quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Seres inorgânicos (ii)

Escrito por Carlos Castaneda








Assegurou-me que, lá porque ele tinha diferentes pontos de vista, isso não queria dizer que as práticas dos antigos videntes eram inválidas; as suas interpretações estavam erradas, mas as suas verdades tinham valor prático para eles. No caso das práticas da água, estavam convencidos que era humanamente possível ser transportado, em corpo, pela fluidez da água, para um qualquer ponto entre este nosso nível e um dos outros sete níveis abaixo; ou ser transportado, em essência, para qualquer parte deste nível, ao longo do curso do rio, em qualquer direcção. Consequentemente, usavam a água corrente para serem transportados neste nosso nível e a água dos lagos profundos ou a das nascentes, para serem transportados às profundezas.

- O que pretendiam, com a técnica que lhe estou a mostrar, tinha dois sentidos – continuou. – Por um lado, usavam a fluidez da água. Por outro, usavam-na para se encontrarem frente a frente com um ser vivo desse primeiro nível. A forma semelhante a uma cabeça, no espelho, era uma dessas criaturas que veio para nos olhar.

- Então, eles existem! – exclamei.

- Claro que existem – respondeu ele.

Disse que os antigos videntes tinham sido prejudicados pela sua insistência aberrante em ficar agarrados aos seus procedimentos, mas o que quer que fosse que eles descobriram, foi válido. Descobriram que o caminho mais seguro para encontrar uma dessas criaturas é através de uma porção de água. O seu tamanho não é relevante; um oceano ou um tanque servem o mesmo propósito. Ele tinha escolhido um riacho, porque detestava ficar molhado. Teríamos obtido os mesmos resultados num lago ou num rio maior.

- A outra vida vem ver o que se passa, quando os seres humanos chamam – continuou. – Esta técnica Toltec é como que bater à sua porta. Os antigos videntes diziam que a superfície brilhante no fundo da água, servia como um chamariz e uma janela. Então, os seres humanos e essas criaturas, encontravam-se à janela.

- Foi o que aconteceu comigo, ali? – perguntei.

- Os antigos videntes teriam dito que você foi puxado pelo poder da água e pelo poder do primeiro nível, mais a influência magnética da criatura à janela.

- Mas eu ouvi uma voz no meu ouvido, a dizer que eu estava morrer – disse eu.

- A voz tinha razão. Você estava a morrer e teria morrido, se eu não estivesse ali. Esse é o perigo de praticar as técnicas dos Toltec. São extremamente eficazes, mas, na maioria das vezes, são mortais.

Disse-lhe que tinha vergonha de confessar que estava apavorado. Ver aquela forma no espelho e ter a sensação de uma força envolvente, à minha volta, tinham sido de mais para mim, no dia anterior.

- Não quero alarmá-lo – disse ele, - mas ainda não lhe aconteceu nada. Se o que me aconteceu a mim for o guião do que lhe vai acontecer, é melhor preparar-se para o choque da sua vida. É melhor tremer que nem varas verdes, hoje, que morrer de medo, amanhã.

O meu medo era tão aterrador, que nem conseguia dar voz às perguntas que me vinham à ideia. Levei algum tempo para engolir. Don Juan riu até se engasgar. O seu rosto ficou vermelho. Quando recuperei a voz, cada uma das minhas perguntas provocava um novo ataque de riso e tosse.

- Você não faz ideia de como tudo isto é divertido para mim – disse, finalmente. – Não estou a rir de si. É toda esta situação. O meu benfeitor fez-me passar pelo mesmo e, ao olhar para si, não posso deixar de me ver a mim mesmo.

Disse-lhe que me sentia agoniado. Ele disse-me que eu estava bem, que era natural estar assustado, e que o controlo do medo seria errado e sem sentido. Os antigos videntes foram apanhados por suprimir o seu terror, quando deveriam ter ficado assustados até perder a cabeça. Como não queriam parar as suas pesquisas ou abandonar as suas reconfortantes construções, resolveram controlar o seu medo, em vez disso.

- Que mais vamos fazer com o espelho? – perguntei.

- O espelho vai ser usado para um encontro frente a frente entre si e a criatura que você viu de relance, ontem.



- O que acontece é que uma forma de vida, a forma humana, encontra outra forma de vida. Os antigos videntes dizem que, neste caso, é uma criatura do primeiro nível da fluidez da água.

Explicou-me que os antigos videntes supunham que os sete níveis abaixo de nós, eram níveis da fluidez da água. Para eles, uma nascente tinha um significado extraordinário, porque pensavam que, nesse caso, a fluidez da água era revertida e vinha das profundezas para a superfície. Achavam que esse era o meio pelo qual as criaturas dos outros níveis, essas outras formas de vida, vinham até ao nosso plano, para nos espiar, nos observar.

- A este respeito, os antigos videntes não estavam enganados – continuou. – Acertaram em cheio. As entidades a que os novos videntes chamam aliados, aparecem perto das nascentes.

- Aquela criatura no espelho era um aliado? – perguntei.

- Sem dúvida. Mas não um que possa ser utilizado. A tradição dos aliados, com a qual o familiarizei no passado, vem directamente dos antigos videntes. Fizeram maravilhas com os aliados, mas nada do que eles fizeram valeu a pena, quando o verdadeiro inimigo apareceu: os seus semelhantes, os homens.

- Dado que essas criaturas eram aliados, deviam ser muito perigosos – disse eu.

- Tão perigosos como nós, homens, somos; nem mais, nem menos.

- Podem matar-nos?

- Não directamente, mas podem, certamente, assustar-nos de morte. Podem atravessar os seus próprios limites, ou, simplesmente, chegar à janela. Como já deve ter percebido, os antigos Toltec também não pararam na janela. Encontraram estranhas maneiras de ir além delas.

O segundo estágio da técnica desenvolveu-se de uma forma muito semelhante ao primeiro, excepto por ter levado, mais ou menos, o dobro do tempo para que eu me relaxasse e parasse a minha agitação interna.

Quando isso aconteceu, o reflexo do rosto de don Juan e do meu tornou-se, instantaneamente, mais nítido. Durante mais ou menos uma hora, passeei o olhar do seu reflexo para o meu. Esperava que o aliado aparecesse a qualquer momento, mas não aconteceu nada. Doía-me o pescoço. As minhas costas estavam tensas e as minhas pernas dormentes. Queria ajoelhar-me na rocha, para aliviar a dor no fundo das costas. Don Juan segredou-me que, no momento em que o aliado mostrasse a sua forma, o meu desconforto desapareceria.

Estava absolutamente certo. O choque de testemunhar uma forma redonda no canto do espelho dissipou todo o meu desconforto.

- Que fazemos agora? – sussurrei.

- Relaxe e não focalize o seu olhar em nada, nem mesmo por um instante – replicou ele. – Observe tudo o que aparecer no espelho. Olhe sem fixar.

Obedeci-lhe. Olhei para tudo, dentro da moldura do espelho. Havia um zumbido peculiar nos meus ouvidos. Don Juan segredou-me que eu deveria rolar os olhos no sentido dos ponteiros do relógio, se sentisse que estava a ser envolvido por uma força incomum; mas, sob circunstância alguma, deveria levantar a minha cabeça para olhar para ele.

Passado um bocado, verifiquei que o espelho estava a reflectir mais do que os nossos rostos e a forma redonda. A superfície tornara-se escura. Pontos de intensa luz violeta apareceram. Ficaram maiores. Havia, também, pontos negro-azeviche. Depois, transformou-se em algo parecido com uma fotografia de um céu nublado, à noite, à luz do luar. De repente, toda a superfície entrou em foco, como se fosse uma imagem móvel.

A nova vista era tridimensional, impressionante vista das profundezas.







Eu sabia que me era absolutamente impossível lutar contra a tremenda atracção daquela visão. Começou a puxar-me lá para dentro.

Don Juan sussurrou-me, energicamente, que eu devia rolar os meus olhos, no sentido dos ponteiros do relógio, para meu próprio bem. O movimento trouxe-me alívio imediato. Conseguia, de novo, distinguir os nossos reflexos e o do aliado. Então, o aliado desapareceu e reapareceu outra vez, no outro canto do espelho.

Don Juan ordenou-me que segurasse o espelho com toda a minha força. Aconselhou-me a ficar calmo e a não fazer movimentos repentinos.

- O que é que vai acontecer? – sussurrei.

- O aliado tentará sair – replicou.

Mal acabou de falar, senti um forte puxão. Qualquer coisa me sacudiu os braços. O puxão vinha por baixo do espelho. Era como uma força de sucção que criava uma pressão uniforme à volta da moldura.

- Segure o espelho com força, mas não o quebre – ordenou don Juan. – Lute contra a sucção. Não deixe que o aliado afunde demasiado o espelho.

A força que nos puxava para baixo era enorme. Senti que os meus dedos se iam partir de encontro às rochas do fundo. Don Juan e eu, a certa altura, perdemos o equilíbrio e tivemos de descer da rocha para o rio. A água era bastante rasa, mas a tensão da força do aliado à volta da moldura do espelho era tão assustadora, que parecia que estávamos num rio enorme. A água à volta dos nossos pés rodava loucamente em remoinhos, mas as imagens no espelho eram inalteráveis.

- Atenção! – gritou don Juan. – Aí vem ele!

O puxão transformou-se num impulso vindo de baixo. Qualquer coisa estava agarrar o canto do espelho, não o canto exterior da moldura, que nós segurávamos, mas o do interior do espelho. Era como se a superfície do espelho fosse, realmente, uma janela aberta e alguma coisa estivesse a subir por ela.

Don Juan e eu lutámos desesperadamente, ora para empurrar o espelho para baixo, quando estava ser pressionado para cima, ora a puxá-lo, quando estava a ser afundado. Numa posição curvada, movemo-nos do ponto inicial, lentamente, rio abaixo. A água era mais profunda e o fundo do rio estava coberto de rochas escorregadias.

- Vamos tirar o espelho da água e agitá-lo devagar - disse don Juan, com voz rouca.

A agitação da água continuava sem cessar. Era como se tivéssemos apanhado um peixe enorme, com as nossas mãos, e ele nadasse, loucamente, à nossa volta.

Ocorreu-me que o espelho era, na essência, um alçapão. Uma estranha forma estava, realmente, a tentar levantar-se através dele. Estava debruçado no canto do alçapão, com um peso imenso, e era suficientemente grande para deslocar os reflexos do rosto de don Juan e do meu. Já não conseguia vê-los. Apenas conseguia distinguir uma massa a tentar levantar-se.







O espelho já não estava apoiado no fundo. Os meus dedos já não estavam a ser comprimidos contra as rochas. O espelho estava a meia profundidade, seguro pelas forças opostas dos puxões do aliado e dos nossos. Don Juan disse que ia estender as suas mãos sob o espelho e que eu devia agarrá-las rapidamente, de forma a termos um melhor equilíbrio para levantar o espelho com os nossos braços. Quando ele o soltou, o espelho inclinou-se para o seu lado. Rapidamente, procurei as suas mãos, mas não havia nada por baixo do espelho. Vacilei durante um longo segundo e o espelho escapou-me das mãos.

- Agarre-o! Agarre-o! - gritou don Juan.

Apanhei o espelho mesmo quando ia cair sobre as pedras. Tirei-o da água, mas não suficientemente depressa. A água parecia cola. Quando puxei o espelho para fora, puxei também um pedaço de uma substância pesada, tipo borracha, que, simplesmente, fez saltar o espelho das minhas mãos, de novo para a água.

Don Juan, mostrando uma extraordinária agilidade, apanhou o espelho e levantou-o de lado, sem a mínima dificuldade.

Nunca na minha vida, tinha tido um ataque de melancolia. Era uma espécie de tristeza sem fundamento preciso; associei isso à memória das profundezas que tinha visto no espelho. Era uma mistura de pura saudade dessas profundezas e de um medo absoluto da sua arrepiante solidão.

Don Juan comentou que, na vida dos guerreiros, era absolutamente natural estar triste sem razão aparente. Os videntes dizem que o ovo luminoso, como campo de energia, sente o seu destino final, sempre que os limites do conhecido são quebrados. Um mero vislumbre da eternidade fora do casulo é suficiente para romper o aconchego do nosso inventário. A melancolia resultante é, por vezes, tão intensa, que até pode provocar a morte.

Disse que a melhor maneira de se ver livre da melancolia é rir-se dela. Comentou, num tom de troça, que a minha primeira atenção estava a fazer tudo para recuperar a ordem que tinha sido interrompida pelo meu contacto com o aliado. Dado que não havia forma de a recuperar por meios racionais, a minha primeira atenção fazia-o focando todo o seu poder na tristeza.

Respondi-lhe que, de facto, a melancolia era real. Entregar-me a isso, lamentar-me, ficar acabrunhado, não faziam parte do sentimento de solidão que eu experimentei ao recordar essas profundezas.

- Alguma coisa está, finalmente, a acontecer-lhe – disse ele. – Tem razão. Não há nada mais solitário do que a eternidade. E nada é mais aconchegante para nós do que um ser humano. Com efeito, isto é outra contradição, como é que o homem pode manter os laços da sua humanidade e continuar a aventurar-se, alegre e voluntariamente, na absoluta solidão da eternidade? Quando resolver este enigma, estará pronto para a sua viagem definitiva.

Soube, então, com certeza absoluta, a razão da minha tristeza. Era uma sensação periódica para mim, sensação que esquecia sempre, até me aperceber, de novo, da mesma coisa: a insignificância da humanidade perante a imensidão daquela coisa que eu tinha visto reflectida no espelho.

- Na verdade, os seres humanos não são nada, don Juan – comentei.

- Sei exactamente o que está a pensar – disse ele. – É verdade que não somos nada, mas é exactamente isso que dá origem ao desafio supremo; que, não sendo nada, possamos enfrentar, realmente, a solidão da eternidade.




Abruptamente, mudou de assunto, deixando-me de boca aberta, sem oportunidade de pôr a minha próxima pergunta. Começou a discutir a nossa luta com o aliado. Primeiro que tudo, a luta não tinha sido brincadeira nenhuma. De facto, não tinha sido um caso de vida ou de morte, mas também não tinha sido nenhum piquenique.

- Escolhi aquela técnica – continuou, - porque o meu benfeitor ma mostrou. Quando lhe pedi que me desse um exemplo das técnicas dos antigos videntes, ele quase rebentou a rir; o meu pedido tinha-lhe recordado a sua própria experiência. O seu benfeitor, o nagual Elias, também lhe tinha dado uma rude demonstração da mesma técnica.

Don Juan disse-me que, como tinha feito a moldura do seu espelho com madeira, me deveria ter pedido que fizesse o mesmo, mas que tinha querido saber o que aconteceria se a moldura fosse mais sólida que a sua ou a do seu benfeitor. As molduras de ambos tinham-se partido e, de ambas as vezes, o aliado escapou.

Explicou-me que, durante a sua própria luta, o aliado tinha partido a moldura. Ele e o seu benfeitor ficaram com dois bocados de madeira nas mãos, enquanto o espelho se afundava e o aliado saía dele.

O seu benfeitor sabia que espécie de sarilhos devia esperar. No reflexo dos espelhos, os aliados não são realmente assustadores, porque a pessoa apenas uma sombra, uma massa de espécies. Mas, quando saem, para além de terem uma aparência realmente assustadora, são uma enorme chatice. Comentou que, uma vez saídos do seu nível, é muito difícil, para os aliados, voltar atrás. O mesmo acontece com o homem. Se os videntes se aventuram para um nível dessas criaturas, é muito provável que não se volte a ouvir falar deles.

- O meu espelho quebrou-se com a força do aliado – disse ele. – Já não havia janela e como o aliado não podia voltar, então, veio atrás de mim. De facto, ele rebolou atrás de mim. Eu fugi a alta velocidade, gritando de terror. Percorri montes e vales, como um possesso. O aliado estava sempre a centímetros de mim.

Don Juan contou-me que o seu benfeitor ainda correu; entretanto, teve o bom senso de dizer a don Juan que voltasse para trás e, dessa forma, conseguiu tomar medidas para se ver livre do aliado. Gritou que ia fazer uma fogueira e que don Juan deveria correr em círculos, até estar tudo pronto. Foi à procura de galhos secos, enquanto don Juan corria à volta de um morro, louco de medo.

Don Juan confessou que, enquanto corria em círculos, lhe ocorreu o pensamento de que o seu benfeitor estava, realmente, a divertir-se com aquilo tudo. Sabia que o seu benfeitor era um guerreiro capaz de encontrar prazer em qualquer situação. Por que não também nesta? Por um momento, ficou tão furioso com o seu benfeitor, que o aliado parou de o perseguir e don Juan, em termos inequívocos, acusou o seu benfeitor de malícia. O seu benfeitor não respondeu, mas fez um gesto de genuíno terror, enquanto olhava para além de don Juan, para o aliado, que crescia sobre ambos. Don Juan esqueceu a sua raiva e voltou a correr em círculos.



- O meu benfeitor era, realmente, um velho diabólico – disse don Juan, rindo. – Tinha aprendido a rir por dentro. Não o mostrava no rosto, de modo que conseguia fingir que estava a chorar ou cheio de raiva, quando, de facto, estava a rir. Nesse dia, enquanto o aliado me tentava caçar, em círculos, o meu benfeitor ficou parado a defender-se das minhas acusações. Eu só conseguia ouvir bocados do seu longo discurso, sempre que passava por ele, a correr. Quando terminou aquele, ouvi bocados de outra longa explicação: que ele tinha que juntar muita lenha, que o aliado era muito grande, que o fogo tinha de ser tão grande quanto o aliado, que a manobra podia não resultar.

- Só o meu medo enlouquecedor me fazia continuar a correr. Finalmente, ele deve ter concluído que eu estava quase a cair de exaustão; fez a fogueira e, com as chamas, defendeu-me do aliado.

Don Juan contou que ficaram perto do fogo, toda a noite. O pior momento para ele, foi quando o seu benfeitor teve de ir à procura de mais lenha e o deixou sozinho. Teve tanto medo, que prometeu a Deus que ia abandonar o caminho do conhecimento e tornar-se lavrador.

- De manhã, depois de ter esgotado toda a minha energia, o aliado conseguiu empurrar-me para o fogo e queimei-me gravemente – acrescentou don Juan.

- E que aconteceu ao aliado? – perguntei eu.

- O meu benfeitor nunca me contou o que lhe aconteceu – replicou. – Mas tenho a impressão de que continua a correr em círculos, sem destino, tentando encontrar o seu caminho de volta.

- E o que aconteceu à sua promessa a Deus?

- O meu benfeitor disse-me para não me preocupar, que tinha sido uma boa promessa, mas que eu não sabia ainda que não há ninguém para ouvir essas promessas, porque não existe Deus. Tudo o que existe, são as emanações da Águia, e não há forma de lhes fazer promessas.

- Que teria acontecido, se o aliado o tivesse apanhado? – perguntei.

- Provavelmente, teria morrido de medo – disse ele. – Se soubesse o que implicava ser apanhado, tê-lo-ia deixado apanhar-me. Naquela altura, eu era um irresponsável. Quando um aliado o agarra, ou tem um ataque cardíaco, ou luta com ele. Então, depois de um momento de grande confusão, com fingida ferocidade, a energia do aliado desvanece-se. Não há nada que um aliado nos possa fazer, ou vice-versa. Estamos separados por um abismo.

- Os antigos videntes acreditavam que, no momento em que a energia do aliado diminui, ele concede o seu poder ao homem. Poder, uma ova! Os antigos videntes tinham aliados a sair-lhes por todos os lados, e o poder dos seus aliados não tinha qualquer valor.






Don Juan explicou que, mais uma vez, coube aos novos videntes esclarecer essa confusão. Descobriram que a única coisa que conta é a impecabilidade, quer dizer, a energia purificada. Houve, realmente, entre os antigos videntes, alguns que foram salvos pelos seus aliados, mas isso não tinha nada a ver com o poder dos aliados de afastar qualquer coisa; pelo contrário, foi a impecabilidade dos homens que lhes permitiu usar a energia dessas outras formas de vida.

Os novos videntes descobriram, também, a coisa mais importante, sobre os aliados: o que os tornou úteis ou inúteis para o homem. Os aliados inúteis, de número incalculável, são os que têm emanações dentro de si, para as quais não há par dentro de nós. São tão diferentes de nós, que se tornam completamente inúteis. Outros aliados, de número notavelmente reduzido, são semelhantes a nós, quer dizer, possuem emanações que, ocasionalmente, combinam com as nossas.

- Como é que o homem utiliza essa espécie de aliados? – perguntei.

- Deveríamos usar outra palavra, em vez de «utilizar» - replicou ele. – Eu diria que o que acontece entre os videntes e este tipo de aliados é uma justa troca de energia.

- Como é que se processa essa troca? – perguntei.

- Através da combinação das suas emanações – disse ele.

- Essas emanações estão, naturalmente, do lado esquerdo da consciência do homem; o lado que o homem comum nunca usa. Por essa razão, os aliados estão totalmente excluídos do mundo do lado direito da consciência, ou seja, do lado da racionalidade.

Disse, ainda, que a consciência das emanações, dá a ambos uma base comum. Então, com familiaridade, estabelece-se um elo comum, que permite que ambas as formas de vida aproveitem. Os videntes procuram a qualidade etérea dos aliados; dão fabulosos espiões e guardas. Os aliados o maior campo de energia do homem e, com ele, conseguem, até, materializar-se.

Assegurou-me que os videntes experimentados conjugam essas emanações compartilhadas, até as colocarem totalmente em foco; a troca faz-se nessa altura. Os antigos videntes não tinham percebido esse processo e desenvolveram técnicas complexas de olhar, de forma a descerem às profundezas que eu tinha visto no espelho.

- Os antigos videntes tinham um instrumento muito elaborado para os ajudar nas suas descidas – continuou ele. – Era uma corda com um entrançado especial, que eles amarravam à volta da cintura. Tinha uma ponta macia, embebida em resina, que se encaixava no umbigo, como uma tomada. Os videntes tinham um assistente, ou vários, que os seguravam pela corda, quando ficavam com o olhar perdido. Naturalmente que olhar directamente o reflexo de um claro e profundo tanque, é infinitamente mais poderoso e perigoso do que o que fizemos com o espelho.

- Mas eles desciam, de facto, fisicamente? – perguntei.

- Ficaria surpreendido com o que os homens são capazes de fazer, especialmente se controlam a consciência – replicou. – Os antigos videntes eram aberrantes. Nas suas excursões às profundezas, encontraram maravilhas. Para eles, encontrar aliados era rotineiro.

- Naturalmente que, neste momento, você já percebeu que falar nas profundezas é uma figura de estilo. Não existem profundezas, há apenas uma manipulação das profundezas. No entanto, os antigos videntes nunca fizeram essa descoberta.

Disse a don Juan que, pelo que ele me tinha contado da sua experiência com o aliado e apoiado na minha impressão subjectiva, ao sentir a força do aliado na água, tinha concluído que os aliados são muito agressivos.

- Não propriamente – disse ele. – Não é que não tenham energia suficiente para serem agressivos, mas o que acontece é que têm um tipo de energia diferente. São mais parecidos com uma corrente eléctrica. Os seres orgânicos parecem-se mais com ondas de calor.

- Mas por que é que ele o perseguiu durante tanto tempo? – perguntei.

- Isso não é mistério nenhum – disse ele. – São atraídos por emoções. O medo inicial é o que os atrai mais; liberta o tipo de energia que melhor lhes serve. As emanações no interior deles são activadas pelo medo animal. Dado que o meu medo era inflexível, o aliado correu atrás dele, ou melhor, o meu medo caçou o aliado e não o deixou escapar.








Disse que tinham sido os antigos videntes que tinham descoberto que os aliados preferiam o medo animal a tudo o mais. Chegaram ao extremo de, propositadamente, o oferecerem aos aliados, assustando de morte todas as pessoas. Os antigos videntes estavam convencidos que os aliados tinham sentimentos humanos, mas os novos videntes viram isso de maneira diferente. Eles viram que os aliados eram atraídos pela energia libertada pelas emoções; o amor é igualmente eficaz; tal como o ódio ou a tristeza.

Don Juan acrescentou que, se ele tivesse sentido amor pelo aliado, o aliado tê-lo-ia perseguido na mesma, embora a caça pudesse ter acontecido de um modo diferente. Perguntei-lhe se o aliado teria deixado de o perseguir, se ele tivesse controlado o seu medo. Ele respondeu-me que, controlar o medo, era um truque dos antigos videntes. Aprenderam a controlá-lo ao ponto de o saber repartir. Caçavam os seus aliados com o seu próprio medo e, ao libertá-lo gradualmente, como um alimento, mantinham os aliados cativos.

- Esses antigos videntes eram homens aterradores – continuou don Juan. – Não deveria usar o tempo passado, ainda hoje eles são aterradores. O seu objectivo é dominar, governar tudo e todos.

- Ainda hoje, don Juan? – perguntei, tentando levá-lo a explicar mais.

Ele mudou de assunto, comentando que eu tinha perdido a oportunidade de ficar realmente assustado, para além dos limites. Disse que, sem dúvida, a forma como eu tinha selado a moldura do espelho, com o alcatrão, tinha evitado que a água penetrasse por trás do espelho. Considerou isso como um factor decisivo, que tinha impedido o aliado de despedaçar o espelho.

- Que pena – disse ele. – Se calhar, você ia gostar daquele aliado. A propósito, não era o mesmo que apareceu no dia anterior. O segundo era parecidíssimo consigo.

- Você também tem alguns aliados, don Juan? – perguntei.

- Como você sabe, eu tenho os aliados do meu benfeitor – disse ele. – Não posso dizer que sinto por eles o mesmo que o meu benfeitor sentia. Ele era um homem sereno, mas profundamente apaixonado, que, prodigamente, dava tudo o que tinha, inclusive a sua energia. Ele amava os seus aliados. Para ele, não era difícil permitir que os aliados usassem a sua energia para se materializarem. Havia um, em particular, que podia assumir uma forma humana um tanto grotesca.

Don Juan continuou a contar que, dado que não era nada parcial em relação aos aliados, nunca me tinha ajudado a saboreá-los devidamente, como o seu benfeitor tinha feito com ele, enquanto estava a recuperar da ferida no peito. Tudo começou com a ideia de que o seu benfeitor era um homem estranho. Acabado de escapar das garras de um pequeno tirano, don Juan suspeitou que tinha caído noutra armadilha. A sua intenção era esperar alguns dias, para recuperar as suas forças e, então, fugir, quando o velho não estivesse em casa. Mas o velho deve ter lido os seus pensamentos, porque, um dia, num tom confidencial, segredou a don Juan que ele tinha que se curar o mais rapidamente possível, para que ambos pudessem escapar ao seu captor e torturador. Então, a tremer de medo e impotência, o velho abriu a porta e um homem horroroso, com cara de peixe, entrou na sala, como se tivesse estado a escutar à porta. Era verde-acinzentado, tinha um único olho, que não piscava, e era grande que nem uma porta. Don Juan disse que ficou tão surpreendido e aterrado, que desmaiou, e levou anos a tentar esquecer o impacte daquele susto.

- Os aliados são úteis para si, don Juan? – perguntei.

- É muito difícil decidir isso – disse ele. – De certa forma, amo os aliados que o meu benfeitor me deu. Eles são capazes de retribuir com uma incrível afeição. Mas são incompreensíveis, para mim. Foram-me oferecidos para minha companhia, para o caso de me ver sozinho na imensidão das emanações da Águia (in ob. cit., pp. 105-119).







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