Escrito por António Quadros
«A empresa, ou movimento intitulado "Renascença Portuguesa" foi criada para actuar pelo pensamento e pelo sentimento com vista à reconstrução da vida política e social da Nação Portuguesa. A crise instaurada pela mudança de regime, mudança essa efectuada por militares, sem prévio conhecimento da vontade comunitária, levou diversos sectores da vida portuguesa, sem experiência partidária, à procura das vias alternativas. Católicos, enquanto tal, monárquicos, independentes, cidadãos desencantados (hajamos em vista o ascético Basílio Teles e o messiânico Bruno) entregaram-se, uns mais, outros menos, ao exercício que alguém [Henrique Barrilaro Ruas] já designou de "política experimental", todos com fontes comuns. A leitura dos objectivos renascentistas achou diversas interpretações, estando claro que o primeiro manifesto, sujeito a controvérsia, por diferença de posições intelectuais de Lisboa e do Norte, acabou por ser redigido por Pascoaes, sem o unânime assentimento dos fundadores, pelo que uma tensão doutrinal se instalou no movimento desde os primeiros dias, atingindo-se a raia de, os de Lisboa, caricaturizarem a empresa sob o epíteto de uma firma, "Pascoaes & C.ª", corroborando, afinal de contas, o predomínio da linha mental pascoalina no movimento. Há lugar para se antepor o confronto de um par de propostas antagónicas: sergismo versus pascoalismo, a breve trecho personalizado em sergistas e pascoalistas, e leonardistas, esta porventura mais extensiva após a fundação do segundo modernismo, e na opção mental da revista Presença.
A "Renascença Portuguesa", não obstante, avançou, mas o vírus tensional permaneceu activo, nem Sérgio nem Proença desistindo dos seus propósitos, defendendo um activismo imediatista, pragmático, dirigido ao concreto, ao real social em contraste com o mediatismo teorético, poético e especulativo, assumido pelos mais distantes do pragmatismo e mais próximos da inteligência poética e filosófica de Pascoaes, Leonardo Coimbra incluído, e patente no modo singular na revista A Águia, pois o jornal A Vida Portuguesa, (verdadeiro orgão da "Renascença Portuguesa"), conseguiu, em suas páginas, melhor convergência pragmática, graças ao sentido prático de Álvaro Pinto, o gestor empresarial do movimento.
Ignoramos que fortes motivos levaram as partes a tão frontal desacordo, pois no contexto do manifesto há espaço para se dar a voz aos poetas e aos práticos, desde que uns e outros não tenham a soberba de se anularem ou absorverem. Não obstante, o vírus inicial foi cultivado, e Sérgio recusou contemporizar com o tom romântico e passional que Pascoaes imprimia ao movimento, com a falta de um projecto político objectivo e instaurável, e também com a orientação eclesiológica de Pascoaes, apetente de uma "igreja lusitana". Embora cada vez mais as posições sergistas se abonassem da diferença em relação às pascoalinas, o episódio de 1913, que opôs Sérgio a Jaime Cortesão, aumentou o esfriamento. De facto, recensionando o ensaio Educação Cívica, Jaime Cortesão dissentiu das teses de Sérgio quanto ao ensino da História Pátria, mas Sérgio não gostou, replicou com "bordoada"...) e perdeu algum apoio a Norte. O processo de corrosão é progressivo, acha-se descrito em diversa bibliografia, mas há coincidência de juízos quanto ao factor decisivo, que veio a ser a polémica Pascoaes/Sérgio por causa da Saudade e do Saudosismo...».
Pinharanda Gomes («A "Escola Portuense"»).
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Casa de Pascoaes
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«É a crédito de António Sérgio, sem dúvida, que tenha recusado na forma a hipertrofia do Estado e a ditadura política de um homem, de uma oligarquia, de um partido ou de uma classe. Mas, no fundo, o que tentou conseguir foi um igualitarismo intelectual e social de tendência implicitamente massificante, embora por outro método, que não o do poder militar ou policial; antes pelo que podemos classificar como um método polémico-racionalista levado aos extremos de um terrorismo intelectual, ao serviço da sua revolução cultural ou da sua reforma da mentalidade.
Neste ponto, tem paralelismos evidentes com Gramsci. Sérgio terá sido um Gramsci democrático e não-comunista, considerando igualmente que de pouco serve alterar as estruturas sociais e económicas sem alterar primeiro a mentalidade, sobretudo das classes cultas».
António Quadros («Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista»).
«Fazer passar António Sérgio por um "Gramsci democrático e não-comunista" é, no mínimo, um contra-senso. Por outras palavras, equivale a não ver o abismo incomensurável entre uma reforma da mentalidade e uma ideologia totalitária concentrada na conquista imperceptível do poder. A estratégia gramsciana é, portanto, uma estratégia revolucionária que não olha a meios para fazer dos democratas, intelectuais, jornalistas, cineastas, pedagogos, músicos e outros mais uma peça-chave apta a fazer vingar a propaganda marxista discretamente orquestrada. Que o diga Olavo de Carvalho, em A Nova Era e a Revolução Cultural».
Miguel Bruno Duarte
«A partir do fim da II Grande Guerra, a Seara Nova deveio o que António Sérgio não previra, uma correia de transmissão das organizações socialistas e marxistas. Pergunta de Sérgio: "... porque é que uma revista como a Seara Nova veio a dar no contrário do que foi outrora?!....».
Pinharanda Gomes («A "Escola Portuense"»).
«Sob o ponto de vista político, a "Seara Nova" enfileirava-se na extrema esquerda da República Radical; sem ser jacobina (pelo menos sempre assim se exprimiram os seus colaboradores), os seus esforços dirigiram-se para a transformação do regime, no sentido das mais avançadas aspirações».
Miguel Spinelli («A Filosofia de Leonardo Coimbra»).
(...) A polémica com Teixeira de Pascoaes sobre o saudosismo
No seu polemismo, principiava por tentar desconcertar o adversário, baseando-se num pretenso
senso comum ou numa, chamada assim,
sabedoria das nações, para o colocar na situação de um pobre diabo iludido e sentimental e para apontar comiseradamente ao leitor até onde podia chegar a patetice mental dos Portugueses. Nesta primeira fase, de tartufo, Sérgio punha sempre luvas brancas, prodigalizava elogios aos aspectos mais superficiais ou marginais da obra do acusado, lamentava-se mesmo do papel antipático que se via obrigado a desempenhar; mas era em nome da razão, do ideal cívico, da inteligência enfim. O leitor tinha de compreender que, se não raro resvalava para a troça, para o riso, para o escárnio, era porque, com mil diabos! há limites para o absurdo...
Só que, quanto a razão e inteligência, nem sempre abundavam do lado de Sérgio!
Tomemos como exemplo a sua polémica com Teixeira de Pascoaes a propósito do saudosismo. Não chegou à violência, não só porque na sua réplica Pascoaes demoliu as superficiais alegações de Sérgio, mas talvez ainda porque o autor dos
Ensaios não quis hostilizar demasiadamente o director da revista (
A Águia) onde colaborava, e que era um grande poeta.
Aprecie-se esta peça de antologia da ironia sergiana:
«... foi maravilha de espantar que Duarte Nunes e Pascoaes se lembrassem de a definir [a saudade] em termos de vontade e representação. O resultado é que estas definem, não a saudade, não uma característica humana, quanto mais portuguesa, mas um rude facto geral de toda a animalidade. Exemplificando:
«Um sujeito vê um dia um cão e bate-lhe. O cão foge, desmoralizado pelo inesperado do ataque. Decorridos dias o nosso homem passa outra vez pelo cão, sem dar por ele. Ao cão vem-lhe um desejo naturalíssimo de sentir a carne do agressor comprimida entre os seus caninos e... zás, estão daí vocês a ver a cena. Que se passara na consciência do animal? Nada de extraordinário: uma velha lembrança gerando um novo desejo: - a saudade (definição de Pascoaes).
Suponha-se agora o dono do cão a comer uma iguaria nova, e ao lado dele o seu cachorro. O dono estendeu-lhe um pedaço, e o focinho duvidoso aproxima-se, fareja, estende a dentuça, mastiga incerto, engole. Gostou. Passam-se os dias. O cão vê o dono a comer tal petisco, e logo se aproxima, de venta ávida. Que foi? A lembrança de uma coisa com o desejo dela, - a saudade (definição de Duarte Nunes) (1)».
E depois, «falando a sério!», Sérgio tem a coragem (ou a inconsciência) de escrever o seguinte dislate: «Houve com efeito muita saudade na literatura portuguesa; mas teve ela suas causas nas condições sociais dos idos tempos. Assentemos isso: tinha a sua razão de ser em condições que já passaram. Vocês teimam em ressuscitar o que não tem hoje condições de vida (2) ...».
A saudade, em suma, resultou dos «verdadeiros afastamentos»; havia a Índia, havia os conventos e havia os pais tiranos: «Esses duros casos bem reais impuseram o assunto aos Bernardins. Havia a autoridade absoluta, política ou familiar, que vinha lançar entre os amantes os Luíses da Silva e os Peros Gatos...».
E logo a seguir, paternalista: «Mas vocês juraram agora fabricar a saudade artificialmente, sem os ingredientes necessários: sem o rei absoluto e o pai tirano, sem o Convento e sem o Gato. É impossível, meus santinhos, é absurdo. A culpa não é minha, nem dos meus colegas estrangeiros: não fomos nós que destruímos essas coisas pavorosas (3)».
Quer dizer, António Sérgio fazia depender inteiramente o sentimento e a ideia da saudade de «causas sociais», as quais hoje não existem (4)»!
Na sua ânsia de destruir todo e qualquer traço mental, toda e qualquer posição intelectual expressores de «uma originalidade ou de uma identidade portuguesa», vê-se como Sérgio facilmente perdia a razão. Já não há condições sociais para ter saudade! Mas, passando do sentimento à ideia, estava já implícito afinal no saudosismo de Pascoaes muito da reflexão filosófica de signo fenomenológico-existencial e psico-ontológico mais tarde desenvolvida, não diremos já por um Afonso Botelho, entre nós, mas pelos pensadores galegos reunidos em volta da editorial Galáxia, como Rámon Piñero («P'ra unha filosofia da Saudade»), Garcia Sabell («La Saudade por dentro»), F. Elías de Tejada («La Saudade, desde una possible sociologia existencialista) ou Xesús Alonso Montero («Filodoxía e história cultural da verbo Saudade»).
Um só trecho, recortado, por exemplo, da obra de Ramón Piñero, o grande pensador de Santiago de Compostela: «Se a realidade, como acabámos de ver, é a intimidade radical do ser do homem, a sua singularidade constitutiva, no sentimento original dessa singularidade é onde podemos aperceber-nos da liberdade em toda a sua pureza ontológica. Portanto, a liberdade, apreendemo-la pelo sentimento da saudade. O sentimento original da saudade é o sentimento da nossa singularidade ontológica, ou seja, da liberdade essencial do ser do homem. Se o ser, por realizar a liberdade, se singulariza e se humaniza, a saudade é o sentimento dessa singularização, dessa humanização do ser, ou seja, da liberdade essencial» (5).
Mas Sérgio: «Quem é que vive principalmente na saudade! Os velhos, e os desgraçados a quem a morte levou uma pessoa muito querida. Ora, em ambos esses casos se nota, acompanhando sempre a saudade - o horror do novo, o ódio ao movimento, um protesto contra a lei da mobilidade e do devir» (6).
Sempre a mesma intenção redutora e diminutiva de qualquer coisa apontada como caracteristicamente portuguesa. Aliás, ao contrário do que afirmará Pascoaes, nem sequer o seria a seu ver a palavra
saudade, visto que existiriam muitas outras semelhantes, como o romeno
doru, o sueco
saknad, o islandês
saknaor, o catalão
anyoranza, o galego
soedades, etc, etc.
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Álvaro Ribeiro
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Na verdade não se compreenderá uma das linhas dominantes do polemismo sergiano, sem observar o seu deliberado
a-portuguesismo, quando não por vezes anti-portuguesismo. Na sua já citada obra, Álvaro Ribeiro apontou pertinentemente e com a sua costumada objectividade esta característica do pensamento do autor dos
Ensaios, escrevendo: «Nem o inconsciente colectivo, nem a etnia dos povos, nem a tradição, nem a intuição, nem a mística lhe pareciam dignas de figurar na escala empirista, experiencista ou experimentalista de um aristotelismo renovado ou actualizado.
«Pode dizer-se que António Sérgio não conheceu as características ou constantes da mentalidade portuguesa, ou, se as conheceu minorou-as e desvalorizou-as como vícios de povos inferiores ou subdesenvolvidas» (7).
E, logo a seguir, o autor de
A Arte de Filosofar acrescentou uma reflexão fundamental: «Todos os defeitos atribuídos aos Portugueses, e vistos como causas das suas desgraças, não o são em si nem para a generalidade dos homens, pelo que podem os vícios ser dialecticamente transformados em virtudes, por alteração da escala de valores. O que interessa é considerar objectivamente as qualidades positivas ou negativas do povo português e reconhecer que, submetidas a métodos de educação válidos para povos de características diferentes, não floresceram no nosso tempo, como frutificaram em épocas remotas».
Não que Sérgio não pugnasse pelos cidadãos do seu país ou pelo progresso específico da sociedade portuguesa, mas fazia-o como por
uma porção da humanidade, à qual lhe acontecera estar um pouco mais ligada pelo acaso e por laços de convivência e solidariedade. Mais: parecia-lhe que, para levantar os Portugueses, era preciso esvaziá-los da sua substância portuguesa, igualizando-os aos povos centro-europeus. É uma das facetas da sua preconizada
reforma da mentalidade, uma convicção superficial porque se baseia na falsa dicotomia portugalidade-europeidade, ou portugalidade-universalidade. A verdade é que cada um dos povos europeus, ou dos povos de todo o mundo, tem a sua identidade e a sua originalidade que não são entre si irredutíveis, muito embora se possam e devam esbater os antagonismos para estabelecer o diálogo e a convergência.
Sérgio dizia: «Não, não me penso sob a categoria de nacional». E ainda: «perante um Espanhol ou um Escandinavo não me ocorre colocar-me como Português» (8).
(...) Um «polemismo caceteiro»
Jaime Cortesão, um grande espírito de historiador e de patriota, caracterizou um dia perfeitamente esse afã sergiano de corroer e por fim negar a própria identidade nacional, de refutar, de atacar ou de iludir o
quid distintivo do povo português, ou da cultura portuguesa, ou da pátria portuguesa, escrevendo, a propósito de um dos livros de Sérgio: «Como é um espírito de cultura e de tendência universalista, vá de zurzir o nacionalismo na arte e na educação, fazendo por vezes confissões lastimáveis e ultrapassando aquele meio termo que em muitos casos é a virtude por ser a verdade» (9).
E Jaime Cortesão definiu o polemismo caceteiro do «racionalista» Sérgio, sempre mais intolerante quando se tratava de refutar ou tentar refutar os que procuravam e defendiam os traços originais do homem português (fossem míticos ou étnicos, históricos ou psicológicos, filosóficos ou culturais): «António Sérgio é um apóstolo que prega à bordoada, e, quando por acaso vislumbra ideia que contrarie as suas, ergue do cacete e zás, trás, é um varrer de feira» (10).
O escritor e médico bem conhecido, prof. Abel Salazar, chegou mesmo a escrever, num artigo, «O bluff António Sérgio»: «É de tal ordem tudo isto que uma suspeita pode começar inquietando o espírito do leitor sobre a normalidade e equilíbrio mental do sr. Sérgio» (11).
A certa altura da sua polémica com Carlos Malheiro Dias, António Sérgio, ele próprio, confessou-se, aliás,
«apaixonado e destrambelhado», muito embora convencido de que dominava perfeitamente esses defeitos - funestos sem dúvida para quem se pretende racionalista.
«Já lhe confessei - escreveu efectivamente na tréplica ao autor da
Exortação à Mocidade - que realmente sou, por temperamento, apaixonado e destranbelhado; mas que procuro submeter à ordem, à inteligência e à harmonia, as manifestações temperamentais; e de tal maneira alcanço o fim, que dou, como ninguém nas nossas letras a impressão de serenidade, da imparcialidade e da justiça...» (12).
Relendo à distância as polémicas de Sérgio, é fácil verificar como ele se iludia completamente sobre si próprio e sobre a sua capacidade sublimatória; raras vezes o encontramos sereno, poucas imparcial e muito menos justo, sempre que embrenhado na luta de ideias com um dos seus contemporâneos. A expressão de Jaime Cortesão - «um apóstolo que prega à bordoada» - é a que, sem dúvida, melhor o define.
Há em António Sérgio muito do fanatismo islâmico, persistente no carácter nacional; aliás (e talvez seja uma das chaves da sua personalidade), a concepção do «uno unificante», que subjaz à sua campanha contra os traços mais característicos da psicologia ou da cultura portuguesas (esses traços «intraduzíveis» e irredutíveis a vago conceito unissociológico do homem), confere muito bem com o monoteísmo maometano, zeloso e apaixonado, uniformizador e simplificador, e que é, no fim de contas, uma doutrina de exclusivista unificação religiosa e social (sem trinitarismo e suportando mal os pluralismos), pela obediência aos preceitos rigorosos do Profeta e aos princípios programáticos do Corão.
Sérgio viu-se, no fundo, como um «imã» ou um «mulah» do «uno unificante», mas, claro, sem Deus e sem transcendência, a não ser, talvez, nas profundidades desse inconsciente onírico e mítico que o seu claro e contraditório «racionalismo» sempre quis ignorar...
Mas no plano cultural, António Sérgio foi sobretudo um homem do século XIX, desesperado e impaciente no século XX, um idealista abstracto sem esse sentido do
ser-aqui (Heidegger), da
circunstância (Ortega y Gassett), da
situação (Sartre), do
concreto (Gabriel Marcel) ou da
estrutura cultural (Lévi-Strauss), que caracteriza o múltiplo movimento existencial, fenomenológico, vitalista ou estruturalista do pensamento moderno.
Porque o
versus unum do único universalismo viável é o que passa pelo concreto do homem situado, do homem na sua circunstância e na sua estrutura cultural, na correcção necessária dos idealismos em que um Antero ou um Sérgio beberam a sua distanciação e a sua incompreensão da fenomenologia psico-social do homem português.
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Ortega y Gassett
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Pretender atingir a universalidade pela eliminação ou o menosprezo do que distingue as culturas, nos seus diferentes níveis de profundidade, desde o mítico ao linguístico e ao filosófico, é uma operação abstractiva, redutora e esterilizante.
Contemporâneo de António Sérgio, mas muito mais moderno no seu pensamento, dizia Ortega y Gassett, em 1914, no seu primeiro livro,
Meditaciones del Quijote: «Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo a ela não me salvo a mim» (13). Ou ainda: «Na realidade só existem partes; o todo é a abstracção das partes e necessita delas» (14). Ou também, agora a propósito da realidade espanhola: «Um povo é um estilo de vida e, como tal, consiste em certa modelação simples e diferencial que vai organizando a matéria em seu redor». Mas sucede que, quando «causas exteriores desviam da sua ideal trajectória esse movimento de organização criadora em que se desenvolve o estilo de um povo, o resultado é o mais monstruoso e lamentável que se pode imaginar. Cada passo de avanço nesse processo de desvio soterra e oprime mais a intenção original, envolvendo-a numa crosta morta de produtos fracassados, torpes, insuficientes. Cada dia esse povo será menos do que devia ter sido» (15).
No saudosismo e no sebastianismo, sejam quais forem as suas facetas negativas, há a consciência do desvio e o desejo de regeneração da identidade em perda de substância, enquanto, ao contrário, os estrangeirados e os pensadores afins, como António Sérgio, pretendem avançar cada vez mais aceleradamente no que Ortega chama «o processo de desvio».
Nunca compreenderam Sérgio e os seus herdeiros o que viria a ser a doutrina da própria UNESCO, expressa lapidarmente pelo notável pensador e etnólogo estruturalista Claude Lévi-Strauss na obra encomendada por aquela organização e que intitulou
Raça e História: «A civilização das culturas, cada uma preservando a sua originalidade» (16). Aliás, «a verdadeira contribuição das culturas não consiste na lista das suas invenções particulares, mas na distância diferencial que oferecem entre si...» (17).
(in
Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, Guimarães Editores, 2001, pp. 275-285).
Notas:
(1) De «Epístola aos Saudosistas», de António Sérgio, in
A Águia, vol. IV, Porto, 1913, pp. 97-98.
(2)
Ibid, p. 98.
(3)
Ibidem.
(4)
Ibidem.
(5) De «P'ra unha filosofia da Saudade», de Ramón Piñero, in
La Saudade, Vigo, Ed. Galáxia, 1953, p. 39.
(6) In «Epístola aos Saudosistas»,
loc. cit.
(7)
A Literatura de José Régio, pp. 103-104.
(8) António Sérgio, prefácio ao livro
O Mundo que o Português Criou, de Gilberto Freyre, Lisboa, Livros do Brasil, s. d., p. 10.
(9) Jaime Cortesão, crítica à
Educação Cívica, de António Sérgio, in
A Águia (Maio de 1915), p. 211.
(10)
Ibidem.
(11) In
Sol Nascente, n.º 22, de 1-1-1938.
(12) António Sérgio,
Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a Questão do Desejado, Lisboa, Seara Nova, 1925, p. 11.
(13) Ortega y Gassett,
Meditaciones del Quijote, Madrid, Revista de Occidente, 3.ª ed., 1956, p. 18.
(14)
Ibid., p. 17.
(15)
Ibid., p. 79.
(16) Claude Lévi-Strauss,
Race et Histoire, Paris, Gonthier, 1965, p. 77.
(17)
Ibid., 76.
Continua