às pascoalinas, o episódio de 1913, que opôs Sérgio a Jaime Cortesão, aumentou o esfriamento. De facto, recensionando o ensaio Educação Cívica, Jaime Cortesão dissentiu das teses de Sérgio quanto ao ensino da História Pátria, mas Sérgio não gostou, replicou com "bordoada"...) e perdeu algum apoio a Norte. O processo de corrosão é progressivo, acha-se descrito em diversa bibliografia, mas há coincidência de juízos quanto ao factor decisivo, que veio a ser a polémica Pascoaes/Sérgio por causa da Saudade e do Saudosismo...».

Pinharanda Gomes («A "Escola Portuense"»).
Casa de Pascoaes

«É a crédito de António Sérgio, sem dúvida, que tenha recusado na forma a hipertrofia do Estado e a ditadura política de um homem, de uma oligarquia, de um partido ou de uma classe. Mas, no fundo, o que tentou conseguir foi um igualitarismo intelectual e social de tendência implicitamente massificante, embora por outro método, que não o do poder militar ou policial; antes pelo que podemos classificar como um método polémico-racionalista levado aos extremos de um terrorismo intelectual, ao serviço da sua revolução cultural ou da sua reforma da mentalidade.

Neste ponto, tem paralelismos evidentes com Gramsci. Sérgio terá sido um Gramsci democrático e não-comunista, considerando igualmente que de pouco serve alterar as estruturas sociais e económicas sem alterar primeiro a mentalidade, sobretudo das classes cultas».

António Quadros («Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista»).


«A partir do fim da II Grande Guerra, a Seara Nova deveio o que António Sérgio não previra, uma correia de transmissão das organizações socialistas e marxistas. Pergunta de Sérgio: "... porque é que uma revista como a Seara Nova veio a dar no contrário do que foi outrora?!....».

Pinharanda Gomes («A "Escola Portuense"»).


«Sob o ponto de vista político, a "Seara Nova" enfileirava-se na extrema esquerda da República Radical; sem ser jacobina (pelo menos sempre assim se exprimiram os seus colaboradores), os seus esforços dirigiram-se para a transformação do regime, no sentido das mais avançadas aspirações».

Miguel Spinelli («A Filosofia de Leonardo Coimbra»). 



(...) A polémica com Teixeira de Pascoaes sobre o saudosismo


No seu polemismo, principiava por tentar desconcertar o adversário, baseando-se num pretenso senso comum ou numa, chamada assim, sabedoria das nações, para o colocar na situação de um pobre diabo iludido e sentimental e para apontar comiseradamente ao leitor até onde podia chegar a patetice mental dos Portugueses. Nesta primeira fase, de tartufo, Sérgio punha sempre luvas brancas, prodigalizava elogios aos aspectos mais superficiais ou marginais da obra do acusado, lamentava-se mesmo do papel antipático que se via obrigado a desempenhar; mas era em nome da razão, do ideal cívico, da inteligência enfim. O leitor tinha de compreender que, se não raro resvalava para a troça, para o riso, para o escárnio, era porque, com mil diabos! há limites para o absurdo...

Só que, quanto a razão e inteligência, nem sempre abundavam do lado de Sérgio!

Tomemos como exemplo a sua polémica com Teixeira de Pascoaes a propósito do saudosismo. Não chegou à violência, não só porque na sua réplica Pascoaes demoliu as superficiais alegações de Sérgio, mas talvez ainda porque o autor dos Ensaios não quis hostilizar demasiadamente o director da revista (A Águia) onde colaborava, e que era um grande poeta.

Aprecie-se esta peça de antologia da ironia sergiana:

«... foi maravilha de espantar que Duarte Nunes e Pascoaes se lembrassem de a definir [a saudade] em termos de vontade e representação. O resultado é que estas definem, não a saudade, não uma característica humana, quanto mais portuguesa, mas um rude facto geral de toda a animalidade. Exemplificando:

«Um sujeito vê um dia um cão e bate-lhe. O cão foge, desmoralizado pelo inesperado do ataque. Decorridos dias o nosso homem passa outra vez pelo cão, sem dar por ele. Ao cão vem-lhe um desejo naturalíssimo de sentir a carne do agressor comprimida entre os seus caninos e... zás, estão daí vocês a ver a cena. Que se passara na consciência do animal? Nada de extraordinário: uma velha lembrança gerando um novo desejo: - a saudade (definição de Pascoaes).

Suponha-se agora o dono do cão a comer uma iguaria nova, e ao lado dele o seu cachorro. O dono estendeu-lhe um pedaço, e o focinho duvidoso aproxima-se, fareja, estende a dentuça, mastiga incerto, engole. Gostou. Passam-se os dias. O cão vê o dono a comer tal petisco, e logo se aproxima, de venta ávida. Que foi? A lembrança de uma coisa com o desejo dela, - a saudade (definição de Duarte Nunes) (1)».

E depois, «falando a sério!», Sérgio tem a coragem (ou a inconsciência) de escrever o seguinte dislate: «Houve com efeito muita saudade na literatura portuguesa; mas teve ela suas causas nas condições sociais dos idos tempos. Assentemos isso: tinha a sua razão de ser em condições que já passaram. Vocês teimam em ressuscitar o que não tem hoje condições de vida (2) ...».



A saudade, em suma, resultou dos «verdadeiros afastamentos»; havia a Índia, havia os conventos e havia os pais tiranos: «Esses duros casos bem reais impuseram o assunto aos Bernardins. Havia a autoridade absoluta, política ou familiar, que vinha lançar entre os amantes os Luíses da Silva e os Peros Gatos...».

E logo a seguir, paternalista: «Mas vocês juraram agora fabricar a saudade artificialmente, sem os ingredientes necessários: sem o rei absoluto e o pai tirano, sem o Convento e sem o Gato. É impossível, meus santinhos, é absurdo. A culpa não é minha, nem dos meus colegas estrangeiros: não fomos nós que destruímos essas coisas pavorosas (3)».

Quer dizer, António Sérgio fazia depender inteiramente o sentimento e a ideia da saudade de «causas sociais», as quais hoje não existem (4)»!

Na sua ânsia de destruir todo e qualquer traço mental, toda e qualquer posição intelectual expressores de «uma originalidade ou de uma identidade portuguesa», vê-se como Sérgio facilmente perdia a razão. Já não há condições sociais para ter saudade! Mas, passando do sentimento à ideia, estava já implícito afinal no saudosismo de Pascoaes muito da reflexão filosófica de signo fenomenológico-existencial e psico-ontológico mais tarde desenvolvida, não diremos já por um Afonso Botelho, entre nós, mas pelos pensadores galegos reunidos em volta da editorial Galáxia, como Rámon Piñero («P'ra unha filosofia da Saudade»), Garcia Sabell («La Saudade por dentro»), F. Elías de Tejada («La Saudade, desde una possible sociologia existencialista) ou Xesús Alonso Montero («Filodoxía e história cultural da verbo Saudade»).

Um só trecho, recortado, por exemplo, da obra de Ramón Piñero, o grande pensador de Santiago de Compostela: «Se a realidade, como acabámos de ver, é a intimidade radical do ser do homem, a sua singularidade constitutiva, no sentimento original dessa singularidade é onde podemos aperceber-nos da liberdade em toda a sua pureza ontológica. Portanto, a liberdade, apreendemo-la pelo sentimento da saudade. O sentimento original da saudade é o sentimento da nossa singularidade ontológica, ou seja, da liberdade essencial do ser do homem. Se o ser, por realizar a liberdade, se singulariza e se humaniza, a saudade é o sentimento dessa singularização, dessa humanização do ser, ou seja, da liberdade essencial» (5).

Mas Sérgio: «Quem é que vive principalmente na saudade! Os velhos, e os desgraçados a quem a morte levou uma pessoa muito querida. Ora, em ambos esses casos se nota, acompanhando sempre a saudade - o horror do novo, o ódio ao movimento, um protesto contra a lei da mobilidade e do devir» (6).

Sempre a mesma intenção redutora e diminutiva de qualquer coisa apontada como caracteristicamente portuguesa. Aliás, ao contrário do que afirmará Pascoaes, nem sequer o seria a seu ver a palavra saudade, visto que existiriam muitas outras semelhantes, como o romeno doru, o sueco saknad, o islandês saknaor, o catalão anyoranza, o galego soedades, etc, etc.


Álvaro Ribeiro


Na verdade não se compreenderá uma das linhas dominantes do polemismo sergiano, sem observar o seu deliberado a-portuguesismo, quando não por vezes anti-portuguesismo. Na sua já citada obra, Álvaro Ribeiro apontou pertinentemente e com a sua costumada objectividade esta característica do pensamento do autor dos Ensaios, escrevendo: «Nem o inconsciente colectivo, nem a etnia dos povos, nem a tradição, nem a intuição, nem a mística lhe pareciam dignas de figurar na escala empirista, experiencista ou experimentalista de um aristotelismo renovado ou actualizado.

«Pode dizer-se que António Sérgio não conheceu as características ou constantes da mentalidade portuguesa, ou, se as conheceu minorou-as e desvalorizou-as como vícios de povos inferiores ou subdesenvolvidas» (7).

E, logo a seguir, o autor de A Arte de Filosofar acrescentou uma reflexão fundamental: «Todos os defeitos atribuídos aos Portugueses, e vistos como causas das suas desgraças, não o são em si nem para a generalidade dos homens, pelo que podem os vícios ser dialecticamente transformados em virtudes, por alteração da escala de valores. O que interessa é considerar objectivamente as qualidades positivas ou negativas do povo português e reconhecer que, submetidas a métodos de educação válidos para povos de características diferentes, não floresceram no nosso tempo, como frutificaram em épocas remotas».

Não que Sérgio não pugnasse pelos cidadãos do seu país ou pelo progresso específico da sociedade portuguesa, mas fazia-o como por uma porção da humanidade, à qual lhe acontecera estar um pouco mais ligada pelo acaso e por laços de convivência e solidariedade. Mais: parecia-lhe que, para levantar os Portugueses, era preciso esvaziá-los da sua substância portuguesa, igualizando-os aos povos centro-europeus. É uma das facetas da sua preconizada reforma da mentalidade, uma convicção superficial porque se baseia na falsa dicotomia portugalidade-europeidade, ou portugalidade-universalidade. A verdade é que cada um dos povos europeus, ou dos povos de todo o mundo, tem a sua identidade e a sua originalidade que não são entre si irredutíveis, muito embora se possam e devam esbater os antagonismos para estabelecer o diálogo e a convergência.

Sérgio dizia: «Não, não me penso sob a categoria de nacional». E ainda: «perante um Espanhol ou um Escandinavo não me ocorre colocar-me como Português» (8).


(...) Um «polemismo caceteiro»


Jaime Cortesão, um grande espírito de historiador e de patriota, caracterizou um dia perfeitamente esse afã sergiano de corroer e por fim negar a própria identidade nacional, de refutar, de atacar ou de iludir o quid distintivo do povo português, ou da cultura portuguesa, ou da pátria portuguesa, escrevendo, a  propósito de um dos livros de Sérgio: «Como é um espírito de cultura e de tendência universalista, vá de zurzir o nacionalismo na arte e na educação, fazendo por vezes confissões lastimáveis e ultrapassando aquele meio termo que em muitos casos é a virtude por ser a verdade» (9).

E Jaime Cortesão definiu o polemismo caceteiro do «racionalista» Sérgio, sempre mais intolerante quando se tratava de refutar ou tentar refutar os que procuravam e defendiam os traços originais do homem português (fossem míticos ou étnicos, históricos ou psicológicos, filosóficos ou culturais): «António Sérgio é um apóstolo que prega à bordoada, e, quando por acaso vislumbra ideia que contrarie as suas, ergue do cacete e zás, trás, é um varrer de feira» (10).




O escritor e médico bem conhecido, prof. Abel Salazar, chegou mesmo a escrever, num artigo, «O bluff António Sérgio»: «É de tal ordem tudo isto que uma suspeita pode começar inquietando o espírito do leitor sobre a normalidade e equilíbrio mental do sr. Sérgio» (11).

A certa altura da sua polémica com Carlos Malheiro Dias, António Sérgio, ele próprio, confessou-se, aliás, «apaixonado e destrambelhado», muito embora convencido de que dominava perfeitamente esses defeitos - funestos sem dúvida para quem se pretende racionalista.

«Já lhe confessei - escreveu efectivamente na tréplica ao autor da Exortação à Mocidade - que realmente sou, por temperamento, apaixonado e destranbelhado; mas que procuro submeter à ordem, à inteligência e à harmonia, as manifestações temperamentais; e de tal maneira alcanço o fim, que dou, como ninguém nas nossas letras a impressão de serenidade, da imparcialidade e da justiça...» (12).

Relendo à distância as polémicas de Sérgio, é fácil verificar como ele se iludia completamente sobre si próprio e sobre a sua capacidade sublimatória; raras vezes o encontramos sereno, poucas imparcial e muito menos justo, sempre que embrenhado na luta de ideias com um dos seus contemporâneos. A expressão de Jaime Cortesão - «um apóstolo que prega à bordoada» - é a que, sem dúvida, melhor o define.

Há em António Sérgio muito do fanatismo islâmico, persistente no carácter nacional; aliás (e talvez seja uma das chaves da sua personalidade), a concepção do «uno unificante», que subjaz à sua campanha contra os traços mais característicos da psicologia ou da cultura portuguesas (esses traços «intraduzíveis» e irredutíveis a vago conceito unissociológico do homem), confere muito bem com o monoteísmo maometano, zeloso e apaixonado, uniformizador e simplificador, e que é, no fim de contas, uma doutrina de exclusivista unificação religiosa e social (sem trinitarismo e suportando mal os pluralismos), pela obediência aos preceitos rigorosos do Profeta e aos princípios programáticos do Corão.

Sérgio viu-se, no fundo, como um «imã» ou um «mulah» do «uno unificante», mas, claro, sem Deus e sem transcendência, a não ser, talvez, nas profundidades desse inconsciente onírico e mítico que o seu claro e contraditório «racionalismo» sempre quis ignorar...

Mas no plano cultural, António Sérgio foi sobretudo um homem do século XIX, desesperado e impaciente no século XX, um idealista abstracto sem esse sentido do ser-aqui (Heidegger), da circunstância (Ortega y Gassett), da situação (Sartre), do concreto (Gabriel Marcel) ou da estrutura cultural (Lévi-Strauss), que caracteriza o múltiplo movimento existencial, fenomenológico, vitalista ou estruturalista do pensamento moderno.

Porque o versus unum do único universalismo viável é o que passa pelo concreto do homem situado, do homem na sua circunstância e na sua estrutura cultural, na correcção necessária dos idealismos em que um Antero ou um Sérgio beberam a sua distanciação e a sua incompreensão da fenomenologia psico-social do homem português.

Ortega y Gassett

Pretender atingir a universalidade pela eliminação ou o menosprezo do que distingue as culturas, nos seus diferentes níveis de profundidade, desde o mítico ao linguístico e ao filosófico, é uma operação abstractiva, redutora e esterilizante.

Contemporâneo de António Sérgio, mas muito mais moderno no seu pensamento, dizia Ortega y Gassett, em 1914, no seu primeiro livro, Meditaciones del Quijote: «Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo a ela não me salvo a mim» (13). Ou ainda: «Na realidade só existem partes; o todo é a abstracção das partes e necessita delas» (14). Ou também, agora a propósito da realidade espanhola: «Um povo é um estilo de vida e, como tal, consiste em certa modelação simples e diferencial que vai organizando a matéria em seu redor». Mas sucede que, quando «causas exteriores desviam da sua ideal trajectória esse movimento de organização criadora em que se desenvolve o estilo de um povo, o resultado é o mais monstruoso e lamentável que se pode imaginar. Cada passo de avanço nesse processo de desvio soterra e oprime mais a intenção original, envolvendo-a numa crosta morta de produtos fracassados, torpes, insuficientes. Cada dia esse povo será menos do que devia ter sido» (15).

No saudosismo e no sebastianismo, sejam quais forem as suas facetas negativas, há a consciência do desvio e o desejo de regeneração da identidade em perda de substância, enquanto, ao contrário, os estrangeirados e os pensadores afins, como António Sérgio, pretendem avançar cada vez mais aceleradamente no que Ortega chama «o processo de desvio».

Nunca compreenderam Sérgio e os seus herdeiros o que viria a ser a doutrina da própria UNESCO, expressa lapidarmente pelo notável pensador e etnólogo estruturalista Claude Lévi-Strauss na obra encomendada por aquela organização e que intitulou Raça e História: «A civilização das culturas, cada uma preservando a sua originalidade» (16). Aliás, «a verdadeira contribuição das culturas não consiste na lista das suas invenções particulares, mas na distância diferencial que oferecem entre si...» (17).

(In Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, Guimarães Editores, 2001, pp. 275-285).


Notas:

(1) De «Epístola aos Saudosistas», de António Sérgio, in A Águia, vol. IV, Porto, 1913, pp. 97-98.

(2) Ibid, p. 98.

(3) Ibidem.

(4) Ibidem.

(5) De «P'ra unha filosofia da Saudade», de Ramón Piñero, in La Saudade, Vigo, Ed. Galáxia, 1953, p. 39.

(6) In «Epístola aos Saudosistas», loc. cit.


(8) António Sérgio, prefácio ao livro O Mundo que o Português Criou, de Gilberto Freyre, Lisboa, Livros do Brasil, s. d., p. 10.

(9) Jaime Cortesão, crítica à Educação Cívica, de António Sérgio, in A Águia (Maio de 1915), p. 211.

(10) Ibidem.

(11) In Sol Nascente, n.º 22, de 1-1-1938.

(12) António Sérgio, Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a Questão do Desejado, Lisboa, Seara Nova, 1925, p. 11.

(13) Ortega y Gassett, Meditaciones del Quijote, Madrid, Revista de Occidente, 3.ª ed., 1956, p. 18.

(14) Ibid., p. 17.

(15) Ibid., p. 79.

(16) Claude Lévi-Strauss, Race et Histoire, Paris, Gonthier, 1965, p. 77.

(17) Ibid., 76.

Continua

domingo, 12 de maio de 2013

O magistério de António Sérgio (ii)

Escrito por Álvaro Ribeiro 




Praça do Marquês de Pombal (Lisboa Antiga).




«... Face ao movimento iniciado pelo Diário de Notícias, para levantamento de uma estátua ao Ministro josefino (estátua essa só inaugurada em 1934, em pleno Estado Novo), Sérgio considerou esse movimento um sinal de desorientação política, pois eram os liberais, e em nome da Liberdade, que ousavam uma iniciativa destinada a celebrar "o mais repelente tirano", "espostejador do clero, nobreza e povo". Um retrato impiedoso, a memorar aqueloutro, traçado pela inimitável pena de Camilo Castelo Branco: "Sou maniqueu por causa de Sebastião José... a maior calúnia que se pode assacar a um Ente Perfeito é imputar-lhe a criação do homem", quer dizer, a criação do Marquês!».

Pinharanda Gomes («A "Escola Portuense"»).


«...O meu ódio, grande, entranhado e único na minha vida, ao marquês de Pombal, não procede de afecto ao padre nem do desagravo da religião: é por amor ao homem. A religião da dogmática infalibilidade do papa que decretou a extinção da Companhia de Jesus, não merece que a gente se esfalfe e indisponha por conta dela, nem tem um sério direito a queixar-se do marquês de Pombal, cujas pretensões, penso eu, não chegaram até à infalibilidade. O Ministro, caluniando, matando e expulsando o jesuíta a pontapés, num ímpeto de perversão, é menos repreensível que Clemente XIV abolindo a Companhia depois de consultar o Espírito Santo. É o que nos diz a Bula Dominus ac Redemptor noster.

A Democracia decerto repele o meu livro da sua estante de história e não lhe dará sequer a importância de o ler. Quanto a refutá-lo, a Democracia não gosta de ilaquear as suas teorias abstractas nas redes da pequena história, feita das malhas dos argumentos cediços. Ela tem uma ideia, um simbolismo a que chamou marquês de Pombal, adulterando-o até às condições fabulosas do mito. Ora, eu escrevo de um homem a quem chamo déspota. Isso que aí passeou nas ruas foi um Pombal de romance, como o de Clémence Robert. A realidade dos factos foi sacrificada a uma bandeira que lhe emprestaram. Puseram esse manequim diante do povo português - o mais rústico povo da Europa. Vão lá dizer a um concierge que o cardeal de Richelieu iniciou a liberdade da França!».

Camilo Castelo Branco («O Perfil do Marquês de Pombal»).

 
«... Fechada no formalismo a que reduziu a modalidade, a nossa literatura é o abrigo dos preconceitos sociais dominantes. É esclarecedor verificar que a quase totalidade dos nossos escritores são recrutados na pequena e média burguesia e, ao mesmo tempo, de formação universitária. Tal origem social e tal formação cultural definem as mentalidades mais sensíveis a reflectir toda a espécie de preconceitos.
Por um lado, a pequena e média burguesia é uma classe de transição; transição entre o pavor de cair no proletariado sempre sujeito a largos períodos de pobreza e miséria e que está paredes meias com ela, e a ambição de, pelos acasos da fortuna ou prémio do honesto esforço em que o bacharelato é o primeiro passo, ascender à burguesia estável cuja segurança inveja e cujos costumes admira e imita.

Por outro lado, a formação universitária dá-lhes o que lhes pode dar uma instituição que, sem possuir entre nós nem tradição nem actividade científica que vá além de uma superficial a pretensiosa função repetidora se veio fazendo a herdeira de todas as limitações ao desenvolvimento intelectual e de todas as proibições de informação cultural e científica ancestralmente atribuídas a organizações que, no progresso de actualização, as vieram abjurando, como as do ensino e da censura eclesiástica.

O escritor português limita assim as suas virtualidades - e disso dá a nossa literatura, especialmente a novelística e a poética, amplo testemunho - a exprimir o pavor pela vida de pobreza e miséria do proletariado e a repugnância pelos consequentes costumes e moralidade, pavor e repugnância que ele ilude ou sublima mas não consegue ocultar ao observador atento, nas canções doces das descrições rústicas, na elegia dos tempos passados, no estilo forte dos quadros de miséria, na imitação da retórica da burguesia estável tipo «este bom povo da nossa terra», na veemência de um socialismo falso e abstracto de ideal humano, universal, e fraterno, denunciador de todas as injustiças sociais.

Sobre tudo isto, pesa o bacharelato universitário, com a formação que deu ao escritor fixando-o intelectualmente, e a possibilidade efectiva de um emprego burguês, uma vida burguesa.

Nada, pois, mais apto, na origem e na formação, ao domínio dos preconceitos e dos formalismos. Nada pois mais fácil do que verificar a observação, atribuída a António Sérgio, de que "em Portugal, a classe mais estúpida é a dos intelectuais". Antes de António Sérgio, bem o sabiam os poderosos, os ricos, os triunfadores, que entre nós há muito se riem da função libertadora que há quem teime em atribuir à intervenção da cultura na consciência social. Tão grande é, neste aspecto, a debilidade dos nossos escritores, tão radical é neles a ausência do modo de definir o possível e exprimir o real, que basta uma simples instituição de censura para lhes impedir completamente, como eles mesmos o declaram, qualquer intervenção desse tipo».

Orlando Vitorino (prefácio in Stuart Mill, «Ensaio sobre a Liberdade»).





António Sérgio manifestou predilecção pelos filósofos que contribuíram para a derrocada da Escolástica, especialmente por aqueles que publicaram ensaios sobre a reforma do entendimento ou do intelecto. Não lhe eram desconhecidos os meandros de uma investigação levada a efeito por pensadores franceses, ingleses e alemães da ordem dos Descartes, Malebranche, Bacon, Hobbes, Locke, Leibniz, Espinosa, Berkeley, Hume, Kant. Aceitando o contributo com que cada um deles revogava aspectos da mentalidade medieval, não tomava consciência de que ia assim derruindo as bases do verdadeiro racionalismo.

António Sérgio, que se revelou profundo admirador de Descartes, aconselhava aos seus leitores a aceitação dos quatro preceitos do Discurso do Método: - desprezo do trívio (gramática, retórica, dialéctica), exaltação do quadrívio (aritmética, geometria, astronomia, música). Iria assim a cultura portuguesa regredir a princípios formulados em 1637, data que convém fixar com a de 1640, aproximação nocturna de um dos acontecimentos mais importantes da moderna História de Portugal. A sincronia permite dar subtil interpretação ao novo rumo da cultura.

A metodologia cartesiana iria a pouco e pouco corroendo o ensino do trívio escolástico pela infiltração dos quatro preceitos cépticos. «O primeiro, consistia em nunca aceitar como verdadeira qualquer cousa, sem a conhecer evidentemente como tal, isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; não incluir nos meus juízos nada que se não apresentasse tão clara e tão distintamente ao meu espírito, que não tivesse nenhuma ocasião para o pôr em dúvida» (5). Este preceito é meramente negativo, pois aconselha a excluir o que não pode ser assinalado por entendimento.


Renato Descartes


Tal fórmula, vulgarmente desacompanhada de outros preceitos, afigura-se perigosa em sua divulgação. Esta é a recusa a tudo quanto surja de novo, de imprevisto, de inédito, condenação taxativa da crença metódica, tão própria da filosofia ibérica. Ela permite que o experiente diga ao inexperiente, o velho ao novo, o douto ao ignaro, o mestre ao discípulo: «Não acredite nisso».

Esta fórmula, em sua aplicação ousada, leva a negar a realidade, ou a existência, de fenómenos historicamente comprovados por testemunhas, fenómenos tais como prodígios, maravilhas ou milagres; leva a considerar as tradições como superstições; leva a excluir os fenómenos psíquicos de notação inconsciente ou irracional. Forçosa é a influência da analítica cartesiana, segundo a qual o simples é o antecedente e o composto o consequente, que leva a formular o princípio de dedução cronológica, abusivamente aplicado a todas as regiões da realidade (matéria, vida, alma, espírito), e que transita das ciências da natureza para as ciências da história, numa sistematização escolar que não concorda com a realidade. Tal como no livro de Amorim Viana, nota-se nos livros de António Sérgio séria repercussão da doutrina que Kant expôs e defendeu no opúsculo sobre A Religião nos Limites da Razão Pura (1793).

Verdadeiro iluminista, António Sérgio observou que o maior defeito do povo português seria metaforicamente a cegueira ou eticamente a inveja, enfim, o não poder ver. Este defeito informa uma nação fratricida ou suicida, como bem sabem os bons conhecedores do povo, chamados demagogos ou pedagogos. Acontecia, porém, que a medicina do iluminismo cartesiano, exterior às motivações profundas da psique humana, não era a mais indicada para restaurar as boas qualidades do povo português.

António Sérgio excitou a opinião política dos estudantes universitários com modos de preconizar a reforma da mentalidade e por fazer a respectiva campanha em todos os domínios da literatura. Analisada a expressão obscura de reforma da mentalidade, que não resiste à primeira diérese, vê-se claramente que essa utopia ocultava antes de mais o problema da cultura e da reforma didáctica, a instrução e a educação, enfim, as ciências chamadas pedagógicas, segundo a orientação de Proudhon que associava a pedagogia com a demagogia, ou a demopedia. António Sérgio pretendia que os intelectuais portugueses deveriam recuperar o tempo perdido, já que a decadência dos povos peninsulares parecia explicável pelo seu isolamento, quer dizer, pela nossa fixação anacrónica na cultura medieval durante os séculos em que se formou a mentalidade moderna.






Esta persistência da Escolástica, e dentro da Escolástica o aristotelismo, combatido por uma linha de pensadores que vai de Francisco Sanches a Luís António Verney, e também de Amorim Viana a Sampaio Bruno, pareceu sempre como um enigma irritante a todos quantos não compreenderam a peculiaridade mental dos povos ibéricos. A Escolástica existe pela conciliação escolar do texto morto, mas sagrado com a tradição viva e livre É também a conciliação da ordem religiosa com a ordem filosófica no problema de Deus, modo monárquico ou mono-árquico, de assegurar a liberdade de pensamento e, consequentemente, as liberdades adjectivadas.

Desviados da linha medieval, erraram os escolásticos modernos quando aplicaram à Física de Aristóteles o canon de escrituras sagradas, lendo como texto perene os livros que haviam resultado de sérios processos de observação e experimentação naturais. A obra lógica, ética e metafísica de Aristóteles permaneceu válida nas suas linhas essenciais e resistiu a todas as críticas impertinentes; assim o entenderam os componentes do escol nos povos peninsulares; mas seja-nos permitido afirmar que a interpretação portuguesa da filosofia de Aristóteles é superior à interpretação alemã. Lida directamente, e não através de comentadores que adaptaram às circunstâncias contingentes e às oportunidade pretéritas, a obra de Aristóteles refulge no brilho do seu pensamento essencial, e continua a ser saudada por quantos actualizam a sua cultura.

António Sérgio não atendeu, talvez, a que a evolução do homem ou o seu progresso, é uma resultante do tempo ou da experiência, na medida em que a Natureza, a História ou a Sociedade se distinguem por exterioridade e mostrou-se por isso infiel ao racionalismo clássico, segundo o qual só aperfeiçoando a razão é que se diginifica e eleva o homem. Tal é a lição da Fenomenologia do Espírito, réplica admirável à Critica da Razão Pura, teoria sagrada da essência e a da existência de Deus. Esse aperfeiçoamento da razão humana faz-se pelo escalonamento de tríades em aproximação da razão divina, e Hegel imaginou ter mostrado esse termo quando concluiu o seu Sistema de Lógica.

A verdadeira reforma da mentalidade consistiria em dar entendimento, ao intelecto, à inteligência maior abertura para a compreensão do que a doutrina clássica pretendia excluir, a qual, diminuindo em sensismo humanista a estesia que Aristóteles doutrinara nos seus tratados da alma, negava as qualidades segundas cujos adjectivos variam de língua para língua com a subjectividade semântica da Torre de Babel. A reforma da mentalidade aparece esboçada por Leibniz, mas só viria a ser realizada por Hegel no seu sistema que por isso foi caricaturalmente designado de panlogismo. Depois de Hegel ter ensinado a sua lógica puderam os filósofos ver que a razão era animada de maiores articulações compreensivas, puderam desenvolver os estudos sobre o inconsciente, enfim, levar muito mais longe do que Descartes o esforço de racionalização (6).






António Sérgio observava que as correntes anti-intelectualistas que iam surgindo na doutrinação cultural da Europa em pleno século XX traziam consigo uma terrível ameaça política, pois iriam conceder ao sentimento e à vontade o poder de conduzir os povos, o que resultava na exaltação expressiva dos pedagogos e na invocação inoportuna aos demagogos. O pensador previa que, de invocar o sentimento ou a vontade, o povo legitimaria o uso grosseiro da força ou o abuso terrível da violência, seria ludibriado pelos seus mentores improvisados, exaltaria o poder forte e executivo que de tudo abusaria perante a paralisação do poder judicial, representante político da inteligência cartesiana. Coerente com o seu intelectualismo, defendia a representação parlamentar dos conflitos sociais, o respeito pelas liberdades fundamentais que estavam prescritas na constituição política, preconizava a formação de um escol na governação pública, tinha por ideal a Monarquia.

A formação de um escol, ou de uma aristocracia, era para António Sérgio o primeiro problema ou, seja, o problema da Pátria. Tão certo é que, onde não há um escol nacional domina necessariamente um escol estrangeiro, por eleições astuciosamente falsificadas ou por ostensiva ditadura internacional. Nas condições contemporâneas de recrutamento do escol, António Sérgio foi considerado um teorizador da razão burguesa, ou do racionalismo burguês (7).

Efectivamente, nunca António Sérgio se mostrou defensor do ímpeto popular ou plebeu que movimentou a Revolução Francesa. A sua colaboração efémera no grupo dos Homens Livres foi a prova do seu idealismo. Sobre o ensaísta recaía a dúvida se era um aristocrata ou um democrata, um individualista ou um socialista, um ateu ou um cristão, pois esquivava a resposta às perguntas directas, e assim o seu democratismo e o seu cristianismo apareciam como prudentemente depurados pela razão judiciosa, como que desligados das raízes sentimentais, instintivas e inconscientes a que os doutrinadores românticos os ligavam.

A clareza de expressão e a clareza de pensamento, defendidas por António Sérgio, entusiasmavam os leitores dos Ensaios. A exposição clara do já conhecido, ou já pensado, não é mérito nem virtude de ordem superior. Pensar é mover a razão em progresso para o desconhecido, o obscuro, o inacreditável. Não pode o racionalista excluir factos, afastar hipóteses, relegar mistérios, porque a razão nunca é antitética ou exclusiva mas sempre tética ou conclusiva.

Em seu racionalismo estreito, António Sérgio dogmatizava e didactizava ao criticar a loucura, a heroicidade e o crime com os argumentos inadequados da razão prática, isto é, situando a ética, a moral e a política, no lugar que conviria à inteligência. A razão, ao chegar às suas fronteiras, tem que mudar de linguagem, ou usar de diplomacia, e assim vemos que entre o classicismo e o romantismo deslizou sem crítica o barroquismo de estilo e de pensamento. A tradução é por isso o elemento imprescindível da conversa, e a obrigação de mudar de linguagem não significa de modo algum a derrota do princípio expansionista da máxima racionalização.

Acontecia, por isso, que quando António Sérgio se abalançava a tratar de problemas que não eram próprios das épocas clássicas, mas que surgiram depois dos tempos modernos, já o seu pensamento e a sua expressão não logravam a diáfana claridade helénica. Em muitos escritos se lamentou António Sérgio de não ter sido perfeitamente entendido, e por várias ocasiões se sentiu obrigado a entrar em polémicas. Ora o escritor que não consegue ser entendido por aqueles que considera culturalmente seus pares, muito menos será entendido por aqueles sobre os quais se propõe exercer uma influência didáctica e educativa.


A celebração do centenário da morte de Hegel, ocorrida em 1832, deu motivo ao incremento de novos estudos sobre o genial pensador alemão, tanto mais que a sua última obra, Princípios da Filosofia do Direito, voltava a merecer a atenção de juristas, políticos e economistas. Era o momento propício para rever a posição de racionalismo, que atingindo pela obra de Hegel o máximo esplendor da argumentação favorável à existência de Deus, decaíra perante as invectivas do irracionalismo que surgia na crise da Europa. A doutrina social, de ateus e cristãos que pretendiam transformar o mundo, estava coberta por várias modalidades de pragmatismo que afastavam o homem do livre, gratuito e superior exercício de filosofar.

António Sérgio nunca deu provas suficientes de haver estudado, e muito menos de aceitar, a lógica de Hegel. Nos seus vários ensaios sobre Antero de Quental e Oliveira Martins, personalidades que muito admirava, e nos seus estudos sobre o socialismo de Proudhon e Marx, deixa apenas entender que estudou o hegelismo através de interprétes mais ou menos suspeitos. Assim não meditou os estádios da razão estática, cinemática e dinâmica do pensador alemão, ao qual, porventura acusava de romantismo.

A Lógica de Hegel é a mais sublime tentativa de integração no racionalismo dos três estados sucessivos - tese, antítese e síntese -, na movimentação dos conceitos. A tendência para discernir o que há de significação espiritual nos dados da sensação, da percepção e da imaginação levou o pensamento de Hegel a actualizar a filosofia com todas as conquistas da ciência do seu tempo. Dirigida contra as pretensões abusivas da vontade (Fichte) e do sentimento (Shelling), a filosofia de Hegel é firmemente teorética, e contra ela se volvem todos quantos dão prevalência à acção social sobre o pensamento especulativo.

António Sérgio preferiu filosofar na distância que vai de Platão a Descartes e de Descartes a Kant. Excluiu o que os grandes sistemas clássicos costumam excluir: um dos termos contrários, o tempo, a aparência, a ilusão. Nem o inconsciente colectivo, nem a etnia dos povos, nem a tradição, nem a intuição, nem a mística lhe pareciam dignas de figurar na escala empirista, experiencista ou experimenticalista de um aristotelismo renovado ou actualizado.

Pode dizer-se que António Sérgio não conheceu as características ou constantes da mentalidade portuguesa, ou se as conheceu minorou-as e desvalorizou-as como vícios de povos inferiores ou subdesenvolvidos. Todos os defeitos atribuídos aos Portugueses, e vistos como causas das suas desgraças, não o são em si nem para a generalidade dos homens, pelo que podem os vícios ser dialecticamente transformados em virtudes, por alteração da escala de valores. O que interessa é considerar objectivamente as qualidades positivas ou negativas do povo português, e reconhecer que submetidas a métodos de educação válidos para povos de características diferentes, não floresceram no nosso tempo como frutificaram em épocas remotas.

Aliás o escrutínio e a recensão dos vícios característicos da mentalidade portuguesa, que urgia reformar, dão-nos a balança de extremas tensões de medianas virtudes que conviria conservar. No aspecto teórico como no aspecto prático, o que importa não é eliminar a Natureza, num ritual de purificação que tem seu símbolo no fogo, mas proceder segundo o conselho de Bacon, obedecer-lhe na medida indispensável ao superior domínio da Arte. Ora tal só pode ser feito pela educação, e até aqueles estudiosos que no povo português só vêem virtudes e boas qualidades, não se recusam a dizer que de todos os europeus seja talvez o mais mal educado, isto é, que não foi recebendo ao longo dos séculos a cultura veraz de actualizar as suas possibilidades infinitas.






Havia, na atitude de António Sérgio, no raciocinar a partir de ideias claras, distintas e separadas, como que a tendência voluntarista para tudo submeter a esquemas prévios; mas assim manifestava a obstinada incompreensão do movimento psicológico que procede sempre da Natureza para a Arte, da noite para o dia, do obscuro para o luminoso e consequentemente a incompreensão do descobrimento histórico, o que o levou a desvalorizar a maioria dos heróis portugueses. Foram os reis de Portugal, desfigurados e vilipendiados em obras de Oliveira Martins, Teófilo Braga e Júlio Dantas, que davam consentimento a escritos menores de diversos panfletários, mas o mesmo ataque estendia-se aos príncipes e a todos os titulares da nobreza, do que resultaria necessariamente a indignação reaccionária dos seus representantes na actualidade, os homens da batina, da capa e da espada. Essa atitude tornou-se evidente quando no justo combate a uma revivência do sebastianismo, António Sérgio se excedeu a julgar a política de D. Sebastião, o que provocou a réplica e a tréplica de quantos académicos estavam interessados na apologia dos reis e consequentemente da realeza, mas suscitou também a antipatia de outras individualidades nacionalistas não subordinadas a determinados tipos de instituições pretéritas. Habilitado, porém, com aquela propedêutica trivial que antecede os estudos filosóficos, quer dizer, habilitado pela gramática, dialéctica e retórica a discernir os paralogismos escritos pelos seus adversários, António Sérgio era o vencedor de quantas polémicas conduzia segundo o racionalismo francês do século XVIII.

A literatura historicista que António Sérgio criticou na revista Lusitânia representava, todavia, a perplexidade de um povo que havia esquecido a sua razão de ser, a sua origem e a sua independência. José Leite de Vasconcelos, Mendes Correia e Damião Peres procuravam em vão, esclarecer e resolver positivamente um problema teológico-político, segundo a expressão de Benedito Espinosa. A historiografia, sendo a expressão do anacronismo, ao inserir a tradição nas fórmulas linguísticas e nos modos de pensamento de novos leitores, adultera inevitavelmente a verdade.

Na gradual desvalorização das figuras nacionais, que realizou nos sucessivos volumes dos seus Ensaios, segundo um critério anti-romântico de desmistificação integral, António Sérgio foi desenhando uma interpretação economista da História de Portugal, alicerçada aliás em documentação fidedigna, mas, incorrendo no anacronismo de atribuir pragmática inteligência a um povo que se movia por fanatismo obstinado, transmitiu aos seus leitores o consentimento para o materialismo histórico. Apoiando-se na doutrinação de António Sérgio, alguns escritores consideravam como obstáculos ao progresso cultural, político e social muito de quanto a tradição histórica e a diferenciação regionalista continuavam a manter entre nós, e de aí concluírem ser indispensável, antes de mais, destruir quanto nos torna diferentes dos outros povos peninsulares, europeus e americanos. A unificação internacional dos meios de cultura facilitaria essa demolição, depois da qual se pensaria então em construir a sério a nova sociedade ou o novo mundo, adiamento cómodo que dispensa de pensar o que conviria para já fazer.

Assistiu António Sérgio ao sucessivo aparecimento de vários escritores marxistas que se dedicaram à chamada tarefa de revisão histórica e à divulgação dos respectivos resultados em termos de ensino liceal. O novo escol doutrinado a contradizer o velho critério do ensaísta, libertar-se-ia de preconceitos nacionalistas, mas seria, afinal, por sua vez guiado por mentores ou monitores ultrapireneicos, tanto aqueles que de longe nos enviam os livros e os ofícios, como aqueles que chegam até nós para exibirem a sua luzida e polida mediocridade. A pedagogia de António Sérgio, pela reforma de mentalidade, não lograva libertar os Portugueses de outra modalidade de demagogia.

Deve-se, portanto, a António Sérgio a tendência para depreciar os valores nacionais, não só os históricos mas também os presentes, analisados à luz de uma crítica fria. Este juízo sobre a existência ou a situação, facilitou aos discípulos a formação de tropos severos e adversos à Patria. Assim qualquer plumitivo pôde passar a dizer que os Portugueses eram incapazes de se governar bem, de promover as técnicas industriais e as técnicas educativas, de formar uma cultura própria, incapazes, como eram, de cultivar certos géneros literários, como o romance, o teatro e o ensaio, enfim, adversários ou inimigos do Espírito.

Pensador profundamente sério, culto e ágil, António Sérgio realizou uma útil crítica filosófica às doutrinas que a moda trouxera do estrangeiro ao nosso país, e fundamentou-se na dialéctica dos princípios firmes, fortes e tradicionais. No nosso ambiente literário, artístico e político, António Sérgio é ainda hoje invocado e citado pelas felizes observações de crítico, compositor, divulgador, e letrados há que o julgam o primeiro nosso pensador original. Neste aspecto, a valorização de António Sérgio como único mestre de filosofia transgride os limites do razoável, porque além do mais significa ignorância da História de Portugal.






Temos de enfrentar sem receio à verdade de que, no século XX, Portugal assistiu ao aparecimento de filósofos vários que pretenderam renovar todos os ramos da cultura. Jornalistas, historiadores, literatos, políticos e eclesiásticos uniram-se como adversários de quantos pensadores ilustres ousaram abrir caminhos novos ao advento do Espírito, e a derrota oficial da filosofia portuguesa caracteriza o drama intelectual da nossa centúria. A posição de António Sérgio ficará, na determinação deste movimento, a ser um marco talvez tão notável como a profecia de Fernando Pessoa, o qual, ao anunciar o advento do Super-Camões, não fazia mais do que exaltar a sua original interpretação do transcendentalismo panteísta (in ob. cit., pp. 96-107).


Notas: 

(5) Renato Descartes, Discurso do Método e Tratado das Paixões da Alma, tradução, prefácio e notas pelo Prof. Newton de Macedo, Lisboa, 1938, p. 22.

(6) George Lukacs, La Destruction de la Raison (Die Zerstörung der Vernunft), Paris, 1958-1959.

(7) V. de Magalhães Vilhena, António Sergio. O Idealismo Crítico e a Crise da Ideologia Burguesa, Lisboa, 1964.