segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A Rússia regressa às nascentes (ii)

Escrito por Henri Massis



No tempo dos Romanov a Rússia apresentava-se como a guarda-avançada da Europa na Ásia; a Rússia bolchevista, porém, voltou a ser o que era na época dos grandes «cans» tártaros e mongóis: a guarda-avançada da Ásia na Europa. Levar a Rússia a regressar às suas nascentes – foi a ideia mestra de Lenine, simplificador audacioso que soube aproveitar o desconcerto da consciência europeia para restituir o seu país ao seu verdadeiro destino. E por isso o povo russo nele reconheceu o descendente daqueles grandes autocratas que governaram com os olhos postos na Ásia, cuja sucessão Pedro o Grande interrompera.

Nas suas camadas obscuras, a velha Rússia nunca aceitou as ideias importadas da Europa pelos czares. Como asiáticos que eram, os russos nunca se sentiram ligados aos destinos históricos das outras raças do Oeste; e a luta entre «eslavófilos» e «ocidentalistas», cujos sangrentos episódios enchem os anais da Rússia moderna, é de certa maneira a prefiguração do grande drama de que somos espectadores. Esse problema é o problema russo por excelência. Nele se reencontram todos os temas e todos os agravos de que a propaganda bolchevista se apropriou para despertar nas almas a velha fibra asiática – factores que as fatalidades conjugadas da natureza e da história impuseram a esse grande povo de nómadas que de um lado se apoia na China e do outro na Alemanha, e que parece não saber para que mundo nasceu. «Nunca marchámos com os outros povos – dizia Tchaadaiev; não pertencemos a nenhuma das outras famílias do género humano. Não somos nem do Oriente nem do Ocidente, nem nos dizem respeito as tradições de um ou do outro».


O Passado Russo

A «provação histórica» da Rússia, atraída alternadamente por pólos contrários, várias vezes arrojada da Europa para a Ásia e da Ásia para a Europa, é exprimida pela sua literatura num interminável lamento; e dir-se-á que o eco do seu monótono queixume se perde nas lonjuras da infinda planície.

Exilado nos confins de todas as civilizações do mundo, fora das regiões em que as luzes da fé e da ciência primitivamente se concentraram, longe das fontes donde manaram durante tantos séculos, esse povo sofreu antes de mais nada a sua solidão. No seu grande corpo informe que se alonga por milhares de «verstas» até às estepes asiáticas donde, pelos séculos fora, surgiram sucessivas hordas de saqueadores, nada é sólido, limitado, determinado e tudo se iguala e se confunde. Soloviev via na ausência da pedra – da pedra que deu solidez aos nossos edifícios e precisão às relações interiores dos nossos Estados e dos nossos povos – o factor que privara o camponês russo do sentido da continuidade e do esforço. Nenhuma delimitação nítida entre as regiões do seu enorme país. Ausência de moradias estáveis que fosse penoso abandonar; apenas cabanas de madeira incessantemente destruídas pelo fogo. Daí a sua indiferença pela propriedade individual, esse vago sentimento comunista que é feito menos de desinteresse do que de imprevidência e de relaxamento. Dir-se-ia que nada o prende sobre o solo e que qualquer coisa o fascina sem cessar, chamando-o para outro lado, para a miragem perturbante do indefinido horizonte. Paralelamente, as suas amarras à própria vida são também indecisas e flutuantes. Esse nomadismo, essa falta de fixidez, essa necessidade de mudar de lugar, esse famoso espírito boisak – formam o traço característico do povo russo (14).

Ao contrário dos nossos, os seus camponeses não sentiram a combativa aspiração de se firmarem no ponto escolhido e de influenciarem, segundo os seus interesses, o meio que os cercava. Máximo Gorki podia ainda escrever em 1920: «O homem do Ocidente, logo que começa a andar, vê por toda a parte resultados monumentais do trabalho dos seus antepassados. Dos canais da Holanda até às vinhas do Vesúvio, do grande labor da Inglaterra às potentes fábricas da Silésia, toda a terra da Europa lhe aparece abundantemente marcada pelas encarnações grandiosas da vontade organizada dos homens, que se impôs o arrogante objectivo de submeter as forças elementares da natureza aos racionais interesses humanos. Com as suas mãos, o homem domina a terra; é efectivamente o seu senhor. A criança do Ocidente suga essa impressão, que nela forma a consciência do valor humano, o respeito pelo seu trabalho e o sentimento da sua importância pessoal como herdeiro dos prodígios do esforço e da obra dos seus melhores» (15). E Gorki concluía: «Na alma do camponês russo não saberiam nascer tais ideias, sentimentos idênticos, semelhantes apreciações. A planura sem fim onde se perdem os seus lugarejos de madeira, cobertos de colmo, tem a perniciosa propriedade de esvaziar o homem, de secar-lhe os desejos. O camponês sai dos limites da sua aldeia, olha à sua volta, e depressa sente que esse vazio inunda a sua alma. Em parte alguma avista traços duradouros do trabalho e da criação… Ao redor a planície ilimitada e ao centro um pobre, ínfimo homem, atirado àquela terra fastidiosa para executar tarefas de forçado. E o homem sacia-se desse sentimento de indiferença que mata a capacidade de pensar, que impede a lembrança da vida passada e que não deixa extrair a menor experiência das ideias» (16).














O povo russo é um povo sem experiência histórica. Não teve Idade Média; faltou-lhe a longa e laboriosa educação dos povos europeus. Primeiro a barbárie brutal, lutas de tribo contra tribo que continuaram dois ou três séculos depois de terem terminado no Ocidente; a seguir, o cristianismo viciado pelo espírito do Baixo Império; depois, ante que pudesse germinar essa semente, surgiu a invasão mongol, o refluxo para a Ásia – que voltou a assenhorear-se da sua presa. Seguiram-se quatrocentos anos de dominação estrangeira, sob o jugo feroz dos grandes «cans» tártaros que amoldavam os seus vassalos aos costumes degradantes do despotismo oriental. Tal foi a mocidade desse povo, colonizado pelos invasores asiáticos mal saiu do paganismo.

A Rússia não conheceu a adolescência das nações, essa época das grandes paixões colectivas, de exuberante actividade, de exaltado jogo das forças morais, cuja memória se transmite às gerações futuras que dela tiram lição e proveito. Viveu os seus primeiros anos numa espécie de imóvel entorpecimento, mantendo-se em caótica fermentação até o limiar dos tempos modernos. «Ainda nos encontramos» - dizia Turgueniev - «no período gaseiforme».

Por isso o contributo do povo russo à civilização foi quase nulo. Não deve esquecer-se que a Rússia está apenas a uns cinco séculos da invasão dos bárbaros, ao passo que a velha Europa sofreu a mesma crise já há mais de catorze séculos. Uma tal civilização mil anos mais antiga interpõe incomensurável distância entre os costumes das nações. É esta diferença fundamental o traço dominante que isola o povo russo, situando-o num ambiente rarefeito e separando-o dos destinos históricos do resto da humanidade.

Tchaadaiev exprimiu melhor que ninguém o infeliz destino da sua raça, localizada como que fora do tempo e do alcance da cultura universal do género humano (17): «Vindos ao mundo como filhos ilegítimos, sem herança e sem ligação com os homens que nos precederam à face da terra, nada temos nos nossos corações dos ensinamentos anteriores às nossas próprias experiências. O que é hábito e instinto nos outros povos, temos nós de meter às marteladas nas nossas cabeças. Somos a bem dizer, estrangeiros a nós próprios. Marchamos no tempo por forma tão singular que, à medida do nosso avanço, a véspera foge-nos para sempre – consequência natural duma cultura de importação e de imitação. Entre nós não há desenvolvimento íntimo, progressão natural; as ideias novas varrem as antigas, porque não provêm delas: surgem não se sabe donde. Porque não acolhemos senão ideias feitas, não marca as nossas inteligências o sulco inapagável que todo o movimento progressivo grava nos espíritos e que faz a sua força. Crescemos, mas não amadurecemos».

Assim, a inteligência russa não encontrou em parte alguma o património de ideias hereditárias, de noções adquiridas que ligam o presente ao passado e fornecem ao espírito possibilidade de acção fecunda (18). Estranha situação a desse povo, para quem parece nula a experiência dos tempos, como se a lei da humanidade tivesse sido abolida para si, e que somente se ajustou ao movimento do pensar humano quando despertou do seu longo torpor, imitando os outros povos cegamente mas por forma desajeitada e superficial. Foram-lhe impostos todos os factos importantes da sua história e recebeu de fora quase todas as novas ideias que abraçou. Como poderia ser diferentemente? Se Pedro o Grande tivesse encontrado na sua nação uma história rica e fecunda, tradições vivas, instituições profundamente arreigadas, não teria hesitado em a cortar do seu passado? E não teria, pelo contrário, nelas procurado as bases da regeneração do seu país? (19) Viu, porém, que lhe faltava quase completamente qualquer «base histórica», visto que a história de um povo não se compõe somente de uma série de factos que se sucedem no tempo, mas também de um encadeado de ideias inscritas profundamente nas almas. Na história deve circular um pensamento e um princípio que se desenvolvam ao longo dos sucessos e lhes dêem orientação e sentido.



Pedro, o Grande (1672-1725).




A Religião Russa


A religião, mesmo quando considerada somente do ponto de vista da ordem humana, é a grande força que imprime à história o carácter geral pelo qual um povo toma consciência da sua vocação própria e se associa ao fim que ela propõe à sociedade inteira. Donde provirá que a Rússia, de certa maneira, fosse privada dos benefícios do cristianismo, ao passo que os outros países da Europa lhe devem todos os elementos do seu progresso social? A única tradição que possuiu, em lugar de a associar aos empreendimentos da cristandade, isolou-a ainda mais subtraindo-a à influência do poder moral que transformava o mundo.

Quem quiser compreender o estranho destino do povo russo deve interrogar a sua história religiosa, porque, até ao último século, a religião foi a única língua em que pôde exprimir-se. E aos que pretendem que a Rússia não saberia escapar à influência da cultura europeia, responde-se-lhes como Dostoievsky: «Há uma cultura que não temos necessidade de ir buscar à nascente ocidental, porque é de raiz russa… Afirmo que o nosso povo se cultivou há muito, desde que assimilou a essência da doutrina cristã», E Dostoievsky acrescentava: «Objectar-me-ão: o povo russo não conhece a doutrina cristã e não ouve qualquer prédica. Trata-se, porém, de uma objecção vazia de sentido: o povo russo sabe tudo, tudo o que é preciso saber, embora lhe possa acontecer ficar reprovado num exame de catecismo. Instruíu-se nas igrejas onde, durante séculos, ouviu orações e hinos que valem mais do que os sermões» (20).

Basta dizer que se o coração do povo russo é sensível às comoções religiosas – a sua devoção e o seu misticismo testemunham-nos – compreende mal a doutrina de Cristo e os dogmas da Igreja. Por isso não devemos espantar-nos de que, privado há séculos, por culpa dos seus chefes espirituais, de luzes doutrinais verdadeiramente vivificantes, e deixado sem qualquer firme direcção moral e religiosa salvo quanto à execução mais ou menos estrita da parte exterior do culto, se tivesse entregue a superstições que lhe mascaram a verdadeira fé, abrem a sua alma a mórbidos terrores, a inquietações irracionais que o abalam dolorosamente (21).

As mais singulares aberrações, espalhadas por inumeráveis seitas, partilharam a sua alma atormentada e ávida; não houve absurdo ou imoralidade que não encontrasse prosélitos e adeptos entre esse povo infeliz e ignorante. Era decerto nessas monstruosas heresias que pensava Joseph de Maistre ao escrever a uma senhora russa: «É preferível negar o mistério do que abusar dele… Os sacramentos são a vida do cristianismo e o elo sensível dos dois mundos; mas o exercício dessas sagradas práticas, quando não for acompanhado por ensino independente, vigoroso e puro, provocará horríveis abusos que produzirão por sua vez a verdadeira degradação moral» (22).

Pammakaristos


Ora o povo russo nunca recebeu semelhante ensino, em que se manifestasse a vida dogmática do cristianismo e, ao mesmo tempo, a sua acção sobre os espíritos e sobre as almas. Nunca os seus guias religiosos lho ministraram. Durante centenas de anos não teve qualquer instrução religiosa (23). Com efeito, não se pode falar de cultura a propósito do ritualismo quase exclusivamente formalista da Igreja ortodoxa, para quem a tradição bizantina foi apenas um princípio de estagnação e de hostilidade ao desenvolvimento. «A Igreja ortodoxa refugiou-se, disse Rozanov (24), numa espécie de angra inacessível a qualquer movimento, ao passo que os povos da Europa ocidental, embarcados no navio romano, penetraram num oceano infinito, prenhe de actividade, de perigos, de poesia e de fermentação criadora, a que se misturou um negro e duro trabalho interior».

Separada pelo cisma de Fócio da fraternidade universal, apartada durante largo tempo dos centros do mundo cristão pela dominação mongol, desviada tanto das antigas fontes cristãs como das nascentes da Antiguidade pelo emprego da liturgia eslavónia (25), não possuindo linguagem comum nem autoridade soberana, a Igreja russa ficou fora do grande movimento unitário em que a ideia católica se formou. Estranha, de certa maneira, aos novos destinos do género humano, não soube engendrar uma doutrina por sua própria conta, nem um princípio cuja influência contribuísse não somente para o progresso da civilização geral mas também para o da humanidade russa. Há duas coisas distintas no cristianismo, embora ambas tendam para o mesmo fim sobrenatural: uma é a sua acção sobre a pessoa humana, a outra a sua acção sobre a sociedade. Pode dizer-se que a inferioridade da vida pública e da vida civil do povo russo provêem em parte da imobilidade intelectual da sua Igreja.

Com efeito, a sua história religiosa completamente absorvida pela revisão literal dos Livros Santos, epilogando sem cessar sobre o Obriad, sobre a forma e o significado da cruz, sobre a ortografia do nome de Cristo ou sobre o número dos prósferos, não pode comparar-se com as grandes controvérsias no pensamento cristão no Ocidente. O clero russo pouco se preocupa com problemas doutrinais; as definições, as deduções lógicas, tudo o que desdenhosamente intitula de «racionalismo latino», inspira-lhe desconfiança. Semelhante desprezo condena simultaneamente a ciência humana e a ciência divina; não deve por isso causar espanto a ausência de teólogos ou de filósofos originais russos. Por esse motivo caíram em desuso a prédica, a direcção, todas as instituições por meio das quais o cristianismo serviu os progressos da moral e da inteligência. Fica-se com a impressão de que o Oriente, cansado pelas suas numerosas heresias, acabou por desconfiar da Palavra viva. Não enunciar o dogma tornou-se o meio de não o alterar.

Nada mais impreciso, aliás, que as fronteiras doutrinais dessa «pravoslávia» que nenhum magistério incontestado dirigia. «Se surgisse um diferendo sobre a matéria puramente teológica, dizia a Srª Swetchine ao pensar no jansenismo e no quietismo que dividiram a França no século XVII, a que tribunal recorreria a Igreja ortodoxa? De tudo isto derivou uma espécie de entorpecimento espiritual que afectou não só a sua vida especulativa mas também as profundezas da sua vida religiosa até ao próprio ideal da santidade.

«Nem pela originalidade do seu carácter ou da sua obra, e ainda menos pela sua influência na história ou na civilização, podem os santos russos igualar-se aos santos da Igreja latina ou sequer aos de uma só nação católica como a Itália, a França, a Espanha. Em vão se procuraria entre eles qualquer figura para opor a um Gregório VII ou a São Bernardo, a um Tomás de Aquino, a um Francisco de Assis, a Francisco de Sales ou a um Vicente de Paula» (26). Essa «falta de personalidade dos bem-aventurados e dos santos russos» não derivará da concepção especificamente asiática do monacato ortodoxo? Em nenhum país o papel dos monges foi mais importante do que na Rússia; mas em parte alguma a sua influência foi menos fecunda. Para o povo, o modelo do religioso era o anacoreta do deserto, o estilita sobre a sua coluna, o gimnosofista cristão coberto pela comprida barba, que figura ainda nas pinturas dos conventos moscovitas, ou os santos sepultados vivos nas catacumbas de Kiev. «Não foi a necessidade de se unirem para melhor enfrentarem a luta, mas o amor da solidão, a renúncia ao mundo e aos seus combates que povoaram outrora os inumeráveis mosteiros da Rússia. Muitos, talvez a maior parte dos monges russos não tinham em vista a actividade intelectual, nem o trabalho manual, nem a caridade, nem o apostolado; pareciam muito mais próximos dos lamas tibetanos do que dos filhos de São Domingos ou de São Bento. Por isso a Rússia não produziu nada que se possa comparar às grandes figuras de monges pacíficos ou guerreiros, homens de acção, escritores e até governantes, que tanto influíram no mundo latino. A Rússia teve monges mas não teve ordens religiosas» (27).



S. Bento de Núrsia



Assim se explicam muitas lacunas do desenvolvimento histórico da Rússia. Nunca soube o que fossem essas grandes controvérsias que enchem a história do Ocidente, essas lutas terríveis entre crenças em que a vida inteira dos povos, guiados pelos seus doutores e pelos seus apóstolos, se tornava uma ideia, um sentimento de potencialidade incomparável. «Podem filósofos superficiais fazer todo o alarido que quiserem a propósito das guerras de religião ou das fogueiras acesas pela intolerância, mas nós» - disse Tchaadaiev - «não podemos senão invejar a sorte dos povos que, nesse choque de opiniões, nesses sangrentos conflitos pela causa da verdade, adquiriram um mundo de ideias de que nos é impossível captar sequer uma imagem».As lutas religiosas que dilaceraram a Rússia, suscitando verdadeira multidão de seitas, nunca tiveram por origem sérias questões de dogmática e moral. No Ocidente, a maior parte das heresias nasceram de audácias do juízo próprio – revoltas do espírito ou do orgulho, - e todas pretenderam justificar-se perante a razão por uma ideologia subversiva da Verdade revelada. Oportet haeresis esse: o pensamento católico tornou-se mais nítido, de certa maneira, nestas controvérsias; e os próprios obstáculos que encontrou puseram à prova a sua força e contribuíram para o seu desenvolvimento, porque nunca se encerra para ele o período das definições doutrinais. Na Rússia há muito fora fechado, e as divisões que perturbaram a ortodoxia não provieram do desregramento do pensar individual nem da ânsia de novidades mas da teimosia, do apego aos velhos usos, do chamado espírito de reverência. Não é o racionalismo que se encontra na raiz das suas heresias. O raskol, a mais famosa de todas, é também a que melhor revela o seu extremo tradicionalismo naturalmente hostil ao verdadeiro progresso religioso. O raskolnik, o estaróvero, é o moscovita que repudia a Europa para continuar asiático. Esses refractários personificam «a oposição da Rússia ao Ocidente, a resistência de um povo, isolado pela geografia e pela história como encerrado na sua própria imensidade, nada conhecendo e nada querendo conhecer a seu próprio respeito» (28).


Rússia e Ocidente

Essa resistência – cuja origem já apontámos – foi posta completamente a nu por Pedro o Grande que transformou uma revolta teológica em revolta social e civil, estabelecendo a divisão no seu império (29). E assistimos, nestes últimos vinte anos, ao epílogo da luta em que o Velho Russo, tornado revolucionário por conservadorismo, levou definitivamente a melhor sobre o reformador «maldito» (30).

É de certo modo desconcertante essa defesa instintiva e pertinaz da Rússia contra o homem que pretendeu ligá-la à ordem ocidental. Teria obscuramente previsto as desordens que essa «europeização», […] ia introduzir na sua vida histórica que mal começara ainda? Teria sentido que Pedro o Grande obrigando os seus vassalos a uma história artificial e falsa e persuadindo-os de que eram o que não são, impedi-los-ia de virem a ser o que poderiam ser?

O criador da Rússia moderna era, porém, suficientemente russo para o sentir; atribuem-se-lhe estas palavras significativas: «Necessitamos da Europa durante algumas décadas, mas depois será preciso virar-lhe as costas». Inteligência predisposta para todas as ciências e para todos os progressos materiais, Pedro I considerava o Ocidente um velhote caduco que dispunha de poderosos instrumentos aos quais inteiramente devia a momentânea superioridade que desfrutava sobre a Moscóvia ignorante e desprovida. Tratava-se, portanto, apenas de lhe surripiar os seus segredos para que o jovem império nascente substituísse o velho mundo agonizante (31). Com efeito, fosse qual fosse o prestígio que a seus olhos tivesse a técnica europeia, Pedro o Grande só provisoriamente podia ser «ocidentalista». A sua reforma, todavia, foi mais longe do que previra pois consumou a ruptura entre o povo russo e a classe superior mais ou menos europeizada. Assim, a sociedade russa foi como que «uma colónia europeia perdida no meio dos bárbaros». E era isso que levava Jean-Jacques Rousseau a dizer: «Pedro o Grande quis logo de entrada fazer dos seus vassalos alemães e ingleses, quando devia ter começado por fazê-los russos».






Os Romanov tinham efectivamente a possibilidade de tratar o mundo russo à maneira dos Carolíngios e dos Selêucidas; optaram porém pelo regime moderno do Ocidente. Ao seu povo primitivo, ainda na idade da infância intelectual, deram a conhecer as artes e as ciências de uma civilização adiantada, a cultura, a ética social, o materialismo das cidades europeias (32). Subitamente e sem preparação puseram-no na escola dos Enciclopedistas franceses e depois na da filosofia alemã. Nunca lhe haviam ensinado o catecismo e pretendiam iniciá-lo nos mistérios do hegelianismo integral. Quando a Rússia abriu as suas portas à influência do exterior entraram por elas, em catadupas, os erros da Europa já corrompida, contra os quais nenhuma defesa encontrava em si própria.

«Começámos a civilizar-nos directamente pela perversão», dizia Dostoievsky (33). Para evitarem os estragos que necessariamente produziria faltava aos russos esse conjunto de noções gerais que, com a forma de sentimentos e de ideias, inundam o próprio ar que respiramos e determinam o nosso ser moral antes de nascermos até. Nem tradição nem crítica (34), nem experiência nem previsão; apenas uma espécie de naturismo místico que os predispunha a sofrer o ascendente das mais elementares negações. Do Contrato Social e das antinomias de Kant ao «eu» absoluto de Stirner e ao materialismo histórico de Karl Marx, não houve quimera que não acolhessem com verdadeiro e sombrio ardor logístico.

(…) A profecia fez-se realidade. Regressando às suas nascentes, a Rússia soviética virou-se primeiro para o Oriente, para esse Oriente de que a Rússia tem o instinto, herdado do rude dominador tártaro; e virou-se para o Oriente para dizer a povos perfeitamente aptos para entender a sua mensagem: «A Rússia estende a mão à Ásia, não para que ela adira ao seu ideal nem para que partilhe as suas concepções sociais, mas porque lhe são necessários os oitocentos milhões de asiáticos para derrubar o imperialismo e o capitalismo europeus». Estas palavras pronunciadas por Zinoviev no Congresso de Bacú em 1920, não eram, aliás, senão o comentário da famosa frase de Lenine: «Voltemo-nos para a Ásia; levaremos a melhor sobre o Ocidente pelo Oriente».

Assim, o bolchevismo ia realizar à sua maneira o velho sonho tantas vezes formulado pelos eslavófilos e pelos nacionalistas russos (35). «Seria útil para a Rússia, dizia já Dostoievsky, esquecermos durante certo tempo Petersburgo e voltarmos a nossa alma para o Oriente»; e, pouco antes da sua morte, o autor do Crime e Castigo pronunciava estas palavras proféticas: «Se quiséssemos dedicar-nos à organização da nossa Ásia, grande renascimento nacional veríamos na Rússia».A cada recuo no Ocidente seguem-se avanços da Rússia na Ásia. Logo que tomou conta do poder, o governo soviético procedeu à mudança de «frente», consecutiva à derrota. Repelido da convivência dos países ocidentais, tratou de se pôr imediatamente à testa do movimento de independência e de libertação que fermentava em toda a Ásia. Revoltado contra o Ocidente, contra os seus ideais e as suas instituições, viu rapidamente o temível partido que poderia tirar de um mundo estanque, anterior à civilização romano-cristã, e da potencialidade de destruição nele armazenada. «Em contacto pelas suas fronteiras com os muçulmanos da Turquia, da Ásia Menor, da Pérsia, do Afeganistão, em contacto com os caminhos da índia, com a Mongólia, o Tibete e a China, a Rússia dos Sovietes, depois do malogro do seu assalto contra a Europa, bateu em retirada para a Ásia onde preparou nova ofensiva contra a Europa: a ofensiva do mundo asiático» (36).

E dir-se-á que estão próximos os tempos anunciados por Renan «em que o Eslavo, como o Dragão do Apocalipse cuja cauda varre a terça parte das estrelas, arrastará após si o rebanho da Ásia Central, a antiga clientela dos Gengis Cans e dos Tamerlões» (in ob. cit., pp. 24-51).






Notas:

(14) «O camponês russo» – diz Brian-Chaninov - «está mais próximo do chinês, do anacoreta tibetano, do pária hindu, do que do camponês europeu».

(15) O espectáculo dos monumentos da velha Europa inspirava aos intelectuais russos precursores dos bolchevistas sentimentos semelhantes, em que se descobre uma ponta de despeito. «Esta região viveu muito» - observava Herzen. «Vêem-se dezenas de séculos debaixo de cada pedra aparelhada, por detrás de cada ideia feita. Para lá das espáduas de cada europeu vê-se uma longa fila de figuras imponentes, no género da procissão das sombras no Macbeth… Os seus foscos monumentos dão à Europa aristocrática fisionomia, afrontosa para quem não possui avoengos tão esplendentes! Nós, os citas, sentimo-nos mal, por vezes, no meio desta herança de riquezas, entre este legado de ruínas» (Lettres de France et d’Italie, p. 9. «Westminster» - dirá Lenine - «não vale um par de botas, um tractor ou uma máquina de brocar aço!».

(16) Máximo Gorki, Lénine et le paysan russe, p. 110.

(17) Cf. Oeuvres choisies de Pierre Tchaadaiev, publicadas pelo Padre Gagarine, S.J., 1862.

(18) «Respeitar o passado?» - dizia Herzen. - «Mas o ponto de partida da moderna história russa não é a negação absoluta da tradição? Somos independentes porque não possuímos nada que possamos amar… Não temos nem recordações que nos liguem nem herança que imponha deveres».

(19) Cf. Tchaadaiev, ob. cit., p. 133: «Pedro o Grande herdou apenas papel em branco, no qual traçou com o seu punho vigoroso estas palavras: Europa e Ocidente; e desde então pertencemos à Europa e ao Ocidente».

(20) Dostoievsky insiste nesta ideia em certo trecho do Diário de um escritor: «Diz-se que o povo russo conhece mal o Evangelho, ignora as regras fundamentais da fé! Sem dúvida; mas conhece Cristo e trá-lo no seu coração desde sempre… Será possível conhecer o verdadeiro Cristo sem conhecer a doutrina? Essa é outra questão. O conhecimento de Cristo pelo coração está patente, porém, no nosso povo que se orgulha das suas crenças ortodoxas, isto é, de ser o que pratica a religião de Cristo com mais verdade, com mais ortodoxia. Repito: pode salvar-se muita coisa inconscientemente» (cf. La Confession de Stavroguine, trad. Halpérine-Kaminsky, pp. 151-152).

(21) Cf. Brian-Chaninov, La Tragédie moscovite.

(22) Joseph de Maistre, Un honnête homme ne doit-il jamais changer de réligion?, p. 34, Paris, 1839.

(23) O povo lia apenas a Tchetia-Muneia, o martirológio dos santos em língua eslavónia.

(24) Rozanov: L’Église russe, Paris, 1912.

(25) «Não é apenas no espaço, isolando-o tanto do Ocidente como do resto do Oriente, mas também no tempo, à margem das civilizações clássicas, que o eslavónio eclesiástico contribuiu para o isolamento e para a estagnação da Rússia». Anatole Leroy-Beaulieu, L’Empire des Tsars et les Russes, t. III; La Réligion, Paris, 1899. Em Kiev, no entanto, o ensino foi ministrado em latim, do século XVII ao século XIX.

(26) A. Leroy-Beaulieu, ob. cit., p. 140.

(27) A Leroy-Beaulieu, ob. cit., pp. 225-226.





(28) Anatole Leroy-Beaulieu, ob. cit., p. 340. «O clero russo tem sempre os olhos postos no Oriente e nunca quis aceitar a sua europeização» (G. Plekhanoff, Introduction à l’histoire sociale de la Russie, p. 93).

(29) «O obstáculo fundamental que a Rússia encontrou no caminho que levava à europeização e à cultura foi o esmagador predomínio da província iletrada sobre a cidade, do individualismo animal do camponês e da ausência quase completa no seu ser de sentimentos sociais». Gorki, ob. cit.

(30) A revolução bolchevista, no começo, derrubou por toda a parte as estátuas de Pedro o Grande, que encarnava aos seus olhos exactamente o que era necessário destruir. Mais tarde, na altura da Nep e da industrialização, o fundador da Rússia moderna foi alvo de novo culto. O filme de propaganda de Alexis Tolstoi consagrado a Pedro I, patrocinado por Estaline, foi o sinal dessa reviravolta.

(31) É neste ponto que Pedro o Grande foi precursor dos bolchevistas. Cf. Apêndice.

(32) Cf. Spengler, Des Untergang des Abendlandes, t. III, p. 232.

(33) Diário de um escritor, p. 173; e Dostoievsky acrescenta: «Muitos enigmas se erguem à nossa frente, ao ponto de nos meter medo e expectativa das suas soluções. É de prever que a civilização pervertirá o povo. Tudo indica que o progresso trará consigo não só a luz mas também tantas falsidades, tantas inquietações e maus costumes que somente depois de muitas gerações, talvez apenas depois de novo período de duzentos anos, poderá germinar a boa semente; entretanto, terríveis coisas nos estão reservadas, a nós e a nossos filhos».

(34) Daí a falta de tacto e de aprumo, de método e de lógica que nos choca nas obras do génio russo: «Desconhecemos o silogismo do Ocidente» - escreveu Tchaadaiev. «As melhores ideias, por falta de ligação ou de sequência, paralisam os nossos cérebros, deslumbrantemente estéreis… Nas nossas cabeças absolutamente nada existe que tenha carácter geral – nelas tudo é individual, flutuante e incompleto». O russo não possui o sentido da causalidade.

(35) A «grande ideia asiática» parece saída, aliás, da «grande ideia eslava», cara a Dostoievsky. Tchaadaiev já em 1840 resumia assim os temas da propaganda dos eslavófilos: «Somos os meninos bonitos do Oriente, proclamam. Que necessidade temos nós do Ocidente? O Ocidente será porventura a pátria da ciência e de todas as coisas profundas? É o Oriente que encontramos por toda a parte, o Oriente a que outrora fomos buscar as nossas crenças, as nossas leis, as nossas virtudes… O velho Oriente vai desaparecendo, mas nós somos os seus herdeiros naturais. E é entre nós que vão realizar-se as grandes e misteriosas verdades cuja guarda foi confiada ao Oriente desde a origem das coisas».

Os «eurasianos», sucessores dos eslavófilos, e que se recrutaram depois da Revolução de 1917 entre os emigrados, professavam as mesmas teorias: «Não nos considereis filhos da Europa, escrevia então o Príncipe Trubetzkoi. A Europa não é a nossa mãe… A senda do nosso evidente destino dirige-se para o Oriente… A Rússia cometeu o pecado de menosprezar o seu orientalismo e de se deixar ludibriar por ilusões ocidentais».O historiador russo Brian Chaninov salientava, aliás, que as conversões ao bolchevismo, por princípio ou por patriotismo, se verificavam então sobretudo entre os neo-eslavófilos, entre os «eurasianos».

(36) Albert Sarraut










Asia-Europe Meeting (ASEM). Ver aqui



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