Ana Moura |
Quem chama decadente ou doentio ao fado de tal motivo, porque não condenará todas as obras-primas da poesia, musicada ou não, onde o amor atinge profundidade, exaltação e tragédia? É doentio o fado, ou o sentimento humano que ele popular e grandiosamente nos exprime?
E na maneira de cantar a morte. Quem não compreenderá que a morte assume um aspecto mais violento e terrível, por qualquer lado que se observe, no bairro popular da cidade do que no campo, junto da natureza, da deusa-mãe de seio acolhedor?
A solidariedade familiar e a luta pela vida, as relações duma com a outra, apresentam-se ao povo da cidade segundo uma fenomenologia inconfundível. O fado exprime, nos seus frequentes temas de amor de filho e mãe, fenómenos, sentimentais e sociais, de altíssimo significado ético e religioso. Há fados que valem em expressão oral certos quadros de pintores célebres, quadros representativos da mãe com o filho ao colo, cuja lição nunca deixará de ser meditada com alcance e proveito. Não é sem razão que se fala da Santa do fado.
O trabalho popular, na cidade, é muitas vezes inseguro. Quer se trate de profissões de exercício intermitente, quer de profissões de exercício ambulante, quer de profissões não salariáveis, quer de todas as profissões que podem ser atingidas por crises, tudo contribui para que o trabalho urbano desenvolva uma certa psicologia popular, onde os traços de dignidade e de melancolia aparecem nitidamente. O fadista canta a sua profissão, que aperfeiçoa e ama, e diz como consegue ligar o trabalho e o fado; o fadista, que canta a primor, começa por dizer aos que o escutam qual é a sua arte, nos dois significados desta palavra; liga a ideia de trabalho à ideia de destino, e nunca à de lucro, posse ou exploração, para assim demonstrar que é povo, e que não deseja sair do povo.
A ideia de destino gera, no fadista, um sentimento de solidariedade e de irmandade que dificilmente se poderá encontrar fora do povo português; não que a outros falte um sentimento comparável, mas falta-lhes a mesma fundamentação emotiva. A união mística dos portugueses da metrópole com os portugueses de além-mar, que o fado realiza, é já de si altamente eloquente. O mesmo culto religioso une povos de diferentes continentes; o mesmo sentimento patriótico une, por exemplo, o povo alemão em todo o mundo; um hino, uma marcha, uma canção, uma poesia, etc., podem apertar laços desleixados, reviver emoções, comover fortemente. Mas o sacramento do fado produz um milagre maior e diferente, coisa que só poderia exprimir em palavras um grande artista, coisa que só pode ser negada por quem seja isento de emotividade autêntica. Há no fado um não sei quê, que só o próprio fado pode dizer, mas que se não pode negar. A ideia do destino e de fatalidade, compreendida de uma maneira especial por um povo moderno, esclarece um pouco este problema, mas não aniquila o mistério que envolve.
Cristina Branco |
Seria interessante pôr a claro outros aspectos do fado, embora estas noções já bastem a quem sobre elas quiser reflectir; seria até urgente explicá-las, para maior eficiência pedagógica; é possível que isso em breve seja feito, se para tal houver ambiente e estímulo.
Nem tudo que se canta com acompanhamento de guitarra e viola é fado; e seria conveniente demonstrar, até vitória decisiva, que os piores inimigos do fado não são os detractores, mas sim as pessoas que aos detractores fornecem argumentos e razões.
Como será possível defender o fado, se não há uma doutrina fadista e um preceituário fadista? Se tudo é possível e permitido, se pululam contradições e divergências, como será possível distinguir o fado autêntico das adulterações que o degeneram e extinguem?
A Inspecção-Geral dos Espectáculos só encara o fado como espectáculo, e apenas proíbe ofensas directas à ordem moral e política garantida pelas leis vigentes; não tem, nem ninguém desejaria que tivesse, competência para formular juízos estéticos sobre o fado.
Urge, porém, que uma instituição genuinamente fadista, ou uma doutrina tipicamente fadista, evite a adulteração e decomposição, a que assistimos, duma arte popular, quando deslocada para um meio que não é o seu.
Deveria, em primeiro lugar, escrever-se um preceituário simples e correcto, a fim de limitar a determinados tipos as formas e os assuntos da canção fadista; deixaria de ser considerada fado muita cançoneta reles que irrita os apreciadores; fechar-se-ia a ordem aos ignorantes ou inimigos da arte popular. Será possível realizar-se tal benefício, ou por reunião e congresso dos poetas fadistas, ou por inquérito promovido pela imprensa, ou por qualquer processo mais eficiente?
À imprensa fadista competiria, pela crítica, fazer o respectivo policiamento, e obrigar a cumprir o preceituário-lei; mais ainda lhe competiria persuadir cantores e cantadeiras a que contribuíssem, pela aceitação de uma disciplina tão justa, para o aperfeiçoamento do fado.
O leitor calculará como seria agradável deixar de ouvir cantadores e cantadeiras adolescentes referirem-se às toiradas e esperas de toiros, em falsos termos de saudade, insultando a inteligência do público com anacronismos ridículos e passadismos doentios. O fado é o destino, mas não é obrigatoriamente o passado.
Há que respeitar o carácter do fado; mas a cada cantador e a cada cantadeira cumpre também respeitar o carácter próprio.
É horrível ouvir a adolescente cantar versos que se referem a qualquer caso em termos de mulher adulta; é nojento ouvir a velha a cantar versos que exprimem um amor primaveril. A fadista de temperamento acanalhado e de gestos desembaraçados não deverá cantar fados exageradamente sentimentais nem simular atitude contemplativa; e vice-versa.
Cada cantador ou cantadeira deve cuidar do seu carácter; só assim poderá aperfeiçoar-se e marcar a sua individualidade perante o gosto do público.
O trajo fadista deve também ser defendido das fantasias estranhas dos alfaiates e guarda-roupeiros, bem como dos caprichos da moda ou do gosto habitual. Ou se adopta o trajo tradicional, usado outrora pelos fadistas mais antigos e mais típicos, ou se desenham figurinos compatíveis com a nossa época, de traço popular da gente que trabalha e canta. O trajo fadista não é arbitrário como uma farda de porteiro ou um vestido de passeio. O xale preto tem elegância e encanto; mas que pode ele valer quando se apresenta em conflito com os horríveis arrebiques dos vestidos das nossas damas?
Maria Ana Bobone |
Que uma cantadeira, à força de se apresentar nos cafés e nos salões, vá pouco a pouco saindo do povo, quer porque enriqueça quer porque case com um burguês, – é acontecimento inevitável. Mas impõe-se que nunca mais cante o fado em público, se lhe é impossível deixar de profanar a arte do povo. Exibir as gorduras que acumulou em consequência de ter deixado de trabalhar, exibir as jóias que adquiriu de qualquer maneira, expor as reservas corporais ou financeiras que a livram de regressar ao trabalho e ao povo donde saiu, é, no próprio momento em que canta, um insulto a quem a ouve e a quem preze a dignidade popular. Quem se serviu do fado não pode servir o fado.
Qualquer que tenha sido a transformação da vida privada da cantadeira, esta deve manter a apresentação e a figura de quem não renega o povo, nem sequer na maneira de vestir.
É pasmoso que muitos fadistas consintam aspectos que acabam de ser condenados. A sensibilidade fadista estará tão enfraquecida? Até que ponto, até quando? Até à extinção do fado?
Observe-se o que está acontecendo há alguns anos a esta parte, e saiba-se ser inteligente, ver os perigos com antecedência, pois ver-se o perigo na ocasião é próprio de todos os animais, que dele se defendem na medida em que baste o instinto.
Observe-se que de há alguns anos a esta parte, o fado começa a ser orientado e dirigido, não pelas autoridades, não pela imprensa, não pelos fadistas, mas… pelos empresários dos salões, retiros, esplanadas, etc. Quer dizer: o fado tende a cair nas mãos dos comerciantes de café, cerveja, vinho, etc. Tais cavalheiros, preocupados apenas com o lucro, manobrando habilmente com a publicidade de jornais diários, e inserindo as condições mais arbitrárias nos seus contratos, poderão num futuro bem próximo construir e destruir reputações de fadistas, transformar uma arte num negócio. O público ouvirá então somente certos fadistas e certos fados, segundo o critério do negociante; e, de mistura com o fado, terá de suportar tangos, modinhas, imitações, variedades e cães amestrados.
Consumo obrigatório, pela boca, pelos olhos e pelos ouvidos; impossibilidade de beber cerveja de tal marca, e de ouvir a voz de tal fadista.
Urge que os fadistas elaborem, e proponham à aprovação da Inspecção-Geral dos Espectáculos, um regulamento que os defenda, e que defenda o público dos abusos dos negociantes de comidas e bebidas. Abusos possíveis, ameaçadores, mas fáceis de prever. De prever e de evitar, por uma decisão inteligente e oportuna.
Assim, deverá exigir-se que todo o salão de fado tenha lotação limitada, ventilação e iluminação segundo as exigências científicas, mobiliário cómodo e revestido de tacões de borracha, largas coxias cobertas de passadeiras, retretes suficientes, vestiários próprios, etc., condições que um público civilizado deve exigir aos exploradores dos recintos fadistas. A organização e a apresentação do espectáculo deverá obedecer às normas da estética fadista: trajos dos artistas, decoração do palco e do salão, jogo de luz, programa previamente publicado e distribuído, números extraprograma, redução do tempo e intervalos, publicidade nos jornais diários e nos jornais da especialidade, etc., tudo deve obedecer a normas insofismáveis. Contrato dos artistas, elaboração de escalas e turnos, preços dos bilhetes, quantitativo dos consumos, espectáculos extraordinários e sessões de moda, exclusão de espectáculos mistos, etc., serão também assuntos a regular.
A defesa do fado, dos fadistas e do público fadista não pode ficar ao descuido dos negociantes; urge elaborar um regulamento que a Inspecção-Geral dos Espectáculos aprove e que possa servir de lei.
Ao contrário do que no primeiro momento poderá parecer, a execução dum preceituário ou dum doutrinal fadista, tende a aumentar a expansão da arte urbana. Com o desaparecimento de certas razões de queixa contra o fado, aumentará o número de apreciadores e, consequente, o número de artistas e dos salões.
O ideal seria ver abrir e funcionar, em cada bairro de Lisboa, um amplo e belo salão de fados, junto do qual existiria um curso para guitarristas e cantadores, durante as horas da tarde.
Atrair a juventude, chamar à actividade artística dezenas de rapazes e de raparigas, criar novas equipas de cantadores e de cantadeiras, trabalhar pela beleza e pela expansão da língua pátria e da arte popular, – será por acaso condenável? Em vez de tavernas com receptores roufenhos, em vez de recintos de más conversas, jogos viciosos, languidez, desmoralização, degenerescência, – não será melhor promover a formação de centros de educação musical e de arte popular?
Singular exemplo oferece o povo de Lisboa ao país inteiro! Diz-se que os portugueses têm perdido pouco a pouco o gosto de cantar; observa-se que a transferência para a cidade diminui no ser humano a aptidão espontânea para o canto; que cada vez mais se acentua a apagada e vil tristeza. As cidades da província possuem cafés que se propõem imitar os da capital; as cidades da província possuem teatros e cinemas por onde transitam produções internacionais; mas as cidades da província não têm locais acolhedores aonde o povo possa levar diariamente a sua voz e fazer ouvir o seu folclore, onde em doces horas de conforto e de prazer espiritual se aprecie a arte da região. Seria interessante que as cidades da província fizessem o que Lisboa, amaldiçoada por ser o berço do fado, lhes ensina a fazer, em reacção contra um aspecto de decadência social, como é, sem dúvida, a mudez do homem entre os ruídos das máquinas e dos transportes urbanos. Admirável lição do povo fadista ao país inteiro, oferecendo-lhe a canção dos que vencem pelo trabalho e pela arte!
Café Palladium, 12 de Julho de 1937*.
* Em consequência das repercussões [na Imprensa do País e na do Brasil], veio a ser publicada, no ano XV, n.º 194, de 1 de Janeiro de 1938, p. 2, [em Canção do Sul], a seguinte carta:
«… Sr. João Reis
Digníssimo director da Canção do Sul
Para satisfazer o seu pedido de rectificação de um passo da minha conferência de doutrina fadista, nada me custa declarar que de forma nenhuma pretendi atingir a reputação moral dos cantadores e das cantadeiras de fado. A origem das jóias exibidas nos tablados não interessava ao ponto de vista em discussão, e sobre ela não fiz sequer o mais leve juízo depreciativo.
Custa-me, porém, ter de acreditar que o meu simples ensaio, escrito numa intenção de defesa do fado, de quem o cultiva e de quem o propaga, pudesse ser lido com tanta malícia. É caso para recordar mais uma vez o célebre dito: Honni soit qui mal y pense ["vergonha sobre quem puser nisto malícia"].
Às cantadeiras e aos cantadores que lhe manifestaram dúvidas sobre as minhas intenções de escritor, pode V. Ex.ª comunicar este esclarecimento que é a expressão da verdade.
Sem outro assunto, creia na consideração de quem se assina…
Álvaro Ribeiro (Lisboa, 30-XII-1937)».
Ana Moura |
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