quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A ciência da dedução

Escrito por Sir Arthur Conan Doyle







Consta que a personagem ficcional de Sherlock Holmes, criada por Arthur Conan Doyle, tenha sido particularmente inspirada num cirurgião de Edimburgo, chamado Joseph Bell (1837-1911). Professor do afamado contista e romancista, Bell parece ter realmente marcado o espírito do discípulo mediante a sua capacidade para, com base na observação minuciosa, deduzir os hábitos e o percurso de vida de uma qualquer pessoa por ele nunca antes vista. Ora, são precisamente tais atributos que estão na base do método de observação e dedução do mais inusitado e extravagante detective alguma vez conhecido.

De resto, um tal método exige que o espírito se liberte de toda e qualquer suposição perante o desenrolar da investigação criminal. E daí o facto de o observador permanecer numa atitude expectante e o mais discreta possível para não perturbar, obscurecer ou desvirtuar a espontaneidade sinalética da percepção. Deste modo, importa que o factor subjectivo jamais prevaleça sobre a objectividade da relação cognoscível.

No fundo, as circunstâncias do caso configuram mais uma orientação do que um obstáculo. Depois, segue-se a análise, uma vez que a catálise não permite desvendar a simplicidade implícita do caso pendente. Um
 exemplo do processo analítico pode, aliás, ser encontrado num conto de Sherlock Holmes editado e publicado pela revista Beeton’s Christmas Annual (Novembro de 1887), intitulado «Um Estudo em Vermelho». Vejamos, pois, um trecho do mesmo:

«…o essencial – diz Sherlock Holmes – é saber raciocinar retrospectivamente. É um processo muito útil, e muito fácil, mas poucos se servem dele. Nos assuntos quotidianos é mais útil raciocinar para a frente, na direcção do tempo, de maneira que o processo inverso vai sendo esquecido. Há 50 pessoas que raciocinam sinteticamente para cada uma capaz de raciocinar analiticamente.

- Confesso que não o compreendo muito bem – disse eu
[Watson].

- Já o esperava. Vejamos se me faço entender melhor. A maioria das pessoas, depois de você descrever uma série de acontecimentos, dir-lhe-ão quais as suas consequências. Como podem concatená-los mentalmente, são capazes de deduzir o que provavelmente se passará. Mas há alguns que, conhecendo apenas as consequências, são capazes de deduzir os acontecimentos que as provocam. Refiro-me a essa capacidade, quando falo em raciocinar retrospectivamente, ou analiticamente.

- Compreendo agora» (cf. Sir Arthur Conan Doyle, «Um Estudo em Vermelho», in Histórias Completas de Sherlock Holmes, Marujo Editora, 1986, Vol. I, p. 137).







Ver aqui



Porém, convém notar que o raciocínio dedutivo de Sherlock Holmes é o raciocínio de um especialista em matéria de sindicância policial. Logo, permanece aquém do raciocínio silogístico prenunciador da arte de filosofar. Mas, ainda assim, permite-nos reverter para a seguinte analogia: se a dedução de Sherlock Holmes é inversamente proporcional à metodologia científica da Scotland Yard, a lógica de Aristóteles é, por seu turno, uma lógica proporcionalmente inversa ao positivismo triunfante. E, por isso, se Holmes, divisando as consequências de um acontecimento, parece, de facto, alcançar, por recurso à dedução retroactiva, as causas que mais propriamente o determinam, à lógica de Aristóteles caberá, por fim, o movimento retrógrado do logismo da conclusão para o conceito mediador.

Fica assim, a par da analogia, o enigma. E, no ínterim, fica outrossim a transcrição do capítulo II tirado do conto «Um Estudo em Vermelho», já depois de Holmes e Watson se terem conhecido e acordado partilharem as despesas de um apartamento no 221-B da Baker Street.

Miguel Bruno Duarte





A CIÊNCIA DA DEDUÇÃO


Encontrámo-nos no dia seguinte conforme combinado, e fomos ver o apartamento no 221-B da Baker Street, que consistia de dois confortáveis quartos de cama e de uma espaçosa sala de estar, alegremente mobilada e iluminada por duas amplas janelas. Ele preenchia tão bem as nossas necessidades e o preço era tão módico, assim dividido por dois, que imediatamente o alugámos e recebemos a chave. Nessa mesma tarde mandei vir do hotel as minhas coisas, e na manhã seguinte Sherlock Holmes chegou com as suas caixas e maletas. Durante um dia ou dois estivemos ocupados com a arrumação dos nossos objectos pessoais. Feito isto, começámos, pouco a pouco, a adaptar-nos no nosso novo ambiente.

Evidentemente, a convivência com Holmes não era difícil. Tinha hábitos tranquilos e regulares. Era raro vê-lo em pé depois das dez horas da noite e invariavelmente já preparara o seu pequeno-almoço e saíra quando eu me levantava da cama. Às vezes passava o dia no laboratório químico, outras, na sala de dissecação e ocasionalmente em longos passeios, que pareciam levá-lo aos bairros mais sórdidos da cidade. Nada era capaz de ultrapassar a sua energia quando tomado por um acesso de actividade.

À medida que as semanas passavam, o meu interesse por ele e a minha curiosidade quanto aos seus objectivos na vida iam gradualmente aumentando em extensão e profundidade. Até o seu físico era tal que despertava a atenção do mais descuidado observador. Quanto à estatura, passava de um metro e oitenta, mas era tão magro que parecia mais alto ainda. Os olhos eram agudos e penetrantes e o nariz delgado, aquilino, acrescentava às suas feições um ar de vigilância e decisão. Também o queixo, quadrado e forte, indicava nele o homem resoluto. As mãos andavam invariavelmente salpicadas de tinta e manchadas por substâncias químicas, mas possuíam uma extraordinária delicadeza de tacto, como frequentemente tive ocasião de notar ao vê-lo manipular os seus frágeis instrumentos de alquimista.


Jeremy Brett no papel de Sherlock Holmes



Sob pena de ser considerado um grande intrometido, confesso que aquele homem instigava a minha curiosidade, e que muitas vezes procurei vencer as reticências com que guardava tudo quanto lhe era pessoal. Todavia, tenho a meu favor a circunstância de que a minha vida era inteiramente desprovida de objectivo e, consequentemente, bem poucas eram as coisas que me podiam atrair a atenção. A minha saúde impedia-me que me aventurasse a sair de casa, a menos que o tempo estivesse excepcionalmente benigno, e não tinha amigos que, visitando-me, quebrassem a monotonia da minha existência quotidiana. Em tais circunstâncias, o pequeno mistério que cercava o meu companheiro constituía para mim uma rara oportunidade de interesse, e eu passava a maior parte do tempo procurando resolvê-lo.

Holmes não estudava medicina. Ele próprio, em resposta a uma pergunta minha, confirmara a opinião de Stamford sobre esse ponto. Também não parecia ter feito qualquer curso regular que o habilitasse a integrar-se em algum ramo da ciência ou a penetrar nos umbrais do mundo erudito. Contudo, o seu zelo por outros estudos era notável, e, dentro de limites excêntricos, o seu conhecimento era tão extraordinariamente amplo e minucioso, que as suas observações me causavam grande espanto. Evidentemente, nenhum homem trabalharia tanto para adquirir informações tão precisas se não tivesse em vista um objectivo bem definido. Leitores desorganizados dificilmente se fazem notar pela exactidão dos seus conhecimentos. E ninguém sobrecarregava o cérebro com minudências especiais, a menos que tenha um bom motivo para fazê-lo.

Por outro lado, a sua ignorância era tão notável quanto a sua cultura. Sobre a literatura, filosofia e política contemporânea, parecia saber pouco ou nada. Ouvindo-me citar Thomas Carlyle, perguntou-me com a maior ingenuidade quem era ele e o que tinha feito. A minha surpresa atingiu o máximo, no entanto, quando verifiquei por acaso que ignorava a teoria de Copérnico e a composição do sistema solar. Ver uma pessoa civilizada, em pleno século XIX, desconhecer que a Terra girava em torno do Sol parecia-me um facto tão extraordinário que eu mal podia acreditar nele.

– Você parece atónito – disse ele sorrindo ante a minha expressão de surpresa. – Pois agora que sei disso, tratarei de esquecê-lo o mais depressa possível.

– Esquecê-lo?!

– Veja – explicou-me: – Considero o cérebro de um homem como sendo inicialmente um sótão vazio, que você deve mobilar conforme tenha resolvido. Um tolo atulha-o com quanto traste vai encontrando à mão, de maneira que os conhecimentos de alguma utilidade para ele ficam soterrados ou, na melhor das hipóteses, tão escondidos entre as demais coisas que lhe é difícil alcançá-los. Um trabalhador especializado, pelo contrário, é muito cuidadoso com o que leva para o sótão da sua cabeça. Não quererá mais nada além dos instrumentos que possam ajudar o seu trabalho; destes é que possui uma larga provisão, e todos na mais perfeita ordem. É um erro pensar que o dito quartinho tem paredes elásticas e pode ser distendido à vontade. Segundo as suas dimensões, há sempre um momento em que para cada nova entrada de um conhecimento a gente esquece qualquer coisa que sabia antes. Consequentemente, é da maior importância não ter factos inúteis a ocupar o espaço dos úteis.





– Mas o sistema solar! – protestei.

– Que importância tem para mim? – interrompeu-me ele com impaciência. – Você diz que giramos em torno do Sol. Se girássemos em volta da Lua, isso não faria a menor diferença para o meu trabalho.

Estive a ponto de perguntar-lhe qual era esse trabalho, mas qualquer coisa na sua maneira me indicava que a pergunta não seria bem recebida. Reflecti, no entanto, sobre a nossa breve conversação, e esforcei-me por tirar algumas deduções. Ele dissera procurar exclusivamente os conhecimentos que se relacionassem com o seu objectivo. Por conseguinte, todos os conhecimentos que possuía eram-lhe necessariamente úteis. Enumerei mentalmente todos os diversos pontos sobre os quais se revelara excepcionalmente bem informado. Servi-me mesmo de um lápis e fui-os anotando. Não posso deixar de sorrir ao ver o documento resultante das minhas observações. Ei-lo:


CONHECIMENTOS DE SHERLOCK HOLMES


1. Literatura: zero.

2. Filosofia: zero.

3. Astronomia: zero.

4. Política: escassos.

5. Botânica: variáveis. Conhece a fundo a beladona, o ópio e os venenos em geral. Nada sabe sobre a jardinagem e horticultura.

6. Geologia: práticos, mas limitados. Reconhece à primeira vista as diversas qualidades de solo. No regresso dos seus passeios, mostra-me manchas nas calças, e diz-me pela sua cor e consistência em que parte de Londres as apanhou.

7. Química: profundos.

8.Anatomia: exactos, mas pouco sistemáticos.

9. Literatura sensacional: imensos. Parece conhecer todos os pormenores de todos os horrores perpetrados neste século.

10. Toca bem o violino.

11.É habilíssimo em boxe, esgrima e bastão.
















Sherlock Holmes versus Professor Moriarty. Ver aqui





























12. Tem um bom conhecimento prático das leis inglesas.

Quando cheguei a este ponto da minha lista, perdi o ânimo e atirei-a para o fogão. “Se a única maneira de descobrir o objectivo deste homem consiste em conciliar tais qualidades e depois buscar uma profissão que as exija – disse comigo –, mais vale renunciar de uma vez a semelhante tentativa”.

Já me referi aos seus dotes de violinista. Eram, com efeito, notáveis, mas tão excêntricos quanto as suas demais habilidades. Que ele tocava peças difíceis, sabia-o eu, pois a meu pedido havia executado alguns Lieder de Mendelssohn e outras músicas da minha preferência. Todavia, quando entregue a si próprio, raramente interpretava alguma peça ou melodia conhecidas. Recostado na sua poltrona, ao cair da tarde, fechava os olhos e ficava a passar o arco no violino que tinha sobre os joelhos. Às vezes os acordes eram sonoros e melodiosos, outras vezes fantásticos e vivazes. Reflectiam, evidentemente, os pensamentos que o ocupavam, mas se a música ajudava esses pensamentos, ou se tocar era apenas o resultado de capricho ou fantasia, eis o que eu não podia determinar. Teria os meus motivos para protestar contra semelhantes solos, se não fosse a circunstância de ele, geralmente, acabar por tocar em rápida sucessão toda uma série das minhas peças predilectas, como que para recompensar a minha paciência. Durante uma ou duas semanas, não recebemos visitas, e eu começava a pensar que o meu companheiro tinha tão poucos amigos como eu. Mas pouco depois descobri que ele possuía muitas relações, e nas mais diferentes classes da sociedade. Havia, por exemplo, um homenzinho pálido, de olhos escuros, com cara de rato, que apareceu três ou quatro vezes numa semana, e me foi apresentado como o Sr. Lestrade. Certa manhã surgiu uma jovem, elegantemente vestida, que se demorou cerca de meia hora ou mais. Na mesma tarde veio um homem grisalho, cansado, com tipo de negociante judeu, que parecia muito alvoraçado, e foi imediatamente seguido de uma senhora idosa e mal vestida. Noutra ocasião, um senhor de cabelos brancos teve uma entrevista com o meu companheiro; e ainda noutra, um chefe de caminhos-de-ferro com o seu uniforme de belbutina.

Quando surgia algum desses estranhos visitantes, Sherlock Holmes costumava pedir-me a sala de estar e eu recolhia-me no meu quarto. Nunca deixava de pedir-me desculpa por tal inconveniente.

– Tenho de usar esta sala como escritório – dizia-me ele. – Todas estas pessoas são meus clientes.

Era uma excelente oportunidade para lhe fazer uma pergunta directa, mas a minha discrição novamente me impedia de forçar a ter confiança em mim. Parecia-me, então, que devia ter fortes motivos para não aludir à sua profissão, mas rapidamente dissipou semelhante ideia ao referir-se espontaneamente ao assunto.

Estávamos no dia 4 de Março (e tenho bons motivos para me lembrar). Levantei-me um pouco mais cedo do que de costume e encontrei Sherlock Holmes a tomar o seu café. A nossa criada estava tão habituada aos meus hábitos de dorminhoco que ainda se não preocupara com o meu lugar à mesa nem preparara o meu café. Com a desarrazoada petulância do género humano, toquei a campainha e anunciei que a esperava. Depois, tirei uma revista de cima da mesa e tentei passar o tempo com ela, enquanto o meu companheiro mastigava silenciosamente a sua torrada. Um dos artigos tinha o cabeçalho sublinhado a lápis, e eu, naturalmente, comecei a percorrê-lo com os olhos.




O título um tanto pretensioso era O Livro da Vida, e ali se procurava demonstrar quanto um homem observador podia aprender por intermédio do exame aturado e sistemático de tudo que encontrasse. Aquilo dava-me a impressão de uma curiosa mistura de argúcia e absurdo. O raciocínio era denso e penetrante, mas as deduções pareciam-me rebuscadas e cheias de exagero. O autor pretendia que uma expressão momentânea, o repuxar de um músculo ou um volver de olhos eram o bastante para que se pudesse sondar os pensamentos mais íntimos de um homem. Na sua opinião, era impossível iludir a observação e análise de quem nelas se exercitasse com método e afinco. As conclusões de tal pessoa seriam tão infalíveis como outras proposições de Euclides. E os resultados seriam de tal maneira surpreendentes para os leigos que, antes de aprenderem os processos pelos quais o observador os obtivera, haveriam de considerá-lo como um adivinho.

“De uma gota de água – afirmava o autor – um raciocinador lógico poderia inferir a possibilidade de um Atlântico ou de um Niágara, sem ter visto ou ouvido um ou outro. Assim, toda a vida é uma grande cadeia cuja natureza se revela ao examinarmos qualquer dos elos que a compõem. Como todas as outras artes, a Ciência da Dedução e Análise só pode ser adquirida por meio de um demorado e paciente estudo, e a vida não é tão longa que permita a um mortal o aperfeiçoar-se ao máximo nesse campo. Antes de passar aos aspectos morais e mentais de um assunto que apresenta as maiores dificuldades, o pesquisador deve principiar por se assenhorear dos problemas mais elementares. Ao encontrar um semelhante, aprenda a distinguir imediatamente qual a história do homem e o mister ou profissão que exerce. Por mais pueril que este exercício possa parecer, aguça as faculdades de observação e ensina para onde se deve olhar e o que procurar. Pelas unhas de um homem, pela manga do seu casaco, pelos seus sapatos, pelas joelheiras nas calças, pelas calosidades do seu indicador e polegar, pela sua expressão, pelos punhos da camisa… em cada uma destas coisas a profissão de um homem é claramente indicada. Que o conjunto delas deixe de esclarecer um indagador competente, em qualquer caso, é virtualmente inconcebível”.

– Que grande aldrabice! – examinei, batendo com a revista na mesa. – Nunca li tamanha tolice em toda a minha vida.

– De que se trata? – perguntou Sherlok Holmes.

– Ora, deste artigo – respondi, indicando-o com a colher, ao sentar-me para comer o meu ovo. – Vejo que já o leu, pois está sublinhado. Não nego que esteja escrito com inteligência. Contudo, irrita-me. Trata-se, evidentemente, das teorias de algum desocupado, que elabora todos esses paradoxos sem deixar a poltrona do seu gabinete. Não têm aplicação prática. Eu gostaria de o ver encerrado num vagão de terceira classe do caminho-de-ferro subterrâneo a fim de lhe perguntar quais as profissões de todos os demais passageiros. Apostaria mil por um contra ele.

– Perderia o seu dinheiro – observou Holmes calmamente. – Quanto ao artigo, fui eu que o escrevi.

– Você?!

– Sim, tenho certa queda tanto para a observação como para a dedução. As teorias que expus aí, e que lhe parecem tão quiméricas, são na verdade muitíssimo práticas… tão práticas que dependo delas para viver.

– Como? – perguntei involuntariamente.






– Eu tenho cá o meu ofício. Suponho, aliás, que seja o único em todo o mundo. Sou um detective de consultas, se compreende o que estou a dizer. Aqui em Londres, temos uma grande quantidade de detectives oficiais e particulares. Quando esses cavalheiros ficam desorientados, vêm ter comigo e eu trato de os pôr na pista certa. Expõem-me todos os indícios e eu, geralmente, com a ajuda dos meus conhecimentos da história criminal, aponto as suas falhas e esclareço-os. Entre os delitos há um acentuado ar de parentesco, e quem possui todos os pormenores a respeito de mil deles dificilmente falhará ao desvendar o milésimo primeiro. Lestrade é um detective muito conhecido. Recentemente ficou às cegas num caso de falsificação, e foi isso que o trouxe aqui.

– E as outras pessoas?

– Na maior parte são mandadas por agências particulares de investigação. Trata-se de gente que tem uma dificuldade qualquer e precisa de esclarecimentos. Ouço-lhes as histórias, elas ouvem os meus comentários, e depois embolso os meus emolumentos.

– Por outras palavras, você afirma que sem sair do seu quarto é capaz de desatar certos nós que outros homens não conseguem desfazer apesar de terem visto todos os pormenores com os seus próprios olhos?

– Exactamente. Tenho uma certa intuição nesse sentido. De quando em quando surge um caso mais complexo do que os outros. Só então é que preciso de andar um pouco por aí a fim de ver as coisas de perto. Como vê, disponho de conhecimentos especiais que aplico aos problemas surgidos, conhecimentos que facilitam maravilhosamente a minha tarefa. Essas regras de dedução expostas no artigo que provocou o seu desprezo são-me preciosas e eu aplico-as praticamente no meu trabalho. A observação é em mim uma segunda natureza. Você pareceu surpreso quando eu lhe disse, ao vê-lo pela primeira vez, que voltara do Afeganistão.

– Foi informado, sem dúvida.

– Nada disso. Eu vi que você voltava do Afeganistão. Devido a um longo hábito, a concatenação do raciocínio é tão rápida no meu espírito que cheguei àquela conclusão sem ter consciência dos elos intermediários. Mas esses elos lá estavam. E o fio que o meu raciocínio seguiu foi mais ou menos este: “Eis aqui cavalheiro com ar de médico, mas ao mesmo tempo com gestos de militar. É evidentemente um médico do exército. Acaba de chegar dos trópicos, porque tem o rosto amorenado e essa não é a cor natural da sua pele, visto que os punhos são brancos. Sofreu privações e enfermidades, conforme o demonstra o rosto emaciado. Além do mais, recebeu um ferimento no braço esquerdo, visto que o mantém numa posição rígida e pouco natural. Em que lugar dos trópicos um médico do exército inglês poderia ter passado tantas dificuldades e ser ferido no braço? No Afeganistão, naturalmente”. Toda essa série de raciocínios não ocupou mais do que um segundo. Observei-lhe, consequentemente, que você regressava do Afeganistão e vi a sua surpresa.

– Explicada dessa forma, a coisa parece bastante simples – disse eu, sorrindo. – Você faz-me lembrar o Dupin, de Edgar Allan Poe. Não fazia a menor ideia de que tais pessoas existissem na vida real.



Edgar Allan Poe



Sherlock Holmes levantou-se e acendeu o seu cachimbo.

– Julga, sem dúvida, fazer-me um cumprimento comparando-me a Dupin – observou. – Pois, na minha opinião, Dupin era um tipo medíocre. Aquele seu estratagema de intervir nos pensamentos do seu amigo, depois de um quarto de hora de silêncio, é pretensioso e superficial. Concedo-lho, sem dúvida, certa capacidade analítica, mas não era de modo nenhum o fenómeno que Poe poderia imaginar.

– Já leu as obras de Gaborian? – perguntei. – Lecoq corresponde à sua concepção de um detective ideal?

– Lecoq era um grande trapalhão – disse com veemência. – Só uma coisa o recomendava: a sua energia. A leitura de Monsieur Lecoq causou-me náuseas. O problema consistia em identificar um prisioneiro desconhecido. Eu tê-lo-ia feito em vinte e quatro horas. Lecoq precisou de mais ou menos seis meses. Esse livro bem poderia ser um manual para ensinar aos detectives o que não devem fazer.

Senti-me um tanto indignado ao ver tratados dessa maneira duas personagens que eu admirava. Caminhei até à janela e fiquei a olhar para o movimento da rua. Talvez aquele homem fosse muito arguto, pensava eu, mas não havia dúvidas que era pretensioso.

– Não há mais crimes que criminosos nos nossos dias – disse ele em tom queixoso. – De que serve possuir inteligência na nossa profissão? Sei perfeitamente que tenho qualidades para tornar o meu nome famoso. Não há nem houve até agora no mundo um homem que tenha dedicado à investigação criminológica tamanho estudo e vocação natural como eu. E qual é o resultado? Não há nenhum crime a desvendar, ou, quando muito, só alguma vilania grosseira e com um móbil tão transparente que até um funcionário da Scotland Yard é capaz de enxergá-lo.

Aborrecia-me também aquela sua maneira presunçosa de falar, e por isso resolvi mudar de assunto.

– Que estará procurando aquele tipo – perguntei, apontando para um homem forte, modestamente vestido, que caminhava vagarosamente pela calçada fronteira, examinando os números das casas. Trazia na mão um grande sobrescrito azul e era evidentemente o portador de uma mensagem.

– Refere-se àquele sargento aposentado da Marinha? – perguntou-me Sherlock Holmes.
“Grande fanfarrão!”, pensei com os meus botões. “Ele sabe perfeitamente que não posso verificar semelhante afirmação”.

Tal pensamento mal me havia passado pela mente quando o homem que estávamos a observar, vendo o número da nossa porta, atravessou a rua rapidamente. Ouvimos pancadas enérgicas no rés-do-chão, uma voz grave e em seguida ruído de passos decididos na escada.

– Para o Sr. Sherlock Holmes – disse ele ao entrar na sala, entregando a carta ao meu amigo.

Ali estava uma oportunidade para lhe desmascarar a presunção. Ele certamente a não previra ao fazer aquela observação a esmo.

– Posso perguntar-lhe, meu amigo – disse eu com a maior brandura possível –, qual é a sua profissão?

– Estafeta, senhor – respondeu ele de mau modo. – Uniforme em conserto.

– E antes disso, que fazia? – perguntei, lançando um olhar malicioso para o meu companheiro.

– Era sargento, senhor, sargento de infantaria da Marinha. Não tem resposta, Sr. Holmes? Perfeitamente, senhor.

Bateu os calcanhares, fez uma continência enérgica e saiu (in ob. cit., pp. 16-26).












Arthur Conan Doyle















Houdini e Arthur Conan Doyle




























































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