domingo, 29 de novembro de 2015

Uma Constituição para Portugal (i)

Escrito por Miguel Bruno Duarte



«No momento em que se reedita esta tradução do livro de Hegel, acabam os portugueses de receber uma Constituição Política que lhes foi elaborada por uma Assembleia eleita em condições de tão extrema perturbação nacional e patriótica que se pôde estabelecer previamente, caso único na história da liberdade dos povos, que a Constituição a elaborar devia ser uma Constituição Socialista, isto é, que devia resultar da obediência às teses de uma teoria ateísta e não da discussão que tenta conhecer a verdade. As duas condições indispensáveis para que, segundo Hegel, se possa tão-só falar de Constituição Política, desde logo foram, pois, abolidas.

Não queremos negar que sejam discutíveis as condições hegelianas banidas da Assembleia Constituinte eleita em 1975 pelos portugueses; mas que nos seja, então, concedido que não passa de um absurdo a pretensão do socialismo moderno em ter, por um lado, sua origem na filosofia de Hegel e em destinar-se, por outro lado, a suprimir o Estado: "A Constituição Política - diz Hegel - é antes de tudo o mais a organização do Estado" (parág. 271). Não há racionalismo de uso corrente nem idealismo por mais vazio, capazes de suportar tanta contradição».

Orlando Vitorino (Prefácio à 2.ª Edição de Hegel, «Princípios da Filosofia do Direito»).




Prólogo

Orlando Vitorino e a filosofia portuguesa


Dizer alguma coisa sobre a filosofia portuguesa é, antes de mais nada, falar de Álvaro Ribeiro. Porém, tal não significa que as teses da filosofia portuguesa se confinam aos filosofemas e aos teoremas do pensador português, pois «a afirmação da filosofia portuguesa não é – consoante esclarece Orlando Vitorino – a afirmação de um sistema feito, mas de um sistema sempre a fazer» (1). E daí também a sua originalidade jamais refém da cultura de laboratório própria das instituições universitárias.

Escusado será, pois, dizer que a «cultura oficial» recusa admitir a existência da filosofia portuguesa. Quando muito só poderá haver «Filosofia em Portugal» na acepção de mais uma «cadeira universitária» entre as demais. Nada, portanto, de filosofia portuguesa radicada no génio da Pátria e na língua de Camões.

Ora, disso já Álvaro Ribeiro revelara perfeita consciência quando, em 1943, dera a lume O Problema da Filosofia Portuguesa, também ele oriundo de questões levantadas por Eudoro de Sousa e Sant’Anna Dionísio no âmbito do pensamento especulativo português. Ou seja: Álvaro Ribeiro, perante a alegada carência de uma tradição de pensamento especulativo, quando não perante a dúvida sobre a capacidade especulativa dos Portugueses, sabia e compreendia que um povo, sem autonomia cultural, não pode ser politicamente independente.






Porém, transcorridos vinte anos sobre a publicação d'O Problema da Filosofia Portuguesa, Álvaro Ribeiro resolvera, por fim, anotar o que se segue no Diário Ilustrado de 20 de Dezembro de 1962:

«Enunciado em 1940, a modo de posição crítica perante as Comemorações oficiais do duplo Centenário da Fundação e da Restauração da Nacionalidade, o seu nacionalismo não obteve a concordância, nem sequer a aceitação, dos intelectuais responsáveis pela doutrinação patriótica. Desde a extrema-direita, constituída pelos abencerragens do Integralismo Lusitano, até à extrema-esquerda, vagamente desenhada por um ou outro escritor neo-realista ou neo-positivista, todas as correntes de opinião se manifestaram adversas à tese elementar de que sem autonomia cultural não pode haver independência política».

Por outras palavras, Álvaro Ribeiro, profundamente consciente de que certos publicistas «não querem que haja filosofia portuguesa», enquanto, outros ainda, «querem que não haja filosofia portuguesa», dera por intempestivo um problema geralmente repudiado e incompreendido.

Aliás – diria ainda Álvaro Ribeiro –, nem sequer entre os que se diziam «discípulos de Leonardo Coimbra, obteve a causa da filosofia portuguesa, do seu discernimento, do seu esclarecimento e da sua exposição, a mínima cooperação leal capaz de servir de fundamento à aventura de uma geração». Contudo, uma tal filosofia, para surpresa de uns e clara irritação de outros, continuaria viva e actuante não já como problema a debater, mas como pensamento capaz de influir nas nações da América do Norte e do Sul, assim como em todos os povos irmãos que ainda não puderam ou quiseram transitar do ministério da mais recente colonização para o magistério da educação obrada em fraterno, universal e recíproco entendimento.

Desse modo, podemos e devemos dar por adquirida a fecunda vitalidade da filosofia portuguesa na actualização da filosofia clássica, ou, se quisermos, do aristotelismo enquanto sistema ou filosofia natural do género humano. E é precisamente por isso que Orlando Vitorino nos diz que a origem da filosofia moderna, também por ele designada de «filosofia nórdica», «remonta a Santo Agostinho ou à ruptura entre o mundo antigo e o mundo moderno». Todavia, certo «é que nem a filosofia do mundo antigo nem outros modos mais ocultos de pensar, deixaram de estar presentes, e se desenvolver, ao mesmo tempo, nos povos e até nos mesmos homens nos quais e pelos quais a filosofia moderna se manifestou e desenvolveu. A sua presença é, porém, uma presença derrotada, à margem da rota do triunfo. Complementar desta “refutação da filosofia triunfante” será uma “exaltação da filosofia derrotada”» (2).




De resto, uma tão propugnada exaltação implicara uma nova visão da economia que Orlando Vitorino descreve do seguinte modo:

«Há nove anos, estamos agora em 1983, estava eu longe de prever (…) que os estudos da economia alguma vez viessem a interessar-me. Creio poder conjecturar – dado que o homem nasceu para ser ocioso – que o mesmo terá acontecido e estará acontecendo aos leitores que me acompanham. Outras razões, as que a vida dá e só cada um conhece, terá cada um de nós. As minhas foram as de andar exclusivamente dedicado (…) às coisas da filosofia e das artes e, como das coisas menores, também da economia non curat proetor. Seguia nisso o exemplo de Hegel que durante anos li, reli, até traduzi e, em tempos de mais juventude, comentei com entusiasmo. Foi ele contemporâneo dos primeiros teorizadores da ciência económica e, se lhes louvava o esforço de procurarem conhecer os conceitos da prática que exerciam, fazia-o com distante condescendência. Nesse ponto me deixei eu iludir por aquela tendência tão frequente e tão natural, de fazermos nosso o pensamento, e até as atitudes, dos mestres que admiramos. Devia, antes, ter seguido o exemplo de Aristóteles: o de que não há coisas menores e mau sinal dá de si o pensamento que em tudo não souber comprovar o que vale.

Ora, naquela data já hoje afastada [25 de Abril de 1974], se deu uma alteração na política do meu país que, precisamente, os estudos da economia me fizeram ver não ser mais do que a última fase de um processo que vinha de longe. Consistiu ela na transferência para o Estado de toda a orientação da economia. As populações começaram por recebê-la com entusiasmo, acreditando que ela lhes iria trazer uma era de prosperidade e abundância sem cuidados ou em que os cuidados caberiam apenas ao magnânimo Estado. Devo declarar que não levei tão longe a minha natural ingenuidade mas ainda conservei a ilusão de que poderia continuar a viver como um sorridente espectador. Depressa a ilusão se desvaneceu, depressa verifiquei, sofrendo-o até na carne, que o Estado me entrava em casa, ditando os contratos do meu trabalho, o emprego do meu dinheiro, os modos do meu viver, as condições do meu futuro, o que podia e, sobretudo, o que não podia fazer. E não tardei a observar que os instrumentos que o Estado utilizava para tanto mal me trazer, eram instrumentos económicos: a desvalorização do dinheiro, o condicionamento do mercado, a colectivização da propriedade, a sindicalização dos salários, a organização do ensino segundo a utilidade, as taxas selectivas dos impostos indirectos, o aumento, sem limite prévio, dos impostos directos. Esparsos nos pequenos, e também nos grandes, tais instrumentos, além da sua terrível eficácia, ainda escondiam o tartufo, permitindo-lhe controlar, dirigir e asfixiar a existência de cada um de nós, que é onde reside a liberdade mais vivida e real, e ao mesmo tempo proclamar aos quatro ventos a liberdade universal de todos, ou seja, a liberdade de escrevermos nos jornais onde nunca escrevemos ou publicarmos livros para cuja publicação nunca serão nossos os meios, a de se nos abrirem fronteiras que nunca queremos atravessar, a de termos novos amigos em todos os continentes que nunca visitaremos e gente inimiga em todos os vizinhos cuja “classe” não seja a nossa, a de elegermos os nossos governantes depois de eles se terem eleito a si próprios dando-lhes nós o nosso voto num democrático domingo de quatro em quatro anos.

Menos por percepção intelectual e culta do que, também como eu, por o sentirem na carne, as populações reagiram como o corpo reage à doença, e se ainda hoje não alcançaram desfazer o processo político em que se viram envolvidas, antes lhe continuando a deixar abertas todas as vias, conseguiram, no entanto, travá-lo. Quanto a mim, intelectual que sou, procurei compreender: compreender o que é a economia, como se forma a sua ciência, como ela transita, de actividade natural e espontânea em que cada um é dono do que é seu e faz do que é seu o que entender, para uma rede complexa e impenetrável de regulamentações de que só alguns detêm o comando e o segredo. Pus-me, durante alguns anos, a ler os livros mais actuais, ou mais recomendados e celebrizados pela "cultura oficial", suportando, com esforço e paciência, a enfadonha prolixidade de todos eles, observando como seus autores, personalidades de renome, são pródigos na descrição de minúcias que toda a gente conhece ou imediatamente apreende e são avaros e fugazes na exposição, quase sempre apenas alusiva, das teses, conceitos e definições mais decisivos da sua ciência. Deles me soltei por fim ao remontar à origem dessa ciência, lendo “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith, e deparando, aliviado, com uma clareira de simplicidade e raciocínio. Pude, a partir daí, refazer o caminho percorrido na formação da ciência até chegar à leitura da “Acção Humana”, de Ludwig von Mises, que vi ser, para o período contemporâneo da economia, o que “A Riqueza da Nações” foi para o período clássico. Certifiquei-me assim de que era possível compreender, coisa de que já chegara a desanimar. Por fim, encontrei nas obras de Milton Friedman e, em especial, de Frederico Hayek, sobretudo em “A Constituição da Liberdade” e “O Caminho para a Servidão”, a demonstração das causas e dos fins do que estava a acontecer no meu país. Entendi, então, que devia, pois já o podia fazer sabendo o que conseguira saber, também por minha vez intervir. Tratar-se-ia, naturalmente, de uma intervenção intelectual.






Fundei uma modesta revista a que dei o título de “Escola Formal”, em homenagem a meu mestre Álvaro Ribeiro que, com esse título, escrevera um livro expondo as teses imprescindíveis à liberdade do pensamento. A revista defendia o liberalismo e a liberdade económica e, embora difundida apenas nos meios intelectuais, foi recebida como a provocação “reaccionária” de uma doutrina “ultrapassada”. Traduzi e editei um dos citados livros de F. Hayek e consegui trazer o autor a Lisboa, onde proferiu três conferências e dirigiu três colóquios acolhidos com espanto, falsa indignação e temor. Estávamos em 1977, o socialismo era considerado a doutrina de todo o futuro, um dogma indisputável, até aqueles que menos o desejavam, e “a via de transição para o socialismo” acabara de ser consagrada na Constituição Política. Nestas circunstâncias, ver discutir, criticar e refutar tal dogma por um homem cuja autoridade científica só não foi contestada porque acabara de receber o Prémio Nobel da economia, afigurava-se inacreditável. A meio de uma das conferências, um ministro das Finanças abandonou a sala vituperando e um embaixador de França insultou os organizadores das conferências em desagravo do Partido Socialista Francês de que era membro.

Ao mesmo tempo, ia eu verificando que o pensamento e as obras que me haviam por fim orientado na aventura em que me lançara, sobretudo as que, no período contemporâneo, haviam dado à ciência o desenvolvimento e os fundamentos que ela não obtivera no período clássico, eram totalmente ignoradas pelos nossos economistas, não figuravam no ensino universitário e nem sequer se encontravam nos circuitos comerciais livreiros. O que assim acontecia em Portugal, acontecia noutros países. Em vão procurei, nos manuais e “sebentas” das universidades, qualquer exposição dos “meus” teorizadores. Como tivesse comentado na “Escola Formal” tão injustificável ausência, um professor catedrático fez, em público, um desmentido indignado, dando o seu próprio curso como prova do contrário. Lá fui eu percorrer, linha a linha, a “sebenta” desse curso e apenas consegui descobrir uma citação do nome de F. Hayek entre outros vários nomes dados para ilustração de uma nota acidental. Viria eu a encontrar, num livro de von Mises, a informação (…) de que a situação correspondente existiu nas universidades alemãs e inglesas.

Também os “meus” teorizadores eram ignorados nas livrarias. Não me foi possível comprar ou fazer vir do estrangeiro qualquer das suas já muito numerosas obras. Da “Acção Humana”, por exemplo, só consegui obter, e fora dos círculos livreiros, uma tradução castelhana editada por iniciativa de entidades particulares, e do “Caminho para a Servidão”, editado em Inglaterra em 1942, só se fez uma reedição em 1975, quando o autor obteve o Prémio Nobel. Assim pude concluir, não sem secreto e aristocrático prazer, que a existência da ciência é hoje uma existência clandestina.

Nos meios economistas, por fim, deparei com a mesma ausência e a mesma ignorância. Ainda em 1981, um ministro das Finanças (3), ao abandonar o seu cargo governativo, publicando uma longa justificação da política económica que seguira, afirmava que “logo à partida pusera de lado o monetarismo de M. Friedman, o qual, aliás, os economistas não sabem bem o que seja”.

E uma noite, num clube de Lisboa, pronunciara eu, entre alguns amigos, o nome de von Mises, quando, do fundo da sala, se nos dirige um desconhecido: “Foram os senhores que falaram de von Mises? Os senhores são economistas?” Dissemos-lhe que não éramos economistas mas que falávamos, efectivamente, de von Mises. “É espantoso, comentou ele. Eu sou economista, trabalho com muitos colegas economistas e nunca encontrei algum deles que soubesse quem é von Mises!”










Em contrapartida do que descrevi, os manuais universitários e as estantes das livrarias esmagam os estudantes e os compradores com nomes e livros que põem a economia ao serviço da política, doutrina que, naturalmente, é a única que os economistas conhecem, aliás, com bastante minúcia, esforçado estudo e alta capacidade de aplicação.

Existe, pois, como diz M. Friedman no livro “Liberdade e Capitalismo”, um statu quo que só por ser o que é, só por força da inércia e de aí estar instalado, constitui um poderoso obstáculo à introdução de qualquer teoria, por mais verdadeira, que não seja aquela donde deriva a prática contabilística e a política económica em exercício. O avanço que eu, entretanto, viera alcançando nas minhas indagações, permitia-me já observar que, para este êxito do statu quo, para conseguir ele manter inabaláveis as suas posições, muito contribuem duas graves deficiências da ciência económica apontadas – infelizmente apenas apontadas – por L. von Mises (…). É, uma, a falta de um léxico adequado e rigoroso, outra a de ela ainda não possuir o claro conceito dos seus fundamentos lógicos – que veremos serem as categorias económicas – o que se explica por ter adoptado, “como ponto de partida”, uma tal interpretação do pensamento de Aristóteles que o tornou estéril para a cientificação da economia» (4).

No entanto, essa interpretação seria profundamente superada pela varonil interpretação de Orlando Vitorino, que lhe permitiria, inclusive, conceber uma metafísica da propriedade enquanto garantia de todas as categorias daí emergentes, como a fruição, o trabalho, os produtos, o mercado e o dinheiro. Uma metafísica, portanto, intuída e concebida à luz da filosofia portuguesa da qual Aristóteles representa o centro inspirador. Ora, dessa metafísica diz-nos Orlando Vitorino:

«A propriedade pode ter a forma jurídica de um direito e a forma económica de uma categoria. Na forma de um direito, consiste na atribuição a cada um do que lhe pertence, exprimindo-se ou no reconhecimento passivo dessa atribuição ou na posse em que cada um afirma a decisão de alienar ou não alienar o que possui. Na forma de uma categoria, é a disposição perpétua que cada um tem daquilo que lhe pertence, o que faz dela o ponto de partida da actividade económica ou primeiro momento de cada ciclo da economia.

A moderna ciência da economia não dedicou à propriedade a atenção e o rigor que dedicou ao mercado e ao dinheiro, e limitou-se a supô-la como necessária por ser ela condição imprescindível para a existência do mercado, uma vez que a transacção de uma mercadoria é sempre transacção da propriedade dessa mercadoria. Daqui resultaram várias e grandes consequências, todas elas negativas. Uma é a de ter remetido para o direito toda a concepção da propriedade, assim a limitando unilateralmente a uma forma jurídica. Poder-se-ia dizer que deste modo se prolongou a superior concepção que o direito romano formou da propriedade se não acontecesse que os romanos a derivaram do princípio da justiça e se o direito moderno, de acordo com o seu princípio, que é, não a justiça, mas a liberdade, não tivesse de a subordinar à forma jurídica do contrato (5).



Orlando Vitorino



Tal subordinação alterou o conteúdo que a propriedade tinha entre os romanos, reduzindo-a à posse, e não o pôde substituir, como conviria, pela categoria económica, ou disposição perpétua do que se possui, uma vez que a posse das coisas já é a garantia suficiente para a sua transacção contratual.

A esta ordem de razões uma outra se sobrepôs, cujo ponto de partida reside no seguinte: quer como forma jurídica quer como categoria económica, a propriedade estabelece uma relação entre os homens e as coisas mas reside nas coisas, não nos homens. À ordem de razões que daqui se deduz, não hesitarão muitos, movidos por estultas intenções minorativas, em considerar metafísica. Mas a economia, tal como o direito e como tudo o que é real e susceptível de ciência, apela necessariamente para uma metafísica, para o que está além dela e lhe dá princípio, para o que a transcende e substancializa.

As coisas de que é composto o mundo são, por si sós, inermes. Por não terem o saber de si, são como se não fossem. Carecem do homem para que se saibam e depois se afirmem e manifestem no que lhes é próprio, na sua propriedade. Sejam, por exemplo, os produtos industriais: carecem eles do homem não apenas para que tenham origem mas também para cumprirem a finalidade que essa origem lhes deu e é o que lhes é próprio, a de serem usados e consumidos. Mas porque é discutível que os produtos industriais sejam coisas do mundo, não passem de um momento na transformação violenta a que a indústria sujeita as coisas, o seu exemplo torna-se talvez inadequado. Consideremos, então, as formas e seres naturais, coisas cuja origem, ser e criação lhes não provém do homem mas que, sem ele, não seriam mais do que uma simples presença, um simples ser em si, inerme e sem manifesta finalidade. O que as faz emergir do ensimesmamento em que estão mergulhadas, adquirir uma finalidade e existir para outrem ou, simplesmente, existir – pois existir é ser para outrem – o que, em suma, as faz transitar do ser à existência, é o homem.

Dir-se-á, então, que é o homem quem dá existência ao mundo. E tanto pode, ou tanto lhe cumpre, porque é ele, entre os seres da natureza, o único em quem existência e ser são solidários, o único que não carece de outrem para existir uma vez que é o único dotado de pensamento e, portanto, da faculdade de se conhecer a si mesmo. Compreende-se deste modo que o conhecimento de si mesmo seja um imperativo, o primeiro imperativo do homem, como no nosce te ipsum socrático. Antes de tudo, cumpre-lhe dar-se a si próprio existência para, depois, dar existência ao mundo. Num sentido, é Deus quem cria o mundo, pois lhe dá o ser; noutro sentido, que é o de lhe dar existência, quem cria é o homem. A criação divina dispensa, decerto, o homem, mas não o pode dispensar a existência do mundo. Está ela, sem dúvida, virtual e latente no ser das coisas, mas só o conhecimento de si, que apenas o homem pode às coisas transmitir, a torna manifesta e real. Ora, a existência, com a finalidade ou o ser para outrem que implica, é o que é próprio, é a propriedade de tudo o que é. A propriedade reside, pois, não no homem, mas nas coisas que se oferecem ao homem, passivas, ensimesmadas e inermes.

De dois modos complementares dá o homem existência às coisas e ao mundo. É, um, o do pensamento que conhece o mundo na sua eternidade e as coisas em seus arquétipos genéricos ou ideias. É, outro, o da relação com as coisas no que elas têm de particular, e é esta a relação da propriedade» (6) .









Relativamente ao que é próprio de Portugal, Orlando Vitorino não tinha quaisquer dúvidas sobre a sua dissolução histórica após a revolução comunista de 1974. No final do prólogo à Exaltação da Filosofia Derrotada, o autor tinha, pois, «a sensação de, nesta margem do Atlântico, estar a escrever para ninguém numa língua aqui já morta». Enfim, uma situação profundamente trágica perante a qual os homens já não dispunham de forças para enfrentar os combates, os conflitos e as contradições num contexto dominado pela mais perfeita indiferença.

No entanto, convém salientar que essa mesma situação relativa à História e à vida dos Portugueses constituía para Orlando Vitorino algo susceptível de ser representado, escondido e falseado no teatro, já que a tragédia propriamente dita pertencia ao domínio dos deuses que, ao contrário dos homens, já podiam suportar os conflitos irredutíveis e as contradições insolúveis por neles coincidir pensar e ser, em que tudo é simultaneamente origem e termo, princípio e fim. No fundo, ficava apenas o teatro nascido da tragédia, numa acepção diferente da definição aristotélica em que a tragédia surgia como imitação dos homens melhores do que eles ordinariamente são.

No lance, Orlando Vitorino também conhecia bem a natureza humana, nomeadamente a que se perde por entre os círculos inferiores da política vil:

«Não quero saber do poder para nada. Afigura-se-me até que há uma certa obscenidade no poder político. Repugna-me mandar nos outros homens. Avilta-me a importância social. As escadarias atapetadas de vermelho já as fiz subir muitas vezes aos actores, no palco dos teatros. Aprendi com eles que tudo isso é fictício e só tem beleza quando se faz a fingir. O discurso de Marco António com o cadáver de César nos braços é tão belo na peça de Shakespeare como deve ter sido repugnante na realidade vivida. O que falta cada vez mais à humanidade é educação estética. Em especial aos políticos. Todos eles são actores sem personagem» (7).

De facto, Orlando Vitorino fora um homem do teatro, e não de teatro como dizem os mais desprevenidos. Trouxera assim à filosofia portuguesa não só a regra de ouro do teatro – a que manda separar, nas palavras que se falam, a voz e o sentido –, como também trouxera, num meio culturalmente dominado por professores universitários, a mais poderosa das mensagens inscrita nas palavras de Ésquilo: «a verdade é a melhor arma dos homens».


A questão universitária


Orlando Vitorino revelou-se, entre nós, o filósofo da liberdade. Logo, se com José Marinho pudera apreender que o não-ser e o nada possam ser lidos como o sem-limite – ou, se quisermos, possam ser compreendidos enquanto teoria pura do espírito e da liberdade que, por sua vez, não se identificam com as condições em que um e outra se manifestam e tornam reais –, com Álvaro Ribeiro intuíra que o princípio da liberdade, não estando imediatamente referido à acção nem, por intermédio desta, à vontade, surge não apenas como a garantia da liberdade absoluta do espírito, mas também de toda a real e concreta liberdade.




Porém, Orlando Vitorino não identificava um tão nobre princípio com o eventual carácter vazio e indeterminado da subjectividade humana, na medida em que a liberdade, insusceptível de ser possuída ou abandonada, resulta inconquistável. Daí tratar-se de um princípio que mal se manifesta no domínio das formas, dos conceitos e das ideias, logo desaparece quando deles fugiu e abandonou. Queda, no entanto, o pensamento como revelação e realização da liberdade na justa condição de não perder a consciência de ser apenas um substituto permanecente em todo o real e não a própria liberdade, sempre volátil e fugaz.

Ora, Orlando Vitorino também sabia que a zona da cultura, da política e das instituições representam a zona onde se fabricam ou se recebem já fabricadas as opiniões, os sofismas e os preconceitos triunfantes. E, mais que tudo, sabia e compreendia muito bem como a Universidade positivista e anti-teológica emergia no nosso tempo como um instrumento do mal. Não fora, pois, por acaso ou por capricho que, por adesão à liberdade do espírito que sempre tivera como horizonte último, agia, escrevia e pensava ao revés de uma superficial e pretensiosa função repetidora tão própria e assaz caracterizadora das instituições universitárias dominantes.

Filósofo, Orlando Vitorino figurava no extremo oposto do professor universitário. Aliás, era de facto admirável assistir ao modo verdadeiramente varão como Orlando Vitorino reduzia à insignificância todo e qualquer professor universitário que, desavisado perante a poderosa inteligência do seu interlocutor, tivesse a desventura de querer ostentar a sua ignorância bem pobre e contente de si. De resto, a forma como o fazia residia na consciência que o filósofo sempre tivera da Universidade enquanto «herdeira de todas as limitações ao desenvolvimento intelectual e de todas as proibições de informação cultural e científica ancestralmente atribuídas a organizações que, no progresso de actualização, as vieram abjurando, como as do ensino e da censura eclesiásticos» (8).

Por outro lado, Orlando Vitorino conhecia perfeitamente bem, até por via da nossa literatura, como os nossos escritores, pesando-lhes o bacharelato universitário como primeiro passo para a «possibilidade efectiva de um emprego burguês, um casamento burguês, uma vida burguesa», tendiam e tendem a exprimir, nos termos «de um socialismo falso e abstracto de ideal humano, universal e fraterno, denunciador de todas as injustiças sociais», o «pavor pela vida de pobreza e miséria do proletariado». Tal é ademais o que permite explicar a ambição e a sofreguidão de domínio com que a maioria dos universitários se apoia no alegado prestígio dos pergaminhos e títulos académicos obtidos ao longo da vida. E, perante tanto formalismo, até Sant'Anna Dionísio chegara mesmo a propor uma designação assaz curiosa, mas não menos indiciadora do fenómeno em causa: «as refracções intelectuais do donjuanismo».






Entretanto, se há quem julgue que é na Universidade que reside a consciência superior da Pátria Portuguesa, então que nos diga onde está a nossa independência política e cultural. E a nossa moeda, bem como a nossa língua que, como já dizia Orlando Vitorino, virou uma língua morta.

De resto, decorridos cerca de 40 anos após a publicação do opúsculo de António Quadros, A Angústia do Nosso Tempo e a Crise da Universidade (1953), o autor destas linhas, contestando tudo e todos, passava pela Faculdade de Letras de Lisboa onde o positivismo, designadamente o alemão – Kant, Husserl, Feuerbach e Marx-, dominava no departamento em que a história da filosofia surgia segmentada em antiga, medieval, moderna e contemporânea. A máquina universitária continuava, pois, a enfermar de quase todos os vícios tão cuidadosamente descritos e apontados por António Quadros, tais como a entropia sociológica e uniformizadora do ser humano, o funcionalismo burocrático, rotineiro e amanuense do corpo docente, o sistema inquisitorial do esbirro judicativo ou do professor examinador inapto para aferir talentos e encaminhar vocações, ou ainda o preconceito didáctico consagrado por esquemas e modelos estrangeiros inibidores do mais original pensamento português.

De facto, António Quadros, sendo um literato, um escritor e um intelectual, propunha, incentivava e sugeria uma reforma da mentalidade que passasse por uma Universidade cujo núcleo dinamizador postulasse um Instituto Central de Cultura Superior destinado a um saber teorético actual, vivo e original capaz de vencer forças e tendências fragmentárias em prol da situação concreta da filosofia portuguesa. Enfim, uma ilusão do foro existencial, já que, na linha de pensadores como Unamuno, Ortega, Camus e Karl Jaspers, não era de todo indiferente a um positivismo do sentimento por contraponto ao positivismo do pensamento idealmente abstracto, vago e sem radicação espácio-temporal.

Não obstante, estamos em crer que António Quadros, íntima e paradoxalmente, sabia que a especulação filosófica, no que tem de verdadeiramente criador e imprevisível, não nasce em institutos de cultura nem muito menos se rege por artigos de revistas eruditas e universitárias, ou até mesmo se limita a roteiros bibliográficos ou a trabalhos especializados de divulgação, crítica ou comentário do pensamento alheio. Assim, o mais que se pode esperar da Universidade é o registo fóssil do pensamento pensado segundo critérios textuais, metodológicos e pseudo-científicos que aproximam estudantes e professores no repúdio pela Verdade.

Nas Faculdades de Letras, o que se entende por “filosofia” equivale à revolta das Letras contra o Espírito. Por outras palavras, a filosofia não é uma actividade de gabinete onde os estudantes ou os candidatos a "profissionais da filosofia” se prestam a todo o tipo de exames, vexames e a tortuosos e minuciosos interrogatórios com a mera finalidade de passar às diferentes cadeiras que visam o diploma de fim de curso. De resto, a maioria dos profissionais em questão destina-se a engrossar as fileiras de funcionários públicos do ensino médio, onde, caso consigam colocação, limitar-se-ão a inculcar aos adolescentes um programa curricular praticamente ditado pelas directrizes ideológicas de uma agência especializada das Nações Unidas, nomeadamente a UNESCO.









Aliás, todo este processo encontra-se minuciosamente explicado, detalhado e demonstrado num livro publicado pelo autor destas linhas, intitulado Noemas de Filosofia Portuguesa: um estudo revelador de como a universidade é o maior inimigo da cultura lusíada. Na actualidade, é praticamente o único estudo que vai directo aos aspectos verdadeiramente cruciais da questão universitária, uma vez que não só aprofunda e actualiza o que já António Quadros e Afonso Botelho haviam parcialmente dito e diagnosticado sobre a falência moral e espiritual da Universidade, como ainda põe a nu a actividade antipatriótica perpetrada por uma instituição que tem permanecido praticamente incólume nas duas últimas centúrias.

Deste modo, a ideia de Universidade enquanto corporação espiritual promotora da transcendência no concerto dos povos, é já coisa de antanho. Logo, esqueça-se, para efeitos de actualidade, a histórica filiação da instituição universitária no claustro monacal. E esqueça-se ainda o modelo medievo arquitectado e inspirado nas sete colunas do Templo da Sabedoria. Tudo isso foi já irreversivelmente banido e ultrapassado pela pós-modernidade triunfante.

Infelizmente, continua deveras presente o espectro da Universidade pombalina onde Aristóteles não mais representa o eixo. Por contrapartida, Álvaro Ribeiro – o mestre dos que sabem segundo Orlando Vitorino – dizia que a «filosofia portuguesa representa, pois, uma aventura espiritual de fidelidade a Aristóteles, aventura que, narrada em documentos literários, políticos e religiosos, não foi compreendida pelos metodólogos responsáveis da reforma pombalina da Universidade de Coimbra» (9). E Orlando Vitorino, por sua vez, dizia que «o que há de mais sério na “filosofia portuguesa” é a sua actualização do aristotelismo» (10).

No mais, o filósofo da liberdade também sabia que a maioria das soluções propostas para a resolução da questão universitária traduzia-se, na esteira de Lobo Vilela, António Quadros e Afonso Botelho, numa reforma da mentalidade. Afonso Botelho, inclusive, respondia ao problema universitário segundo os princípios e as directrizes do tradicionalismo católico (11), ao passo que António Quadros depositava a sua esperança em transferir «para a cultura, portanto na forma de resultados definitivos, aquilo que, na obra de Álvaro Ribeiro, é processo de revelação pela filosofia» (12). No fundo, um problema, como refere Orlando Vitorino, que até ao presente não logra passar da «crítica do ensino, nos justos termos em que ela é feita, à consequente viabilidade de uma solução dentro das instituições tradicionais».

Ora, neste ponto essencial, cabe, pois, a Orlando Vitorino inteira razão: nenhum dos autores acima referidos, ou mesmo outros que se procurem «na vasta bibliografia portuguesa sobre o problema do ensino», souberam dar aquele passo decisivo. Nessa medida, quer fosse «por atavismo ou formação», quer ainda «por prestígio social dos títulos académicos», a verdade «é que nisso está uma infindável origem de contradições que nelas logo absorvem ou fazem frustrar as sempre necessariamente parciais soluções apresentadas em obras individuais, em planos ou relatórios, em esperanças postas numa reforma ou numa infindável sucessão de reformas das sempre idênticas instituições. Tudo delas se discutindo e criticando e condenando, só a elas se não discute nem critica nem condena. Porque o tudo que se discute, é por partes que se condena e reforma».



António Quadros



Daí que, em Portugal, quem, na realidade, propôs com toda a frontalidade a resolução do problema universitário fora precisamente Orlando Vitorino, a avaliar pelas palavras de António Quadros:

«O. V. começa por fazer a descrição crítica do nosso actual ensino (...) subordinado a uma visão colectivista, marxista e reducionista (...) e que fomenta uma igualização ou uniformização pelo inferior destinada a forjar inferiores ou escravos (...) Depois da crítica, O.V. propõe, não só a extinção da Universidade, o reconhecimento de todas as formas de ensino livre e o abandono do predomínio do Estado na organização do ensino, mas também o primado da filosofia no ensino, entendendo-se que todo o ensino depende, não de uma filosofia, mas da filosofia (...) Seguindo a ideia, já defendida por Leonardo Coimbra e Delfim Santos, de que as reformas não conseguirão nada, o autor faz a proposta de um ensino completamente diferente...» (13).

Sobre a extinção da Universidade, diz-nos ainda Orlando Vitorino aquando da sua entrevista dada ao jornal A Capital, a 4 de Novembro de 1985:

«Temos apresentado e repetido - em folhetos, em artigos, em conferências e em livros - todos os argumentos que concluem pela necessidade de extinguir a Universidade. No entanto, desde o Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra até ao caloiro da Faculdade de Direito e seus aflitos pais, todos nos pedem explicação dessa proposta. Estou cansado de a repetir para, em todos os casos, acabar por obter a concordância de quem a pede. A extinção tem inúmeras razões, desde o estabelecimento da autonomia do ensino superior, autonomia sobretudo científica, até ao facto de a Universidade, estatizada há dois séculos e marxizada há uns quarenta anos, condicionar e determinar toda a organização do ensino, que é, como se sabe, caótica e insusceptível de reforma. É preciso extingui-la para, em vez dela, criarmos escolas privadas de ensino superior.

Como lhe observássemos que já existem entre nós escolas privadas de ensino superior - a Universidade Livre e a Universidade Católica - Orlando Vitorino esclarece: 

Essas Universidades só administrativamente são privadas. O seu ensino, a sua didáctica, os seus métodos, os seus cursos, até os seus professores são os mesmos da Universidade do Estado que lhes serve de modelo, modelo imposto como condição para que os respectivos cursos sejam reconhecidos pelo Ministério da Educação, todo ele infiltrado de comunistas nos lugares-chave».


Notas:

(1) Orlando Vitorino, «Um filósofo singular: Álvaro Ribeiro», in Letras & Letras, 5 de Maio de 1993, n.º 94.

(2) Orlando Vitorino, Refutação da Filosofia Triunfante, Teoremas, 1976, p. 21.

(3) O ministro referido é o Sr. Dr. Cavaco Silva e a respectiva justificação foi publicada no semanário «Tempo», em Novembro de 1981.

(4) Orlando Vitorino, Exaltação da Filosofia Derrotada, Guimarães Editores, 1983, pp. 25-30.

(5) O modo como o direito romano se sistematizou tendo por princípio a justiça e como o direito moderno fez da liberdade o seu princípio, está exposto pelo autor no livro «Refutação da Filosofia Triunfante».

(6) Ibidem, pp. 95-97.




(7) Orlando Vitorino, O processo das Presidenciais 86, Organizado e Publicado pelos Serviços da Candidatura de Orlando Vitorino, Lisboa, 1986, p. 26.

(8) Prefácio a John Stuart Mill, Ensaio sobre a Liberdade, Arcádia, 1973, pp. 27-28.

(9) Álvaro Ribeiro, Apologia e Filosofia, Guimarães Editores, 1953, p. 57.

(10) Prefácio à 3.ª edição de Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, Lisboa, Guimarães Editores, 1990, p. 16.

(11) Afonso Botelho, O Drama do Universitário, Lisboa, Cidade Nova, 1955, p. 90.

(12) Cf. Orlando Vitorino, «A Angústia do Nosso Tempo e a Crise da Universidade – Por António Quadros», in Diário Popular, Lisboa, 24 Out, 1956, pp. 17 e 19.

(13) António Quadros, in Tempo, 18/1/85.

Continua


quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Chavões e realidades

Escrito por Olavo de Carvalho







S. Paulo, 9 de outubro de 2015

A esquerda mundial está hoje muito mais unificada e organizada do que 60 ou 70 anos atrás. Ganhou em força de atuação conjunta o que perdeu no debate ideológico 

Chavões, frases-feitas, clichês, estereótipos ou como se queira chamá-los existem para que o sujeito que não pensou num assunto possa obter a concordância imediata de outro que também não pensou.

Onde quer que você ouça ou leia um desses maravilhosos substitutivos do pensamento, pode ter a certeza de que está assistindo a um encontro de dois corações que se apóiam e se reforçam mutuamente sem nenhuma interferência do objeto sobre o qual fingem estar conversando.

Por exemplo, quando um cidadão afirma: “Esquerda e direita são conceitos superados”, o que ele quer dizer é: “Eu sou superior a essas coisas.” O ouvinte, mais que depressa, responde: “Eu também.” E saem os dois muito contentes da sua superioridade, enquanto as duas forças inexistentes continuam a disputar o governo, xingar-se uma à outra, boicotar-se mutuamente e até trocar tiros, como se existissem.

A verdade é que nenhum fato ou coisa deste mundo, por pequeno e modesto que seja, se deixa apreender na linguagem dos chavões. Estes não têm nada a ver com a descrição de realidades, mas apenas, na mais bem sucedida das hipóteses, com a expressão da harmonia ou desarmonia entre as almas do falante e do ouvinte.

Isso é assim pela simples razão de que nenhuma realidade vem junto com a linguagem pronta que a expressa, mas em cada caso a sua descoberta requer a invenção da linguagem apropriada para expressá-la.

É por isso que os autores de grandes descobertas na filosofia são também inventores de linguagens originais. Conforme o talento literário de cada um, elas podem ser límpidas e claras como as de Platão ou Leibniz, ou então abstrusas e indecifráveis como as de Kant ou Heidegger, mas sempre originais, únicas e adequadas aos seus fins.






Martinho Heidegger


O chavão é, por excelência, a linguagem do auto-engano que busca transmutar-se em engano alheio, se possível em engano geral. É a linguagem de quem fecha os olhos ao objeto e os arregala para ver a reação do ouvinte. O pobre do objeto, do assunto, da questão, fica fora da conversa como um mendigo que espia pela janela do Ritz.

Se voltamos ao exemplo acima e, em vez de participar da deliciosa harmonia entre o falante e o ouvinte, voltamos os nossos olhos ao objeto da conversa, em cem por cento dos casos notamos que ele é bem diferente do que o imaginam aqueles que nem mesmo tentaram imaginá-lo, mas se limitaram a usá-lo como pretexto de um intercâmbio social.

Desde logo, se há pessoas que se dizem de esquerda ou de direita e que agem politicamente sob essas bandeiras, é evidente que esquerda e direita existem como agrupamentos políticos reais que sob esses nomes se reconhecem e por eles distinguem os “de dentro” e os “de fora”.

Se suprimimos os nomes teremos de designá-los por outros da nossa própria invenção, nos quais os dois grupos não se reconhecerão e que só servirão para complicar o vocabulário.

Como autodenominações de grupos políticos e símbolos da sua identidade, os termos “esquerda” e “direita” não estão superados de maneira alguma. Expressam uma realidade sociológica inegável.

Faz um pouco mais de sentido dizer que seus respectivos discursos ideológicos foram ultrapassados pelo desenvolvimento crescentemente complexo do estado de coisas, que nenhum deles expressa corretamente.

Teremos, com isso “superado os conceitos” de esquerda e direita? De maneira alguma, pois essa acusação é a mesma que a esquerda e a direita se fazem mutuamente, e, se não percebemos nem mesmo isso, é que ignoramos o estado de coisas ainda mais profundamente do que as duas juntas, e nós é que estamos superados. O sapientíssimo se revela um bobo na hora mesma em que tenta posar de superior.

Deveria ser óbvio para todo mundo, mas para muitos é quase um segredo esotérico inacessível, que a qualidade boa ou má, a veracidade ou falsidade das idéias de um grupo não tem nada a ver com a sua existência ou inexistência como grupo. Argumentar que duendes não existem não prova que inexistam grupos que acreditam em duendes.

Ainda mais bobo é aquele que afirma desprezar toda “retórica ideológica” e, em vez disso, examinar somente os interesses materiais malignos por trás da aparente disputa de ideologias, acreditando com isso estar firmemente assentado no terreno dos fatos e a salvo de idéias ilusórias.

Mas, em primeiro lugar, apontar interesses materiais por trás de um discurso ideológico é precisamente o que as ideologias inimigas fazem umas com as outras. E o fazem quase sempre com razão, porque toda ideologia, como já a definia Karl Marx, é um “vestido de idéias” (Ideenkleid) costurado para encobrir um interesse material, um projeto de poder, uma ambição mundana.


Por outro lado, é certo que, se esses interesses se apresentassem nus e crus, sem a embalagem ideológica, seriam imediatamente desmoralizados e não enganariam a ninguém. A ideologia, portanto, é parte integrante do projeto maligno, que não pode ser compreendido sem referência a ela.

Por fim, também é certo que, se um discurso ideológico, uma vez formulado, serve de símbolo verbal da identidade de um grupo, o qual sem essa identidade estaria privado da possibilidade de agir em conjunto, o conteúdo desse discurso não será nunca totalmente alheio à conduta real do grupo, que em certa medida será obrigado a ajustar suas ambições de poder às promessas e valores do discurso.

A tensão entre a identidade do grupo e os interesses materiais em jogo é um elemento permanente da vida político-ideológica, e fazer abstração da ideologia para enfocar somente os interesses materiais isolados é condenar-se a não compreendê-los de maneira alguma.

Um exemplo característico é o chavão mais em moda hoje em dia, segundo o qual o sr. Lula não é comunista nem esquerdista, apenas um político sem filiação ideológica que enriqueceu ilicitamente.

Esse chavão soa agradável em diferentes áreas do espectro ideológico. Para o esquerdista, ele é a fórmula mágica para isentar de toda culpa pelos crimes do PT a corrente política que o criou, que o incensou, que lhe deu a hegemonia e que, se ele for para o buraco, pretende continuar no poder sob outros nomes quaisquer.

Para o direitista, fornece um poderoso argumento retórico: “Estão vendo como na esquerda ninguém presta, como são todos uns ladrões e salafrários?” E, para o homem “superior a ideologias”, é mais uma prova da sua superioridade sublime. Todos os pretextos servem, portanto, para o interessado se fazer de bonito mediante a supressão de pelo menos duas perguntas:

1) Se o Lula é apenas um ladrãozinho sem compromisso com o comunismo, por que distribuiu tanto dinheiro a ditaduras e partidos comunistas, quando podia guardá-lo para si mesmo?

2) Por que as FARC o homenagearam por ter salvado in extremis o comunismo continental, em vez de acusá-lo de usar o comunismo em benefício próprio? Que o sr. Lula seja apenas um ladrãozinho egoísta sem vínculo ou compromisso com o comunismo internacional é uma das idéias mais estúpidas e indefensáveis que já passaram por um cérebro humano.


Ver 1, 2 e 3














De um lado, há o fato incontestável de que ele é aceito e celebrado por todos os governos e partidos comunistas do mundo não só como um parceiro e irmão leal, mas até como uma espécie de herói, de salvador providencial.

Se ele alcançou essa posição sem nada fazer pelo comunismo e agindo sempre somente no interesse próprio, então ele enganou a todos os líderes e governos comunistas do universo, incluindo os serviços secretos de Cuba e da China, tidos como extraordinariamente eficientes e maliciosos, só não logrando tapear o tirocínio superior dos comentaristas brasileiros de mídia.

De outro lado, resta o fato igualmente incontestável de que nenhum espertalhão logrou jamais utilizar-se do comunismo em benefício próprio sem beneficiar ainda mais algum governo ou partido comunista - pelo menos não logrou fazê-lo sem pagar com a vida.

Willi Münzenberg, que era um milhão de vezes mais esperto que Lula, foi simplesmente acusado de tentar fazer isso, e já o assassinaram antes que alguém pudesse verificar se fez ou não.

Não é humanamente concebível que um movimento que condenou à morte cem milhões de pessoas pudesse poupar generosamente a vida de um vigarista que o ludibriasse de forma tão humilhante ante os olhos da humanidade inteira.

Muito menos concebível é que depois disso continuasse a aplaudi-lo e paparicá-lo como o fazem os governos de Cuba, da China, da Venezuela etc. Essa hipótese é tão absurda, tão monstruosamente inverossímil, que acreditar nela mesmo por um minuto e em segredo já seria prova de uma imbecilidade descomunal.

A desenvoltura ingênua com que tantos no Brasil a alardeiam sem a menor inibição é a prova definitiva de que algo no cérebro nacional não vai bem.

Erros monumentais como esse não aparecem sozinhos. Provêm de uma ignorância estrutural, profunda e dificilmente reversível, quanto à natureza e função das ideologias em geral.

Os palpiteiros que superlotam a mídia e as cátedras imaginam que ideologia seja algo como uma crença religiosa, que exija a adesão profunda e sincera das almas. Nessa perspectiva, um comunista, por exemplo, poderia ser um “verdadeiro crente” ou um mero oportunista sem crença nenhuma.

Essa diferença pode ter existido em outras épocas, quando a URSS baixava as Tábuas da Lei e condenava como heréticos os trotskistas, os revisionistas etc. De fato, não pode existir “verdadeiro crente” sem um texto canônico obrigatório para todos.

Mas já faz três décadas, pelo menos, que nada disso existe no movimento comunista. A concepção eclesiástica do Partido como guardião da doutrina infalível foi substituída pela flexibilidade de um pluralismo ilimitado onde todos os discursos ideológicos são bons, desde que seus adeptos consintam em agir segundo uma estratégia unificada.

Concomitantemente, a antiga hierarquia vertical foi trocada por uma organização mais flexível sob a forma de “redes”, onde as palavras-de-ordem não despencam das alturas olímpicas de um Comitê Central mas se espalham quase anonimamente, como se fossem meras exigências do senso comum em vez de ordens do Camarada Fulano ou Beltrano.

Ver aqui


A substituição da unidade ideológica pela unidade puramente estratégica, concebida nos anos 80 do século passado e testada com sucesso espetacular na guerrilha de Chiapas, México, em 1994 – chamada por isso “guerrilha pós-moderna”-, permitiu que o movimento comunista não somente sobrevivesse incólume à queda da URSS, mas multiplicasse sua força e capacidade de ação.

A esquerda mundial está hoje muito mais unificada e organizada do que 60 ou 70 anos atrás. Ganhou em força de atuação conjunta o que perdeu no debate ideológico. Quem não percebe isso não merece ser ouvido em matéria de política.

 Para tornar as coisas ainda mais incompreensíveis aos sábios iluminados, resta o fato de que “esquerda” e “direita” só são entidades simetricamente opostas nos dicionários.

Na vida real, “esquerda”, hoje, não é um “rótulo ideológico” e sim um movimento unificado e organizadíssimo sem nenhuma ideologia definida, ao passo que “direita” é na melhor das hipóteses o nome de um amálgama confuso de discursos ideológicos inconexos, ao qual não corresponde nenhuma organização ou movimento unificado nem mesmo em escala nacional, quanto mais mundial.

Não são espécies do mesmo gênero. Aquele que assim as concebe para fazer-se de superior a ambas, como um domador que cavalga simetricamente dois cavalos com um pé em cada um, é na verdade um acrobata impossível com um pé num cavalo de carne e osso e o outro no conceito abstrato de um cavalo hipotético.


sábado, 21 de novembro de 2015

Pela República, contra o Socialismo

Escrito por Álvaro Ribeiro





Nascimento do deus Baco







Mistérios de Elêusis



Triptólemo, Deméter e Perséfone




Perséfone raptada por Hades




Fócida


«Realizavam-se na Grécia certas práticas religiosas de que nem todos participavam, e que consistiam em purificações, expiações, sacrifícios, cantos e em geral todas as cerimónias que se encontravam nos outros cultos. Do carácter secreto destes actos religiosos lhes veio o nome de mistérios. Celebravam-se mistérios especiais em honra de cada divindade. Os mais célebres foram os de Deméter e os de Dionisos».

Fortunato de Almeida («Curso de História Universal»).


«...As tragédias (e as comédias) eram representadas num santuário consagrado a Dioniso, por ocasião dos festivais atenienses, instituídos por Psístrato na segunda metade do século VI [a. C.], e dedicados a esta divindade. Importa observar que somente no decurso dos festivais de Dioniso se realizavam as competições trágicas que para sempre celebrizaram os nomes de Ésquilo, Sófocles e Eurípides».

Eudoro de Sousa (in Introdução à «Poética» de Aristóteles).


«Da planície da Fócida, o viajante subiria as prados que se estendem até às margens do Plístios, entrando depois num vale tortuoso entre altas montanhas. O vale ia estreitando-se, enquanto a paisagem se tornava mais grandiosa e mais desolada. Atingiria finalmente um círculo de montanhas abruptas, encimadas de penedos selvagens, verdadeiro funil carregado de electricidade, onde eram frequentes as tempestades. No fundo da garganta, aparecia a cidade de Delfos, como um ninho de águia num rochedo, rodeado de precipícios e dominado pelos dois cimos do Parnaso. Ao longe, viam-se cintilar ao sol os cavalos de bronze, as estátuas das Vitórias, inúmeras imagens feitas de ouro, um conjunto de heróis e deuses, até ao templo dórico de Proibos Apolo.

Em toda a Grécia, era aquele o local mais santo. Aí profetizava a Pítia, reuniam-se os Anfictiões... Para lá se dirigiam homens, mulheres e meninos para saudarem o Deus da luz. Desde tempos imemoriais, fora o templo de Delfos consagrado à veneração dos povos. Na caverna atrás do templo abria-se uma fenda de onde saíam vapores frios, os quais, inspirados, provocavam o êxtase, segundo se dizia. Narra Plutarco que, em tempos muito remotos, um pastor sentou-se perto daquela fenda e começou a profetizar. No princípio, supuseram-no louco. Mas as profecias realizavam-se e então deram atenção ao facto. Os sacerdotes intervieram e consagraram o local à divindade. Daí a instituição da Pítia, sentada sobre um tripé colocado acima da fenda. Os vapores provocavam-lhe convulsões com a chamada segunda vista, o que se nota nos sonâmbulos notáveis.

Ésquilo, filho de um sacerdote de Elêusis, ele próprio iniciado, informa em As Euménidas, pela boca da Pítia, que Delfos fora consagrado à Terra, depois a Témis (a Justiça), a seguir a Febe (a lua medianeira), por fim a Apolo, o Deus solar. Segundo os poetas, a fama de Delfos data de Apolo. Júpiter quis saber onde estava o centro da terra. Então soltou duas águias, que voaram, uma do oriente, outra do ocidente, encontrando-se em Delfos. Daí o prestígio do local, com Apolo elevado à categoria de deus grego por excelência. A explicação da origem da preeminência de Apolo não foi revelada, mas façamos algumas conjecturas a respeito. Segundo o pensamento órfico, Dionisos e Apolo eram duas revelações da mesma divindade. Dionisos simbolizava a verdade esotérica, acessível somente aos iniciados. Nela se continham os mistérios, as existências anteriores e futuras, as relações da alma e do corpo, do céu e da terra. Apolo representava a mesma verdade, aplicada à vida terrena, à ordem social. Era o inspirador da medicina, das leis, da adivinhação, da beleza artística, da paz entre os povos apoiada na justiça, da purificação para a harmonia da alma e do corpo.











Baco e Ariadne



Ariadne




Bacante







Sátiro e Bacante



Numa palavra, para o iniciado, Dionisos significava o espírito divino em evolução no universo e Apolo a sua manifestação no homem terrestre. Os sacerdotes tinham dado ao povo a seguinte explicação: nos tempos de Orfeu, Baco e Apolo disputaram o tripé de Delfos. Baco cedera-o de boa vontade ao irmão. Retirara-se para os cimos do Parnaso, onde as mulheres tebanas celebravam os seus mistérios. Mas, de facto, os dois tinham dividido o império do mundo: um reinava no misterioso além, o outro regia o mundo dos vivos.

(...) A clarividência difere do sono e da vigília. As faculdades intelectuais do clarividente aumentam de maneira surpreendente. A memória é mais exacta, a imaginação mais viva, a inteligência mais desperta.

(...) Numa palavra, se a clarividência é um estado anormal do ponto de vista do corpo, é um estado normal e superior do ponto de vista do espírito.

(...) Se a clarividência é uma faculdade da alma, não é permitido que se rejeitem, pura e simplesmente, os profetas, os oráculos, as sibilas, levando as suas actividades para o plano da superstição. Nos templos antigos, a adivinhação teria sido praticada com finalidade social e religiosa. (...) As suas belas manifestações somente são possíveis em seres de grandeza e de pureza excepcionais.

Nada diremos dessa ciência que os antigos designavam por genetlialogia, da qual a astrologia medieval é apenas um fragmento imperfeitamente compreendido, a não ser que se tratava de uma ciência enciclopédica aplicada ao futuro dos povos e dos indivíduos. Muito útil como orientação, foi problemática a sua aplicação. Somente os espíritos de primeira ordem puderam usá-la. Pitágoras aprofundou-a no Egipto. Na Grécia, era praticada com dados menos completos e menos precisos. Ao contrário, a clarividência e a profecia estavam mais adiantadas.

Sabe-se que esta se exercia em Delfos por mulheres jovens e velhas, chamadas Pítias ou Pitonisas, que funcionavam passivamente como sonâmbulos clarividentes. Os sacerdotes, com base nos seus conhecimentos, interpretavam, traduziam e ordenavam os oráculos. Os historiadores modernos viram na instituição de Delfos nada mais do que exploração e superstição manejados por um charlatanismo inteligente.

Mas toda a filosofia antiga valorizava a ciência adivinhatória de Delfos. Além disso, Heródoto refere-se a diversos oráculos válidos como o de Creso e o da batalha de Salamina. Essa arte teve o seu começo, o seu apogeu e a sua decadência. O rei Cleómenes corrompeu a superiora das sacerdotisas de Delfos para usurpar a realeza de Demarates. Plutarco escreveu um tratado, pesquisando os motivos da extinção dos oráculos. Toda a sociedade antiga interpretou essa decadência como uma desgraça».

Eduardo Schuré («Os Grandes Iniciados»).




Ruínas do tolo de Delfos




Sibila de Delfos















Lycurgus consultando a Pythia, por Eugène Delacroix.



«A cidade havia sido fundada sobre uma religião e constituída como uma igreja. Daí a sua força; daí também a sua omnipotência e império absoluto que exercia sobre os seus membros. Em sociedade organizada em tais bases, a liberdade individual não podia existir. O cidadão estava, em todas as suas coisas, submetido, e sem reserva alguma, à cidade; pertencia-lhe inteiramente. A religião que tinha gerado o Estado, e o Estado que conservava a religião, apoiavam-se mutuamente e formavam um só corpo; estes dois poderes associados e confundidos formavam um poder sobre-humano, ao qual a alma e o corpo se achavam igualmente submetidos.

Nada no homem havia de independente. O seu corpo pertencia ao Estado e estava votado à sua defesa; em Roma o serviço militar era obrigatório até aos quarenta e seis anos, e em Atenas e Esparta por toda a vida. Os seus haveres estavam sempre à disposição do Estado; se a cidade carecia de dinheiro, podia ordenar às mulheres lhe entregassem as suas jóias, aos credores lhe abandonassem os seus créditos, aos possuidores de oliveiras lhe cedessem gratuitamente o azeite que tinham fabricado.

A vida não se escapava a tanta omnipotência do Estado. Muitas cidades gregas proibiam ao homem o celibato. Esparta punia não somente quem não se casava mas mesmo quem só tardiamente se casava. O Estado podia prescrever, em Atenas, o trabalho e, em Esparta, a ociosidade. A tirania do Estado exercitava-se até sobre as mais pequeninas coisas, como em Locres, onde a lei proibia aos homens bebessem vinho puro ou em Roma, em Mileto e em Marselha, onde o tornava defeso às mulheres. Era vulgar que o vestuário fosse determinado pelas leis de cada cidade; a legislação de Esparta regulamentava o penteado das mulheres e a de Atenas interdizia estas de levarem em viagem mais que três vestidos. Em Rodes a lei impedia o homem de fazer a barba; em Bizâncio punia-se com multa quem possuísse, em sua casa, navalha de barba; e em Esparta, ao contrário, exigia-se fosse rapado o bigode.

O Estado tinha o direito de não permitir cidadãos disformes ou monstruosos. Por consequência, ordenava ao pai a quem nascesse semelhante filho que o matasse. Esta lei encontra-se também nos antigos códigos de Esparta e nos de Roma. Não sabemos se esta lei igualmente existiu ou não em Atenas, por dela somente encontrarmos conhecimento em Aristóteles e Platão, ao inscreverem-na nas suas legislações ideais.

Há na história de Esparta certo facto, por Plutarco e Rousseau muito admirado. Esparta acabava de sofrer a derrota de Leuctra, onde muitos dos seus cidadãos haviam perecido. A esta notícia, os pais dos mortos tiveram de aparecer, em público, de cara alegre. Assim, a mãe que sabia ter seu filho escapado ao desastre, ao tornar a vê-lo demonstrava seu pesar e chorava. E a que tinha a certeza de nunca mais voltar a ver seu filho, essa testemunhava alegria e percorria os templos agradecendo aos deuses. Tal era o poder do Estado que ordenava a transposição dos sentimentos naturais e era obedecido.



Licurgo de Esparta
















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O Estado não admitia que um homem fosse indiferente aos seus interesses; o filósofo, o homem de estudo, não tinha o direito de viver isolado. Era sua obrigação votar na assembleia e, por sua vez, ser magistrado. Em certa altura, quando as discórdias se tornaram frequentes, a lei ateniense não permitia ao cidadão a sua neutralidade, antes o obrigava a combater por um ou outro partido; e a quem quisesse continuar alheio das facções e se mostrasse calmo, a lei aplicava pena severa, como a da perda do direito de cidade.

A educação, entre os gregos, estava muito longe de ser livre. Pelo contrário, nada houve em que o Estado mostrasse mais vontade em aparecer todo-poderoso. Em Esparta o pai não exercia direito algum sobre a educação do seu filho. A lei parece ter sido menos rigorosa em Atenas, ainda que a cidade fizesse, por assim dizer, com que a educação fosse dada em comum por mestres por ela escolhidos. Aristófanes, em texto eloquente, mostra-nos as crianças de Atenas a caminho da escola; em ordem, distribuídas por bairros, as crianças caminham em filas cerradas, à chuva, à neve ou com sol forte; estas crianças, tudo indica compreenderem que estavam já a cumprir um dever cívico. O Estado queria ser só ele a dirigir a educação, e Platão diz qual o motivo da sua exigência: "Os pais não devem ter a liberdade de enviar ou deixar de enviar os seus filhos aos mestres pela cidade escolhidos, porque estas crianças pertencem menos a seus pais do que à cidade". O Estado considerava o corpo e a alma de cada cidadão como sua pertença e, para tanto, queria se acostumasse este corpo e esta alma de modo a deles tirar o melhor partido. Ensinava-se-lhe a ginástica, porque, sendo o corpo do homem uma arma da cidade, tornava-se preciso que fosse o mais forte e ágil possível. Ensinava-se-lhe, também, os cantos religiosos, os hinos e as danças sagradas, porque este conhecimento era indispensável à boa execução dos sacrifícios e festas da cidade.

Reconhecia-se ao Estado o direito de obstar a que, ao lado do seu, houvesse ensino livre. Atenas promulgou, certo dia, uma lei, proibindo instruir os jovens sem autorização dos magistrados, e outra lei interdizia especialmente o ensino da filosofia.

O homem não tinha escolha de crenças. Devia acreditar e submeter-se à religião própria da cidade. Podiam odiar-se ou desprezar-se os deuses da cidade vizinha e, quanto às divindades de carácter geral e universal, como Júpiter Celeste, Cíbele, ou Juno, havia a liberdade de neles ter ou não ter fé. Mas que o homem não se permitisse duvidar da Atena Políada, ou de Erecteu ou ainda de Cécrope. Aqui, cometeria grande impiedade, que, ofendendo, ao mesmo tempo, a religião e o Estado, era pelo Estado severamente punida. Sócrates foi, por este crime, condenado à morte. A liberdade de pensamento, em matéria de religião, era absolutamente desconhecida, entre os antigos. Deviam conformar-se com todas as regras do culto, figurar em todas as procissões e tomar parte nos repastos sagrados. A legislação ateniense estabelecia pena contra os que se abstivessem de celebrar religiosamente alguma festa nacional.




Os antigos não conheciam, portanto, nem a liberdade de vida privada, nem a de educação, nem a liberdade religiosa. A pessoa humana tinha muito pouco valor, perante esta autoridade santa e quase divina que se chamava pátria ou Estado. O Estado não tinha somente, como nas sociedade modernas, direito de justiça concernente aos cidadãos. Podia punir sem o homem estar culposo; e somente por o interesse do Estado estar em jogo. Aristides, certamente, não cometera crime algum e nem mesmo, sequer, se tornara suspeito, mas a cidade tinha o direito de expulsá-lo do seu território, pela única razão de Aristides ter adquirido, por suas virtudes, tão grande influência que, por esse motivo, poderia, quando quisesse, tornar-se homem perigoso. Chamava-se a isto ostracismo e não se ostentou por privativa de Atenas esta instituição, pois a encontramos também em Argos, em Mégara e em Siracusa e, conforme Aristóteles nos dá a entender, existiu igualmente em todas aquelas cidades gregas que tinham governo democrático. Ora, o ostracismo não era um castigo, mas uma precaução tomada pela cidade contra um cidadão suposto de algum dia vir a perturbá-la. Em Atenas, podia qualquer homem ser acusado e condenado por falta de civismo, isto é, por falta de afecto para com o Estado. Quando se tratava do interesse da cidade, nenhuma garantia se oferecia à vida do homem. Roma promulgou determinada lei onde se legitimava dar a morte a todo o homem que pensasse em tornar-se seu rei. A funesta máxima de que a salvação do Estado é lei suprema achou-se, assim, formulada na antiguidade. Pensava-se que o direito, a justiça e a moral deviam ceder perante o interesse da pátria.

Singular erro é, pois, entre todos os erros humanos, acreditar-se em que nas cidades antigas o homem gozava de liberdade. O homem não tinha sequer a mais ligeira ideia do que esta fosse. O homem não se julgava capaz de direitos, em face da cidade e dos seus deuses. (...) o governo muitas vezes mudou de forma; mas a natureza do Estado ficou pouco mais ou menos na mesma, sendo a sua omnipotência quase em nada diminuída. O sistema de governo tomou vários nomes, sendo uma vez monarquia, de outra aristocracia, ou ainda democracia, mas com nenhuma destas revoluções ganhou o homem a sua verdadeira liberdade, a liberdade individual. Ter direitos políticos, poder votar e nomear magistrados, ser arconte, a isto se chamou liberdade, mas o homem, no fundo, mais não foi sempre que escravo do Estado. Os antigos, sobretudo os gregos, exageravam muito sobre a importância e os direitos da sociedade, e isto, sem dúvida alguma, devido ao carácter sagrado e religioso que a sociedade originariamente revestiu.

(...) Quando através da série de revoluções os homens conseguiram a igualdade, já não existindo lugar para se combaterem por princípios e direitos, guerrearam-se por interesses. Este novo período da história das cidades não começou no mesmo dia em toda a parte. Em algumas cidades seguiu de muito perto o estabelecimento da democracia; nas outras, apareceu só depois de muitas gerações terem podido calmamente governar. Mas todas as cidades, cedo ou tarde, caíam em tão lastimáveis lutas.

(...) A democracia não suprimiu a miséria; pelo contrário, tornou-a mais acentuada. A igualdade nos direitos políticos frisou mais flagrantemente ainda a desigualdade das condições.



(...) Já dissemos como a cidade, principalmente entre os gregos, tinha poder sem limites, sendo-lhes a liberdade desconhecida, e como o direito individual nada era perante a vontade do Estado. Daqui resultava poder a maioria dos sufrágios decretar a confiscação dos bens dos ricos, e os gregos não viam nisso nem ilegalidade nem injustiça. Aquilo sobre que o Estado se tinha pronunciado era o direito. Esta ausência de liberdade individual foi causa de desgraças e de desordens para a Grécia. Roma, que respeitava um pouco mais os direitos do homem, sofreu por conseguinte menos.

Plutarco, conta que em Mégara, após certa insurreição, se decretou a abolição das dívidas, sendo os credores, além da perda do capital, obrigados a reembolsar os devedores de juros já pagos.

"Em Mégara, como em outras urbes, diz-nos Aristóteles, o partido popular, tendo-se apoderado do poder, começou por pronunciar a confiscação dos bens contra algumas famílias ricas. Mas, uma vez neste caminho, não lhe foi possível deter-se. Foi preciso arranjar-se para cada dia uma nova vítima, e por fim o número de ricos espoliados e exilados cresceu tanto que formaram um exército".

(...) A ruína do regime político que a Grécia e a Itália haviam criado pode relacionar-se com duas causas principais. A primeira pertence à categoria dos actos morais e intelectuais; a segunda, à ordem dos actos materiais; a primeira consiste na evolução das crenças; a segunda, na conquista romana. Estes dois factos são contemporâneos; desenvolveram-se e realizaram-se conjuntamente, durante os cinco séculos que precederam a era cristã.

A religião primitiva, cujos símbolos estavam na pedra inamovível do lar e no túmulo dos antepassados, religião que constituíra a família antiga e organizara em seguida a cidade, alterou-se com o tempo e envelheceu. O espírito humano aumentou as suas forças e concebeu novas crenças. Principiou-se a formar ideia da natureza material; a noção de alma precisou-se, e, quase ao mesmo tempo, surgiu nos espíritos a noção do ser divino.

(...) Quanto ao lar, que parece só ter tido sentido enquanto ligado ao culto dos mortos, perdeu também o seu prestígio. Continuou-se tendo em casa um lar doméstico, a saudá-lo, a adorá-lo, a oferecer-lhe a libação; mas ficando apenas como culto de mera observância, que já nenhuma fé vivificava.

O lar das urbes, ou pritanado, insensivelmente entrou no mesmo descrédito em que já decaíra o lar doméstico. Não se sabia o que significava; olvidava-se que o fogo sempre vivo do pritanado representava a vida invisível dos antepassados, dos fundadores, dos Heróis nacionais. Continuava a manter-se esse fogo, a fazerem-se os repastos públicos, a cantarem-se os velhos hinos: cerimónias vãs de que não ousavam desembaraçar-se, mas cujo sentido já ninguém compreendia.



Mesmo as divindades da natureza, que se haviam associado aos lares, mudaram de carácter. Depois de começarem por ser divindades domésticas, depois de se terem tornado em divindades da cidade, ainda mais evoluíram. Os homens acabaram por compreender como os diferentes seres a que davam o nome de Júpiter podiam muito bem não ser mais do que um só e mesmo ser, e o mesmo se dando em relação aos mais deuses. O espírito ficava embaraçado perante a grande quantidade de divindades, e sentia a necessidade de reduzir o seu número. Compreendeu que os deuses já não pertenciam um a cada família, ou a cada urbe, mas todos ao género humano e velando pelo universo. Os poetas iam de urbe em urbe e ensinavam aos homens, em lugar dos velhos hinos da cidade, cânticos novos onde se não falava dos deuses Lares nem das divindades políadas, antes se referiam lendas dos grandes deuses da terra e do céu, e, deste modo, o povo grego se ia esquecendo dos seus velhos hinos domésticos ou nacionais, substituindo-os pela poesia nova, já não filha da religião, mas da arte e da livre imaginação. Ao mesmo tempo, alguns grandes santuários, como os de Delfos e de Delos, atraíam a atenção dos homens fazendo-os esquecerem-se dos cultos locais. Os mistérios e a doutrina que encerravam habituaram-nos a desdenhar da religião vazia e insignificante da cidade.

Destarte, lenta e obscuramente, se foi operando uma revolução intelectual. Os próprios sacerdotes não lhe opunham resistência; desde que os sacrifícios continuassem a realizar-se nos dias marcados, parecia-lhes salva a velha religião; as ideias podiam modificar-se e a fé esmorecer desde que os ritos não fossem atingidos. Sucedeu porém que, sem se modificarem as práticas, as crenças se transformaram, e a religião doméstica e municipal logo perdeu todo o seu comando sobre as almas.

Depois, apareceu a filosofia a derribar todas as regras da velha política. Era impossível atingirem-se as opiniões dos homens sem se tocar ao mesmo tempo nos princípios fundamentais do seu governo. Pitágoras, possuidor de vaga concepção do Ser supremo, desdenhou dos cultos locais, e tanto bastou para, enjeitando as antigas formas de governo, tentar fundar nova sociedade.

Anaxágoras concebeu o Deus-Inteligência reinando por sobre todos os homens e todos os seres. Afastando-se das velhas crenças, distanciou-se também da velha política. Como não acreditasse nos deuses do pritanado, Anaxágoras não cumpria tão-pouco com os seus deveres de cidadão, e deste modo fugia das assembleias e não desejou ser magistrado. A sua doutrina ofendia a cidade; os atenienses sentenciaram-no à morte.












Vieram em seguida os sofistas e exerceram maior acção do que estes dois grandes espíritos. Eram homens ardentes no seu combate contra velhos erros. Na luta travada contra tudo quanto ainda estava ligado ao passado, estes homens não poupavam já as instituições da cidade nem os preconceitos da religião. Examinaram e discutiram ousadamente as leis que ainda tutelavam o Estado e a família. Os sofistas iam de urbe em urbe, pregando os novos princípios, ensinando não precisamente a indiferença ao justo e ao injusto, mas a nova justiça, menos estreita e exclusivista do que a antiga, mais humana, mais racional, e libertada das fórmulas das idades anteriores. Empresa atrevida, levantando sua tempestade de ódios e de rancores. Acusaram-nos de não terem nem religião, nem moral, nem patriotismo. A verdade manda dizer-se que não tinham doutrina bem definida sobre todas as coisas e, combatendo os preconceitos, julgavam ter feito muito. Os sofistas abalaram, como nos diz Platão, o que até então estivera firme. Colocavam, tanto a lei do sentimento religioso, como a da política, na consciência humana e não nos costumes dos antepassados, na tradição imutável. Ensinavam aos gregos que, para governar o Estado, não bastava invocar os velhos usos e as leis sagradas, mas era preciso persuadir os homens a actuar como vontades livres. Substituíam o conhecimento dos antigos costumes pela arte de raciocinar e de falar, a dialéctica e a retórica. Os seus adversários tinham por si a tradição; os sofistas tiveram por eles a eloquência e o saber.

Uma vez estimulada assim a sua reflexão, o homem nunca mais quis crer sem compreender, nem deixar-se governar sem discutir as suas instituições. Duvidou da justiça de suas velhas leis sociais, e outros princípios lhe surgiram. Platão põe na boca do sofista estas belas palavras: "Vós todos que estais aqui, eu vos considero parentes uns dos outros. A natureza, a despeito da lei, tornou-vos concidadãos. Mas a lei, essa tirana do homem, violenta a natureza em muitas ocasiões". Opor assim a natureza à lei e ao costume era atacar fortemente os próprios fundamentos da política antiga. Debalde os atenienses exilaram Protágoras e queimaram os seus escritos; o golpe dera-se e o resultado do ensinamento dos sofistas tinha sido imenso. A autoridade das instituições desaparecia com a autoridade dos deuses nacionais, e o uso do livre exame estabelecia-se nas casas e na praça pública.

Sócrates, embora reprovasse inteiramente o abuso que os sofistas faziam do direito de duvidar, pertencia, no entanto, à sua escola. Como os sofistas, não admitia a autoridade da tradição, e acreditava estarem as regras de conduta gravadas na consciência humana. Sócrates não discordava dos sofistas, senão em que estudava esta consciência religiosamente e no firme desejo de nesta encontrar o dever de ser justo e de fazer o bem. Colocava a verdade acima do costume, a justiça acima da lei. Distinguia a moral da religião; anteriormente a Sócrates, não se concebia o dever senão como mandato dos antigos deuses, mas o filósofo mostrou estar a origem do dever na própria alma do homem. Em tudo isto, quer Sócrates o quisesse, quer não, fazia guerra aos cultos da cidade. Baldadamente tinha Sócrates o cuidado de assistir as todas as festas e de tomar parte nos sacrifícios; as suas crenças e palavras desmentiam a sua conduta. Fundava religião nova, aparecendo esta como contrária à religião da cidade. Acusaram-no com razão "de não adorar os deuses pelo Estado adorados" Fizeram-no morrer por ter atacado os costumes e as crenças dos antepassados, ou, como então se dizia, por corromper a geração do tempo. A impopularidade de Sócrates e os grandes ódios dos seus concidadãos explicam-se, se pensarmos nos costumes religiosos desta sociedade ateniense, onde existiam tantos sacerdotes e onde estes eram tão poderosos. Mas a revolução iniciada pelos sofistas e com mais moderação continuada por Sócrates não se deteve com a morte de um velho. A sociedade grega liberta-se, dia a dia, cada vez mais, do domínio das velhas crenças e das velhas instituições.






Depois de Sócrates, os filósofos discutiram em toda a liberdade os princípios e as regras da associação humana. Platão, Críton, Antístenes, Espeusipo, Aristóteles, Teofrasto e muitos outros, escreveram tratados sobre a política. Buscou-se, examinou-se; os grandes problemas da organização do Estado, da autoridade e da obediência, das obrigações e dos direitos, levantaram-se a todos os espíritos

Sem dúvida, o pensamento não pôde desprender-se facilmente dos laços criados pelo hábito. Platão sofreu ainda, sob certos aspectos, o domínio das velhas concepções. O Estado que imaginou é ainda a cidade antiga; muito acanhado, não deve abranger mais de 5000 membros. O governo, neste Estado, continua ainda regulado pelos mais antigos princípios, a liberdade continua ali desconhecida, e o fim proposto pelo legislador revela-se menos o aperfeiçoamento do homem que a segurança e grandeza da associação. A própria família é ali quase esmagada, para não fazer concorrência à cidade. Só o Estado é proprietário, só o Estado é livre, só ele tem uma vontade, uma religião e crenças, e quem quer que não pense como o Estado deve morrer. Não obstante, no meio de tudo isto, as novas ideias aparecem. Platão, tal como Sócrates, e os sofistas, proclama também que a regra de moral e de política está em nós próprios, nada valendo a tradição, que só a razão devemos escutar, e que as leis somente são justas enquanto conformes à natureza humana.

Em Aristóteles, estas ideias precisam-se ainda mais. "A lei, diz o filósofo, é a razão". Aristóteles ensina que é preciso procurar, não o que é conforme ao costume dos pais, mas o que, em si, é bom. Acrescenta que, à medida que o tempo caminha, se torna necessário modificarem-se instituições. Põe de lado a veneração pelos antepassados: "Os nossos primeiros pais, diz ele, quer sejam nascidos do seio da terra, ou tenham sobrevivido a algum dilúvio, seriam, segundo todas as aparências, o que hoje existe de mais vulgar e de mais ignorante entre os homens. Seria evidente absurdo atermo-nos à opinião dessa gente". Aristóteles, como todos os filósofos, desconhecia em absoluto a origem religiosa da sociedade humana; não fala dos pritanados; ignora os cultos locais como fundamento do Estado. "O Estado, acrescenta, nada mais é do que uma associação de seres iguais procurando em comum uma existência feliz e fácil". Destarte, a filosofia rejeita os velhos princípios das sociedades, e procura um novo fundamento sobre o qual basear as suas leis sociais e a noção de pátria.

A escola cínica vai mais longe. Nega a própria pátria. Diógenes gloriava-se de não ter direito de cidade em parte alguma, e Crates dizia que, para ele, a sua pátria era o desprezo pela opinião dos outros. Os cínicos repetiam a verdade, então bastante recente, de que o homem é cidadão do universo, e que a pátria não é o acanhado recinto da urbe. Consideravam o patriotismo municipal como mero preconceito, e suprimiam do número dos sentimentos o amor pela cidade.

Por desgosto ou desdém, os filósofos afastavam-se cada vez mais dos negócios públicos. Sócrates ainda cumprira os seus deveres de cidadão. Platão tentara trabalhar pelo Estado, reformando-o. Aristóteles, já mais indiferente, limitou-se ao papel de observador fazendo do Estado objecto de estudos científicos. Os epicuristas puseram de lado os negócios públicos. "Não lhes ponhais a mão, criticava Epicuro, a não ser que algum poder superior a isso vos obrigue". Os cínicos não queriam sequer ser cidadãos.






Sócrates



Os estóicos regressaram à política. Zenão, Cleanto e Crísipo escreveram numerosos tratados sobre o governo dos Estados. Mas os seus princípios estavam muito distanciados da velha política municipal. Vejamos em que termos nos explica um antigo as doutrinas contidas nos seus escritos. "Zenão, no seu tratado sobre o governo, propõe-se mostrar-nos que somos não os habitantes de tal demo ou de tal urbe, separados uns dos outros por direito particular e leis exclusivas, antes devendo olharmos a todos os homens como concidadãos, como se todos pertencêssemos a um mesmo demo, ou à mesma cidade". Por estes dizeres se vê o caminho percorrido pelas ideias desde Sócrates a Zenão. Sócrates ainda se julgava obrigado a adorar, tanto quanto pudesse, aos deuses do Estado. Platão não concebia ainda outro governo, senão o da cidade. Zenão passa por cima de tão acanhados limites da associação humana. Desdenha das divisões estabelecidas pela religião das velhas idades. Como concebe o Deus do universo, concebe a ideia de um Estado onde entrasse todo o género humano».

Fustel de Coulanges («A Cidade Antiga»).


«Não pode o direito recusar alguma identificação com a filosofia. Antes a requer, como está consagrado na expressão "filosofia do direito". Antes se faz, ele mesmo, sujeito da filosofia, no sentido de que o direito se pensa filosoficamente a si mesmo. Em rigor, "filosofia do direito" é a filosofia expressando-se como direito. Todo o segredo da mais admirável sistematização, que é o Direito Romano, está aí.

No entanto, a expressão "filosofia do direito" é incorrecta pois a filosofia não é filosofia de um outro dela, filosofia de alguma coisa, do que quer que seja, como se diz ao dizer-se "filosofia do direito" ou "filosofia da arte", "filosofia do Estado", com essas expressões abrindo caminho ao plebeísmo, muito cultivado entre os ingleses, de se admitir poder haver "uma filosofia" para tudo e de tudo.

(...) Entificado o Estado, e manifestando-se a sua existência, que não é abstracta mas muito real e concreta, pelo poder de que dispõe, a questão que imediatamente se põe é a de determinar exercer esse poder e por que modo e razão. Ao exercício do poder do Estado chamaram os gregos cracia, e designaram-no os latinos por regime, havendo quem lhe chame constituição.







Nicolau Maquiavel




Parece ter sido Heródoto quem primeiro concluiu, da observação contínua dos numerosos povos que estudou, só existirem três regimes: a democracia, a aristocracia e a monocracia ou monarquia. Da observação de mais de uma centena de constituições de Estados extraiu Aristóteles a mesma conclusão mas conceptualmente estabelecendo que esses são, não apenas os únicos regimes existentes, mas os únicos possíveis. Concluiu, ao mesmo tempo, que nenhum deles é realizável na sua forma perfeita ou pura. Em cada Estado, o regime efectivo é sempre uma combinação das três formas, que designou por poliarquia. Políbio, depois, descreve e exalta a constituição da República Romana como sendo uma poliarquia, tema retomado por Tito Lívio no tomo XI das Décadas a que Maquiavel dedicou um demorado comentário no qual exprimiu, em termos entusiásticos, o seu pensamento político. Nos nossos dias, quando a maior parte dos Estados dizem adoptar a democracia, que estabelecem por meio de partidos políticos, o que de facto estabelecem é uma poliarquia na qual a monarquia está representada na chefia do Estado ou do Governo, a aristocracia nas direcções dos partidos e a democracia na eleição popular dos parlamentos.

Os três regimes são os três modos de determinar quem exerce o poder do Estado e a razão de ser esse quem o exerce. Na monocracia o poder é entregue a um só indivíduo em razão de ser esse o mais apto para o exercer porque é o mais valioso dos homens, o mais sábio como pretendia Platão, ou porque algum carisma de origem transcendente o marcou, assim se explicando que, entendendo essa origem como um princípio, se substitui a designação de monocracia pela de monarquia. Na aristocracia o poder é exercido pelos melhores dos homens. Na democracia é entregue a todos.

(...) Acontece, porém, que cada regime contém em si tanto a sua forma perfeita, mas ideal, quanto a sua forma degradada, que acaba por ser realizada. Assim, a monarquia contém a tirania ou o despotismo; a aristocracia contém a oligarquia em alguma das suas formas: plutocracia, nepotismo, etc; e a democracia a demagogia. Aristóteles apreendeu e, de uma vez por todas, descreveu o processo da inevitável degradação e como, completada a degradação de cada regime, lhe sucede outro. A degradação é inevitável porque, impossibilitada a democracia, isto é, o exercício do poder por todos - o que levou Platão a limitar a 5040 o número de cidadãos de cada Estado - tem de ser ele exercido por representantes desses todos escolhidos em eleição popular, o que imediatamente instala a demagogia. Inevitáveis o despotismo e a oligarquia porque o monarca não pode ter o saber de si como o melhor dos homens e os aristocratas se ignoram como tal».

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).









«Não será impertinente nem supérfluo acentuar que, para os republicanos do Porto, a comemoração do 31 de Janeiro assumia muito maior importância ética, política e religiosa do que a comemoração do 5 de Outubro. Entre os velhos naturais do burgo do Porto, cujo bairrismo, provincianismo e tradicionalismo se exprimiam por vezes na invejosa oposição a Lisboa, rés-vés de uma reivindicação hostil que se tornava ridícula aos olhos dos preopinantes da Capital, havia alguns intelectuais que diziam e escreviam, profundamente convictos, ter sido o escol republicano vencido em 1891 incomparavelmente superior àquele que em 1910 surgira como Governo Provisório da República Portuguesa. As vicissitudes políticas, administrativas e ideológicas de um decénio discutível, a mediocridade intelectual dos bacharéis provincianos que assumiram as funções de deputado, senador ou ministro, a discussão das questiúnculas partidárias em vez da solução dos problemas nacionais, a conservação do caciquismo antigo e da política de campanário, da troca de votos por favores e de favores por votos, eram factores da depressão de quantos afirmavam amargamente: "Esta não é a República que nós sonhámos!..."

"Esta não é a República que nós sonhámos", diziam e escreviam, frequentemente, os velhos republicanos, chamados históricos, sobreviventes do 31 de Janeiro. Entre as sucessivas gerações verificava-se que a República estava cindida, quebrada, partida, dando lugar a desavenças, querelas e questiúnculas, em vez de se apresentar unida com o fim de realizar a educação cívica do povo português. Efectivamente, as gerações mais novas não receberam da escola a mínima instrução política, a separação significativa das palavras julgar, votar e eleger, que muitos confundem numa sinonímia ilegítima, a distinção graduada entre civilidade, civismo e patriotismo, com seus exemplos de figuração artística, enfim os tópicos do ideário do bem público, não estavam destinadas a transformar a vitoriosa ideologia republicana na perfeita ortodoxia nacional.

Leonardo Coimbra via que a difusão de tal lugar comum representava um perigo para a mocidade, a qual, sempre pronta a acolher o que lhe parece ser a verdade nova, mas que no fundo é um velho erro, aderira levianamente a ideologias mais atraentes ou mais avançadas. Não só por coerência moral com a sua função de deputado, mas também por sua missão de educador, e por adesão à sua fé religiosa, rebatia lucidamente aquela proposição derrotista e desanimadora. A sua argumentação, firmemente alicerçada sobre uma base filosófica, e eloquentemente expressa em tom de perfeita fraternidade, convencia e conglomerava a esperança dos mais renitentes.

"Sim, a República do nosso sonho nunca será a República da nossa realidade, como nenhum movimento concreto de um corpo traçará a curva geométrica pela qual aproximadamente o definimos. Também a liberdade política não é mais do que um esforço de consciência vencendo em pontos, perdendo uma grande extensão do corpo social. Mas porque nem todos os poetas trazem beleza nas suas obras, é isso um motivo para desamarmos a Poesia?"






Cinco anos depois, era ainda fiel ao mesmo pensamento, que afirmara de forma breve e concisa em outro discurso notável. "É que não basta sonhar uma vez, e deixar morrer o sonho de encontro à realidade; é preciso bater as asas para a linha ascencional do voo. É por isso que esta, (esta, ou outra), não é a República que os senhores sonharam".

A fundamentação filosófica desta argumentação necessária está na disjunção platónica entre o real e o ideal. A figura geométrica que nós poderemos desenhar numa folha de papel jamais será tão perfeita como a exigida pela sua definição. A máquina que o engenheiro construir estará sujeita ao desgaste dos materiais, e o tempo permite o atrito, a fricção, a fragilidade que a pouco e pouco hão-de obstar à perfeição do seu funcionamento.

Entre o ideal e o real é, pois, possível intercalar o mal. Leonardo Coimbra não nega a existência do mal; reconhece-o, mas procura explicá-lo, dar-lhe razão, sem contudo o substancializar. Assim nos ensina dialecticamente: "O problema do mal está para o homem na distância do real e do ideal, do conhecimento e do amor".

Fiel ao platonismo, com o qual se mantém coerente, invoca o esforço humano da inteligência, no cultivo incessante da verdade. Acresce, porém, o amor, que na sua interpretação platónica, consiste em depurar o real de todos os aspectos maléficos e ilusórios para que a alma adira ao ideal etéreo e eterno. A junção de amar e compreender circunscreve-se neste aforismo admirável: "Conhecer e amar são dois modos de compreensão humana que se confundiriam no pensamento divino".

Leonardo Coimbra ensina que, tanto no mundo material como no mundo espiritual, é indispensável a existência de um esforço de superação para que da diferença de potenciais não resulte a queda para o zero, para o nada, para o não-ser. "O ideal, - explica então o filósofo - realiza-se, parcelarmente, mas para se inserir na vida material precisa de todo o desnivelamento que vai do finito para o infinito, o que é lógico, pois a matéria é uma potência, uma virtualidade de ser, é um vir a ser, e só o acto puro poderá fazer dessa potência uma realidade". Tal é a base lógica e metafísica que Leonardo Coimbra confere ao esforço de superação, implícito no seu ideo-realismo.






De certo que nem todos os deputados, senadores e ministros, apodados ironicamente de pais da Pátria, eram intelectualmente dignos das funções que haviam assumido na República, e justificavam o sério descontentamento do povo, mas também nem todos quantos falavam de Pátria mereciam o sério nome de patriotas. Cumpria ao homem justo aceitar com piedosa tolerância a condição inevitável da decadência do ideal no real. A extrema preocupação de justiça, pelo contrário, tendia a desfigurar a crítica em polémica, e a polémica em violência, com desprezo pela ordem das condições civilizadas no convívio humano.

A decadência do ideal republicano, resultante da falta de doutrinadores, publicistas e professores, desenhar-se-ia nitidamente num perigo para a Pátria. A esperança desviar-se-ia para políticos mais temerários que se propunham transformar a sociedade, ou até transformar o mundo, fascinados por mitos ou por utopias, mas destituídos de um estudo científico como aquele a que havia dedicado a sua vida o ilustre Augusto Comte. Os reformadores sociais, que a si próprios se designavam de socialistas, preconizavam a acção directa, necessariamente violenta, com a subversão de todos os valores, o primeiro dos quais é a verdade.

Aos defensores da República afligia ainda mais o anúncio da ditadura militar, sem prazo fixo ou de instituição perpétua, aviso certo das variantes administrativas que a História de Portugal iria registar. Depois da tentativa de 18 de Abril de 1925, dissera-se que a Pátria estava doente, concluindo-se que a melhor terapêutica seria prescrita pela competente medicina dos generais. A presidência da República nunca mais seria confiada a um cidadão, - ou, seja, a um civil, - qualificado por direito a exercer tão alto magistério como tão difícil magistratura.

Dessa sessão memorável, em que discursaram homens honrados, sinceros e sérios, mas principalmente da lição admirável que o génio de Leonardo Coimbra tão felizmente inspirou, recebi a graça de admitir que a política se discute acima da moral e da ética, assunto diferente daquele que à mesa do café e à porta da livraria falavam os bacharéis ignorantes e os militares incompetentes. A habitual perspicácia acerca das virtudes e dos vícios que assinalam os homens públicos, elogiados ou vituperados; a descrição mesquinha dos bons e dos maus costumes que ao observador se oferecem no jogo dos partidos políticos; a polémica acerca das ideologias que não formulam com rigor as soluções dos problemas nacionais; toda essa matéria jornalística me aborrecia, como se fossem sinais diversos da mediocridade intelectual de quem não sabe, não pode ou não quer aplicar o seu pensamento a assuntos mais difíceis, porque mais elevados. Só por ter ocasião de aprender, com Leonardo Coimbra, que a análise política depende da síntese filosófica, ou de que existe algures uma verdadeira filosofia política, fiquei para sempre grato à pessoa da minha família que, para temperar o meu extremismo, me levou à sessão comemorativa do 31 de Janeiro.



No dia seguinte, 1 de Fevereiro, comprei os três jornais do Porto para me munir de um relato aproximado se não fiel do discurso de Leonardo Coimbra. Infelizmente, nem A Tribuna, tão dedicada ao Partido Republicano Português, nem o Primeiro de Janeiro, politicamente moderado, (pois nele colaboravam escritores monárquicos, franquistas e sidonistas), brindavam a curiosidade dos seus leitores com a exposição circunstanciada de tão importante sessão cultural, pois limitavam-se a identificar os oradores e a oferecer poucos tópicos dos discursos. Eu, que esperava uma reconstituição integral da lição magnífica do ilustre deputado, ou pelo menos um resumo proporcional, não logrei ver, na reportagem descuidada e apressada, quaisquer dos conceitos raros que o inspirado orador havia semeado na terra fecunda dos seus correligionários e compatriotas.

Impressionado pela recordação excelsa da maravilha que é a oratória viva, recebida directamente da fonte misteriosa do génio, habituei-me a ir ouvir, quando possível, as sapientes conferências que Leonardo Coimbra realizava em associações e instituições várias, mas decidi-me também a convidar e a convencer os meus colegas a participarem de uma alegria que nos seria comum. Alunos do Liceu de Rodrigues de Freitas, o grupo faltava às aulas no dia Primeiro de Maio para ir ouvir os oradores anarquistas que discursavam ao ar livre, no Largo das Fontaínhas. Aí eram ensinadas ao povo curioso as doutrinas de Proudhon, Bakunine e Kropotkine, a história das internacionais operárias, o advento da República social, enfim, a abolição do Estado e a extinção da Igreja.

A doutrinação republicana de Leonardo Coimbra, fiel à ideia de Pátria, fizera-nos ver que o ideário anarquista, aliás simpático e generoso, não era mais do que um desvio para a utopia, e, talvez por isso retardatário ou improgressivo. Cumpria-nos intervir na política imediata, confiados e dedicados».

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado», I).


«Se, para ser republicano, é necessário não acreditar em Deus, então não serei republicano».

Leonardo Coimbra


«O estudante Leonardo Coimbra, que apareceu nos comícios a fazer discursos incompreensíveis, impressionava pela contradição mas tornou-se em breve uma das figuras mais populares entre os habitantes da cidade do Porto. Um corpo varonil de atleta suportando um rosto de adolescente, vestindo capa-e-batina de origem jesuítica com gravata «à Lavallière» de simbolismo boémio, um revolucionário do grupo mais temível proferindo tolstoianas palavras de esperança e amor: tal era a tríplice contradição, impressionante e ofensiva para a burguesia portuense.



Leonardo Coimbra, em 1914, data em que, na Póvoa, se despediu do seu "Lyceu". 



O velho burgo do Porto, sempre na defensiva de um radicalismo sério, ordeiro e pacato, e de um moralismo ferozmente apegado ao conceito de honestidade, - de honestidade masculina e feminina - via no anarquismo um aspecto demasiado apressado, aguerrido e declamatório, de uma transformação social que deveria ser feita no decurso lento dos séculos. Os anarquistas eram, na terminologia de então, os avançados.

O anarquismo corresponde ao pessimismo da adolescência, e nessa correspondência encontra fundamento a sua parcela de verdade. A doutrina anarquista consiste na obstinada afirmação de que nenhum governo, nenhum regime político, satisfará as generosas aspirações humanas. A posição anarquista é instável, e o desenvolvimento da doutrina, promovido por desesperada oposição ao existente, ou mergulha na negridão do crime, alcunhado de acção directa, ou ascende à candura do misticismo, numa evasão da vida social. Quem conhecer algumas das venerandas figuras de sobreviventes da propaganda anarquista no nosso país, reconhecerá nesses simpáticos anciãos a perenidade da adolescência: o olhar ainda brilhante e o sorriso sempre bondoso como sinais de acolhimento a renovadas expressões de idealismo utópico que condene, em toda a extensão, a condição política em que o homem, segundo Aristóteles, é obrigado a viver.

A proclamação da República, como que despertasse o povo para o chamar à realização do sonho, reconciliou muitos dos acratas com o aspecto irracional da actividade política, e Leonardo Coimbra, julgando possível inserir valores espirituais nas instituições que iriam ser remodeladas, transitou de anarquista a republicano. A colaboração prestada à acção cultural da Renascença Portuguesa - sociedade de que Leonardo Coimbra foi um dos mais activos colaboradores, embora não compartilhasse da doutrina que a caracterizava e fundamentava, sociedade que a custo se manteve independente dos partidos políticos, - demonstra que o antigo anarquista não ambicionava o poder e que, se alguma autoridade reconhecia, era a de essência espiritual.

A acusação de ter sido anarquista foi inúmeras vezes proferida contra Leonardo Coimbra pelo vulgo que não admitira, não esquecera, nem perdoara a transformação que se tinha dado na alma do pensador. Ouvimos a injúria durante a última campanha eleitoral em que Leonardo Coimbra interveio com o fogo da sua eloquência. Estava o orador criticando as doutrinas extremistas quando um dos ouvintes, num ímpeto de exaltação, interrompeu o discurso com a imprecação conhecida:

- Mas V. Ex.ª também já foi anarquista!...





Leonardo Coimbra, habituado a dominar a agitação das turbas pelos raros dotes de orador, não se intimidou com os sussurros, replicou serena e prontamente:

- Sim, senhor. Também mamei, também gatinhei, mas, palavra de honra, não fiquei toda a vida a andar a quatro patas. E agora tenho os braços livres para os erguer em prece, dou graças a Deus por me ter feito à sua imagem e semelhança.

Uma salva de palmas abafou os murmúrios, e, depois dos aplausos, o pensador respeitado continuou a sua oração magnífica.

Outra injúria que, de certo modo, completava a primeira, era disseminada em forma de boato e consistia em anunciar, para breve, a nomeação de Leonardo Coimbra para um dos melhores lugares de confiança do Governo da República, e entre esses, avultavam o de Embaixador no Rio de Janeiro, em Madrid ou no Vaticano. Sabia-se quanto o filósofo se desgostaria ao ver-se afastado da missão de educador, sabia-se que Leonardo Coimbra não poderia aceitar cargos em que dificilmente exprimiria a vontade do povo; mas o boato vingativo daqueles que condenaram o homem superior ao ostracismo, ia fermentando num ambiente de insultos e de injúrias.

A República que o povo sonhara durante a propaganda não se realizou, e o desmentido veio confirmar mais uma vez o pessimismo dos anarquistas. Os próprios republicanos ficaram desiludidos no decurso dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, e, de certo modo, inconcordes com as instituições que não correspondiam às doutrinas propagadas. O novo regime ficaria juridicamente estruturado nos moldes do constitucionalismo anglo-francês e desse modo iria entravar o andamento da revolução democrática.

Os republicanos enfrentam uma crise ideológica que exteriormente se manifesta pela multiplicidade dispersiva dos jornais políticos e pela falta de livros onde a doutrina continuasse a ser renovada em expressão vernácula e deduzida de princípios filosóficos; as consequências necessárias de uma crise desta ordem reflectiram-se nas gerações mais novas, e os estudantes universitários foram pouco a pouco aceitando as doutrinas propagadas nos livros das correntes opositoras.

É durante esta crise que Leonardo Coimbra expõe e desenvolve uma doutrina democratista, um pensamento político original e autónomo, que inteiramente se distingue do republicanismo dos seus contemporâneos e compartidários. Raras vezes se prestou devida justiça à iniciativa isolada deste doutrinador.





O pensamento criacionista afirma a liberdade humana e garante-a por um personalismo monadológico; a mesma filosofia preconiza o acordo social das vontades na decisão política e na aceitação da escala de valores que culmina em Deus; mas indefine, reduz ou anula qualquer relação hierárquica na ordem dos espíritos humanos. Leonardo Coimbra defendia um republicanismo democratista. República significava não só o bem de toda a nação, o que não pode ser confiado a uma sociedade particular de qualquer ordem ou grau, e muito menos a uma família nobre, mediante eleição em cortes gerais, mas ainda o que deve estar aberto à crítica do que sem distinção se chama "público". Democracia é um regime, que dos outros se delimita e define, pela significação atribuída à palavra povo. O povo era mais bem representado pelo aldeão e pelo vilão do que pelo cidadão, e assim o democratismo situa-se, de princípio, em oposição ao sindicalismo urbano. Aos governantes competiria auscultar a vontade do povo, dar-lhe expressão racional e execução técnica, para o que deveriam ser altas consciências em humilde atitude de ligação com Deus.

Não era, porém, esse aspecto o que na administração pública se observava. Assim, o filósofo é levado a escrever:

"Quanta mulherzinha do povo eu tenho visto pôr o universal nas suas acções, enquanto os grandes magistrados da minha República nelas colocam os seus retóricos interesses de vaidade!"».

Álvaro Ribeiro («Leonardo Coimbra e a Política do seu Tempo»).





 Pela República, contra o Socialismo

TESES E ANTÍTESES


A constituição é a lei fundamental que define, regula e coordena a actividade das instituições políticas existentes num país. A constituição é, pois, o nome dado a um conjunto de instituições. A pluralidade há-de adunar-se de um modo orgânico, vivo e pacífico, para assegurar o funcionamento normal da República.

Do nosso conceito de constituição excluímos, portanto, qualquer texto de proclamação ou declaração dos direitos individuais, sejam do homem, da mulher ou da criança, como também o programa ou promessa de os defender, proteger ou realizar. O texto jurídico, definido ou a definir para tal fim, situar-se-á fora da constituição política, e já Oliveira Martins ensinava que para tal lugar existe o Código Civil. Muito menos consideramos constitucional qualquer programa ideológico ou executivo, de carácter material e contingente, e portanto abusivo na forma de lesar a unanimidade do consentimento nacional.





Integrar o programa de um partido político nas expressões descuidadas e incorrectas de uma constituição mal pensada e mal redigida é violentar o direito da República pela intromissão de interesses próprios de associações particulares, ou, até, dos corpos gerentes que materializam as chamadas forças sociais. É alterar, de precioso modo, a velha doutrina da divisão ou da distribuição dos poderes por entidades cujo estatuto jurídico não é já o das instituições. Tais erros que passam pela imprecisão da nomenclatura técnica são provenientes de sociologias falsificadas.

As instituições republicanas oferecem características especiais que nem sempre são respeitadas ou compreendidas pelos doutrinadores. Acontece, por isso, que os legisladores adulteram consciente ou inconscientemente os acidentes que envolvem mas definem a noção de República. Não haverá República onde a constituição designe, como orgão de soberania, um Presidente Militar, uma Junta Militar, um Conselho Militar.

A República emerge da vontade dos cidadãos, ou dos civis, que desejam conhecer, através dos orçamentos discutíveis, a aplicação dos impostos, das contribuições ou dos descontos que incidem sobre o rendimento do trabalho. Ela é, etimologicamente, o Bem Público, e por isso a sua administração, ou o seu negócio, foi legitimamente da confiança dos reis, ou dos seus secretários, como aconteceu durante séculos na história de Portugal. A mentalidade dos militares, que sempre gozaram de privilégios em relação aos civis, privilégios aliás justificados para útil, eficiente e glorioso exercício das armas, ou Exército, não se compadece facilmente com as honras e as dignidades atribuídas aos governantes civis, nem com o sentimento igualitário e anónimo do povo.

O socialismo pode, e deve, ser interpretado como a aplicação das categorias do pensamento militar à organização económica da sociedade. Tal se prova nos raciocínios comparativos de destruição com a construção, a qual obedecerá muito mais aos artifícios da indústria e do tráfego do que ao naturalismo da agricultura e do comércio. Os impostos e as imposições, as expropriações e as nacionalizações, o planeamento e a estratégia de uma economia sem lucro nem liberdade, incluem imagens próprias da violência totalitária e da utopia indiscutível.

Durante quase dois séculos, Portugal constitucional, monárquico e republicano, foi assaz vezes perturbado na sua normalidade política pela intervenção ilegal dos militares que, através de intrigas palacianas, conspirações secretas e pronunciamentos súbitos, aspiravam à posição de primeiros ministros e até de chefes do Estado. Em consequência, o soberano legal via-se obrigado a consentir novo ministério, a dissolver o parlamento, a decretar novas eleições. Factos e figuras que documentam a instabilidade, a inquietação e a irritação do povo trabalhador e da burguesia capitalista encontram-se nas páginas evidentes e ostensivas dos livros escritos por jornalistas, memorialistas e historiadores.






A Realeza foi uma instituição ilustrada ou prestigiada pelo valor sagrado da continuidade governativa. Ensinaram, ou deixaram ensinar, os monarquistas a doutrina errónea de que a sucessão dinástica assentava no princípio da hereditariedade, e com tal argumento falso e absurdo deram motivo a críticas que, afinal, concluíam pela licitude da tirania, da boa ou má tirania, na acepção usada pelos Gregos. A verdade é que a sucessão legítima, agracia e aclama o principal, não porque ele haja sido o filho do rei morto, inválido ou destronado, mas pela razão suprema de que havia sido educado para o ofício de reinar, e a prova está patente nos raros casos em que a coroa passou de irmão para irmão.

A República tornou-se incompatível com a Monarquia nos tempos e lugares em que já um homem não pode ser o único a governar, pelo que o rei absoluto terá de dividir os poderes pelos seus pares nobilitados. O Senado é, pois, a instituição característica e própria da República. Designado assim porque os seus gerontes ou maiores de quarenta e cinco anos de vida, se encontram no esplendor de uma idade significativa de suficiente experiência, o Senado é um orgão de soberania política, mas constituído por um escol de filósofos que representam a tradição milenária, a recordação de um recente mas ignorado passado, enfim, a conservação saudável das leis do País.

O Senado recruta, ou deve recrutar, os seus nobres membros como se fosse uma Academia, e terá tão poucos e escolhidos sócios como ela. Lar sagrado de velhos e sábios, as suas funções serão severamente consultivas, porque a decisão política pertence a pessoas mais novas, que assumem livremente o seu longo futuro, e que, portanto, hão-de merecer o benefício ou o malefício das leis que elaborarem e dos actos que aprovarem. Se os mortos mandam mais do que os vivos, como ensinou Augusto Comte, o conhecimento das leis históricas dará o melhor aviso, a melhor prevenção e o melhor ensinamento que possa opor-se às utopias raciocinadas pelos deputados impacientes, às promessas devidas mas nunca cumpridas.

Esta simples nota de direito constitucional, com suas teses e antíteses, tem por fim, termo ou meta a síntese de que, apesar das ficções jurídicas e burocráticas, que surgiram depois, só de 1910 a 1926 existiu a República em Portugal. Decerto que teve ela muitos erros de estrutura, previstos e condenados por Téofilo Braga, mas abonados nas lições universitárias de Marnoco e Sousa; decerto que ela não cumpriu a promessa de reformar a educação pública pelo modelo francês do Sistema de Política Positiva; decerto que o seu partidismo ou partidarismo lhe causou desagregação tão grave, a ponto de um experimentado estadista, conhecedor profundo do significado técnico das palavras portuguesas, ter dito em pleno parlamento que o País estava a saque. Sempre cobiçada pelos militares, e conquistada sem luta nem dificuldade a 28 de Maio de 1926, a República Portuguesa permaneceu de nome nas moedas e nos selos, mas as suas instituições deixaram de se constituir nos termos definidos pelos pensadores, escritores e artistas (in Escola Formal, n.º 6, Junho de 1978, pp. 19-20).