domingo, 1 de dezembro de 2013

O Sal da Terra (iii)

Entrevista a Joseph Ratzinger





«Existiu efectivamente uma ars amandi - uma arte ou cultura do amor - que nem sempre se reduziu a um conjunto de expedientes e de técnicas em função da mera luxúria. Esta arte foi conhecida na antiguidade e ainda é praticada por alguns povos orientais. Neles existiram, contudo, mulheres que, peritas nessa arte, eram tão estimadas e respeitadas como aqueles que possuíam os segredos de outra arte qualquer e os sabiam aplicar. É notório que na Antiguidade Clássica as heteras fossem tidas em alta estima por homens como Péricles, Fídias, Alcibíades; Sólon mandou erigir um templo à deusa da "prostituição", o mesmo sucedendo em Roma em certas formas do culto de Vénus. No tempo de Políbio encontravam-se estátuas de heteras em templos e edifícios públicos, ao lado de chefes militares e políticos. No Japão, algumas destas mulheres foram celebradas em monumentos. E como em qualquer outra arte veremos que, no mundo tradicional, será preciso supor relativamente à ars amandi a existência de uma ciência secreta, sobretudo nos casos em que se tem conhecimento de ligações de mulheres de posse dessa arte com determinados cultos.

Será, com efeito, difícil que se manifestem e desenvolvam as posssibilidades superiores da experiência do eros quando permitimos que esta experiência se desenrole por si própria nas suas formas mais grosseiras, cegas e naturalmente espontâneas. A questão essencial será de verificar se, ao desenvolverem-se na experiência erótica as formas-limite de sensações de que é susceptível, se mantém e até predomina a dimensão mais profunda do eros, ou se as suas formas degeneram numa procura libertina e exterior do "prazer". Isto conduz-nos à definição de dois aspectos possíveis e bem definidos da ars amandi.

(...) É muito conhecido o papel desempenhado pelo coração na linguagem dos amantes e pertence geralmente ao campo do sentimentalismo mais adocicado e deliquescente. Contudo, até neste caso será possível entrever o reflexo de um facto profundo, se nos lembrarmos daquilo que o coração sempre significou nas tradições esotéricas e doutrinais. Mais do que a sede de emoções estas tradições consideram o coração como o centro do ser humano e também como o local para onde se transporta a consciência durante o sono, abandonando o cérebro, o centro em que se localiza habitualmente o estado de vigília. O equivalente consciente do estado do sono é portanto (...) o estado "subtil", particularmente na tradição hindu; do mesmo modo, porém, o espaço interior, secreto, do coração é considerado por diveros místicos como o centro da luz supra-sensível ("a luz do coração"). Quando Dante ao falar da primeira e subtil percepção do eros se refere à "câmara mais secreta do coração", não se trata já aqui de uma alusão banal e aproximativa de linguagem amorosa, mas de algo muito mais preciso e real. Não há nada mais banal que o coração trespassado por uma flecha (a flecha que justamente com o facho era para os antigos atributo do Amor personificado): este é também um dos temas preferidos nas tatuagens dos marinheiros e dos criminosos. Ao mesmo tempo, porém, é como que um hieróglifo que considerando tudo quanto até agora foi dito, tem uma singular intensidade de sentido. O eros manifesta-se nas suas formas mais típicas como uma espécie de traumatismo, no fulcro do ser individual, que esotericamente é constituído pelo coração. Segundo tradições concordantes, foi no coração que se estabeleceu o vínculo do Eu individual, e que será preciso quebrar se quisermos participar numa vida mais elevada, numa liberdade superior. O eros actua, neste caso, como a ferida mortal duma flecha. Veremos que os "Fiéis de Amor" medievais, e com eles Dante, elevaram este facto conscientemente, transportando-o para um plano muito para além da experiência profana dos amantes. A marca persiste, porém, nesta experiência como em cada amor. A expressão fat'hul-qalb (abertura ou descerramento do coração) pertence ao esoterismo islâmico tal como a de "luz do coração". Poderemos encontrar inúmeras correspondências na linguagem dos místicos. No Corpus Hermeticum (VII, 11, VI, 1) encontramos as expressões: abrir os "olhos do coração", compreender com "os olhos do coração". Será assim possível estabelecer-se uma relação entre esta condição, já em certa medida desindividualizante, do afrouxamento do vínculo do coração, e a experiência de novidade e quase que de uma transfiguração fresca e activa do mundo, que, como já dissémos, acompanha o estado de amor: seria possível ver nela como que um esboço daquilo que, no sufismo se denomina, justamente, a percepção do mundo com os olhos do coração, ayn-el-qalb».

Julius Evola («A Metafísica do Sexo»).








«(...) o cristianismo tomou partido de tudo o que é fraco, baixo e incapaz, fez da oposição aos instintos de conservação da vida forte, um ideal; e até corrompeu a razão das naturezas intelectualmente poderosas, ensinando que os valores superiores do intelecto não passam de pecados, desvios e tentações.

(...) O cristianismo possui na sua base alguns requintes que lhe vêm do Oriente. Antes de mais sabe que é de todo indiferente que uma coisa seja verdadeira em si, mas que é da maior importância que ela seja tomada como verdadeira. A verdade e a crença em que algo seja verdadeiro: eis os dois mundos de interesse absolutamente divergentes, mundos quase antagónicos - a um e a outro se chega por caminhos radicalmente diferentes. O facto de se estar iniciado nesta matéria quase produz o sábio no oriente: assim o entendem os Brâmanes, assim o entende Platão e todos os discípulos da sabedoria esotérica. Se, por exemplo, existe felicidade em alguém julgar-se livre do pecado, não será necessário, como condição prévia, que o homem seja pecador, o essencial é que se sinta pecador. Ora se a crença é o mais necessário, tornar-se-á obviamente imprescindível lançar o descrédito sobre a razão, o conhecimento, a pesquisa: o caminho da verdade torna-se caminho interdito. A forte esperança é um muito maior stimulans para a vida do que qualquer felicidade isolada que se realize no plano da realidade. Para aqueles que sofrem é necessário uma esperança que a realidade não possa contradizer - e da qual satisfação alguma os consiga afastar: uma esperança de além-túmulo. (É precisamente por causa desta sua capacidade de entreter os desgraçados, que a esperança era considerada entre os Gregos como o mal entre os males, o mais astucioso de entre todos: deixavam-no no fundo da Caixa de Pandora. Para que o amor seja possível, Deus deve ser uma pessoa; para que os instintos subjacentes se possam expandir é necessário que o Deus seja jovem. Para o fervor das mulheres põe-se em primeiro plano um belo santo; para o dos homens, uma virgem. Isto na pressuposição de que o cristianismo queira imperar num terreno onde o culto de Afrodite ou o de Adónis tinha já determinado o carácter da adoração. A exigência de castidade reforça a veemência e a interioridade do instinto religioso - torna o culto mais fervoroso, mais exaltado, mais intenso -. O amor é o estado em que os homens têm mais probabilidades de ver as coisas como elas não são. A força ilusõria encontra-se aqui no seu paroxismo, bem como a força lenificante e glorificante. No amor suporta-se mais que o habitual, tolera-se tudo. Tratava-se pois de inventar uma religião onde se pudesse amar: pois o amor permite esquecer o que de pior a vida tem - já nem sequer se dará por tais coisas -. E eis o que chega para explicar as três virtudes cristãs, fé, esperança, caridade: chamo-lhes as três habilidades cristãs.

(...) O Deus antigo, inteiramente "espírito", inteiramente grande sacerdote, perfeição acabada, passeia no seu jardim; contudo, aborrece-se. Os próprios deuses lutam em vão contra o tédio. E que faz ele? Inventa o homem, o homem distrai. Mas ah! o homem também  se aborrece. A piedade de Deus para a única pena que é a propriedade de todos os paraísos, não conheceu limites: então criou ainda outros animais. Primeiro equívoco de Deus: o homem também não soube divertir-se com os animais, reinou sobre eles, nem mesmo quis ser "animal". Deus, pois, criou a mulher. E, efectivamente, cessou o aborrecimento, mas também muitas outras coisas! A mulher foi o segundo equívoco de Deus. A mulher é, por essência, uma serpente, "Heva", isto todo o sacerdote sabe; "pela mulher vem todo o mal ao Mundo", isto igualmente todo o sacerdote sabe. "Logo a ciência também vem dela?"...


A mulher fez comer ao homem o fruto da árvore da ciência e que sucedeu? O Deus antigo foi presa do pânico. O próprio homem veio a ser o seu maior equívoco, havia criado um rival, a ciência torna igual a Deus, pobre dos sacerdotes e deuses se o homem chega a ser científico" Moralidade: a ciência é a coisa proibida em si, só ela é proibida. A ciência é o primeiro pecado, o germe de todo o pecado, o pecado original. A moral é só isto: "Tu não conhecerás nada", o resto deduz-se disso. O pânico de Deus não o impede de ser astuto. Como defender-se contra a ciência? Foi este por longo tempo o seu grande problema. Resposta: saía o homem do paraíso! A felicidade, a ociosidade evocam os pensamentos, todos os pensamentos são maus pensamentos... O homem não deve pensar. E o "sacerdote" em si inventa a pena, a morte, o perigo mortal do embaraço, toda a espécie de misérias, a velhice, a inquietação, antes de tudo, a doença, nada mais senão meios de luta contra a ciência! A miséria não permite que o homem pense... E, apesar de tudo, ó espanto! A obra do conhecimento eleva-se gigantesca, escalando o céu, dando o toque do crepúsculo dos deuses. Que fazer? O antigo Deus inventa a guerra, separa os povos, faz com que os homens se aniquilem reciprocamente (os sacerdotes tiveram sempre necessidade da guerra...) A guerra é, entre outras coisas, um desmancha-prazeres da ciência. Incrível! O conhecimento, a emancipação do jugo sacerdotal aumentam apesar das guerras. E o Deus antigo adopta como derradeira decisão: "o homem tornou-se científico, é uma coisa que não serve para nada, cumpre afogá-lo!..."».

Frederico Nietzsche («O Anticristo»).


«Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas que, de certa forma, se impõe ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se, desde já, que o Antigo Testamento grego só usa duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor - eros, philia (amor de amizade) e ágape - os escritos neotestamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), este é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra ágape, denota sem dúvida, na novidade do Cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor. Na crítica ao Cristianismo, que se foi desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do Iluminismo, esta novidade foi avaliada de forma absolutamente negativa. Segundo Frederico Nietzsche, o Cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vícío [Jenseits von Gut und Böse, IV, 168). Este filósofo alemão exprimia, assim, uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna, porventura, amarga a coisa mais bela da vida? Porventura, não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo de Divino?





Mas, será mesmo assim? O Cristianismo destruiu verdadeiramente o eros? Vejamos o mundo pré-cristão. Os gregos - aliás de forma análoga a outras culturas - viram no eros sobretudo o inebriamento, a subjugação da razão por parte duma "loucura divina" que arranca o ser humano das limitações da sua existência e, neste estado de transtorno por uma força divina, falta-lhe experimentar a mais alta beatitude. Deste modo, todas as outras forças, quer do céu quer da terra, resultam de importância secundária: "Omnia vincit amor - o amor tude vence", afirma Virgílio nas Bucólicas e acrescenta: "et nos cedamus amori - rendamo-nos também nós ao amor" [X, 69]. Nas religiões, esta posição traduziu-se nos cultos da fertilidade, aos quais pertence a prostituição "sagrada" que prosperava em muitos templos. O eros foi, pois, celebrado como força divina, como comunhão com o Divino.

A esta forma de religião, que contrasta, qual fortíssima tentação, com a fé no único Deus, o Antigo Testamento opôs-se com a maior firmeza, combatendo-a como perversão da religiosidade. Ao fazê-lo, porém, não rejeitou de modo algum o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros, como aí se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o. De facto, no templo, as prostitutas, que devem dar o inebriamento do Divino, não são tratadas como seres humanos e pessoas, mas servem apenas como instrumentos para suscitar a "loucura divina": na realidade, não são deusas, mas pessoas humanas de quem se abusa. Por isso, o eros inebriante e descontrolado não é elevação, "êxtase" até ao Divino, mas queda, degradação do homem. Fica assim claro que o eros necessita de disciplina, de purificação para dar ao ser humano, não o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vértice da existência, daquela beatitude para a qual tende todo o nosso ser.

Dois dados resultam claramente desta rápida visão sobre a concepção do eros na história e na actualidade. O primeiro é que entre o amor e o Divino existe alguma relação: o amor promete infinito, eternidade - uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência. E o segundo é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição do eros, não é o seu "envenenamento", mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza».

Carta Encíclica Deus Caritas Est do Sumo Pontífice Bento XVI





O Sal da Terra




Que importância tem a crise actual da Igreja? É o maior desafio de sempre? E o que significa a crise da Igreja para o mundo? Declarou uma vez que a extinção da Igreja levaria a um desmoronamento espiritual cuja dimensão não podemos medir.

Quanto à primeira pergunta, não sei. É, com certeza,  um dos maiores desafios. Mas na Igreja antiga também tivemos dois enormes desafios. Um foi a gnose, quando se deu uma transformação gradual na Igreja, tanto do culto como da fé, em ideologias, em mitos e em imagens. Parecia estar a apoderar-se, pouco a pouco, de toda a Igreja. Quando hoje se lê isso, pensa-se que havia, de um lado, os gnósticos e, do outro lado, os Padres da Igreja. Mas não é verdade, pois as correntes estavam completamente envolvidas umas nas outras, o que só devagar pôde ser levado à clarificação. Também houve a tentativa, que se compreendia muito bem e que era muito convidativa, de afastar o Antigo Testamento para se limitar a S. Paulo. Houve momentos orientados para a busca da própria identidade, que eram extremamente complexos. Existia, quanto muito, um magistério central que se encontrava numa fase inicial e que poderia ter tido uma intervenção eficaz. Por isso, a disputa teve de ser resolvida, pouco a pouco, no interior. E o cristianismo poderia, facilmente, ter vindo a ser outra coisa. Julgo que foi uma grande crise, precisamente no início da Cristandade, quando esta tinha de se formar a si mesma.

Uma segunda crise, que não foi tão grave nem tão grande como a primeira, mas que foi um desafio importante, foi a crise ariana. Os imperadores apostaram temporiamente no arianismo, porque se conciliava mais facilmente com a mentalidade dominante. O modelo era que há um Deus, e depois há Cristo, que é um ser semelhante a Deus. Qualquer pessoa podia perceber isto. Todo o aparelho político foi usado para impor isto. Até os bispos cederam em grande número, conferências episcopais inteiras, se se quiser dizê-lo assim. Por fim todo o mundo germânico se tornou ariano, até que o mundo antigo (os romanos) era católico, e o mundo novo (os germanos) era ariano. Assim, também se julgava poder reconhecer facilmente em que direcção se encontrava o que é novo, onde se encontra o futuro.

Julgo que a crise do século XVI também foi grave, mesmo que não tocasse tanto as raízes, porque tinha permanecido a aceitação comum das confissões da fé. Mas as confusões internas da Igreja eram muito grandes, porque o elemento reformador se tinha dividido logo em movimentos diferentes, em partes radicais.

O que hoje vivemos talvez não seja, portanto, a partir deste ponto de vista, o maior desafio desde o início da História, mas é um desafio que chega às raízes.


Como foi possível que a crise da Igreja se pudesse agravar de tal modo? Gostaria primeiro de perguntar se não existem razões que possivelmente se possam encontrar fora da Igreja?

Há desde o início do Iluminismo uma forte corrente, à qual a Igreja parece ser algo antiquado. Quanto mais se desenvolvia o pensamento moderno, mais radical se tornou a questão. Mesmo que se desenvolvessem movimentos de retorno no século XIX, em geral, a tendência manteve-se. O que é aceitável de um ponto de vista científico, torna-se no critério supremo; mas assim surge - como se vê claramente em Bultmann - uma imposição da chamada concepção moderna do mundo, que se afirma de modo extremamente dogmático e que exclui intervenções de Deus no mundo, tais como milagres e a revelação. O Homem pode ter religião, mas ela encontra-se então na dimensão subjectiva e não pode, portanto, ter conteúdos objectivos, válidos para todos e dogmáticos; tal como o dogma parece contradizer a razão do Homem. Nestes ventos contrários da História, por assim dizer, encontra-se a Igreja, e estes ventos contrários da História continuarão.

Apesar disso mostra-se então, naturalmente, também a dimensão unilateral de uma posição iluminista radical, porque uma religião reduzida ao domínio simplesmente subjectivo já não tem força formadora, mas é o sujeito que se confirma a si mesmo. A racionalidade simples, que se limita às ciência naturais, também não pode responder às interrogações relevantes, às questões - donde vimos, o que sou, como devo viver, por que razão existo? Estas interrogações situam-se noutro nível de racionalidade. Não se podem entregar simplesmente à subjectividade ou à racionalidade. A Igreja, por isso, já não será, num tempo previsível, a forma de vida de uma sociedade inteira, já não haverá nenhuma Idade Média, pelos menos nos tempos mais próximos. Será sempre, por assim dizer, um movimento, ou até um movimento contrário à concepção predominante do mundo, mas, ao mesmo tempo, voltará também a mostrar sempre de novo como é, na sua necessidade e na sua fundação humana.

Já no fim do Iluminismo, antes da Revolução Francesa, se disse que o Papa, esse Dalai Lama da Cristandade, deve desaparecer definitivamente para que comece a época da razão. Ele desapareceu, de facto, por pouco tempo - no exílio em França. Mas o papado tornou-se mais forte no século XIX do que nunca tinha sido antes. E o cristianismo no século XIX não voltou a experimentar nenhuma força medieval nem nenhuma forma medieval, mas, em vez disso, viveu algo de muito mais belo, nomeadamente enormes ressurgimentos e efeitos sociais. Continuarão a existir duas correntes, grandes forças independentes uma da outra, mas que têm de procurar colaborar uma com a outra. A nova situação mundial torna a fé mais complicada, e decidir-se pela fé torna-se mais pessoal e difícil, mas não se pode deixar o cristianismo por o considerar antiquado.








A Igreja tem novos concorrentes, as pessoas comparam, medem e procuram novos refúgios. Talvez já fosse mais fácil para as gerações passadas preservar a força da fé, porque consideravam a sua religião como uma religião provada pelos antepassados, que já não se tem de pôr em questão. Hoje introduziu-se, nessa relação, um preconceito fundamental. Surgiu uma espécie de dogma secular moderno, segundo o qual a Igreja de baseia, em primeiro lugar, na opressão e no poder. Uma vez que, actualmente, as pessoas estão esclarecidas e os estados secularizados, seria consequente que a Igreja se tornasse cada vez menos popular.

Em relação a essa questão diria duas coisas; em primeiro lugar mostrou-se precisamente em sistemas repressivos que a Igreja não se deixa adaptar a uma concepção unitária do mundo, mas permanece como pólo contrário e existe como comunidade mundial, como uma força contra a opressão. O século XX mostrou de forma até então desconhecida que é precisamente a união comunitária, constituída pela Igreja, que forma uma força contrária que se opõe a todos os mecanismos políticos e económicos de opressão e de uniformização do mundo; dá um lugar de liberdade às pessoas e coloca, por assim dizer, um último limite à opressão. Os mártires viveram isto sempre, de modo exemplar, pelos outros. Observa-se tanto no Leste da Europa como na China, assim como na América do Sul e em África, que a Igreja é um elemento de liberdade. É precisamente um elemento de liberdade porque tem uma configuração comunitária que também inclui um compromisso comunitário. Se, a partir daí me empenho contra a ditadura, não o faço apenas em meu nome particular, mas a partir de uma força interior que vai para além do meu próprio eu e da minha subjectividade.

Quanto à segunda questão, diria que há uma ideologia que, no fundo, reduz tudo o que existe a um comportamento de poder. E essa ideologia destrói a humanidade e destrói também a Igreja. Dou um exemplo muito concreto: se só se vê a Igreja sob a perspectiva do poder, cada um que não exerce um ministério é logo um oprimido. E, então, por exemplo, a questão da ordenação das mulheres torna-se, como questão de poder, numa questão obrigatória, porque cada um tem de ter poder. Julgo que esta ideologia da suspeita, segundo a qual, no fundo, só se trata de poder em todo o lado, não destrói apenas a união na Igreja, mas destrói-a na vida humana em geral. Também dá uma perspectiva completamente falsa, como se o poder na Igreja fosse um fim último. Como se o poder fosse a única categoria para explicar o mundo e a comunidade que nele existe. Nós não estamos na Igreja para nela exercermos o poder numa associação. Se faz algum sentido pertencer à Igreja, então faz sentido porque nos dá a vida eterna e, assim, a vida verdadeira. Tudo o mais é secundário. Se isto não é assim, também todo o "poder" na Igreja que desce então para o nível de uma associação, é teatro absurdo. Julgo que temos de deixar essa ideologia de poder e essa redução, que ainda provêm da suspeita marxista.


O dogma da infalibilidade

(...) Permita que comecemos com um ponto que os protestantes resolveram realmente muito cedo, o dogma da infalibilidade. O que exprime este dogma, realmente? Está bem ou mal interpretado, quando se parte de que tudo o que diz o Santo Padre é automaticamente santo e está certo? Quero pôr esta questão no início deste cânon da crítica, porque, manifestamente, toca especialmente as pessoas, seja por que razões for.

Referiu-se a um erro. Este dogma, realmente, não significa que tudo o que o Papa diz é infalível. Significa simplesmente que no cristianismo existe uma última instância decisória, pelo menos, segundo a fé católica. Que, finalmente, as questões essenciais podem ser decididas de modo definitivo e que podemos ter a certeza de que a herança de Cristo está bem interpretada. Esse carácter absoluto está, de algum modo, presente em cada comunidade cristã de fé, só que não se refere ao Papa.

Também é claro para a Igreja Ortodoxa que as decisões do Concílio são infalíveis, na medida em que posso confiar nelas, quando dizem que aqui a herança de Cristo está bem interpretada, e é a nossa fé comum. Não é preciso que cada um, por assim dizer, o destile e o retire da Bíblia, mas à Igreja é dada a possibilidade da certeza comum. A diferença da ortodoxia é apenas que o cristianismo romano conhece, para além do concílio ecuménico, outra instância de confirmação, que é o sucessor de Pedro, que pode igualmente dar essa confrmação. O Papa aí está naturalmente ligado a condições que garantem - e que, além disso, lhe dão essa obrigação profunda - que não se decida segundo a própria consciência subjectiva, mas na grande comunidade da tradição.

Efectivamente levou muito tempo até que essa solução fosse encontrada.

Também houve concílios antes de haver uma teoria sobre os concílios. Os Padres do Concílio de Niceia, em 325, o primeiro Concílio, nem sabiam o que era um concílio; tinha sido o Imperador a convocá-lo. Apesar de tudo, já compreendiam que não tinham sido só eles a falar, mas que podiam dizer (o que depois também diz o Concílio dos Apóstolos): "Agradou ao Espírito Santo e a nós" (Act. 15, 28) - quer dizer que o Espírito Santo decidiu connosco, através de nós. O Concílio de Niceia fala de três primados que existem na Igreja - Roma, Antioquia e Alexandria. Nomeia instâncias de confirmação que estão todas as três ligadas à tradição segundo S. Pedro. Roma e Antioquia são as sedes episcopais de S. Pedro. Alexandria, como sede episcopal de S. Marcos, foi igualmente ligada à tradição de S. Pedro, nesta tríade.

Os bispos de Roma souberam muito cedo e muito claramente que se encontravam na tradição de S. Pedro e que tinham também, com essa responsabilidade, a promessa que os ajuda a corresponder-lhe. Isso tornou-se muito claro na crise ariana, quando Roma foi a única instância capaz de enfrentar o Imperador. O Bispo de Roma, que tem de escutar toda a Igreja e que não cria sozinho a fé, tem uma função que se encontra, em primeiro lugar, na sequência da promessa feita a S. Pedro. Só foi formulado conceptualmente, em definitivo, em 1870.

Martírio de S. Pedro em Roma


Talvez se devesse ainda referir que entretanto se compreende cada vez melhor, também fora da Cristandade católica, que, para o todo, é necessária uma instância capaz de manter a unidade. Isso manifestou-se, por exemplo, no diálogo com os anglicanos. Os anglicanos estão dispostos a reconhecer que existe, por assim dizer, uma condução providencial na ligação à tradição do primado de Roma, sem quererem relacionar directamente as palavras de S. Pedro com o Papa. Também noutras partes da Cristandade protestante se reconhece que a Cristandade deve, por assim dizer, ter um porta-voz que a exprime em pessoa. E na Igreja Ortodoxa também se elevam vozes que se manifestam de modo crítico perante a desintegração da Igreja em igrejas autocéfalas (igrejas nacionais) e, em vez disso, consideram que faz sentido o recurso ao princípio de S. Pedro. Não é um reconhecimento do dogma romano, mas as convergências tornam-se cada vez mais evidentes.


(...) O celibato

Curiosamente, não há nada que enfureça tanto as pessoas como a questão do celibato. Embora só diga respeito a uma parte minúscula do povo da Igreja. Por que razão existe o celibato?

Liga-se a uma palavra de Cristo. Nela se diz que há aqueles que renunciam ao casamento por causa do Reino dos Céus e que dão testemunho, com toda a sua existência, do Reino dos Céus. A Igreja chegou, muito cedo, à convicção de que ser padre significa dar este testemunho pelo Reino dos Céus. Podia referir-se objectivamente de modo análogo a um paralelo, de outra natureza, no Antigo Testamento. Israel entra na terra prometida. Cada uma das onze tribos recebe a sua terra, o seu território. Só a tribo de Levi, a tribo dos sacerdotes, não recebe nenhuma terra, não recebe nenhuma herança; a sua herança é Deus só. De um ponto de vista prático, isto significa que os que pertencem a essa tribo vivem de ofertas para o culto e não, como outras tribos, do cultivo da terra. O ponto essencial é que não têm propriedade. No salmo 16 diz-se: Tu és a parte da minha taça, és Tu que garantes a minha sorte, Deus é a minha herança. Esta figura, que a tribo dos sacerdotes no Antigo Testamento é uma tribo sem terra e vive, por assim dizer, de Deus - e, assim, dá realmente testemunho d'Ele - foi, mais tarde, traduzido do seguinte modo, em ligação à palavra de Jesus: a terra de vida do padre é Deus.

Hoje é tão difícil compreender esta forma de renúncia, porque mudou consideravelmente a atitude em relação ao casamento e aos filhos. Antigamente, ter de morrer sem filhos significava que se tinha vivido em vão; desaparece o meu próprio rasto de vida, e estou completamente morto. Se existem filhos meus, continuo a viver neles, e tenho uma espécie de imortalidade através da descendência. Por isso, ter descendência e permanecer, desse modo, na terra dos vivos, é a condição suprema de vida.

A renúncia ao casamento e à família deve ser compreendida a partir desta perspectiva, do seguinte modo: renuncio ao que, de um ponto de vista humano, não é apenas o mais normal, mas também o mais importante. Renuncio a produzir na árvore da vida, a ter uma própria terra da vida, e vivo na fé de que a minha terra é, realmente, Deus - assim torno crível para os outros que existe o Reino dos Céus. Não dou somente com palavras testemunho de Jesus Cristo, do Evangelho, mas com este modo específico de existir, e ponho, desta forma, a minha vida à disposição d'Ele.


Assim, o celibato tem, ao mesmo tempo, um sentido cristológico e apostólico. Não se trata simplesmente de poupar tempo, porque, como não sou pai de família, até disponho de um pouco mais de tempo; isto seria demasiado primitivo e pragmático. Trata-se, realmente, de uma existência que aposta inteiramente em Deus e que omite aquilo que normalmente torna uma existência humana adulta e auspiciosa.

Por outro lado, não se trata de nenhum dogma. Será que um dia se poderá rever a questão, no sentido de uma livre escolha entre forma de vida celibatária e não-celibatária?

Não é certamente um dogma. É um hábito de vida que se estabeleceu muito cedo na Igreja, por bons motivos bíblicos. Investigações mais recentes revelam que o celibato é muito anterior - que chegou a existir no século II - do que indicam as fontes jurídicas conhecidas. No Oriente, primeiro também esteve muito mais difundido do que pudemos verificar até à data. Aqui, os caminhos só se separam no século VII. No Oriente, a vida monástica continua a ser o estrato que suporta o sacerdócio e a hierarquia; o celibato tem, portanto, uma importância muito grande.

Não é nenhum dogma. É uma forma de vida que se desenvolveu na Igreja e que naturalmente envolve sempre o perigo de uma queda. Quando se aposta tanto, há quedas. Julgo que o que hoje revolta as pessoas contra o celibato é verem quantos padres, no fundo, não concordam com ele, que ou o vivem de uma forma hipócrita ou mal, ou que não o vivem de todo ou que só o vivem de modo atormentado e dizem...


... ele destrói as pessoas...


Quanto mais pobre é uma época no que respeita à fé, mais frequentes se tornam as quedas. Desse modo, o celibato perde a credibilidade, e o que significa realmente não se manifesta. Mas é preciso perceber que épocas de crise do celibato são também épocas de crise do casamento. Porque hoje não observamos apenas as rupturas do celibato, o próprio casamento torna-se cada vez mais frágil como fundamento da nossa sociedade. Nas legislações dos Estados ocidentais vemos como o casamento é, cada vez mais, posto num mesmo nível com outras formas de vida, e assim também é, em grande medida, dissolvido como forma jurídica. O esforço de realmente viver o casamento, também não é, afinal, menor. Para o dizer de uma forma prática: depois da abolição do celibato só teríamos outro tipo de problemática com os padres divorciados. A Igreja protestante não desconhece isto. Vê-se assim que as formas elevadas da existência trazem em si o seu grande risco.

Não deduziria daí que agora achemos que já não podemos mais, mas que temos de voltar a aprender a acreditar. E que, claro, tenhamos de ser ainda mais cuidadosos na escolha dos candidatos ao sacerdócio. Trata-se de que alguém só o aceite realmente de livre vontade e não diga; enfim, quero ser padre, não tenho outro remédio senão o de levar também esse fardo. Ou que alguém diga: não ligo muito a isso, não há-de ser nada. Isto não é um ponto de partida aceitável. O candidato ao sacerdócio tem de reconhecer a fé como uma força na sua vida, e tem de saber que só pode viver o celibato na fé. Então o celibato também se poderá tornar num testemunho que volta a dizer algo às pessoas e que também lhes volta a dar coragem para o casamento. Ambas as instituições estão estreitamente ligadas. Se uma fidelidade já não é possível a outra também já não existe; apoiam-se mutuamente.

João Paulo II e Joseph Ratzinger


É uma suposição, quando diz que existe uma relação entre a crise do celibato e a crise do casamento?

Parece-me que isso é evidente. Em ambos os casos, encontramos a questão de uma decisão de vida definitiva no centro da própria personalidade: posso dispor já hoje, digamos, com vinte cinco anos, de toda a minha vida? É algo que se adequa ao Homem? Será possível aguentar isso e crescer vivamente e amadurecer - ou não tenho antes de me manter constantemente aberto a novas possibilidades? No fundo, a questão é a seguinte: faz parte do Homem a possibilidade do definitivo no âmbito central da sua existência? Pode aguentar uma ligação definitiva, precisamente na decisão que respeita ao seu modo de vida? Diria duas coisas, ele só o pode quando se encontra realmente num grande enraizamento de fé; e, segundo, só então ele chega à forma plena do amor humano e da maturidade humana. Tudo o que não é casamento monogâmico é de menos para o Homem.

Mas se os números sobre as rupturas do celibato estão certos, então o celibato de facto já não existe há muito tempo. Pergunto-lhe outra vez: não será um dia possível negociar esta questão no sentido de uma escolha livre?

A escolha tem, em todo o caso, de ser livre. Antes da ordenação, até tem de se fazer uma promessa solene, confirmando que é o que se quer e que se faz livremente. Por isso, não me agrada muito que depois se diga que se tratou de um celibato obrigatório, e que foi imposto. Isso contradiz a palavra dada no início. Na formação dos padres é preciso prestar especial atenção a que esta palavra seja levada a sério. É o primeiro ponto. O segundo é que também se desenvolve esta força onde a fé está viva e na medida em que uma Igreja vive a fé.

Julgo que ao desistir destas condições, no fundo, nada melhora, mas que se procura passar por cima de uma crise de fé. Claro que é uma tragédia para uma Igreja, quando muitos levam mais ou menos uma vida dupla. Infelizmente, não é a primeira vez na História que acontece. Na Baixa Idade Média tivemos uma situação semelhante que acabou por ser uma das causas da Reforma protestante. É um processo trágico, sobre o qual é preciso reflectir, quanto mais não seja por causa das pessoas que, na verdade, sofrem profundamente. Mas julgo que, e segundo se concluiu no último Sínodo dos Bispos, a convicção da maioria dos Bispos é que a verdadeira questão reside na crise da fé; através desta chamada dissociação entre o sacerdócio e o celibato não teríamos nem melhores nem mais padres, mas estaríamos a iludir uma crise de fé e a procurar soluções de uma forma superficial.






(...) A contracepção

Senhor Cardeal, muitos fiéis não compreendem a atitude da Igreja em relação à contracepção. Compreende por que não a compreendem?

Sim, pode-se compreender muito bem, é realmente complicado. Com as dificuldades do mundo actual em que o número de crianças não pode ser mais elevado, por causa das condições de habitação e por muitas outras razões, compreende-se muito bem. Devíamos agarrar-nos menos à casuística do caso individual, mas olhar para as grandes intenções da Igreja.

Julgo que, neste contexto, se trata de três opções essenciais. A primeira é adoptar, fundamentalmente, uma atitude positiva em relação ao lugar da criança na humanidade. Verifica-se neste domínio uma mudança curiosa. Enquanto que a benção dos filhos era considerada uma benção por excelência nas sociedades simples até ao século XIX, hoje as crianças são quase consideradas como uma ameaça. Pensa-se que nos tiram o lugar do futuro, ameaçam o nosso espaço vital, etc. Trata-se de uma primeira intenção, de voltar a encontrar a perspectiva originária, a verdadeira perspectiva, segundo a qual a criança, o Homem novo, é uma benção. Que é precisamente por darmos a vida que também recebemos a vida e que este sair de si e aceitar a benção da criação é fundamentalmente bom para o Homem.

O segundo ponto é que hoje estamos perante uma divisão entre sexualidade e procriação, que antes se desconhecia, que torna necessário que se considere a relação interior entre ambas.






Entretanto são feitas declarações espantosas por representantes da geração de 68, que fizeram essa experiência. Rainer Langhaus, por exemplo, que dantes procurava nas suas comunidades a "sexualidade orgásmica", afirma que "através da pílula, a sexualidade foi isolada do seu elemento espiritual. As pessoas foram enviadas para um beco sem saída". Langhaus lamenta que agora "já não haja nenhuma doação de si mesmo, nenhuma entrega". O "mais elevado" da sexualidade, assim afirma hoje, é a "paternidade e a maternidade". Chama a isto "colaboração com o plano de Deus".

Desenvolve-se cada vez mais no sentido de serem duas realidades completamente separadas. Encontramos em Aldous Huxley, no célebre romance de ficção Admirável mundo novo, uma visão muito fundada e muito clara, na sua dimensão trágica humana, de um mundo vindouro em que a sexualidade está totalmente separada da procriação. As crianças são planeadas segundo regras e fabricadas em laboratórios. É uma caricatura intencional, mas, como todas as caricaturas, revela alguma coisa; que a criança deve ser planeada e fabricada, e sujeita ao controlo da razão. E, assim, o Homem destrói-se a si mesmo. As crianças transformam-se em produtos em que as pessoas se querem representar a si mesmas; antes das crianças nascerem, já se lhes roubou o seu próprio projecto de vida. E a sexualidade, por sua vez, tornou-se nalguma coisa de substituível. Claro que também se perde a relação entre mulher e homem; vemos como esta situação se desenvolve.

Na questão da contracepção trata-se, pois, de tais opções fundamentais, que a Igreja quer que o homem seja ele mesmo. Porque a terceira opção, neste contexto, é que não se pode resolver grandes problemas morais, simplesmente com técnicas, com química, mas que é preciso resolvê-los moralmente através de um estilo de vida. Este é, julgo eu, independemente da contracepção, um dos nossos grandes perigos; o facto de também querermos dominar a existência humana com a técnica e de já não sabermos que existem problemas humanos originários que não podem ser resolvidos através da técnica, mas que exigem um estilo de vida e certas decisões de vida. Em relação à contracepção diria que se devia considerar mais estas grandes opções fundamentais em que a Igreja luta pelo ser humano. E pô-lo em evidência é o sentido das intervenções da Igreja, que talvez não sejam sempre formuladas de modo feliz, mas nas quais estão em jogo as grandes orientações da existência humana.


(...) A ordenação das mulheres


Conversão de Paulo de Tarso na estrada de Damasco.


Também em relação a outra questão, à questão da ordenação das mulheres, o não absoluto foi apresentado "pelo magistério de modo infalível". Isto voltou a ser confirmado pelo Papa no Outono de 1995. "Não temos o direito de mudar isso", assim se diz na declaração. É, mais uma vez, o argumento histórico que conta. Mas se se leva isto a sério, nunca poderia ter havido um S. Paulo, porque tudo o que é novo também tem de abolir coisas sagradas antigas. S. Paulo fez coisas novas. A questão é: quando se pode acabar com determinada regra? O que acontece com o que é novo? E encurtar a História não pode ser uma idolatria que não é compatível com a liberdade do cristão?

Julgo que aí é necessário precisar alguns pontos. O primeiro é que S. Paulo fez algo de novo em nome de Cristo, mas não em seu próprio nome. E também apresentou, de modo muito claro, que age mal quem, por um lado, reconhece a revelação do Antigo Testamento como sendo válida e, por outro lado, muda algumas coisas por iniciativa própria. O novo pôde vir, porque Deus o tinha colocado em Cristo. E, como servidor desta novidade, ele sabia que não a tinha inventado, mas que isso emanava da novidade do próprio Jesus Cristo. Esta novidade tem, pelo seu lado, as suas ligações; e aí ele era muito severo. Se pensar, por exemplo, no relato da última ceia, ele diz explicitamente: "Eu mesmo recebi o que vos transmiti", e deste modo, explica claramente que está ligado ao que o Senhor fez na última noite e que ele recebeu da tradição. Do mesmo modo, quando fala do anúncio da Ressurreição, diz novamente: recebi isto e também O encontrei pessoalmente. E assim ensinamos a todos; e quem não o faz, afasta-se de Cristo. S. Paulo distingue muito claramente entre o novo que vem de Cristo, e a ligação a Ele, que é o que lhe dá legitimação para fazer o que é novo. É o primeiro ponto.

O segundo ponto é que, de facto, se realizam constantemente mudanças em todos os domínios que não são realmente determinados pelo Senhor e pela tradição apostólica - também hoje. A questão é a seguinte: vem do Senhor ou não vem do Senhor? E como se reconhece se vem d'Ele ou se não vem d'Ele? A resposta, confirmada pelo Papa, que nós, a Congregação para a Doutrina da Fé, demos sobre o tema da ordenação das mulheres, não diz que o Papa agora se pronunciou infalivelmente sobre este ponto. O Papa constatou, antes de mais, que a Igreja, os bispos em todos os lugares e em todos os tempos ensinaram sempre assim e mantiveram essa prática. O Concílio Vaticano II diz: é infalível, é expressão de uma ligação que não criaram eles mesmos, onde os bispos, ao longo de muito tempo, ensinam e praticam, unitariamente. A resposta apoia-se neste passo do Concílio (Lumen gentium 25). Não é, portanto, como já referi, um acto de infalibilidade estabelecido pelo Papa, mas o carácter obrigatório baseia-se na continuidade da tradição. E essa continuidade da origem tem, realmente, importância. Porque nunca foi evidente. As religiões antigas tiveram sacerdotisas, e nos movimentos gnósticos voltou a ser assim. Um investigador italiano descobriu há pouco que no Sul de Itália, nos séculos V e VI, diversos grupos tiveram sacerdotisas, e que os bispos e o Papa se opuseram logo. A tradição não se desenvolveu a partir do mundo em redor, mas a partir do interior do cristianismo.






Ainda acrescentaria uma informação que me parece ser muito interessante. É um diagnóstico sobre este problema, feito por uma das feministas católicas mais importantes, Elisabeth Schüssler-Fiorenza. É alemã, uma exegeta conhecida, que estudou exegese em Münster, se casou lá com um italo-americano e que hoje ensina na América. Começou por participar fortemente na luta pela ordenação das mulheres, mas actualmente diz que se tratou de um objectivo errado. A experiência feita com mulheres ordenadas na Igreja Anglicana levou-a a reconhecer: ordination is not a solution ("a ordenação não é solução"), não é o que queríamos. E também explica, porquê. Diz: ordination is subordination, portanto, a ordenação é subordinação - significa inserir-se numa ordem estabelecida e subordinar-se, e é exactamente o que não queremos. E aí faz um diagnóstico correcto.

Entrar numa "ordo" significa sempre entrar numa relação em que uma pessoa se insere na ordem existente e se subordina. No nosso movimento de libertação, assim diz Elisabeth Schüssler-Fiorenza, não queremos entrar numa "ordo" nem numa "subordo", numa subordination, mas é precisamente este fenómeno que queremos superar. A nossa luta - assim nos diz ela - não deve, portanto, visar a ordenação das mulheres; se é esse o objectivo, fazemos o que está errado, mas a nossa luta deve visar que a ordenação acabe de todo e que a Igreja se transforme numa comunidade entre iguais em que só haja uma shifting leadership, portanto, uma liderança que mude. Viu isto correctamente, a partir de motivações interiores, a partir das quais se luta pela ordenação das mulheres, em que, na realidade, se trata de participação no poder e de libertação da sujeição. É então preciso dizer que por detrás se esconde, realmente, a pergunta: o que é o sacerdócio? O sacramento existe ou deve apenas existir uma liderança que mude em que não seja dado a ninguém o acesso permanente ao "poder"? Julgo que, neste sentido, a discussão talvez mude um pouco no decorrer dos tempos mais próximos.

(...) Neste contexto, formou-se manifestamente algo como um cristianismo de civilização ocidental-liberal, uma espécie de fé secularizada, à qual muitas coisas são indiferentes. Esta cultura, que muitas vezes já não tem muito a ver com a essência do cristianismo - ou, neste contexto, com a essência do catolicismo - parece tornar-se, claramente, mais atraente. Tem-se a impressão que, pelo menos de um ponto de vista teológico, a Igreja hierárquica não tem quase nenhuma objecção a fazer a esta filosofia representada especialmente por Eugen Drewermann

A onda Drewermann já está a deixar de estar na moda. O que ele defende é apenas uma variante da cultura geral de uma fé secularizada de que falou. Diria que não se quer prescindir da religião, mas pretende-se que ela se limite a dar e não a colocar exigências ao Homem. Quer-se ter a dimensão misteriosa da religião, mas não ter o esforço da fé. As formas múltiplas desta religião, da sua religiosidade e da sua filosofia estão hoje reunidas na expressão "New Age". O objectivo é uma espécie de união mística com o fundamento divino do mundo; diversas técnicas devem conduzir a este fim. Julga-se que assim se pode experimentar a religião na sua forma mais elevada e, ao mesmo tempo, permanecer inteiramente na concepção científica do mundo. Perante isto, a fé cristã parece ser complicada; não é, sem dúvida, fácil para ela. Mas graças a Deus não faltaram grandes pensadores cristãos no nosso século e figuras exemplares da vida cristã. Nelas torna-se visível a presença da fé cristã, e vê-se que ela ajuda no sentido da realização plena do ser humano. Por isso há, precisamente, na geração jovem, novos ressurgimentos de uma vida cristã decidida, mesmo que não se possa tornar um movimento de massas.












(...) O cristianismo nunca esteve tão difundido no mundo inteiro como hoje. Mas a sua propagação não significa logo o bem no mundo.

De facto, a propagação quantitativa do cristianismo, que não se mede pelo número dos que o professam, não leva automaticamente à melhoria do mundo, porque nem todos os que se dizem cristãos o são realmente. O cristianismo só tem indirectamente efeito na formação do mundo, através das pessoas e da liberdade delas, Não é, só por si, a instituição de um novo sistema político e social que excluiria a desgraça.

Que significado tem a existência do mal em relação à redenção ou à não-redenção?

O mal tem poder através da liberdade do Homem e cria então as suas estruturas. Porque existem, manifestamente, estruturas do mal. Elas formam-se numa pressão exercida sobre o Homem, também podem bloquear a sua liberdade e construir um muro perante a entrada de Deus no mundo. Deus, em Cristo, não venceu o mal no sentido em que o mal já não pudesse tentar a liberdade do Homem, mas Ele ofereceu levar-nos pela mão e conduzir-nos, mas Ele não nos força.

Quer dizer que Deus tem poder de menos sobre este mundo?

Em todo o caso, Ele não quis exercer o poder como nós o imaginamos. Claro que esta é, precisamente, a pergunta que também eu, como formulou no início deste diálogo, faria ao "espírito do mundo": por que é que permanece tão impotente? Por que é que exerce o poder deste modo curiosamente fraco, como Crucificado, como alguém que fracassou? Mas é, manifestamente, o modo como Ele quer exercer o poder, é o modo divino de poder. E noutro modo, na imposição e no uso da violência, encontra-se manifestamente, um modo de poder que não é divino.

Volto à pergunta inicial: o estado do mundo não tem de nos abalar, tal como se exprime nas palavras "requiem satânico" do século XX?

O que sabemos, enquanto cristãos, é que o mundo está sempre nas mãos de Deus. Mesmo que o Homem se desligue d'Ele e caminhe para a destruição, no fim do mundo Ele instituirá um princípio novo. Mas nós, ao crermos n'Ele, agimos para que o Homem não se desligue d'Ele e para que, nessa medida, na medida em que nos é possível, o mundo possa viver de novo como Sua criação e o Homem como Sua criatura.

Mas também é possível o diagnóstico pessimista. Que a ausência de Deus - Metz, usando uma expressão curiosa, falou de Gotteskrise (crise de Deus) - se torne tão forte que o Homem seja lançado na confusão moral e que nos encontremos perante a destruição do mundo, o Apocalipse, o fim. É alguma coisa com que também temos de contar. O diagnóstico apocalíptico não pode ser excluído, mas mesmo então Deus protege os homens que O procuram; o amor é, afinal, mais poderoso do que o ódio.






(...) Ecumenismo e unidade

Já referiu que para o Papa João Paulo II a unidade dos cristãos é a grande perspectiva do milénio que chega ao fim. A Igreja Católica Romana fez propostas de abertura, fez com que houvesse diálogos interconfessionais a nível teológico. Na encíclica ""Ut unum sint", publicada em Maio de 1995 sobre as questões do ecumenismo, o Papa expressa a esperança de que "no limiar do novo milénio..., um momento extraordinário..., a unidade entre todos os cristãos possa desenvolver-se, até que se chegue à comunidade plena". Porque "a divisão contradiz manifestamente a vontade de Cristo, é um escândalo para o mundo..." Será que esta unidade da Cristandade é possível? Porque na encíclica que citei também se diz que "qualquer forma de redução ou de concordância fácil" tem de ser absolutamente evitada.

A questão sobre os modelos de unidade é uma questão grande e difícil. Primeiro trata-se de perguntar: o que é possível? O que podemos esperar, o que não podemos esperar? E, em segundo lugar: o que é realmente bom? Não ouso esperar uma unidade absoluta da Cristandade, inerente à História. Vemos como, enquanto hoje se verificam esforços de unificação, há, continuamente, mais fragmentações. Não se formam apenas constantemente novas seitas, entre as quais também seitas sincretistas com grandes componentes pagãs e não-cristãs; também as divisões nas próprias igrejas se tornam maiores, tanto nas igrejas reformadas, nas quais é cada vez mais profunda a divisão entre os elementos mais evangélicos e os movimentos modernos (também verificamos no protestantismo alemão como ambas as correntes de afastam uma da outra), como também na ortodoxia. Aqui existe sempre, por assim dizer, uma unidade menos forte por causa das igrejas autocéfalas, mas aí também há movimentos de divisão; vemos o mesmo fermento em acção. E na Igreja Católica também há divisões muito profundas, de modo que às vezes se tem realmente a sensação de que numa Igreja vivem duas igrejas ao lado uma da outra.

É preciso ver ambos os aspectos, por um lado, a aproximação da Cristandade separada, por outro lado, como, ao mesmo tempo, surgem mais divisões internas. É preciso acautelarmo-nos com a esperança utópica. É importante que reflictamos sempre sobre o essencial. Que cada um tente, por assim dizer, ultrapassar-se a si mesmo e apreender, com fé, a verdadeira essência. Já se conseguiu muito se não houver mais divisões. E se compreendermos que, estando divididos, podemos estar unidos em relação a muitas questões. Não penso que possamos chegar mais rapidamente a grandes "uniões confessionais". É muito mais importante que nos aceitemos mutuamente com grande respeito interior, sim, com amor, que nos reconheçamos como cristãos e que procuremos dar um testemunho nas questões essenciais, tanto para a formação correcta na ordem do mundo como para a resposta às grandes perguntas sobre Deus, a origem e o destino do Homem.

(Ibidem, pp. 124-125; 127-129; 152-159; 163-166; 171-172 e 187-188).









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